Mostrando postagens com marcador rua rui barbosa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador rua rui barbosa. Mostrar todas as postagens

23.1.18

O PEQUENIQUE (trechos), por Ogmar Monteiro


Angelim de Baixo

O meu avô materno era proprietário da fazenda Angelim de Baixo, que tinha esse qualificativo terminológico para distingui-la da outra, fazenda Angelim, do Dr. Helvídio, a qual era identificada como Angelim de Cima.

A fazenda foi vendida ao Sr. Chaves, transferida posteriormente ao Sr. Joaquim Macedo, como genro e herdeiro. O território da mesma abrangia o que atualmente se denomina: Saci, SEASA, Distrito Industrial, Parque Piauí, Lourival Parente, Bela Vista e outros locais.

Após aquela reunião de familiares e amigos para reverem os filhos do casal que retornavam ao lar paterno, onde o ágape se realizou com o clássico comes-e-bebes, sobreveio, no domingo que se seguiu, a celebração do piquenique no Angelim de Baixo. Era o ato simbólico da transmissão da posse ao novo dono.

Lendo o livro "Olga", recentemente publicado por Fernando Morais, constatei que Prestes e sua esposa entendiam-se na língua de Voltaire.

Isso se devia à circunstância do currículo na Escola Militar, como base profissionalizante. Depois do latim, foi o francês a língua do Tribunal de Haia, das conferências internacionais e do Tratado de Versales; somente após a última Grande Guerra foi que o inglês subiu ao plenário de língua entre os povos.


Angelim de Baixo

Sob a denominação acima estendia-se no planalto ao sul de Teresina a fazenda de meu avô materno. Era apenas a última parcela da fazenda do Cap. Marques, meu bisavô, que por sucessão legítima passara a minha a vó materna, ainda órfã.

Honorato José de Sousa aqui chegou como empregado da Companhia de Melhoramento da Navegabilidade do Rio Parnaíba, onde foi o almoxarife. A sua função na Companhia levou-o a se relacionar com José Monteiro, que era dono e Comandante de um barco a vapor e barcas, o meu outro avô. Desta amizade sobreveio o casamento com a cunhada caçula do Comandante José Monteiro.

A fazendo decrescendo. O rebanho diminuía. Foi vendida, naquele ano, ao Sr. Chaves, pai de Luiz Amada (consorciada com Joaquim Macedo) e George Pires Chaves, o caçula, pelo alto valor de um conto e quinhentos mil réis. Atualmente com a duas desvalorizações, com seis zeros a menos, nem sei que valor será escrito. E o pagamento incluía o gado restante, animais de trabalho e criações (porcos, carneiros e bodes), as miunças, como as designam os sertanejos.

Crescido, envelhecido e refletindo sobre essa venda de cujos comentários ouvi recriminações repetidas vezes sem conta, através dos anos pela minha avó Mariquinha, fixou-se na minha memória as condições e o valor da venda, e por isso valorizo o refrão: "- "Queres ficar pobre? Transforma o que tens em cobre".

Além do acidente, ponderando os fatos, admito que a decisão foi em  assembleia de família. Naturalmente marcada para a data festiva do centenário, quando se reunissem os filhos.

Comprador e vendedor eram amigos e vizinho. O Sr. Chaves morava na Rua São Pedro em frente ao cemitério, ou a "Casa do Bispo", como a chamávamos, pelo fato do Barão de Gurguéia tê-la dado a ele. Era o seu PALÁCIO e tornou-se sede do Bispado no Piauí, quando da criação desta Diocese separada da do Maranhão. Meu avô morava entre o grupo escolar Barão de Gurguéia, casa também que fora residência do Barão, na esquina da Rui Barbosa no cruzamento com a Félix Pacheco e de frente para o largo das Dores, a atual "Praça Saraiva" e a casa do Sr. Manoel Thomaz de Oliveira, atual casa Dôta. Presentemente existem no local lojas de auto peças de veículos.

Os fatos havido na entrega do imóvel pelo vendedor ao comprador me alicerçam a convicção do entendimento sobre a venda e aprazamento da transmissão.

Tudo isto que relato conflui num evento: "o centenário".


