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25.7.23

Perambulando pelos bares noite a dentro, por Geraldo Almeida Borges



Teresina é uma cidade repleta de bares e botecos por todos os lados e por todas as esquinas. O bar Café Avenida não ficava em nenhuma avenida, como reparou o poeta Edmar Oliveira. Hoje seu espaço não passa de um estacionamento do Luxor Hotel. Nos seus de tempos de glória era frequentado principalmente pelos sírio-libaneses, a comunidade árabe, no final da tarde, na saída do expediente comercial. Era como se o bar fosse uma extensão da casa deles, de tanto que ficavam à vontade. Ali, conversavam em seu idioma natal. Ninguém compreendia patavina do que estavam dizendo, provavelmente falavam de seus negócios.

Como tudo tem seu tempo, chegou a minha vez de começar a frequentar e conhecer os bares da cidade. Mas, antes de me sentar no bar Carnaúba e começar a beber com os amigos, preciso falar de um bar muito mais antigo. Chamava-se bar Carvalho e ficava na praça Rio Branco. Ainda o alcancei. Foi lá que tomei a minha primeira cerveja na companhia de um tio. E fiz a minha iniciação etílica. 

Voltemos ao bar Carnaúba, que foi o primeiro com o qual me habituei. Ali, sentados, com os amigos, os cotovelos em cima da mesa, copos espumando de cerveja, servidos por uma garçonete bonita, sorridente, e que todo freguês desejava. Discutíamos sobre política e putaria. O bar ficava do lado do Theatro 4 de Setembro. Teve o destino de quase todos os bares, um dia desapareceu. Mas a gente sempre encontrava um bar de portas abertas, como um templo nos esperando.

Um dia encontrei um bar onde demorei mais tempo bebendo. Este parece que não ia se acabar tão cedo. Também se  acabou. Era o Gelate, que ficava na avenida Frei Serafim, defronte da casa de sobrado do poeta Durvalino Couto. Ali bebia a turma dos meninos que escreveram as edições do jornal Gramma, e que marcou profundamente a história cultural piauiense. O dono do bar era o Raimundo. O seu tira-gosto era delicioso. Mas só começava a servi-lo quando já estávamos na terceira cerveja. Ninguém sabia de que era feito. Estalava na boca como torresmo. Um dia ele nos revelou o segredo do tira-gosto. Falou para mim que era tripa de galinha torrada.

Andando de bar em bar, perambulando pelas ruas de Teresina e falando dos bares que não existem mais, podemos citar o bar Acadêmico, que ficava na praça Pedro Segundo, o bar do Setenta e um, que ficava na esquina do Fripisa, no chamado Alto da Moderação, onde funcionou o antigo Mercado Novo, o bar e livraria Punaré perto da praça João Luiz Ferreira, do professor e sociólogo Antônio José Medeiros. 

Quem bebe nunca se lembra de todos os bares e botecos por onde andou, embora tenha os seus preferidos. Bendito esquecimento. No momento me recordo do bar do Sebastião, perto do beco, na saída do beco. Era um boteco onde se tirava água do joelho em uma lata detrás de um biombo de madeira. Ali tomei muita cachaça com o meu primo Alberoni Lemos. Tinha os bares da Paissandu, dos cabarés. Toda casa de tolerância era um bar, onde, geralmente, se bebia na companhia de mulheres; também se acabaram. Tinha o bar da Maria Tijubina para o mais discretos. Para os mais escandalosos, era Maria Tabaco de Sola. Muitos artistas e intelectuais em visita a Teresina terminavam a noite por lá para comer panelada, ou mão de vaca, eram levados pelo Açaí Campelo. Ficava à margem da estada de ferro, no Mafuá. Alguém deu na veneta de fazer um curado para o Metrô, e lá se foi o bar da Maria.

Tinha o bar da Ria Ana, com suas mesas rústicas, na calçada, cobertas com toalhas quadriculadas; era o bar da moça Rita Maria, ou melhor, Ritinha. O bar do meu primo Humberto, no bairro Porenquanto, com suas cadeiras na calçada debaixo das sombras das mangueiras, onde o poeta Sid Abreu dava o ar de sua graça, bebendo dose de pinga e recitando poesia. Tenho certeza que me esqueci de muitos bares, onde me embriaguei. Lembrei, agora mesmo, foi bar do Tetéu, que ficava no coração da praça Saraiva. E funcionava a noite toda. Não posso me esquecer do bar do Santana. Este parece que ainda existe. Talvez seja um dos bares mais antigos de Teresina. Já mudou de lugar algumas vezes. Mas sempre levava os seus fregueses. Faltava falar no bar Nós e Elis. Pronto. Está falado. Já foi até objeto de um livro. A palavra para ele é saudade. Momento de curtição, existencialismo, e muitos encontros inesquecíveis. Ficamos sem o bar e perdemos uma grande estrela. mas não vamos perder os bares, embora eles desapareçam, da noite para o dia, outros os substituem, e até parecem os mesmos, com os seus garçons solícitos, nos enchendo os copos de cerveja com colarinho ou sem colarinho.



Geraldo Almeida Borges
em Província Submersa - Crônicas Teresinenses (século XX) 
Personagens, mitos e monumentos
Editora Caetés: Rio de Janeiro, 2011.


