"O FLÂNEUR", por Cunha e Silva Filho
Tudo mudou, como mudou a minha fisionomia. O tempo ali passado só a mim pertence. Só a memória persiste no mais íntimo de meu ser. A cidade, no geral, tenta escapar dos meus dedos. Fiquei estranho no meu próprio ninho.
Não há mais Bar Carnaúba, nem há mais o encanto, à noite, na Praça Pedro II, aos domingos, das belas moças que iam e vinham, naquele círculo interminável. A Praça Pedro II com os edifícios do Rex e do Theatro não tem mais a beleza e a doçura de outrora. Tudo é diferente. O mesmo diria da Praça Rio Branco. Onde estão as figuras da política local e da intelectualidade que ali tinham seu ponto de encontro? Tudo se foi com tempo... O relógio, imóvel, marca doze horas e fração, num tempo sem tempo.
Cada geração tem a sua Teresina. Eu tive a minha e ela está profundamente guardada, como um tesouro encantado, na minha memória de adulto.
"Meu filho quer mais um copo de garapa e um pastel?" "Sim, papai". De mãos dadas, álacres, saíamos da lanchonete de volta pra casa. Pietá per che cade, dizia meu pai lendo a legenda de um filme italiano à saída do Theatro. Vejo este agora, fechado, imóvel abandonado a si mesmo. Oh, Carol, I'm but fool, ainda a canção em inglês teima a ressoar no meu ouvido cansado e maduro. The school has three good classroons. A voz do meu pai a me ler a primeira lição no King's English. A rede. O quarto-biblioleca. O diálogo entre o pai e o filho pequeno, maravilhado com as histórias paternas. Pas un filet de fumeé. Era preciso encontrar a melhor forma de traduzir aqueles pas inicial da frase. Pai e flho chegaram, afinal, a uma conclusão.
Tudo isso se mistura à minha caminhada por Teresina. Paro um pouco. Olho em redor. Procuro o passado. Só vejo transformações. Curvo-me à realidade trepidante: carros, muitos carros, barulhos, gente, muita gente passando, principalmente gente nova. Os rostos são diferentes. A cidade não é mais a mesma, como foi o choque, ainda que deslumbrado, daquela redação de jornal, com seus jovens jornalistas e repórteres, às voltas com computadores, em salas sofisticadas de nível de Primeiro Mundo, tão distantes daquelas redações de jornais com seus velhos processos de impressão que tanto encantavam os meus olhos infantis.
Nos velhos e elegantes prédios da Frei Serafim não mais habitam as pessoas do passado. Parece até que, de repente, seus descendentes saíram às pressas para ocupar os novos bairros elegantes que nasceram nestas últimas três décadas. Os belos palacetes hoje funcionam como casas de comércio ou órgãos públicos. Fizeram bem, meus queridos amigos José Lopes dos Santos¹ e Miriam Bona que ainda estão na Gabriel Ferreira, no coração da velha Teresina.
O flâneur prossegue olhando aqui, ali e acolá. Se volta para um prédio antigo, para uma casa do passado, lá dentro há outras vozes, outras vidas, outras realidades. O que encontra não é senão a visão de um tempo perdido só atualizado graças à memória interior. Os lugares são os mesmos? Não, Só fisicamente. Talvez no fundo, o que a nossa memória procure seja não apenas a visão física da cidade, mas sobretudo a alma dela que provavelmente esteja nos contemporâneos de um tempo configurado, de um tempo que se imobilizou para sempre.
O flâneur se deixa, por instante, vencer pelo cansaço. Ninguém lhe presta atenção. Todos os homens presentes lhe passam indiferentes. Como, então, recuperar o tempo, as pessoas, as coisas, os sons, o cheiro, o perfume, enfim, aquilo que somente existe no espólio da memória?
Mas o flâneur não aceita o fracasso. Quer por força "atar as duas pontas da vida", como o fez Dom Casmurro. Nele resiste ainda o lado Peter Pan. Quer enfrentar a realidade do passado, mas o passado se foi. Quer falar como no passado, mas a incomunicabilidade se interpõe entre ele e seus contemporâneos de ontem. Só lhe resta o consolo da saudade e se perguntar, derramando-se em lágrimas: Ubi sunt? .... Ubi sunt?... Ubi sunt?...
[1] José Lopes Santos já é falecido.
AS IDEIAS DO TEMPO
Crônicas, artigos, resenhas e ensaios
Convênio APL - SENADO: 2010
(Grifos nossos)
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