Ogmar Monteiro
em TERESINA DESCALÇA | 5º VOLUME
Fortaleza: 1988

22.10.13

O SUCO DO ABRAHÃO, por Wellington Soares





Quando criança, minha obrigação semanal era ir à novena com dona Mundica, ali na Vila Operária, zona norte de Teresina. Toda terça-feira, se a memória não me trai, estava eu lá, cercado de santos e anjos, aprendendo que melhor do que os pecados cometidos é a sensação de leveza do perdão alcançado. Em troca, exigia apenas algumas moedas para comprar uns picolés Amazonas e uns poucos alfinins, chantagem aceita e cumprida rigorosamente por mamãe, mas só atendida após a celebração religiosa. Com o espírito confortado e o corpo alegre, retornava feliz para casa, saboreando cada um daqueles momentos com incontido prazer. Já deitado na rede, pensava, mesmo não conhecendo ainda Bandeira, que a noite podia descer, a noite com os seus sortilégios.

Agora, sem compromisso e por vontade própria, troquei as novenas de outrora pelos refrescos deliciosos do mestre Abrahão, situado nas proximidades do Instituto de Educação. Toda semana apareço lá, como um montão de gente também, para assinar o ponto: tomar um refresco - que de tão espesso parece mais um suco - e comer um pastelzinho caseiro. Dos sabores, prefiro os de cajá e bacuri, sem igual e que nos levam aos céus. O de abacate é bom nem falar, covardia pura, o negócio é tomar aos poucos e devagarinho, lambendo os beiços e pedindo mais outro. Para quem está resfriado, ou precisando de um reforço no estoque de vitamina C, a casa prepara um suco de laranja no capricho, feito ali na presença do freguês, com mel de italiana usado como açúcar. Na hora do prejuízo, depois de ter enchido a pança, é quem vem a parte melhor de tudo: uns nadinha de reais, um ou dois, com direito a troco ainda, "muito obrigado" e "volte sempre".

E não é que volto mesmo!?, na primeira distração das pelejas do trabalho, estou lá novamente, esperando a vez de ser atendido, não só para saborear os refrescos, mas, sobretudo, as palavras de sabedoria do mestre da Rui Barbosa com a Manuel Domingos. Com a invejável experiência de vida que tem, ele nos serve gratuitamente, apesar da pouca escolaridade, lições importantes de humildade, dedicação e amor ao próximo. Através de cartazes afixados nas paredes do comércio, Abrahão da Silva Gama - o popular ASIGA -, este maranhense de São João dos Patos que reside em Teresina há mais de cinquenta anos, planta nas retinas das pessoas mensagens perturbadoras e educativas, difíceis de esquecer pelo humor sarcástico e engraçado que destilam: "Prove que é orelhudo, preferindo um refrigerante de 1 real e renunciando a um suco por apenas 75 centavos". Ou, então, aquela dirigida aos que têm a mania de consumir sem querer pagar, tentando sair de fininho e sem dar na vista: "Pagar antes está na moda e virou samba! Siga o ritmo e receba nosso agradecimentos".

O mais impressionante, acreditem, é que os preços e a qualidade permanecem, ao longo dos anos, quase sempre os mesmos, um tantinho de nada e uma gostosura que só provando. Com ou sem crise econômica, a clientela festeja e solta foguetes. Todos entram e saem dali com a barriga contente e o bolso satisfeito. Um ambiente, aliás, bonito de se ver e estar, com as mais distintas classes e raças harmonizadas pela fome de comida e saber, instante sublime porque guarda algo de misterioso e primitivo. A imagem comovente de homens e mulheres unidos em torno do sagrado alimento da caça e das reflexões existenciais, que os fortaleciam enquanto comunidade ávida de desbravar as naturezas em geral, sem as distinções ainda absurdas e inaceitáveis que surgiram depois.

Sempre que converso com Seo Abrahão, a quem chamo respeitosamente de mestre, me vêm à lembrança os versos antológicos de Bertold Brecht, nos quais o poeta e dramaturgo alemão exalta os que transformam a vida em uma permanente e apaixonada luta, não só no campo político como em qualquer atividade abraçada com amor e determinação: "Há aqueles que lutam um dia, e por isso são bons; / Há aqueles que lutam muitos dias, e por isso são muito bons; / Há aqueles que lutam anos, e são melhores ainda; / Porém há aqueles que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis". O mestre Abrahão pertence, sem dúvida e na opinião de todos que o conhecem, ao seleto grupo dos que foram escolhidos e vieram com a nobre missão de serem imprescindíveis. Ainda bem que - para nossa eterna e grata felicidade - ele desembarcou por essas bandas da Chapada do Corisco, e acabou se tornando um dos nossos mais queridos e legítimos filhos.



Wellington Soares
Por um triz 
Teresina: Fundação Quixote, 2007

20.10.13

ABRAHÃO, O FILÓSOFO, por Deusdeth Nunes


Funcionando há mais de trinta anos naquela esquina da Rui Barbosa xis com o bar do finado João Arroz, o Abrahão é mais que uma lanchonete. É lá que centenas de estudantes e operários fazem a merenda mais barata e nutritiva da cidade com os famosos sucos feitos pelo próprio dono. Abóbora, manga, bacuri, cajá, abacate (fura rede  mamão, tudo feito com leite puro. Acompanha o suco uma banda de pão à gosto do cliente. Um verdadeiro empório, é um tem-tudo, muitas mercadorias muito antigas, a exemplo de cigarros que ele vende mais barato. Filósofo de balcão, os seus pensamentos vão do consumo de cigarro que ele vende mais condena em prosa, em verso e ao vivo. Quando o freguês vai comprar cigarro à retalho, ele dá um sermão: "Está provado que o cigarro faz mal à saúde e quem compra cigarro à retalho não tem condição financeira de sustentar o vício".

Sobre política, ele tira a forra sobre o IPTU que o castigou: "Vote nos candidatos a vereança de hoje que eles prometem tudo o que os passados prometeram. E certamente vão aprovar pelo voto, algo mais amargo que o IPTU aprovado pelos que estão aí".

Sempre atento ao movimento do balcão e principalmente da gaveta, escreve em cartolina e prega nas paredes internas: "Tem pressa em ser atendido? Adiante o dinheiro". "Sair sem comprar não dói. Comprar e não pagar dói muito. Pague antes".

Sua última conclusão filosófica diz: "É melhor ser roubado do que roubar. Por que? O roubado fica com uma graça a receber e o ladrão com uma dívida a pagar".


Deusdeth Nunes
em Rádio Calçada
Teresina: 1995

27.11.11

IMAGENS SOLTAS, José Ribamar Garcia


O pneu saltitando no paralelepípedo. O menino sem camisa, de calção e descalço, empurrava-o com um pedaço de tábua.
     
O céu girando, girando. A bicicleta substitui o pneu que, por sua vez, sucedeu o velocípede. A Gulliver vermelha, cuidada, brilhava com duas flâmulas do Fluminense dependuradas no guidom. Entrava na Rua Firmino Pires, dobrava à esquerda, na Estrela, caía à direita, na Rui Barbosa, depois à esquerda, na Lizandro Nogueira e, finalmente, na Coelho Neto. A estrela, em alto relevo, na fachada da casa do Monsenhor Chaves. O borracheiro que várias vezes remendara a câmara de ar da bicicleta.
     
O céu girando, girando. A ponte do Mafuá. A linha do trem sobre a qual se colocavam cacos de vidro para que o trem os transformasse em pó, a fim de ser utilizado, como cerol, na linha do papagaio. O Augusto Ferro, reduto dos boêmios suburbanos.

O Cemitério São José guardando lembranças, saudades. Dia de Finados, aquela romaria toda. Os vendedores gritando:

- Olha as velas Três Coroas!

- Olha as flores!

O matadouro, onde se adquiriam, à tarde, fígado, língua, coração, miúdos fresquinhos. O boi sendo arrastado por dois ou três homens, a entrar no salão, ensanguentado. O animal urrava, relutava, esperneava, pressentindo o fim. Com sacrifício, ele era amarrado ao mourão. A faca curta, fina e afiada entrava-lhe na nuca. E a queda brusca. Mais outro a adentrar e a cena se repetia.

O Poti Velho escondido, abandonado, sempre preterido, desde os tempos do Conselheiro Saraiva. Ali a gente caçava passarinho e preá. A mania do Milton Rodrigues de comprar canários, fuçando a periferia da cidade na sua motocicleta barulhenta, que o motor custava a pegar, ora pela bateria, ora por defeito mesmo.

A usina elétrica na beira do rio, fornecedora de água e luz, que funcionava na base da lenha. E as caldeiras queimando madeira, trazida em caminhões das matas maranhenses, já bem devastadas.

A Socopo do outro lado do Poti. Estância mineral com o clube social enfiando no mato. A cidade já marchava para aquelas bandas.

O céu girando, girando. A pescaria debaixo da ponte. A brisa soprava e a canoa deslizava, vagarosamente, sobre as águas do Parnaíba, puxando a rede ou o arrastão. o peixe era assado e devorado ali mesmo, na coroa do lado maranhense, enquanto se ouvia o baque das mangas, caindo no mangueiral que se estendia ao longo do rio.


em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008