28.1.16

UM ESTRANHO EM TERESINA, Cunha e Silva Filho




Estive há pouco em Teresina e desta feita me achei um peixe realmente fora d’água, um estranho no ninho. Não que o desejasse, mas a culpa, leitor, é unicamente minha. Quem manda não a ter frequentado mais amiúde.

Da janela do hotel, lá fora, dava uma espiada para o que poderia ver que valesse a minha atenção ou curiosidade. Pois não é que procurei e achei. Era a visão de uma mulher, em plena tarde de um sol escaldante, caminhando, caminhando, caminhando, debaixo de uma sombrinha. Claro que não foi só aquela mulher que portava uma sombrinha para abrigar-se do sol abrasante. Não me lembro de outras vezes que andei por Teresina de reparar nesse costume local, aliás, bem justo e necessário, de usar uma sombrinha contra o rigor solar. Esse hábito me parece ser apenas feminino, já que não vira nenhum homem utilizando um guarda-sol.

Aqui no Rio de Janeiro, usar uma sombrinha ou guarda-chuva, em pleno calorão, não é comum como na “Cidade Verde”. Lá é hábito; aqui, é exceção, chega mesmo a ser constrangimento para quem dele faz uso com receio de se ver vítima de um gaiato qualquer perguntar-nos se está por acaso chovendo. O carioca sofre, mas não abre o guarda-sol. “Os cariocas somos pouco dados” aos guarda-chuvas, ou chapéu de sol ou muito menos a uma sombrinha, para nos intrometermos, sem sermos chamados, no labiríntico intertexto machadiano.

Das últimas vezes que fui a Teresina não me passava pela cabeça um persistente temor de violência. Não me queira por isso na conta dos paranoicos, dessas criaturas que, nas grandes cidades, passam a ter medo de tudo diante da disparada da violência dos últimos anos.

Confesso-lhe, leitor, porém, que, em Teresina, só andei mais em carro particular que, no meu caso, era do meu amigo, o ensaísta M. Paulo Nunes, de sorte que não me expus à sanha de algum pivete ou assaltante.

Num final de manhã, notei que, no hotel, não dispunha de papel para escrever, nem de caneta; a que trouxera comigo na viagem se perdeu não sei onde. Lá fui às ruas de Teresina. Algumas delas eu conhecia de priscas eras. Com o tempo, a gente perde um certo traquejo de andar por ruas de nossa cidade. Entretanto, o “eu” do presente era outro, e as ruas, à altura em que as podia identificar, não ficavam em trechos por mim palmilhados com assiduidade no passado.

Mesmo assim, criei coragem e, vendo o nome de uma rua e de outra, alguma, conhecida, outra, não, fui dar na bela Av. Frei Serafim, que divide dois lados de parte da cidade. Indaguei aqui, ali e, por fim, consegui encontrar uma papelaria. Comprei um caderninho escolar de poucas folhas e uma caneta azul. Lembrei-me, então, que teria que comprar um exemplar da edição daquele dia do jornal Meio-Norte. No hotel, depois do café, já havia passado uma vista no exemplar que me interessava, aquele no qual havia uma reportagem sobre mim a propósito de conferência que iria fazer na Academia Piauiense de Letras. A reportagem tinha sido feita no dia anterior por ocasião do lançamento, no Museu Odilon Nunes, de mais um número da excelente revista Presença, com apresentação de M. Paulo Nunes. Procurei o exemplar em mais de uma banca até que o encontrei. A reportagem exibindo foto minha, saíra bem escrita, mas continha um erro. A jornalista que me entrevistara omitira do meu nome literário, a palavra “Filho”. Sem querer, virei o nome de papai. Ainda bem que estava em boas mãos paternas e na mídia jornalística que ele tanto amava.

Voltando a Teresina, tópico principal desta crônica, pude observar outras coisas. Me convenci por completo  de que sou um estranho na cidade. Perdi mesmo o bonde da história de Teresina.

A minha Teresina não é a de hoje. Ela ainda existe e se estende por todo o velho centro da urbe. Lá vejo, intactos, alguns pontos de referências; o Theatro 4 de Setembro, o Rex, a Praça Rio Branco (o relógio!), o prédio do Arquivo Público (ó tempos da infância!) da rua Coelho Rodrigues e que, hoje, comporta também o Conselho Estadual de Cultura, a Praça Pedro II, o Karnak, a Praça João Luis Ferreira, o antigo Prédio dos Comerciários (que, um dia, fora o mais alto edifício da cidade), a Praça do Liceu (ah, sim, Landri Sales!), o Liceu Piauiense, as igrejas de São Benedito, a minha preferida, a do Amparo, a das Dores, a Praça da Bandeira, muito modificada e maltratada, e principalmente as queridas e amorosas ruas da velha Teresina, nas quais tudo nelas me leva inexoravelmente ao passado. Ah, ia-me esquecendo, o velho rio Parnaíba, o Poti (agora com sua enchente e suas vítimas). Enfim, esse passado soterrado no tempo, me está, contudo, vivo e ora me leva à alegria, ora à melancolia. 

O que não se circunscreve a essas ruas, a esses prédios, a essas arquiteturas variadas alcançadas pela minha geração não parece fazer parte da minha memória. A Teresina nova, trepidante, dos arranha-céus não me atrai. Essa Teresina verticalizada se iguala às outras metrópoles, vira mesmice. Nada tem a ver comigo em Teresina.

