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26.7.23

As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino (fichamento)






Memória

As cidades e a memória 1

Diomira

"Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes".

As cidades e a memória 2

Isidoria

"O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade";

"Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações".

As cidades e a memória 3

Zaíra

"A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado";

"A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata";

"Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras".

As cidades e a memória 4

Zara

"O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota";

"Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória".

As cidades e a memória 5

Maurília

"Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais e prefira-a à atual, tomando cuidado, porém, em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional — que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi."

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos.

É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília.

Desejo


As cidades e o desejo 2

Anastácia

"A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer".

As cidades e o desejo 3

Despina

"A cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar".

As cidades e o desejo 4

Fedora

"Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la na cidade ideal, mas, enquanto construía o seu modelo em miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e o que até ontem havia sido um possível futuro hoje não passava de um brinquedo numa esfera de vidro".

Símbolos


As cidades e os símbolos 1

Tamara

"Os olhos não vêem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas";

"O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes";

"Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o que esconde, ao se sair de Tamara é impossível saber".

As cidades e os símbolos 2

Zirma

"A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente";

"A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir".

As cidades e os símbolos 3

Zoé

"Assim — dizem alguns — confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares";

"Mas então qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos?".

As cidades e os símbolos 4

Ipásia

"Os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer".

As cidades e os símbolos 5

Olívia

"Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles".

Delgadas


As cidades delgadas 2

Zenóbia

"Dito isto, é inútil determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados".

Trocas


As cidades e as trocas 1

Eufêmia

"Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz — como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”, “sarna”, “amantes” — os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas";

"E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios";

As cidades e as trocas 3

Eufêmia

"(...) das inúmeras cidades imagináveis, devem-se excluir aquelas em que os elementos se juntam sem um fio condutor, sem um código interno, uma perspectiva, um discurso. E uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discursos seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa".

As cidades e as trocas 5

Esmeraldina

"Mas é difícil fixar no papel os caminhos das andorinhas, que cortam o ar acima dos telhados, perfazem parábolas invisíveis com as asas rígidas, desviam-se para engolir um mosquito, voltam a subir em espiral rente a um pináculo, sobranceiam todos os pontos da cidade de cada ponto de suas trilhas aéreas".

Olhos


As cidades e os olhos 1

Valdrada

"As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas".

As cidades e os olhos 2

Zemruda

"Cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distingui- los da calçada".

As cidades e os olhos 3

Bauci

"...contemplando fascinados a própria ausência".

As cidades e os olhos 4

Fílide

"Em todos os pontos, a cidade oferece surpresas para os olhos: (...)";

"Como todos os habitantes de Fílide, anda-se por linhas em ziguezague de uma rua para a outra, distingue-se entre zonas de sol e zonas de sombra, uma porta aqui, uma escada ali, um banco para apoiar o cesto, uma valeta onde tropeça quem não toma cuidado. Todo o resto da cidade é invisível".

As cidades e os olhos 5

Mariana

"Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que não podem se separar nem se encarar".

Nome


As cidades e o nome 1

Aglaura

"Portanto, se quisesse descrever Aglaura limitando-me ao que vi e experimentei pessoalmente, deveria dizer que é uma cidade apagada, sem personalidade, colocada ali quase por acaso. Mas nem isso seria verdadeiro: em certas horas, em certas ruas, surge a suspeita de que ali há algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico; sente-se o desejo de descobrir o que é, mas tudo o que se disse sobre Aglaura até agora aprisiona as palavras e obriga a rir em vez de falar";

"Por isso, os habitantes sempre imaginam habitar numa Aglaura que só cresce em função do nome Aglaura e não se dão conta da Aglaura que cresce sobre o solo".

As cidades e o nome 3

Pirra

"A minha mente continua a conter um grande número de cidades que não vi e não verei, nomes que trazem consigo uma figura ou fragmento ou ofuscação de figura imaginada".

As cidades e o nome 5

Irene

"A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar; cada uma merece um nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene".

Mortos


As cidades e os mortos 1

Melânia

"A população de Melânia se renova: os dialogadores morrem um após o outro, entretanto nascem aqueles que assumirão os seus lugares no diálogo, uns num papel, uns em outro".
Céu

As cidades e o céu 3

Tecla

"Por que a construção de Tecla prolonga-se por tanto tempo?, os habitantes, sem deixar de içar baldes, de baixar cabos de ferro, de mover longos pincéis para cima e para baixo, respondem: Para que não comece a destruição. — E, questionados se temem que após a retirada dos andaimes a cidade comece a desmoronar e a despedaçar- se, acrescentam rapidamente, sussurrando: — Não só a cidade".

As cidades e o céu 5

Ândria

"A cidade e o céu nunca permanecem iguais".



Ítalo Calvino
em "As cidades invisíveis"
Ilustrações de Matteo Pericoli
Companhia das Letras: 2017