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22.10.16

AINDA TERESINA, Cineas Santos


Para Paula Danielle


Ainda não é uma cidade grande, graças a Deus! Ainda há quintais, mangueiras, passarinhos e meninos para persegui-los. Ainda se vêem pipas bailando no azul das tardes de maio e, nas manhãs de agosto, ipês derramam ouro nas calçadas. Ainda persiste o costume da cadeira na calçada e aquela conversa espichada de quem espera a brisa que ficou de vir lá do litoral. O Mercado Central, com o seu cheiro inconfundível, resiste. Lá é possível comer uma autêntica dobradinha, tomar uma talagada de cana com casca de angico, consultar um raizeiro ou "tirar um retrato" no lambe-lambe. Um pouco mais adiante, impera o Troca-Troca onde, com paciência e muita lábia, pode trocar-se quase tudo, inclusive uma de 40 por duas de 20, desde que entrem alguns caraminguás na transação.

A cidade ainda é reconhecível apesar dos esforços dos que tentam, a todo custo, desfigurá-la. Ainda existem os rios e os que vivem dos rios: pescadores, lavadeiras, canoeiros. No Encontro das Águas, por alguns centavos, meninos entanguidos recontam, à sua maneira, a lenda do Cabeça de Cuia, nunca esquecendo de trocar o verbo comer por devorar. Segundo eles, "comer virgem é prosa". Ainda persistem, nos subúrbios, práticas bem nossas como a de afixar na parede frontal da bodeguinha a placa: É AQUI O FULANO. A simples menção do nome do proprietário é uma espécie de garantia da qualidade do que se vende ali. Nos letreiros das fachadas, escancara-se a megalomania enrustida: há "reis" para todos os gostos. REI DO FRANGO, REI DOS FREIOS, REI DOS ESTOFADOS, REI DOS PARAFUSOS, REI DO TUCUNARÉ e até um inusitado REI DO TAMBAQUI ASSADO. 

É certo que o espectro da violência já ronda a cidade, mudando hábitos antigos. Mas persiste o costume (tão nosso!) de pedir "emprestado" uma colher de pó de café, uma xícara de açúcar, dois dentes de alho, com o compromisso tácito de nunca pagar. Ainda há fuxico, brigas de vizinhos, gestos de solidariedade, grandes cumplicidades e toda essa teia tênue que dá consistência ao tecido comunitário. Ainda há um geito teresinense de ser.

Mas há outra cidade que desponta veloz, que se verticaliza como se quisesse distanciar-se de tudo que lembre a província. É a cidade dos edifícios com nomes de celebridades; dos que tem os pés aqui e a cabeça em Miami; dos que não vivem sem a presença do celular; dos que só circulam à noite; dos que fazem grandes negócios; dos que ignoram a lei; dos que nada temem; dos que metem medo, dos que, tendo nascido aqui, não sabem exatamente onde fica Teresina.

Impedir que essa cidade veloz e voraz engula a cidadezinha que se fez com trabalho, sacrifícios e ternura é tarefa inadiável. é preciso mostrar aos bem-nascidos, aos alpinistas, aos emergentes que há espaço para todos: para o Teresina Shopping e para o Mercado do Mafuá; para o Tarrafa's e para o Restaurante da Tijubina; para o Garden e para o Cabaré da Pretinha; para o Ensaio Vocal e para a Maria da Inglaterra, com o seu famoso "Estrela de Luzilândia", o único conjunto do mundo capaz de acompanhá-la, ou melhor, de persegui-la.

Que a cidade cresça, prospere, se modernize, mas sem abrir mão do que tem de melhor: a generosidade com que acolhe a todos, como acolheu, numa remota manhã de maio de 65, este cronista de meia-tijela que está fazendo todos esses volteios apenas para dizer o óbvio: TE AMO, TERESINA.

Jornal MN, 2000

em As Despesas do Envelhecer 
Teresina: Corisco, 2001

15.4.16

ONDE UMA BARCA VEIO A POETA BUSCAR (A MANDADO), Luiz Filho de Oliveira




– psiu! – diz seo rio –  
vamos passear em mim
enquanto eu não vou... sim?