Relendo os belíssimos poemas de Paulo MachadoPost card/57” e “Post card/77” extraídos do livro Tá pronto, seu lobo? e “Nas ruas da minha cidade há lições? (É preciso aprendê-las)", retirado do livro A paz no pântano (1982), que se encontram na antologia A poesia piauiense no Século XX, de Assis Brasil, vejo que a poesia de Paulo Machado, de alguma forma, me conforta e não me deixa esquecer essa Teresina. Os dois primeiros poemas citados se valorizam pela riqueza semântica resultante de sua arquitetura contrapontística em termos de realidades espaciais semelhantes aliadas a realidades temporais diversas. O terceiro poema, ainda inserido na categoria do tempo fluído, reforça o tom rememorativo de viés rebelde na transposição da realidade histórico-social. Poemas de grande impacto estético que, em mim, despertam, de certa forma, por coincidência ou não do fenômeno poético, quase a mesma sensação provocada por aquela maneira de descrição pulsante, vibrátil, vigorosa, do realismo inusitado de Cesário Verde (1855-1886), como seriam exemplos os versos abaixo do poema “Post card/57":


                                    No mercado central pretas carnudas
                                    Vendiam frito de tripa de porco
                                    Fígado picado e caninha.


Os novos bairros, avenidas, artérias, em suma, o espalhamento topográfico horizontal da cidade me espanta e ao mesmo tempo me dá a sensação de que estou em outro lugar, que nada tem mais a ver comigo, e com o meu espólio (triste espólio devorado pelo tempo!) de relembranças. Estas, por definitivo, vou encontrar num cruzamento qualquer da minha própria Teresina da memória.



Cunha e Silva Filho
via Portal Entretextos

1.1.16

De Uruguaiana à Rio Branco, de Aquidabã à Pedro II: a mudança de nome é também ressignificação das liturgias e ritos das sociabilidades, por Nilsângela Cardoso Lima



As primeiras décadas do século XX são marcadas por sensíveis transformações no espaço urbano brasileiro, através da revitalização das cidades.

No Piauí esse processo se configura pela alegação de novos hábitos e costumes relacionados ao viver em cidade. Particularmente em Teresina a onda progessista se dá por meio da criação e valorização de espaços de convivência e lazer: praças, ou passeios públicos, salas de cinema, bares, teatros, cafés, clubes etc. Ruas cada vez mais limpas e saneadas, iluminação com luz elétrica e telefone, são avanços da mesma época que também chegam. Permaneceriam ainda por muitos anos outros espaços tradicionais de sociabilidade, tendentes a ser menos valorizados, tipo adros e salões das residências da aristocracia.

Bem exemplifica essas mudanças, a reconstrução da praça Uruguaiana, depois Rio Branco, entre os anos 1909 e 1913; reconstrução que lhe confere a condição de passeio público predileto da capital; na década seguinte, esse logradouro se tornaria centro da atividade comercial local. Note-se que a valorização urbana da área dos fundos da velha matriz do Amparo em detrimento da parte da frente – o adro das festas de antes – é emblemática das transformações mentais do tempo.


Igreja de Nossa Senhora do Amparo, vista da Praça da Bandeira
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Em especial, a juventude de elite frequentava esse espaço das sete às dez da noite, quando, ouvindo o ‘sinal’ do apito da usina elétrica se recolhia aos lares. A Praça Rio Branco, ajardinada e com coreto, atrai a elite, mas também setores populares marginalizados; a segmentação é bem evidente, conforme o uso das áreas mais ao norte ou mais sul, por uns e outros.


Praça Rio Branco / fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Por estar localizada num ponto central da cidade e próximo a outros pontos de aglomeração e lazer, como por exemplo, a própria Igreja do Amparo, o Café Avenida e o Bar Carvalho, a Rio Branco caracterizava-se também como sala de espera de encontros previamente marcados, antes de dirigirem-se as pessoas aos referidos cinemas, teatros, cafés, bares e a outros locais de entretenimento da cidade.

Os anos 1930 chegam e com eles a perda de hegemonia da Rio Branco como lugar privilegiado do lazer dos teresinenses, isto em função da reforma da Praça Pedro II, antes chamada Aquidabã, em 1936. Com a reconstrução da Pedro II, e também a construção de prédios de arquitetura moderna ao redor dela, como o Cine Rex e o Cinema São Luis, além da revalorização do tradicional Teatro 4 de Setembro, torna-se ainda mais aprazível o clima da P2 para o “footing” da sociedade teresinense.

Do mesmo modo que a Praça Rio Branco oferecia um espaço propício a “namoricos” e ao desfile das moças com as últimas novidades da moda do Rio de Janeiro e dos cinemas, a Praça Pedro II se revela como o mais novo espaço para o divertimento da sociedade. O clima atrativo da praça, com seus jardins floridos e carnaubal decorativo, era ponto de encontro e desencontro de rapazes e moças, senhoras e senhores, constituindo-se na “única praça do mundo na qual jovens da época desfilavam em redor de um círculo, para deleite de seus admiradores”.


Praça Pedro II
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

As noite na Praça Pedro II decantavam uma iluminação pública, com animação de bandas da polícia e do exército, nas quintas-feiras e aos domingos, executando peças musicais. Nessa praça também eram promovidas as comemorações cívicas da cidade, além de comícios e outro agitos; palco, também, onde, em determinada época, certa intelectualidade trocava ideias e sabedorias.

