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24.10.18

DE VOLTA À CHAPADA DO CORISCO, Geraldo Borges



Domingo. Dia nublado. Bom para um passeio. Pego o ônibus à frente do hospital da Primavera, bairro onde moro, há mais ou menos três quarteirões distante de minha residência. Não demorei muito. Logo que cheguei o ônibus passou. Embarquei. Dei bom dia ao motorista e sentei em uma cadeira, ao lado da janela, reservada para pessoas idosas, senti a brisa suave da manhã. O ônibus não estava superlotado como sempre acontece durante a semana de expediente. As pessoas exprimiam um ar mais relaxado. Nenhum passageiro estava em pé. Pela fisionomia das pessoas não havia ninguém apressado.

Era domingo. Notei algumas pessoas com a bíblia na mão. O coletivo flui bem pelas avenidas. De vez em quando um passageiro tocava a campainha para avisar que ia descer na próxima parada. Enquanto isso eu me distraia olhando os transeuntes que passavam pelas calçadas, e observando detalhes em seus movimentos. Da Primavera ao Pro Morar, o conjunto habitacional para o qual eu estava me dirigindo o ônibus gasta uns cinquenta minutos. Atravessa o centro da cidade, passa pela Piçarra, o Parque Piauí, e finalmente chega ao Pro Morar.

Ao entrar no conjunto, já perto do ponto onde eu teria de descer, o motorista parou sem nenhum sinal anunciado, e deixou o carro ligado. E desceu para a rua. Atravessou o meio fio, subiu a calçada e entrou em uma farmácia. De repente me lembrei de um personagem de um romance de Carlos Heitor Cony, que, no papel de motorista, abandona o seu ônibus e deixa os passageiros a ver navios. Perguntei a pessoa que estava ao meu lado, se ele tinha ido mijar. Ela respondeu: foi comprar remédio. Quando íamos dando continuidade ao diálogo ele apareceu. Continuamos a viagem. Pedi o cara da catraca que passasse o meu cartão. E avisasse ao motorista que eu iria sair na próxima parada. Dito e feito. Quando chegou no ponto eu desci.

Em menos de cinco minutos eu estava na porta de minha comadre. Antes que eu me esqueça, levava embrulhada em papel jornal dentro de uma sacola de pano, uma garrafa de vinho. Subi a calçada, que é bastante alta e não tem degraus. A porta da casa estava fechada. E não tinha combinado a minha visita com a minha comadre. Estava me ariscando. Toquei a campainha várias vezes, e nada. Cansei. Só os gatos ouviram. A casa dela está cheia de gatos. A última vez que estive com ela, na volta, foi me deixar, no ponto de ônibus, e encontrou um gatinho abandonado, miando e o levou para casa. Pensei em deixar um aviso escrito na porta. Desisti. Pensei em deixar o vinho dentro do terraço, meio escondido num jarro de planta, também desisti.

Resolvi voltar para casa. Ao fazer o caminho para o ponto de ônibus passei pelo bar e restaurante, onde minha comadre é freguesa, e perguntei por ela. O dono respondeu que ela tinha viajado para a cidade de Colinas, Maranhão, onde meu afilhado, professor de inglês e francês, está lecionando.

Atravessei a avenida para pegar o ônibus de volta para casa. Quando ia chegando próximo ao ponto, avistei o ônibus já saindo da parada. Ia perde-lo. Mesmo assim, dei um aceno, apelando para a boa vontade do motorista; se ele não parasse eu teria de esperar outro coletivo. E com ia custar. Pois aos domingos a frota de ônibus fica reduzida O tempo estava se desnuviando. Para ventura minha o motorista parou, a abriu a porta, e eu entrei. Era o mesmo ônibus que eu tinha pegado antes.

Termino essa crônica pensando, como seu desfecho seria diferente, se a minha comadre estivesse em casa. Ou se eu tivesse brigado com o motorista pelo simples fato de ele ter parado o seu ônibus para comprar um tranquilizante.


11.11.13

AQUELAS FLORES AINDA SALTAM NO MEU CÉU!