– sim – disse a mavioso convite (e mais disse!) –
vou embarcar assim sem a tal da catacrese – rio nativo
e navegar-te rio de muitos dito rio de minha terra
nossa! tanta terra! de tantos poetas & de gente tanta
que rio – rio – porque te-reverso uma margem apenas
emerso duma taba de imenso contentamento poti
como um piaga a desafiar-te-desafinar – rio grande

pois sei: és do filósofo antigo
o não-mesmo-rio-porque-passaste
e depois que a tua ira foi apascentada por Leonardo
– estando poeta-mentecontínua-revolucionário –
ficou mais fácil ir ter contigo ao teu catre alegorizado
mesmo agora em estado leito lento paciente porque
se canos & projetos já te-levaram as lavadeiras – rio dejeto
a largo canto canto o largo das águas em verso de monge velho

mas à margem de tuas melhores canetadas – rio verba
aquiagora levas a hidromassagem aos motéis urbanos (um caso)
onde secamente em programas as garotas falam falsas propagandas
beiravidando contra o rumo do mundo de Mundoca novamente    
e marginália mundana a cidade ainda te-reduz (o descaso)
de água e cais e caminho e mesa e banho
a esgoto latrina lixeira tema de campanhas
campanas pro dinheiro mesmo!

não mais Letes (esquece!)
nem Estiges nem Infernos  (estigmas do poético)
nestes versos te-quero música apenas: let’s play that!

e mais que o mar da costa – rio dádiva
vem e silva selvas de brisa vivas
e se o mar é longe e longo em linha
tu – rio – és doce e não amaro a toda a vida
linguagem para tudo quanto praias:
praio doce coroa & brotinhos

no averedado da verdade de teu chão – rio – caminho
e em filme grave gravo estas palavras em eco
lógico: não caço garças nem choro em coro
só aporto lado a lados: leito ladino (trino) se
margem a margens (imagens emergindo)
te-desavesso os versos líquidos – rio fio

todavia se a nado não cheguei a
nada de novo sob teu céu sobre as águas
liquido: aceito passear em ti nessa barca
por onde tropica o sol destas praças
(veio)

pronto, seo moço?

(rio)


(De Teresina a Timon, sôbolo rio Parnaíba, abarcando-o.)






Via Deleituras em 25 de novembro de 2009

12.1.16

MOTIVO IGNORADO



João Severino da Silva, brasileiro, casado com Dona Justina (em 10 anos, 10 filhos), biscateiro e fazedor de ponto no Troca-Troca do Jorge melo, acordou pensativo. "Seu Gosto na Berlinda é um programa feito pelo próprio ouvinte. E atendendo à solicitação do jovem Irismar Noronha, do Parque Piauí, ouviremos com Genival Santos, Eu te peguei no Flaga." Justina aumentou o volume. João na mesa, comida pouca e a mulher cantando os sucessos de seu gosto... era agosto de 78. Tempo quente. João nasceu sob o signo de Peixes e o horóscopo garantia-lhe um bom dia para negócios; possibilidade de melhora no emprego; surpresas agradáveis, além de, naquela sexta-feira, ser dia propício para acertar na Loteria.

Um locutor se esgoelava enaltecendo a construção de um ginásio. Justina fazia o grolado pros meninos. João era pisoteado no ônibus. O ginásio tinha capacidade para 10 mil. João deixou com Justina Cr$ 10,00 "pra fazer as compras". O locutor enaltecia o cartolão. Justina repartia o grolado. João descia bisonho no terminal. evitou o burburinho e aspirou a catinga que emanava do Parnaíba e adjacências. Mais adjacências. Desde há muito João ficara incrédulo. A vida tava cada vez mais difícil. Caminhou lentamente e passou, sem ligar, por várias mãos estendidas em sua direção. Se repartisse o trocado ficaria sem o do ônibus. Não repartiu. O alto falante do terminal convidava o povo para grande acontecimento.

João atravessou a avenida maranhão pensando no filho menor acometido de coqueluche. o alto falante conclamava. Justina economizava. João chegava ao Troca-Troca.

- Tudo bem, joão? (perguntou Olimpo, barbeiro do Troca-troca desde o início - amigo de todos).
- Tudo... (respondeu João escondendo o jogo).

Chico Soldado, o maior trocador do local, aproximou-se alegre, após ter lucrado Cr$ 1.500,00 ao trocar um televisor Colorado preto e branco, por uma bicicleta monark (com documento e tudo) e ainda dois relógios ORIENT, com dois caboclos do ALTO DO BODE, que queriam ver o enterro do Papa pela televisão.

- João, rapaz, desta vez eu lavei a égua. Vê aí, rapas, novinhas! Aquele televisor tá só o bocal. Só vai dar pra racha deles - comentou Chico e saiu alegre. João não tava legal. pensava em casa.

O horóscopo previa um dia propício para negócios. João era pisciano.