Deve-se ressalta que a própria estrutura física original da praça resultava em contribuir, a exemplo da Rio Branco, para uma segregação social, quanto à sua utilização. Separada transversalmente por uma “rua”, tinha dois ambientes: a “praça de baixo”, local privilegiado para as chamadas ‘moças da sociedade’, enquanto que a “praça de cima”, também chamada de “praça das curicas”, era frequentada, em geral, por empregadas domésticas e pessoas do mesmo nível social. Era comum ouvir-se falar que na “praça de cima” as classe populares se divertiam, sendo ponto onde as moças mais pobres e soldados se encontravam.

O passei público de Teresina, também, pode ser visto como um refúgio para o público feminino que se encontrava no limite do espaço privado. O traçado requintado e atrativo das praças proporcionava um encontro de sociabilidades e de conveniências sociais. Mas é inafastável que o passeio público foi marcado por esse “apartheid” social invisível, mas muito presente dentro dos espaços de lazer e convivialidade da capital.

De outra parte, as festas e bailes eram atrativos que faziam parte do lazer teresinense, sendo realizados por ocasiões de aniversários, casamentos, viagens, vitórias políticas, dentre outras ocasiões que promovessem o encontro da “fina flor da sociedade” local. Tais festas possibilitavam que rapazes e moças demonstrassem os requintes da sua educação, bem como, consistiam em lugares elegantes, entre outras coisas, dadas as vestimentas da pessoas que os frequentavam. Os bailes eram festas tradicionais do lazer na cidade feitos em casas particulares, em decorrência da falta de locais apropriados para o divertimento na cidade.

A partir de 1920, eventos do tipo passaram a ser realizados em casa particulares e vão sendo transferidos para os clubes e salões que surgem na cidade. Pode-se destacar o Clube dos Diários, fundado em 1922, que passa a ser o local de encontro, lazer e diversão da elite teresinense, constituindo-se em local mais apropriado para os grandes bailes, também para as magnas sessões solenes da cidade, conferências e congêneres, além de récitas, concertos etc.

Voltando ao teatro e sobretudo ao cinema, como se viu, desde as primeiras décadas do século XX estão eles incorporando aos ritmos da cidade, sendo o Royal e Olímpia destacados cinemas da cidade, - ainda antes da idas e vindas da P2 e da abertura do moderno Cine Rex, inaugurado em 1939. Ambos apresentavam filmes mudos, exibidos de forma seriada. Devido a isto, as casas de espetáculo conseguiam manter uma clientela animada e constante, uma vez que as pessoas não queriam perder nenhum capítulo do filme. Entretanto, o cinema falado em Teresina é inaugurado em 12 de dezembro de 1933, com a exibição do filme americano “Doce como Mel”, no teatro 4 de Setembro. Este cinema apresentaria posteriormente filmes americanos e filmes de caubói. A chegada do cinema falado provocou mudanças no comportamento da sociedade, na medida em que as casas de cinema, até então existentes, começam a perder público para o 4 de Setembro, pois a elite e as pessoas de maiores recursos passam a assistir filmes ali.

Ressalte-se que, embora o cinema falado constituísse num dos importantes focos de entretenimento da cidade, não houve, de imediato, uma preocupação de se construir um lugar um lugar apropriado para a exibição de filmes. Os locais onde funcionavam os primeiros cinemas eram geralmente casas particulares e adaptadas. Nesse sentido, a inauguração do Cine Rex, casa de espetáculo própria e literalmente cinematográfica, dá orgulho aos teresinenses, sendo considerado “o mais bonito e moderno” que possuía a cidade.


Praça Pedro II, ao fundo Teatro 4 de Setembro (à esquerda) e Cine Rex (à direita)
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

Todavia, desde sua chegada, o escurinho do cinema foi alvo de reclamações de alguns setores da sociedade teresinense, principalmente daqueles ligados à igreja católica, por ser considerado um lugar de perdição para as moças de família. Logo, o ambiente do cinema propiciava a intensificação de flertes entre rapazes e moças. Do mesmo modo que o cinema, através de suas histórias romanescas, influenciava o imaginário do público feminino referindo-se aos relacionamentos amorosos.

Nesse contexto, a febre avassaladora do cinema, proporcionada pelo poderio dos Estados Unidos, faz com que a representação dramática teatral perca lugar para tal, não só pela concorrência, mas por falta também de quem a levasse adiante.

Nesse sentido, nos anos trinta do século XX, a arte cênica perde ainda mais espaço no lazer cultural de Teresina, quando o T4S é arrendado aos irmãos Ferreira, Alfredo e Miguel, para, como referido acima, a exploração do cinema na cidade. Tal medida criou um desestímulo maior aos amadores que demoravam a montar algum espetáculo. Além do que, o teatro em Teresina caracterizava-se como uma forma de lazer cara, dado o elevado preço dos ingressos e pela exigência do toalete. O T4S, única casa teatral da cidade, não permitia, assim, uma maior participação popular.

Uma dimensão interessante do lazer em Teresina ligado à revalorização e/ou criação desses novos espaços de sociabilidades, é o carnaval, a que se dá, então, uma nova roupagem e novas linguagens. As mudanças se deram, inclusive, na sua forma de apresentação, pois perde alguns elementos considerados ‘levianos’ para a participação do público feminino e católico, sobretudo na percepção da igreja, para quem o carnaval era “um atentado à moral e aos bons costumes, um perigo para as famílias cristãs e mesmo um causador de muitas ruínas”. Mas o carnaval se imporá desde então, ganhando a crescente participação da elite que, organizada em bailes, corsos e carros ornamentados, desfilava pela Praça Rio Branco, depois pela PedroII, e em tempo recentes, na Avenida Frei Serafim e, atualmente, com bastantes diferenciações, na Marechal Castelo Branco.

Durante a década de 1920, reitere-se, um dos elementos de muita valorização dos corsos foi o automóvel, então incorporado ao cenário urbano. Nas manifestações carnavalescas de rua participavam todas as camadas sociais que queriam se divertir. Todavia, sobreviviam as festas patrocinadas pela elite, geralmente feitas em clubes fechados ou em residências familiares, configurando-se num carnaval elegante e de acesso limitado. Eram bailes à fantasia ou máscaras, onde as pessoas se divertiam ao “som de orquestras que tocavam marchas e tangos”. Embora consideradas uma festa profana por excelência, os bailes carnavalescos, à medida que iam tomando um caráter ‘civilizado’ e familiar, facilitariam a presença das mulheres.

Uma pergunta se impõe: e o povo pobre da cidade, as classes populares como se divertiam? Embora essas formas de lazer em Teresina implicassem, em geral, no entretenimento da elite, as pessoas menos favorecidas, quando não participavam perifericamente dele, forjavam outras formas de lazer. Vale ressaltar que todas as camadas sociais foram, senão inseridas, influenciadas por esses novos símbolos do progresso e da civilização que as cidades ditas modernas ditavam.



Nilsângela Cardoso Lima
via Teresina 150 anos – 1852/2002 / Fonseca Neto (coord.)
Teresina: Gráfica e Editora Júnior, 2002


21.11.15

MEMÓRIA PEDRO II, por M. Paulo Nunes



Houve um tempo em que a vida social e política de nossa capital era feita em suas duas principais praças, a Rio Branco e a Pedro II, esta mais nova, uma vez que a João Luiz Ferreira, sem dispor ainda do necessário tratamento urbanístico, o que somente ocorreria por volta da década de 50, era destinada apenas aos festejos juninos que a animavam uma vez por ano.

Na Rio Branco, a mais antiga, que vinha das origens da capital, onde ficavam os bares, os cafés e o cinema Olympia, de propriedade do Sr. José Ommati, se fazia a vida política, social e literária, ora, no Bar Carvalho, ora, no Café Avenida, todos já desaparecido, o último dos quais criminosamente convertido num estacionamento de automóveis, na última reforma do Hotel Luxor, o antigo Hotel Piauí, realizada pelo governo do Estado, na década de 70. No Bar Carvalho, com um excelente restaurante, em que se destacava o bife a cavalo do famoso cozinheiro espanhol Gumercindo, reuniam-se os políticos, os juízes, os desembargadores e os professores da Faculdade de Direito, que funcionava no prédio do antigo casarão que abrigava algumas repartições do Estado, também criminosamente demolido para dar lugar ao edifício da Receita Federal, originalmente destinado a um centro administrativo e transferido, de mão beijada, como se dizia, ao Governo Federal, que o concluiu.

No Café Avenida, se reuniam, ordinariamente, os intelectuais, os membros da Academia Piauiense de Letras, que ali realizava, inclusive, suas eleições, e a colônia síria que formava, todas as tardes, uma roda de conversa em sua língua.

A Pedro II teve vida mais recente. Quando vim para Teresina, continuar meus estudos e preparar-me para a vida, em 1938, já ela existia, inaugurada que fora, no ano anterior, com o nome atual. Agora restaurada, não integralmente, em sua feição ordinária, dá uma ideia, entretanto, de como ela era. No plano superior, junto ao antigo Quartel de Polícia, hoje Centro de Artesanato, reunia-se o pessoal chamado de 2ª, constituído de empregadinhas domésticas, soldados de polícia e a arraia miúda, em seus namoricos de ocasião. Havia ali também o coreto, ora restaurado, não como fora anteriormente, onde, às quintas-feiras, a banda de música da Polícia Militar executava o seu nutrido repertório, constituído de dobrados famosos como o “Capitão Caçula” e “Juarez”, este, em homenagem ao Cap. Juarez Távora, herói da Revolução de 30: “Juarez, Juarez, o teu nome é uma glória / o Brasil te consagra o general da vitória.”

Na parte inferior, se reunia a chamada elite, com moças e rapazes desfilando em sentido contrário, a fim de que os olhos pudessem encontrar-se, já que os corpos teriam que manter-se à distância, segundo os rígidos costumes da época.

A praça era ladeada por algumas residências e na parte oeste, por alguns cafés e um arremedo de hotel, bastante chic para a época, chamado Hotel Central. Ao lado do Theatro 4 de Setembro, que à época funcionava como cinema, de propriedade do Sr. Alfredo Ferreira, salvo quando aportavam alguma companhias teatrais, alguma famosas, o que era freqüente, foi aberto, a partir do final da década de 30, o Cine Rex, cujo proprietário era o Sr. Bartolomeu Vasconcelos.

No centro do passeio da Praça, havia um sugestivo globo de luz, de cor esverdeada, em torno do qual se reuniam, em meados da década de 40, os plumitivos das letras, superiormente indiferentes ao fascínio do eterno feminino que mostrava suas formas exuberantes à curiosidade dos rapazes do nosso tempo, enquanto, nós outros, superiormente nos empenhávamos em discussões bizarras, sobre literatura, política, filosofia e outros temas inúteis. Quanto tempo perdido!

Ali nos reuníamos H. Dobal, nosso excelso poeta, O.G. Rego de Carvalho, nosso maior romancista. Edmar Santana, um professor brilhante, talvez o mais velho, que logo se mudaria para o sul do país e de quem há poucos anos recebi das peças teatrais, Eustachio Portella, que se tornaria psiquiatra de renome nacional, José Camilo Filho, que desenvolveria o ensino universitário no estado, através de nossa Universidade Federal, de que foi Reitor por dez nos, Afonso Ligório Pires de Carvalho, jornalista e romancista, residente em Brasília, Genésio Pires de Carvalho, procurador público, o autor desta nota e os que já se encontram do outro lado do mistério, como diria Machado de Assis; Arnaldo Victor de Pinho, bancário e engenheiro naval, José Maria Ribeiro, membro de nossa Academia e alto funcionário do Banco do Brasil, José Ribamar de Oliveira, romancista e membro da Academia, e Vítor Gonçalves Neto, o nosso Vitinho cronista e boêmio incorrigível. Vez por outra, por ali aparecia, como um furacão, o poeta Anísio de Abreu Pereira da Silva, que a frequentou por pouco tempo.

Em nossa Arcádia, como se auto-intitulava aquele grupo estranho aos pacatos hábitos provincianos, foram geradas algumas idéias importantes, como a da criação do Clube dos Novos, de vida efetiva até o final da década de 40, e a Revista Meridiano, que seria dirigida por O.G., Hindemburgo e o autor destas linhas que, como revista literária, surgiria também ao influxo daquelas discussões bizantinas

Tudo isto, que já é passado, em nós ainda subsiste. O desfile das moças em flor, quais aquelas “jeunes filles em fleurs” de Marcel Proust, a corneta do Quartel, em seu toque de silêncio, como que a chamar para seu redil as moças casadouras, os nossos sonhos e esperanças fementidos, tudo revive ainda em nós, como naquela quadra de Pessoa:

“Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma”.



M. Paulo Nunes
em P2 
Livraria e Editora Corisco LTDA, Teresina: 2001


16.11.15

O CINEMA EM TERESINA




O primeiro cinema que se exibiu em Teresina, lembramo-nos bem, foi trazido pelo alemão Herr Blum, vindo até nós procedente de São Luís do Maranhão. O Porco Mundano foi o filme de mais interesse no seio do povo. Era, no cinema mudo da época, um paquiderme imenso, de cartola e vestido bem, a fraque, colête, conforme a indumentária do tempo. O Porco Mundano causou sensação e valeu por grande acontecimento e extraordinário atrativo. As exibições eram diárias, enquanto o Theatro 4 de Setembro ficava completamente cheio – ouvindo os gritos: - o Porco Mundano – Sr. Blum, queremos o Porco Mundano. Por ai, pelo entusiasmo popular em exibições dessa natureza – verifica-se quanto era o atraso da arte cinematográfica naquele tempo e, sem dúvida, o mau gosto do povo, deliciando-se com a figura de um animal, um porco em pé, vestido e dançando. Mais tarde – algum tempo depois – Leônidas Nogueira e José Omati, juntos e associados, passaram a explorar o cinema mudo, no 4 de Setembro. Pedro Silva, compositor e espírito inteligente – que se destacava pelas aplaudidas composições musicais – construiu o Cine S. Luiz ou Cine Royal – ali na Praça Rio Branco – onde se localizaria depois a Singer e mais tarde as Lojas Pernambucanas. Leônidas faleceu e José Omati prestou toda a sua afinidade, perseverança e tenaz entusiasmo ao cinema – dando tudo que lhe fora possível dar ao Film – já então sob o aperfeiçoamento do cinema falado. Morre Omati ainda em pleno vigor. É quando aparecem outros exploradores da arte da tela cinematrográfica: - Bartolomeu Vasconcelos e Deoclécio de Moraes Brito – construindo o Cine Rex – da Praça Pedro II. O Ferreira arrenda o Theatro 4 de Setembro e passa a competir – dedicando-se, igualmente, ao cinema. Mas a evolução não para, é demorada, embora constante, Teresina cresce e exibe, no plano atual do desenvolvimento, um cinema à altura da cidade, que se aperfeiçoa atingindo mais alto grau de civilização e de conforto. Outros espíritos empreendedores surgem com os Drs. Jorge Chaib e R. Portela de Melo. Fundam uma sociedade por ações populares e conseguem o mais completo êxito. E, assim, hoje, comemorando o dia nacional da independência – inaugura-se o suntuoso prédio da Rua Coelho Rodrigues, onde passará a exibir-se o cinema melhor instalado e mais confortável de Teresina e do Nordeste brasileiro: - o Cine Royal, num justo preito de homenagem ao pioneiro José Omati. O prédio é suntuoso, as instalações estão à altura do edifício e correspondem às exigências da arte, bom gosto e de conforto da mais apurada elite teresinense. É um surto de iniciativa privada de grande animador alcance e que muito honra e eleva a sociedade evoluída, que tanto precisa e merece ser beneficiada. Não resta dúvida que o esforço dos promotores do Cine Royal foi grande e arrojado. Mas fez-se na conformidade da evolução teresinense. Os melhoramentos não vem senão a tempo, quando o meio está próprio e preparado para recebê-los. E é o que acontece, de certo, com o Cine Royal que, vitorioso, passará, de agora em diante, a ser um marco luminoso do exuberante desenvolvimento e progresso da cidade do imortal conselheiro Saraiva. Teresina civiliza-se, cresce – com arte, fina sensibilidade artística e notável sentimento estético – de que o aspecto arquitetônico é grande demonstração. Estará, portanto, ao nível de corresponder, devidamente, àquilo que é valor e mérito dos devotados construtores do Cine Royal – José Omati – nessa deferência e acatamento à fina flor da população de Teresina. É, sem dúvida, uma grande casa de arte e a arte fala aos sentimentos elevados e as faculdades emocionais de fino gosto e de boa educação. O Cine Royal – José Omati é um marco imponente de uma fase nova na vida social dos teresinenses. Estão de parabéns os seus arrojados e decididos promotores, de certo, merecedores de calorosos aplausos. O mundo marcha e, como nós já estamos tão distantes do Porco Mundano de Herr Blum, do cinema mudo, do começo do século! O Cine Royal é um marco civilizador.



Simplício de Sousa Mendes
Jornal O Dia, coluna Televisão
Página 3, 7.9. 1966
via blogue do pesquisador Kenard Kruel

6.11.13

PRAÇA RIO BRANCO, Renata Flávia


deus me renegando compreensão
com uma igreja de costas
para minha tórrida visão
de cara lavada de suor
o sol imprensando meu estomago
como duas mãos
eu inerte entre as luzes
que só ascendem quando paro
meu coração largado
meu coração


Renata Flávia
enviado pela autora

22.10.13

ENIGMA NO AR, Elias Paz e Silva

para H. Dobal e Paulo Machado

que anjo sobre a cidade
anuncia coriscos na nuvem?
mensageiro do poente
o sol se declina em fogo no oriente
clarazul céu de enigmas
decifra homens taciturnos de esperança
os rios riscos primitivos
seca suas margens de areia e sonho
um artifício de paisagens
pontifica demolindo memórias antigas
à fome de justiça sobrevive
o rapaz da rua da glória
o que que há que não
se intui quando o vento de setembro na pele imita carros de fogo
uma aliança renovada
sustenta o arco-íris na retina dos habitantes
depois do verão solar
chuva de raios trovões no metal dos pára-raios das árvores secas
o relógio rosa da praça rio branco
ensina uma política de signos sob a velhice retórica
o mesmo anjo que circundou uma espiral
a margem da floresta de pedra a retidão da frei serafim silencia:
VIVER É VINGAR-SE DA MORTE!


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

17.10.13

TERESINA DO MEU TEMPO (A PRATA DA CASA)




Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo - é bom que se saiba - parece não terem nada a dever aos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As "Horas de Arte", festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais - a prata da casa - em geral elementos próprios da sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 no amparo, ora à noite, no Teatro 4 de Setembro, ouviam-se solos instrumentais - piano, violino, flauta, bandolim, violão - números de canto e dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: "A tesoura", "As mãos", "A luz", "As estrelas". Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e finalmente perdida, sob o título "O elogio da lágrima". Talvez influenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícia, por constituir verdadeira raridade bibliográfica.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais "Clube Recreio Teresinense", "Os Amigos do palco", "Os Talianos" e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Teatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas "O bicho", "Frutos e Frutas", "O Coronel pagante" e "Jovita", todas de Jônatas batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os "Amantes da Cena Viva", grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama "Mariazinha", também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfiou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelava no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zila Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violonistas; Durcília Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam música tocado valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Radagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingo à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! a poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizades conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namorados que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda...Lourdinha...Maria Luísa...Maria... Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado: quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo: nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela jóia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no final da jornada, acabo de perder. Mas, com licença: o assunto é outro.

x
x  x

A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela a oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão influído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso "Teresina meu amor":


RONDÓ À AMADA AUSENTE

Não quero flor nem brilhante,
Quero carinhos de amante
Para o mais fino louvor
A quem já nasceu prendada
- A ti, minha namorada,
Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos,
Logo nos apaixonamos,
Tu - princesa, eu - trovador.
Atirei-me nos teus braços,
Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,
Não perdeu tempo em conquista,
Já nasceu triunfador.
- Formosa rosa trigueira,
Flor da raça brasileira,
Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,
E outro amante não tiveste
Com mais paixão e calor.
Em noites de serenatas
Dediquei-te mil oblatas,
Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,
Cantasse o céu, o universo,
Tinham meu mel, tua cor.
Vivi de ti impregnado,
- Garotão apaixonado,
Teresina meu amor...

Assim vivemos, querida,
A quadra melhor da vida
Que me deu Nosso Senhor.
Mas em busca de outros ares,
Perdi-me noutros lugares,
Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,
Envelheci de repente,
Do azar da sorte ao sabor.
Tu continuas menina,
Áurea estrela matutina,
Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,
És muito namoradeira,
De amantes possuis um ror
Sei de um, escritor de fama,
Que em belo livro te chama
“Teresina meu amor".

Vivo morrendo de ciúmes,
Da saudade subo aos cumes,
Desço aos socavãos da dor...
Mas não te esqueço um momento,
Vives no meu pensamento,
Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,
Mando-te um montão de beijos,
Pois te amo seja onde for.
- Minha cidade menina,
Minha linda Teresina,
Teresina meu amor!
em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Café Avenida I, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Quando deixei Teresina, em abril de 1951, ainda havia dois bares muito concorridos na Praça Rio Branco - o Bar Carvalho e o Café Avenida.

O Bar Carvalho era também restaurante e sua cozinha obedecia ao comando de um espanhol gordo de nome Gumercindo. Nunca esqueci o sabor de alguns de seus pratos. E já que aqui se fala de música, lembro o famoso filé à Carlos Gomes, para mim sem igual até hoje. E a farofa de ovos de que só em falar sinto a boca cheia d'água? De ovos mesmo e não apenas de ovo. À noite fazia também sucesso o substancioso chocolate com gema de ovo batida, servido numa xícara enorme - um verdadeiro jantar.

Apesar dessas delícias, o ponto de reunião ideal para o grupo de amigos e intelectuais que me incluía, notadamente na década de 40, era o Café Avenida, onde só bebíamos o tradicional cafezinho.

Ficava ao lado da igreja de Nossa Senhora do Amparo, sempre lotada aos domingos pela manhã, na missa das 9.

Vale registrar que, durante muitos anos, a missa das 9, no Amparo, constituiu ponto alto na vida social da cidade. Lá estavam senhoras e moças nos seus melhores trajes e homens de terno e gravata, apesar do calor de 40 à sombra nos meses terminados em "bro". O coro, do qual fazia parte com meu violino nos dias de festa, oferecia músicas e cantos agradáveis, acompanhando os atos litúrgicos. Muitas vezes lá nos encontrávamos, Martins Napoleão e eu. Por isso Celso Pinheiro troçava, dizendo que éramos do partido da negra velha...

Fotografia publicada no livro "Ulisses, entre o amor e a morte"
de O. G. Rêgo de Carvalho

Terminada a missa, não resistíamos a uma parada no Avenida, não só para aguardar a "hora do almoço", na expressão local, como especialmente para o descontraído e divertido papo na roda já formada por Celso Pinheiro, Martins Vieira, Álvaro Ferreira, Ribamar Ramos e outros, entre os quais, embora menos assíduos, os Professores Pedro Torres e Cláudio Ferreira, ambos egressos do Seminário, e o serventuário da Justiça, mais tarde desembargador, Manuel Belisário dos Santos.

Estabelecimento de sírios, o Café Avenida congregava também, invariavelmente, os principais representantes da colônia árabe que tão bem se adaptou à vida e aos costumes da terra, emprestando a ela o valioso concurso do seu trabalho, da sua experiência e do seu sonho de vitória no comércio, na indústria e outras atividades lucrativas; integrando-se enfim na segunda e bela pátria que os acolhera sem discriminação e com carinho e onde seus filhos, pela constituição de novas famílias, com o tempo se tornaram parte ativa da comunidade, brilhando muitos deles nas profissões liberais, na política, no magistério e até na administração pública.

Azar Chaib, Elias João Tajra, Miguel e Elias Caddah, Tomás Tajra, Elias Hidd, Miguel Sady, e Saba, Said, Adad, Mualem, Kalume - eis alguns de seus nomes. Sérgio Tajra, o patriarca da colônia, creio que à época já se havia transferido para São Paulo, onde passou a morar depois do falecimento da esposa, Dona Adélia.

Sentavam-se em área separada, ao fundo do bar, aí formavam o que eles chamavam de "roda" e onde durante horas, nos momentos de folga, trocavam idéias sobre suas vidas e seus negócios. Um apenas se desgarrava às vezes do grupo dos patrícios - o simpático Wady, para vir à nossa mesa contar anedotas das quais só ele ria...

Anedotas e episódios de fino humorístico eram aliás constantes na nossa roda de amigos. De Celso Pinheiro, o grande poeta simbolista admirado e aplaudido em sua terra e fora dela, excelente conversador, e de Martins Vieira - para nós simplesmente o Júlio - espírito vivaz e brilhante, sempre de bom humor, sobretudo deles guardo muitos casos. E embora fugindo um pouco ao tema principal destas Notas, mas justificando-o com o fato de aí se discutirem tudo, inclusive música, aproveito a oportunidade para recordar algumas dessas passagens pitorescas, num preito de saudade aos queridos companheiros mortos.

Celso não gostava do presidente Getúlio Vargas. Responsabilizava-o pelas desventuras do filho, o jovem e inteligente Celso Pinheiro Filho, mais tarde advogado e prefeito de Teresina, cujas idéias e atividades políticas o levaram ao presídio na ilha de Fernando de Noronha.

Certa manhã, ao acercar-me do grupo, meio atrasado, Celso Pinheiro foi logo me dizendo:

- Poeta, você não quer ver o Getúlio trabalhar no cinema? Deve ir, você é um Getulista.

Estranhando a sugestão, indaguei se se tratava de algum documentário importante, com imagens de realizações do vigente Estado Novo. Respondeu que não; tratava-se de filme em que o Presidente figurava como principal personagem, como ator mesmo.

Mais intrigado ainda, apanhei o programa do dia, que o Cinema Olímpia, ali pertinho, fazia distribuir sobre as mesas do bar. O título do filme era "Um espertalhão de marca maior". E Celso garantia, convicto:

- Só pode ser o Getúlio!



em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988