Quase nenhum garoto do bairro Primavera do final da década de 70 e início da de 80 deixava de admirar os paraquedistas (o hífen foi retirado para não atrapalhar a queda) que executavam suas manobras lá pras bandas da curva do rio Poti, talvez perto da floresta de fósseis que há em seu leito, depois da ponte da Frei Serafim. Com seus paraquedas redondos, aproveitando a corrente de ar que os levaria até a pista do aeroporto, passando por cima de nosso bairro (que beleza!); aquilo era surpreendente para qualquer criança setentoitentona, e isso não era diferente para mim, que vinha, como já o-disse noutras vezes, de uma cidadezinha do interior, que me-madrastou mansamente: essa Alto Longá – domundopróximo – distante. Em Teresina, nesses idos, olhávamos os meninos para cima, à espera de todos (e, em expectativa, de um) pularem.

Hem-hém. Quão fácil era prender a atenção de crianças assim! Sim, tão pouco era necessário. E, imaginem só, assistir à audácia daqueles homens: o desafio de confiar em equipamentos, em tecnologia de afronta à gravidade – dane-se Newton; todos queríamos vê-los saltando davincianamente para um voo planado por asas de tecido sintético! Redondinhos. Sim, os paraquedas ainda eram os redondos, mesmo o italiano engenhoso tendo-os pensado piramidalmente mais pesados e quadrados e os nossos contemporâneos, mais leves e retangulares, com a possibilidade de o paraquedas ter manobrada a sua direção. Então, os meninos de olho no céu, à procura dos pontinhos coloridos que desabrochavam uma flor salva-vidas; perigosa ideia do desejo humano do voar, oqual, ainda hoje, renova suas asas com as penas de outra tecnologia, criada da ciência. Quer ler? Hoje, agosto de 2011, aposto se há tanto alguém nesta ilha terrena que ainda queira voar com o grego, usando as asas de cera que Dédalo criou para si e seu filho, Ícaro (não escrevo do paraquedas de Da Vinci, porque isso já foi feito; a foto que ilustra esse texto comprova-o!).

É, o não ter asas para voar deu ao humano a possibilidade de trabalhar com as mãos (estendam-se os braços), esses Oficiais de Justiça do cérebro. Foram essas mãos, por exemplo, que criaram essa possibilidade de sobreviver qualquer um que pule de qualquer lugar (estático ou célere) estando a tantos metros do chão. Claro que esse “qualquer um” foi somente para ilustração de que há pessoas que fazem isso. Mas não o-é para todos. Para nós, os meninos que observávamos estupefatos de alegria aquela loucura de se-atirar de um avião a mais de dois mil metros de altitude, ainda não havia nada que se-comparasse a isso. E, nesta linha mesma, me-vem à mente o nome dum homem (claro que havia outros com ele!); não, seu apelido. Louro. Loro (pra confirmar a nossa “morte do ditongo”, já praticada pelos espanhóis, de mais antiga língua). 

Quem era esse cara? Ainda hoje sei pouco sobre ele. Certa vez, aqui, em Teresina, encontrei um seu filho, um fotógrafo, de nome Cleyton, não lembro bem (sei que o-conheço), que falou qual era o verdadeiro nome de Louro, seu pai, mas infelizmente perdi isso em minhas agendas; foi mal, Cleyton (nem sei se seu nome é escrito assim), mas talvez alguém possa reconstituir os fatos dessa história teresina, que, junto-com os meninos, também eu vi. Isso, se não já o-tiverem feito. Talvez alguns poucos possam-se-lembrar de Louro e de seus companheiros de saltos. Eles são os primeiros em nossa capital? Eles, de fato e de saltos, não deixaram quaisquer seguidores pelos ares dessas suas quedas de -longe? Quem sabe? Sei que foram ousados. Nem sei se há ainda, aqui, nesta capital, algum grupo que pratique paraquedismo. Aliás, há paraquedismo ainda, aqui, em Teresina, como havia naquela época?

Vixe, eram muitos saltos! Acredito que fosse uma espécie de clube de paraquedismo. Não posso confirmá-lo, mas isto, sim: o Louro era “o Cara”. Era o nome que os caras (como os meninos nos-chamávamos) mais pronunciavam. Todos, abestalhados com aquela habilidade, que vem desde os acrobatas chineses, precursores do paraquedismo de “altas altitudes”, até a ideia-cabeça de Leonardo, o iníco de uma sequência de ousadias, que ofereceram ao público um Fausto De Veranzio, um Sebastan Le Normand, um Jean-Pierre Blanchard, que já saltava com paraquedas dobrável de seda, ou um André-Jacques Garnerin, o primeiro a desafiar as grandes altitudes, ou uma Genevieve Labrosse, a primeira mulher, e sua sobrinha, Elise, que fez mais de 40 saltos, o que, para a época, era algo surpreendente. Não; somente eles eram ousados a tal ponto no céu. Ah, esses saltos sempre foram perigosos, e nossa expectativa de meninos roía as unhas e nossos heróis tiveram que pagar o preço com suas próprias vidas-próprias e eu, de boca aberta ainda e olhos espremidos, calibrando o olhar, e este texto, por réquiem profano, saltando do meu cérebro, pulando com as mãos nesta tela. 

Ao Louro, estas “memórias póstumas”. Elas, que, pelo céu de minha boca passam palavras, puladas por mim, a sonorizar as imagens, que gravadas no “paraquedas do meu cérebro” ficaram a saltar. Não eram elas a borboleta preta nas rodas do quarto, mas pareciam floresinhas pequeninas (bem pituibinhas!) no céu do meu bairro, daquela cidade do tempo em que os meninos, na primavera das idades e no Primavera de suas casas, estavam de olho duro no céu. O salto que eu ainda espero é o de Louro. Como, hoje, o paraquedas pode ser manobrado pelo paraquedista, como tento fazer com estas palavras que saltam de mim num céu de página branca (papel ou tela), quero que ele caia dentro deste poema:



Outra inscrição para um túmulo no ar (o segundo voo)


Meninos,
nas matinês dos
domingos, lá pras
bandas da curva do
rio – com o Poti abaixo
(sim, uma garantia?) –, um
passarinho de metal desovava
no céu sementinhas; e vinham caindo
velocíssimas para, em seguida, abrirem-se
como florzinhas: pequeninas ilhas de cores teresinas,
paridas pelo voo dessas aves ocas, loucas pelas alturas terrenas!
Os meninos esperávamos, sobretudo, sobre todas as altitudes, pelo Louro,
o principal pontinho do grupo dos pulos nos ares do abismo, o príncipe dos
comentários dos caras do bairro, do Primavera  (sempre abismados, os meninos); entanto, estávamos tão abaixo de entendermos a altura dessa Física, de um artefato
saltado do entendimento davinciano e longíquo. Ah, seos meninos, eu vi também os
saltos do Louro pelo brancinzazul do céu do meu bairro soltos; primaveral flor do céu
que voa, e todas voam: o pouso sobre o desejo tão grande e tão baixinho (mítico?) de voar acima dos telhados dos olhos primaverinos. – Lá vai o Louro saltar!– Lá vem o louco! – Lá vai no vento indo. – Vai pro aeroporto. Esse foi o salto que caiu dentro do encanto dos meninos de boca aberta: – Quede os paraquedas? – Quedê? – Cadê? Que pena. Ninguém mais os-espera. Como flores soltas na corrente de ar: elas, pelos louros do desafio à queda-livre, presas dentro deste poema, dos céus das páginas, saltam nos









olhos
dum menino
teresino.



Luiz Filho de Oliveira
enviado pelo autor

DOUTOR GOJOBA, DO PRIMAVERA PRO MUNDO, por Luiz Filho de Oliveira



Dentro da política habitacional planejada pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) para Teresina, a construção do conjunto Primavera, em 1966, foi a terceira obra desse tipo na capital piauiense, antecedida que foi pelos conjuntos Tabuleta e São Raimundo. O Primavera fez, pois, parte da estratégia do governo para atrair a população do interior do Piauí para a “Cidade Verde”, como Coelho Neto a-cunhou (que trocadilho escroto!). Isso deu certo. A partir desse período, a população da “primeira capital planejada do Brasil” passou de noventa e tantos para quase quatrocentos mil habitantes. Somente nos dois primeiros anos desse projeto, de 1966, época do primeiro conjunto habitacional da capital, até 1968, quando foi construído o Parque Piauí, o quinto conjunto, foram vendidas à população cerca de três mil unidades habitacionais. Haja casa para tantos casos!

O meu,
o-escrevo: a atração de minha família, vinda do Alto Longá em 1974, também se-deu por esses planos e planejamentos. É. Também, porque mamãe passou um tempão nas oiças de papai pedindo pra ele nos trazer para a capital, para estudar. Ladainha de mãe, coro de professora; alguns de vocês sabem. Persistência, mundivisão, sabença. Assim – ou asnão! –, o Primavera entra nisso, sim; e entramos nele em um “misto” (um caminhão com uma boleia de passageiros e uma outra parte, uma carroceria para cargas) fretado por meu pai para trazer-nos e a nossa muda, que dizia tudo – éramos “matueiros”! –, a esta Canaã urbana. Ao chegarmos à “Capital Mafrense”, nossa família, nove pessoas, foi morar em frente às Quadras B e C desse conjunto, no bairro Primavera, que surgiu, claro, a partir daquele. 

Foi, então, que o nosso cenário mudou completamente: dos bois e bodes a carneiros e cabras, que nos-rodeavam na Fazenda Criolis, de nossa família, passando pelas paisagens em volta da casa na rua..., em Alto Longá, chegamos aos “cabras de peia”, comadres e “caras” dessa cidade. Cenário novo; novas personagens. E, ainda mais, um novo palco para nós: papai comprou uma casa nova na outra esquina do mesmo quarteirão onde morávamos, pois a que habitávamos era de aluguel. Obras nessa nova casa, ainda inacabada: paredes sem reboco, piso bruto, banheiro externo, cerca de arame... É melhor chamar um pedreiro. Obragem. 

Era uma vez, então, o Gojoba, o pedreiro da área, do bairro, ou melhor, do conjunto. Gojoba morava lá embaixo; é fácil chamá-lo. “Às vezes, até no domingo dá, se eu não tiver bebendo”. Gojoba era querido de todos, principalmente, dos filhos do seo Domingo, o alfaiate. Netão, Pedro Cão, Zé “Orea” e Paulo Cenoura, se tiverem bebendo, o Gojoba tava lá. E foi desse jeito que aconteceu uma anedota conhecidíssima no Primavera, entre os  moradores das décadas de 70 e 80, claro. Ela virou até piada na boca do Dirceu Andrade; alguém muito próximo (mais de mim do que dele) é que me-disse. É, foi hilário. Caso de anedota mesmo. História pra boi sorrir!

Mas não vou contá-la literalmente; tentarei somente escrever o que possivelmente tenha havido. Não sei se o Pedro Cão já havia-se-formado ou se ainda estava cursando Medicina na UFPI. O certo é que haveria uma festa, parece-me que ligada aos acadêmicos desse curso. Pedro Cão, claro, deveria ir. Aliás, sempre ia a esse tipo de comemoração. Só que a decisão foi tomada numa bebedeira da turma, talvez na quitanda do seo Juarez. Pois não é que o Gojoba também estava lá. Pois é, o pessoal decidiu que levaria Gojoba para a festa. Aliás, Doutor Gojoba; era assim que eles iriam apresentá-lo a todos. Nisso, certo, havia uma boa dose (dá-lhe, cana!) de preconceito ou de previdência quanto a possíveis preconceitos de outras pessoas. Afinal, Gojoba era um simples pedreiro. É, Gojoba ia ser o Doutor Gojoba, o que é que tem?

Botaram uma beca no Gojoba, e vamos lá. Festa vai, bebidas vêm; Gojoba já estava entrosado com todos, inclusive, com as colegas de curso de Pedro Cão. Era Doutor Gojoba pra cá; Doutor Gojoba pra lá. “Doutor Gojoba, o senhor acredita que...”. “Doutor Gojoba, o senhor já estudou aquele caso...”. “Doutor Gojoba...”. Gojoba, a princípio, achou graça dessa parada de “Doutor”. “Porra, aqui tá chei de coroa!”. Curtiu à vontade, principalmente, porque as acadêmicas o acharam muito engraçado. E a bebida descendo a goela, gelada ou quentíssima. E a cabeça foi enchendo. “Doutor Gojoba, cadê seu copo?”. “Doutor Gojoba, espere mais um pouco”. “Doutor Gojoba, isso; Douto Gojoba, aquilo”. Gojoba ficou cheio disso e se-levantou com a fala-desfecho da anedota:

– Que porra de Doutor Gojoba! Que nada! Eu sou é pedreiro e vou é embora; amanhã eu tenho que acordar cedo, pois eu tenho é três metros de muro pra levantar!



Luiz Filho de Oliveira
enviado pelo autor