- Quer comprar, João? É 38, Taurus, trazido da Zona Franca. (Chico Soldado falava baixinho pro policial fardado não ouvir)... E então, rapaz, tu me dá Cr$ 2.700,00, agora, e o restante amanhã, certo?

- Tudo amanhã... pago tudo amanhã - balbuciou joão pensativo, misterioso.
- Feito. Falou bonito. Amanhã às 8 pr'eu poder fazer outros negócios com o dinheiro. Negócio fechado. Taí um bom negócio pra você, homem. Revólver pra tirar de aperreio é este aí, mano. Não falha mesmo!



INSTITUTO MÉDICO LEGAL
= Necrópsia =

                                   Nome: João Severino da Silva.
                                   Profissão: ?
                                   End.: Embrião do Bela Vista.
                                   Dia: 04/08/1978. - Sexta-feira.
                                   Causa-Mortis: Suicídio por meio de disparo de revólver,
                                                           marca Taurus, calibre 38, cuja bala se encontra 
                                                           alojada na caixa craniana, acima do ouvido direito.
                                   
                                   Motivo: I g n o r a d o

_____________________________________
Dr. Custo de Vida Inflação da Silva
- Criminalista do I.M.L. -



Venâncio do Parque
em VIA CRUCIS - Verso e Prosa

22.10.13

EU, TERESINA E ELE, Wellington Soares


Há seis meses namorávamos e nada. Ao contrário dos outros, bolinar comigo não queria. Como um pedaço de descaminho, no dizer dos rapazes, chateada fiquei. Valfrido, esse era o seu nome, nem aí. Sua estranheza me prendia cada vez mais a ele. Que o amava, não tinha dúvidas, mas não podia continuar subindo pelas paredes.

- Transar comigo, por que você evita?
- Só cai no chão, a manga, quando está madura.
- Tanto tempo assim, como posso?
- Pela bela serrana, Jacó muitos anos esperou.
- Mas eu o amo.
- Amar é saber, no momento exato, tirar o cílio do olho.
- Quando, então?
- De Teresina se embriagar e se despir com pureza.

Com o coração aberto, deixei me levar por suas mãos seguras e macias, descortinando outros horizontes. De barco, o Velho Monge atravessamos para Timon, cruzando com pescadores de redes vazias. Na volta, um suco delicioso no Abraão, tendo como troco palavras de estímulo. À tardinha, um faroeste no Rex, balas de horror raspando minha cabeça. Maria da Inglaterra e seu Peru Rodou, no Clube dos Diários, a noitada fechando, o sabor de cerveja nas bocas geladas.

Acordada cedinho, um café reforçado na Piçarra, ânimo para encarar a arte misteriosa de seduzir. No troca-troca, sob um escaldante sol, o comércio de tudo, menos o do amor, inegociável. O gostoso cheiro da panelada, nunca provada no Mercado Velho, no meu estômago faz alegria. O restante da tarde, navegamos na beleza do encontro dos rios, onde deixei claro ao Cabeça de Cuia não me chamar Maria e muito menos virgem. De bicicleta, à noite, vários bairros da cidade percorremos. Na despedida, sem esperar, ouvi:

- Amanhã, esteja pronta, será o dia.
- Onde? A que horas?
- Dezesseis, na praça da Bandeira, sem atraso.
- Vou de carro?
- Não, sem nada, só você. De lá partimos.
- Que mais?
- Relógio sem ponteiros.

Noite em parafuso, sem conseguir os olhos pregar. A espera, alfinete ferindo o corpo, compensa? Do ônibus, descemos em frente ao motelzinho, mãos coladas e a galope os desejos.

Depois dali, mesmo com os apelos dos velhos, nunca mais retornei, nem fui em casa pegar nada. Ele me bastava. Era, sem exagero, uma pessoa muito especial. Que outro homem, diga, me levaria a conhecer e a amar Teresina? Comendo estas piabas fritas agora, nas coroas do Parnaíba, tendo-o ao meu lado, a vida passa a ter sentido.


Wellington Soares
em Maçã Profanada
Teresina: 2003

19.9.12

BEIRA RIO BEIRA VIDA, Marcos Freitas


beira de rio
açucenas
Casa Marc Jacob
Armazém Paraíba
lavadeiras
fogão e geladeira
troca-troca cais

beira de rio
pescador na CEPISA
manguezal no São Pedro
balsas em travessia
lavadores em agonia

beira rio
quase morto
assoreado
noite e dia


Marcos Freitas
em Urdidura de sonhos e assombros
Poemas escolhidos (2003 – 2007)
Rio de Janeiro: CBJE, 2010

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão