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16.10.13

A CIDADE




De avião, como é óbvio, descerás, brasileiro ou brasileira de outras plagas - no aeroporto de Teresina. Alegre e festivo. Um encanto para visitação. Dois andares. Defronte a pracinha bem cuidada, onde de noite os namorados se beijam, sem nenhum receio. Do aeroporto, tomando o rumo da esquerda, alcançarás o bairro proletário do Poti Velho - com a igrejinha mais do que centenária e o Poti de boa pescaria.

Asfalto em todo o percurso pintado de casinhas humildes, em que mora gente acolhedora. Tomando o rumo da direita, comprida avenida - habitada de classe média - e os dois velhos cemitérios superpovoados. O Instituto de Educação. Aqui seguirás pela esquerda - para que atinjas a zona militar, a estação da estrada de ferro, a Avenida Frei Serafim - e poderás seguir pela esquerda, até que encontres o Poti e alcances novos bairros - o do Jóquei Clube e o do São Cristóvão, nos quais habita uma pequena burguesia quase classe média. Caso não queiras, cortarás a Avenida Frei Serafim para os novos bairros - a Piçarra, a Catarina, Cristo Rei, Monte Castelo, onde se ergue a majestosa TV - Rádio Clube. E poderás prosseguir para encontro com a Vermelha, com o estádio Albertão, com a monumental ponte sobre o Parnaíba que te levará a Timon (Maranhão), Caxias, São Luís. Se não quiseres cortar a Frei Serafim, poderás dobrar à direita, e percorrer essa Avenida de beleza. Estarás no coração de Teresina: igrejas, Karnak, praças, zona bancária, zona comercial, cinemas, gente que se acotovela, que rumina problemas, que às vezes caminha para espairecer...



A. Tito Filho
em Teresina meu amor (4ª edição)
Teresina: COMEPI, 2002

25.11.15

SOBRE IDENTIDADE, CARNAVAL, PERDAS E CINZAS, por Ací Campelo



Agora que já foi decretado o fim dos desfiles das Escolas de Samba de Teresina - e que meus ouvidos cansaram de perguntas se sou a favor ou contra - posso escrever e recordar algumas lembranças e lançar algumas questões.

Sou um apaixonado pelo carnaval, combina com meu jeito tímido e extrovertido, afinal de contas é no carnaval que podemos fazer tudo aquilo que queremos, pois é naquele espaço de dias da embriaguez, da música e da alegria que todos somos iguais, ou quase. Há mais de 40 anos moro no Bairro Mafuá, pertinho da Vila Operária um dos berços do samba piauiense. Convivi desde os anos 70 com escolas e blocos carnavalescos, pó de maizena e lança-perfume. Teresina era uma festa no carnaval: River Atlético Clube, Cabos e Soldados, Jockey Clube, União Artística Piauiense, Clube Pirantinga, Classes Produtoras, Flamengo, Marques, Baixa da Égua, Palmeirinha, Frei Serafim e os desfiles das Escolas de Samba, imperdível, meu velho! Triste foi quando parou tudo nos anos 80. Teresina parecia ter escurecido sem as festas de momo, uma escuridão que desnorteou os tamborins e calou as cuícas; um amargor na goela dos puxadores de samba-enredo e uma tristeza sem fim nos corações dos compositores e dos foliões.

Veio os anos 90. As fantasias guardadas e o peito dos apaixonados pelo carnaval batendo cada vez mais forte, desistir nunca! Esperança e ritmo na cadência do samba. As forças se aglutinaram e, em 1993, aconteceu um evento denominado Reviver Carnaval, um Seminário realizado pela Fundação Cultura Monsenhor Chaves e a Secretaria de Esportes e Lazer - Semel, na Casa da Cultura de Teresina, tudo acompanhado por uma exposição de fotos, fantasias carnavalescas. Foi a partir dali os tamborins começaram a esquentar. Participei de uma mesa onde estava Marcos Peixoto, o super-produtor cultural que fazia a Micarina com grandes trios baianos, nada que impedisse nosso carnaval de existir. O seminário foi todo documentado, e ali estavam todos os presidentes de escolas de samba e pessoas apaixonadas pelo carnaval deixando suas idéias e opiniões. O carnaval tinha voltado para a alegria de todos, principalmente minha. Tenho o documento, quem quiser ler me peça uma cópia.

1994, todas as Escolas de Samba na Avenida Frei Serafim. Mauro Monteiro, um gigante, dando tudo de si como organizador. O povo de Teresina invadiu a Frei Serafim, que ficou pequena, veio Marechal Castelo Branco, brilhante ideia, mais espaço e conforto. Em 1997, um ingrediente a mais: o corso carnavalesco e o caminhão das raparigas-atrizes piauienses representando, criação da FCMC, sob a responsabilidade de Cecilia Mendes, Afonso Lima, Laria Sales, Ací Campelo, Daniel, Wellington, uma festa! No começo, dois caminhões apenas, dez anos depois o corso tomaria conta da cidade. Mas, e agora? Como ser feliz no carnaval se não vai mais existir desfiles? Como ficará o corso? Aliás, corso pra que?

O mais terrível de tudo é negar a tradição. Escolas de Samba sempre existiram em Teresina, há mais 50 anos, não é, então, uma tradição? Não é uma história? Por isso é que às vezes penso que nós somos culpados pela nossa incrível capacidade de negar a nós mesmo. Estamos sempre acabando com aquilo que construímos, com aquilo que pode sugerir nossa identidade cultural, nossas raízes, nossas heranças, então, ficamos navegando e boiando sem paradeiro, na busca de qualquer tábua de salvação, num desrespeito total à construção de nossa cidadania. No Piauí, o gosto pessoal de alguns quando se apoderam do poder paira sobre o gosto dos outros. Não gosto, não quero, não tem pra ninguém. Mesquinhez pura.

Fico comigo a lembrar do bloco do Pererê, alô Ral! Do bloco da Tijubina do Mafuá, criado por Ubirani Rocha, do qual banquei o letrista dos sambas e, por último, do Baião de Boi, do Severinos Santos, onde desfilei nos últimos três anos. E o Bosco com sua Escola de Samba da qual me homenageou, me colocando no Samba Enredo? E o príncipe do carnaval, senhor da glória Manuel Messias. Onde vamos dançar agora? E pra quem? Não irei aos bairros vê escolas de samba desgarradas fazendo coro para trios elétricos, nada contra, absolutamente. Acho que até os próprios bairros irão estranhar, afinal de contas muitos deles se dirigiam a avenida para vê as escolas, não é verdade?

Mas, vamos com calma. A identidade de um povo é construída pedra sobre pedra e, às vezes, ficam só as pedras, para renascer das cinzas matando a tirania. Que viva o carnaval!



Ací Campelo,
em 27 de julho de 2009
via blogue do autor


21.2.12

CARNAVAL, CARNAVAL


Eu vejo as pernas de louça
Da moça que passa e não posso pegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

chico buarque


A bermuda de jeans e a camiseta verde. Calçou os tênis. Virou-se. Encarou o espelho. Penteou-se. Ouvia Don't let the dragon eat your mother, brother, de John MaLaughlin.
José entrou no quarto: - 'Tamos no carnaval, cara.
Ele: - Eu sei.
José: - Então?
Ele balançou o corpo. Uma Gibson 'The Les Paul' imaginária nas mãos ágeis.
José: - O problema é que não observamos as raí...
Ele: - Vamos.
Saem.

REINADO DE MOMO
PALÁCIO DA FOLIA

Edito Real

Sua majestade, Rei Zé Fortes, Primeiro e Único, no uso de suas intransponíveis e irrevogáveis transições legais


Decreta

Art. 1º - A partir de hoje reina a alegria e é revogada a tristeza.
Art. 2º - Os descontentes com o Reinado de Momo deverão ser confinados:
a) nas praias de Luis Correia ou Barra do Ceará;
b) em Sete Cidades; e
c) nas matas de Timon e adjacências.
Art. 3º - Nos clubes, todos devem pular, lépidos e fagueiros, juntos ou separados, porque a orientação do Rei é de que sem alegria não dá.
Art. 4º - Os condes e conselheiros do Reinado anterior considerem-se demitidos, pois no novo Reinado a bossa é nova.
Art. 5º - As coroas devem abdicar máscaras e soltar os enxovalhos, uma vez que no atual Reinado toda mulher é boa.
Art. 6º - Fica abolido o preconceito à transação gay; afinal, todos são iguais no carnaval e nem sempre o saracoteio dos quadris homologa a placa.
Art. 7º - Os que saírem nas ruas, pensando ficar fora do trino momino, deverão ser sequestrados e recolhidos ao Quartel General da Folia, na Avenida Frei Serafim, até a passagem do Trio Elétrico.
Art. 8º - Revogadas as disposições e indisposições em contrário, o presente Edito Real entra em vigor na data de sua publicação.

(Jornal O Dia, edição de 21/22 e 23 de fevereiro de 1982, pág. 7)


Aqui Pegou
18h15m

José, ele, a menina de óculos e o cara de bigode de arame.
Três copos. Quatro garrafas.
José: - Quem é homem não anda assim.
Ele: - Tudo é brincadeira.
Menina de óculos: - Li depoimento de um psicólogo que dizia o carnaval permitir ao indivíduo externar seus sentimentos reprimidos, o que somente é possível durante os três dias dessa festa orgíaca, pois nos outros dias a sociedade possui um papel castrador em face daquilo que ela entende por atitudes amorais.
Cara de bigode de arame: - É, quem é homem não se veste assim. Nem no carnaval.
Ele observou o revoar assustado dos pardais sobre as copas das árvores da Avenida Frei Serafim.
Rebuliço no passeio da Av. Frei Serafim.
Blocos de sujos, animados, vão e voltam, vão e voltam. Não se cansam nunca.
No alto, trinados de pardais.
Ele e José vêem um bloco: Unidos do Esculacho. Todos com túnicas.
Ele: - É o bloco dos artistas.
José: - Aquele cara ali é artista?
Ele: - É.
José: - Todos eles são artistas?
Ele: - Não. Tem alguns que são somente veados.

Uma garota, short de jeans e blusa com a legenda  University of California, encostada num Corcel II.
Um cara de calça preta e camiseta no ombro, depois de observá-la por algum tempo, aproximou-se.
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Ôi, Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Hein?
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Você é Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Você está enganado. Eu não sou Pussy.
César que não vem. O cara de calça preta e camiseta no ombro está bêbado. Cambaleia ao afastar-se da garota que chamara Pussy.

Numa cidade que se pretende civilizada, a polícia não acode aos desditosos habitantes martirizados por alguns engraçados sem espírito que levam horas inteiras espancando peles de zabumbas, quando as próprias é que deveriam ser escovadas, uma vez que a autoridade consente semelhantes exibições grotescas, inqualificáveis, dignas de zulus ou boçais.

(Revista Rua do Ouvidor, de 27/01/1900, citada por Chico Alencar no artigo Acabou o carnaval (mais faz muito tempo...), publicado em O Pasquim, edição de 25/02 a 03/03/1982, pág. 7).

Um corpo no chão. Ninguém dá atenção a ele.

Dançavam juntos, não dançavam? Por que, então, parou? Por que olhou-a diferente?
A moça: - O que houve?
O rapaz: - Não deveria estar com você.
A moça: - Por quê?
O rapaz: - Você sabe.
A moça: - O telefonema?
O rapaz: - É.
A moça: - Esquece, pô.

( - Fale
- Talvez você já tenha percebido.
Pausa.
- Eu gos...
- Alô? Você está me ouvindo?
- 'Tou, sim.
- Fale.
- Eu te a...
- Olha, você é um cara legal. Mas a...
- Continue.
Pausa.
- A minha cor, né?
- Pausa.
- A minha cor, né?
Afastara-se do orelhão. Sumira na noite.)

O moreno vestido como mulher e bucho forjado. Acompanhou-o à avenida o vizinho, sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito.
O branco vestido com bermuda super estampada e camiseta azul, sem mangas. Saiu no Puma.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado divertia-se, seguindo qualquer bloco.
O branco do Puma bebia no Coisa Fina; loura, sentada em suas coxas, vez em quando levava-lhe à boca um naco de carne.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado suado quando o dente começou a doer.
O branco do Puma balbuciou qualquer coisa no ouvido da loura. Saíram.
Bêbado com um litro de Mangueira na mão deu um trago de cachaça para o moreno vestido como mulher e bucho forjado.
O branco do Puma, com a loura, na pista da avenida, num e noutro bloco.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado viu o branco do Puma e disse para o sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Aquele filho da puta me tirou o emprego e não me pagou direito.
O branco do Puma espremia a loura, com força.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado, referindo-se ao branco do Puma: - Vou dar um pau nele.
- Sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Deixa pra lá, cumpade.
O branco do Puma continuava a espremer a loura.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado disse: - Vamos esquecer.
O branco do Puma pisou no pé do moreno vestido como mulher e bucho forjado.

Se as fantasias revelam, então o carnaval mostra um mundo invertido, onde o pobre pode "bancar" o rico; e os donos do poder podem buscar uma aproximação com o mundo dos homens, "bancando" pobres. Entrevistas com pobres que desfilaram de "reis" revelam esse êxtase carnavalesco, quando alguém pleno de anonimato social ganhou os aplausos, as atenções e os olhares de todos os segmentos sociais num desfile. Entrevistas com gente de classe média alta indica precisamente o oposto: aqui, há um prazer - como o de um arquiteto de sucesso - de "pisar de pé descalço o asfalto da Avenida". (...) Quer dizer, eu continuo achando admirável que uma sociedade no final do século XX ainda continue a celebrar suas relações sociais utilizando essa regra de inversão e, assim fazendo, possa permitir e legitimar um "troca de lugar", ainda que essa troca seja burocratizada, controlada pelo Estado, fugidia e tenha data marcada. Porque, apesar de tudo, é uma troca que permite vivenciar a justiça e a igualdade, a liberdade, a vitória e a esperança. Esses ingredientes centrais de qualquer transformação social concreta.

(Fragmentos do artigo Carnaval: o verdadeiro milagre brasileiro, de Roberto da Matta, publicado em O Pasquim, edição de 26/02 a 04/03/1981, pág. 5)

- É bicha.
- Não. É uma mulher.
- É bicha.
- Porra. É mesmo.
- Olha outra ali.

Primeiro uma chuvinha fina. Parara. Pouco depois, como da vez passada, espectadores à procura de abrigos. A maioria permaneceu na chuva.
- É incrível, ouvintes. Nem a chuva que desaba sobre o centro da Cidade Verde consegue afastar os espectadores da Frei Serafim. A chuva aumenta cada vez mais o entusiasmo do folião. Dá mais gosto de se ver um carnaval assim.
Locutor do Posto Nº 1, da Secom:
- Loucura. Toda esta chuva e o carnaval se torna ainda mais quente, mais movimentado. Não tenham dúvida: nesta festa explodem tradições milenares trazidas da terra de origem e abafadas durante o ano inteiro. É para esta festa, que é a maior do ano no Brasil, que o povo economiza o ano inteiro.
Ele e José tinham deixado numa mesa do Aqui Pegou a menina de óculos e o cara de bigode de arame. Caminhavam lentamente. José não parava de falar. Ele viu a garota de short jeans e blusa com a legenda University of California.
Ele: - Olá gracinha.
Garota de short e jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy.
Ele: - Hein?
Garota de short jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy. Me chamo Pussy.
Ele fez sinal para José.
Garota de short jeans e blusa com a legenda University os California: - Parece que ele se chateou.
Ele: - Um chato.

Locutor do Posto Nº2, da Secom:
- Atenção Laura Maria. Atenção Laura Maria. Sua mãe te espera aqui no Posto Nº 2. Compareça o mais breve possível.

Quem não conhece o carnaval não conhece o Brasil, e quem não gosta de carnaval não gosta da alma brasileira. O carnaval ainda é feito pelo povo, já que a participação popular espontânea é maior que qualquer interferência dirigida, venha ela do poder público, de empresas privadas ou de qualquer pessoa diretamente interessada na festa. Essa manifestação espontânea é tão poderosa que mesmo durante as ditaduras impostas ao Brasil - do Estado Novo ao período pós-64 - conseguiu ser mais forte que a repressão. O povo continua dançando e cantando, porque para o povo brasileiro cantar é tão importante quanto sobreviver. (...)
O morador do morro, quando encontra um vizinho no bar, não quer falar de suas desgraças. Prefere cantar sambas. Se tiver um pouquinho de sensibilidade, já faz um ritmo. Um pouco mais e improvisa em verso. Esse comportamento não morre com a ação de forças externas e garante a eterna sobrevivência do carnaval.

(Albino Pinheiro, fragmento de O carnaval é eterno, revista Veja, nº 703, pág. 90.)

José no bar.
Três garrafas vazias sobre a mesa. Pediu a quarta. Duas vezes levantara-se e fora ao banheiro. Fedorento.
Cerveja esquentando no copo.

Populares cercavam um corpo no passeio da Avenida Miguel Rosa, em frente à AFAL.
O assassino agiu rapidamente. O homem corria com dificuldade e Violeta, sóbrio, facilmente abateu-o.
Conjectura-se que tudo aconteceu por causa de uma puta chamada Margô.
Violeta, após matar o homem, tirou da bolsa uma gilete e começou a cortar-se, principalmente no antebraço esquerdo.
Desesperado, deixou a peruca cair.

As paredes desbotadas. Quase brancas. Cadeira na palha, bacia, jarra, penteadeira e cama.

Pussy virou-se. Encontrou-se diante de um homem que lhe sorria. Espantada, protegeu sua nudez. Levantou-se rapidamente. Vestiu-se. Abriu a porta. Saiu.
Na rua, duas senhoras, com terços e véus, caminhavam para a igreja.
O sol há muito fora parido.


1º Lugar do II Concurso de Contos JOÃO PINHEIRO,
Realizado em 1982



Manoel de Moura Filho
em Novos Contos Piauienses
Teresina: Fundação Cultural, 1983

23.11.11

UM ÍNDIO, Paulo Tabatinga


Um índio perdido
Na Frei Serafim
De óculos ray ban
E de calça jeans

Um índio tapuia
Quem sabe, Poti
Um índio perdido
Na margem da margem
Da Frei Serafim


22.7.18

POST CARD - TERESINA, Paulo Machado







POST CARD 57


na praça marechal deodoro
às nove horas falavam
da u d n e do american-can

um louco jaime fazia ponto no cruzamento
da barroso com a senador pacheco sem saber
que há tempos existia a guerra fria

quinta-feira era dia de matar o tempo
na praça pedro segundo enquanto sapos
copulavam nos lajedos do tanque

nas tertúlias do clube dos diários
uma geração embarcava no marasmo
esquecendo tudo mais

nos canteiros da avenida frei serafim
os cupins construíam suas casas
fiando estranha quietude

no bar carnaúba o sol roía o marrom
das tabículas das mesinhas ao passo que
os homens de casimira cinza faziam planos

na paissandu os bêbados
pregavam a subversão
e um bolero esquentava as entranhas da noite

nas calçadas da simplício mendes
um rosto magro madalena deixava brotar
estranhamente um sorriso largo de espera

no mercado central pretas carnudas
vendiam frito de tripa de porco
fígado picado e caninha

no caís do parnaíba piabas
cor de prata saltavam das águas salobras
como no sonho dos meninos



POST CARD 77


na marechal deodoro
às nove horas há velhos com suas memórias
recompondo o tempo

quinta-feira é um qualquer
e na praça pedro segundo a mudança notável
é a da posição da estátua que parece sorrir

no cruzamento da barroso com a senador pacheco
há um sinal que não raro
encrenca desafiando a rotina

não há tertúlias no clube dos diários
as baratas medrosas saem das boca-de-lobo
admiram os caixotes de cerveja empilhados e fogem

nos canteiros da avenida frei serafim
putas acenam com gestos medidos
a fome é mais forte que o medo

não há bar carnaúba mas os homens
de casimira cinza continuam fazendo planos
cogitando não aceitando irreverências

a paissandu agoniza
os bêbados já não falam tanto
e a frieza da noite venceu o calor dos boleros

madalena morreu de câncer
e nas calçadas da simplício mendes
não há nada que lembre a sua presença

no mercado central negrinhos descarnados
catam laranjas e limões podres
em plena manhã de maio

o parnaíba continua lavando as almas pagãs
dos meninos fujões
roendo as pedras do cais com a mesma raiva



Paulo Machado
em Post Card

6.4.14

NÃO TRAZ A RÉGUA LÍRICA, por Adriano Lobão Aragão



não traz a régua lírica
a rua olavo bilac
existe numa esquina da
frei serafim uma placa
gritando anjo torto
mas quando passam os carros
eles não ouvem nem vêem
as mulheres nuas
pintadas ao lado da prefeitura
agora com poemas
nas paradas de ônibus
e pessoas de olho
na avenida pra ver o ônibus chegar
recolhendo mais uma
paisagem humana
pros outros dias seguintes



Adriano Lobão Aragão
em Uns Poemas 
Teresina: FCMC, 1999


11.11.13

AQUELAS FLORES AINDA SALTAM NO MEU CÉU!




Quase nenhum garoto do bairro Primavera do final da década de 70 e início da de 80 deixava de admirar os paraquedistas (o hífen foi retirado para não atrapalhar a queda) que executavam suas manobras lá pras bandas da curva do rio Poti, talvez perto da floresta de fósseis que há em seu leito, depois da ponte da Frei Serafim. Com seus paraquedas redondos, aproveitando a corrente de ar que os levaria até a pista do aeroporto, passando por cima de nosso bairro (que beleza!); aquilo era surpreendente para qualquer criança setentoitentona, e isso não era diferente para mim, que vinha, como já o-disse noutras vezes, de uma cidadezinha do interior, que me-madrastou mansamente: essa Alto Longá – domundopróximo – distante. Em Teresina, nesses idos, olhávamos os meninos para cima, à espera de todos (e, em expectativa, de um) pularem.

Hem-hém. Quão fácil era prender a atenção de crianças assim! Sim, tão pouco era necessário. E, imaginem só, assistir à audácia daqueles homens: o desafio de confiar em equipamentos, em tecnologia de afronta à gravidade – dane-se Newton; todos queríamos vê-los saltando davincianamente para um voo planado por asas de tecido sintético! Redondinhos. Sim, os paraquedas ainda eram os redondos, mesmo o italiano engenhoso tendo-os pensado piramidalmente mais pesados e quadrados e os nossos contemporâneos, mais leves e retangulares, com a possibilidade de o paraquedas ter manobrada a sua direção. Então, os meninos de olho no céu, à procura dos pontinhos coloridos que desabrochavam uma flor salva-vidas; perigosa ideia do desejo humano do voar, oqual, ainda hoje, renova suas asas com as penas de outra tecnologia, criada da ciência. Quer ler? Hoje, agosto de 2011, aposto se há tanto alguém nesta ilha terrena que ainda queira voar com o grego, usando as asas de cera que Dédalo criou para si e seu filho, Ícaro (não escrevo do paraquedas de Da Vinci, porque isso já foi feito; a foto que ilustra esse texto comprova-o!).

É, o não ter asas para voar deu ao humano a possibilidade de trabalhar com as mãos (estendam-se os braços), esses Oficiais de Justiça do cérebro. Foram essas mãos, por exemplo, que criaram essa possibilidade de sobreviver qualquer um que pule de qualquer lugar (estático ou célere) estando a tantos metros do chão. Claro que esse “qualquer um” foi somente para ilustração de que há pessoas que fazem isso. Mas não o-é para todos. Para nós, os meninos que observávamos estupefatos de alegria aquela loucura de se-atirar de um avião a mais de dois mil metros de altitude, ainda não havia nada que se-comparasse a isso. E, nesta linha mesma, me-vem à mente o nome dum homem (claro que havia outros com ele!); não, seu apelido. Louro. Loro (pra confirmar a nossa “morte do ditongo”, já praticada pelos espanhóis, de mais antiga língua). 

Quem era esse cara? Ainda hoje sei pouco sobre ele. Certa vez, aqui, em Teresina, encontrei um seu filho, um fotógrafo, de nome Cleyton, não lembro bem (sei que o-conheço), que falou qual era o verdadeiro nome de Louro, seu pai, mas infelizmente perdi isso em minhas agendas; foi mal, Cleyton (nem sei se seu nome é escrito assim), mas talvez alguém possa reconstituir os fatos dessa história teresina, que, junto-com os meninos, também eu vi. Isso, se não já o-tiverem feito. Talvez alguns poucos possam-se-lembrar de Louro e de seus companheiros de saltos. Eles são os primeiros em nossa capital? Eles, de fato e de saltos, não deixaram quaisquer seguidores pelos ares dessas suas quedas de -longe? Quem sabe? Sei que foram ousados. Nem sei se há ainda, aqui, nesta capital, algum grupo que pratique paraquedismo. Aliás, há paraquedismo ainda, aqui, em Teresina, como havia naquela época?

Vixe, eram muitos saltos! Acredito que fosse uma espécie de clube de paraquedismo. Não posso confirmá-lo, mas isto, sim: o Louro era “o Cara”. Era o nome que os caras (como os meninos nos-chamávamos) mais pronunciavam. Todos, abestalhados com aquela habilidade, que vem desde os acrobatas chineses, precursores do paraquedismo de “altas altitudes”, até a ideia-cabeça de Leonardo, o iníco de uma sequência de ousadias, que ofereceram ao público um Fausto De Veranzio, um Sebastan Le Normand, um Jean-Pierre Blanchard, que já saltava com paraquedas dobrável de seda, ou um André-Jacques Garnerin, o primeiro a desafiar as grandes altitudes, ou uma Genevieve Labrosse, a primeira mulher, e sua sobrinha, Elise, que fez mais de 40 saltos, o que, para a época, era algo surpreendente. Não; somente eles eram ousados a tal ponto no céu. Ah, esses saltos sempre foram perigosos, e nossa expectativa de meninos roía as unhas e nossos heróis tiveram que pagar o preço com suas próprias vidas-próprias e eu, de boca aberta ainda e olhos espremidos, calibrando o olhar, e este texto, por réquiem profano, saltando do meu cérebro, pulando com as mãos nesta tela. 

Ao Louro, estas “memórias póstumas”. Elas, que, pelo céu de minha boca passam palavras, puladas por mim, a sonorizar as imagens, que gravadas no “paraquedas do meu cérebro” ficaram a saltar. Não eram elas a borboleta preta nas rodas do quarto, mas pareciam floresinhas pequeninas (bem pituibinhas!) no céu do meu bairro, daquela cidade do tempo em que os meninos, na primavera das idades e no Primavera de suas casas, estavam de olho duro no céu. O salto que eu ainda espero é o de Louro. Como, hoje, o paraquedas pode ser manobrado pelo paraquedista, como tento fazer com estas palavras que saltam de mim num céu de página branca (papel ou tela), quero que ele caia dentro deste poema:



Outra inscrição para um túmulo no ar (o segundo voo)


Meninos,
nas matinês dos
domingos, lá pras
bandas da curva do
rio – com o Poti abaixo
(sim, uma garantia?) –, um
passarinho de metal desovava
no céu sementinhas; e vinham caindo
velocíssimas para, em seguida, abrirem-se
como florzinhas: pequeninas ilhas de cores teresinas,
paridas pelo voo dessas aves ocas, loucas pelas alturas terrenas!
Os meninos esperávamos, sobretudo, sobre todas as altitudes, pelo Louro,
o principal pontinho do grupo dos pulos nos ares do abismo, o príncipe dos
comentários dos caras do bairro, do Primavera  (sempre abismados, os meninos); entanto, estávamos tão abaixo de entendermos a altura dessa Física, de um artefato
saltado do entendimento davinciano e longíquo. Ah, seos meninos, eu vi também os
saltos do Louro pelo brancinzazul do céu do meu bairro soltos; primaveral flor do céu
que voa, e todas voam: o pouso sobre o desejo tão grande e tão baixinho (mítico?) de voar acima dos telhados dos olhos primaverinos. – Lá vai o Louro saltar!– Lá vem o louco! – Lá vai no vento indo. – Vai pro aeroporto. Esse foi o salto que caiu dentro do encanto dos meninos de boca aberta: – Quede os paraquedas? – Quedê? – Cadê? Que pena. Ninguém mais os-espera. Como flores soltas na corrente de ar: elas, pelos louros do desafio à queda-livre, presas dentro deste poema, dos céus das páginas, saltam nos









olhos
dum menino
teresino.



Luiz Filho de Oliveira
enviado pelo autor

22.10.13

ENIGMA NO AR, Elias Paz e Silva

para H. Dobal e Paulo Machado

que anjo sobre a cidade
anuncia coriscos na nuvem?
mensageiro do poente
o sol se declina em fogo no oriente
clarazul céu de enigmas
decifra homens taciturnos de esperança
os rios riscos primitivos
seca suas margens de areia e sonho
um artifício de paisagens
pontifica demolindo memórias antigas
à fome de justiça sobrevive
o rapaz da rua da glória
o que que há que não
se intui quando o vento de setembro na pele imita carros de fogo
uma aliança renovada
sustenta o arco-íris na retina dos habitantes
depois do verão solar
chuva de raios trovões no metal dos pára-raios das árvores secas
o relógio rosa da praça rio branco
ensina uma política de signos sob a velhice retórica
o mesmo anjo que circundou uma espiral
a margem da floresta de pedra a retidão da frei serafim silencia:
VIVER É VINGAR-SE DA MORTE!


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

19.10.13

JOANA




Josué esmaga a Frei Serafim. Num certo trecho observa um aglomerado de jovens bebendo - calças de fundo folgados, carrões, cocotas. Relembra o seu tempo de rapaz - roupas de segunda mão, subempregos, fome. Odeio esses filhinhos-de-papai, sangue-sugas. Quantos crimes praticados sob o efeito das drogas!

Josué procura limpar a vista, olha para o alto. O céu ainda azul de Teresina evoca-lhe Joana. Cabelos negros a escorrerem, longos, sobre os ombros sensuais, os olhos azuis a contrastarem com a tez morena do rosto delicado, portador de um nariz afilado, uma boca pequena, um queixo redondo.

Joana não resistiu. O corpo moreno, de pernas roliças, entrou num carango "enfezado". O riquinho deitou e rolou com a menina nas areias do Poty - eu me caso com você. Depois, satisfeita a tara, os olhos esbugalhados - então você pensou em casamento, gatinha? Logo comigo? A putinha sabe de quem sou filho? Ah, chorando? Será por causa do cabaço? Pra que pobre com cabaço, gatinha? Hahaaaaaa...

Aí "garotão" caminhou para Joana, o canivete de ouro em punho. Joana gritou, berrou, urrou, o medo no rosto lindo, o sangue escorrendo como o rio.

Numa banda de jornais Josué vê uma manchete garrafal: ASSASSINARAM JOVEM NA CALADA DA NOITE...

- Já indeterminaram o sujeito... Cumpriram o primeiro passo da estratégia da impunidade. O próximo passou: arranjar um bode expiatório. Quem sabe eu?

A noiva assassinada - ninguém acreditaria no testemunho do rio - sente vontade de esbofetar aqueles ricos todos, um a um, mas de que adiantaria, as coisas mudariam? Resolve parar de pensar -  a certeza de Joana enterrada - e sai caminhando na avenida, as mãos fora dos bolsos.

Um automóvel, alto-falante em cima, passa anunciando um rivengo.



em Painel de sombras 
Teresina: Edições Piçarra, 1980

25.7.23

Perambulando pelos bares noite a dentro, por Geraldo Almeida Borges



Teresina é uma cidade repleta de bares e botecos por todos os lados e por todas as esquinas. O bar Café Avenida não ficava em nenhuma avenida, como reparou o poeta Edmar Oliveira. Hoje seu espaço não passa de um estacionamento do Luxor Hotel. Nos seus de tempos de glória era frequentado principalmente pelos sírio-libaneses, a comunidade árabe, no final da tarde, na saída do expediente comercial. Era como se o bar fosse uma extensão da casa deles, de tanto que ficavam à vontade. Ali, conversavam em seu idioma natal. Ninguém compreendia patavina do que estavam dizendo, provavelmente falavam de seus negócios.

Como tudo tem seu tempo, chegou a minha vez de começar a frequentar e conhecer os bares da cidade. Mas, antes de me sentar no bar Carnaúba e começar a beber com os amigos, preciso falar de um bar muito mais antigo. Chamava-se bar Carvalho e ficava na praça Rio Branco. Ainda o alcancei. Foi lá que tomei a minha primeira cerveja na companhia de um tio. E fiz a minha iniciação etílica. 

Voltemos ao bar Carnaúba, que foi o primeiro com o qual me habituei. Ali, sentados, com os amigos, os cotovelos em cima da mesa, copos espumando de cerveja, servidos por uma garçonete bonita, sorridente, e que todo freguês desejava. Discutíamos sobre política e putaria. O bar ficava do lado do Theatro 4 de Setembro. Teve o destino de quase todos os bares, um dia desapareceu. Mas a gente sempre encontrava um bar de portas abertas, como um templo nos esperando.

Um dia encontrei um bar onde demorei mais tempo bebendo. Este parece que não ia se acabar tão cedo. Também se  acabou. Era o Gelate, que ficava na avenida Frei Serafim, defronte da casa de sobrado do poeta Durvalino Couto. Ali bebia a turma dos meninos que escreveram as edições do jornal Gramma, e que marcou profundamente a história cultural piauiense. O dono do bar era o Raimundo. O seu tira-gosto era delicioso. Mas só começava a servi-lo quando já estávamos na terceira cerveja. Ninguém sabia de que era feito. Estalava na boca como torresmo. Um dia ele nos revelou o segredo do tira-gosto. Falou para mim que era tripa de galinha torrada.

Andando de bar em bar, perambulando pelas ruas de Teresina e falando dos bares que não existem mais, podemos citar o bar Acadêmico, que ficava na praça Pedro Segundo, o bar do Setenta e um, que ficava na esquina do Fripisa, no chamado Alto da Moderação, onde funcionou o antigo Mercado Novo, o bar e livraria Punaré perto da praça João Luiz Ferreira, do professor e sociólogo Antônio José Medeiros. 

Quem bebe nunca se lembra de todos os bares e botecos por onde andou, embora tenha os seus preferidos. Bendito esquecimento. No momento me recordo do bar do Sebastião, perto do beco, na saída do beco. Era um boteco onde se tirava água do joelho em uma lata detrás de um biombo de madeira. Ali tomei muita cachaça com o meu primo Alberoni Lemos. Tinha os bares da Paissandu, dos cabarés. Toda casa de tolerância era um bar, onde, geralmente, se bebia na companhia de mulheres; também se acabaram. Tinha o bar da Maria Tijubina para o mais discretos. Para os mais escandalosos, era Maria Tabaco de Sola. Muitos artistas e intelectuais em visita a Teresina terminavam a noite por lá para comer panelada, ou mão de vaca, eram levados pelo Açaí Campelo. Ficava à margem da estada de ferro, no Mafuá. Alguém deu na veneta de fazer um curado para o Metrô, e lá se foi o bar da Maria.

Tinha o bar da Ria Ana, com suas mesas rústicas, na calçada, cobertas com toalhas quadriculadas; era o bar da moça Rita Maria, ou melhor, Ritinha. O bar do meu primo Humberto, no bairro Porenquanto, com suas cadeiras na calçada debaixo das sombras das mangueiras, onde o poeta Sid Abreu dava o ar de sua graça, bebendo dose de pinga e recitando poesia. Tenho certeza que me esqueci de muitos bares, onde me embriaguei. Lembrei, agora mesmo, foi bar do Tetéu, que ficava no coração da praça Saraiva. E funcionava a noite toda. Não posso me esquecer do bar do Santana. Este parece que ainda existe. Talvez seja um dos bares mais antigos de Teresina. Já mudou de lugar algumas vezes. Mas sempre levava os seus fregueses. Faltava falar no bar Nós e Elis. Pronto. Está falado. Já foi até objeto de um livro. A palavra para ele é saudade. Momento de curtição, existencialismo, e muitos encontros inesquecíveis. Ficamos sem o bar e perdemos uma grande estrela. mas não vamos perder os bares, embora eles desapareçam, da noite para o dia, outros os substituem, e até parecem os mesmos, com os seus garçons solícitos, nos enchendo os copos de cerveja com colarinho ou sem colarinho.



Geraldo Almeida Borges
em Província Submersa - Crônicas Teresinenses (século XX) 
Personagens, mitos e monumentos
Editora Caetés: Rio de Janeiro, 2011.


21.3.20




Naquele dia mamãe apareceu mais cedo na escola. Acabara de sair do leito de vovô, no HGV. Não fizemos perguntas, já sabíamos que ele havia partido. Caminhamos abraçados pela Frei Serafim, suando, na cola de um caldo de cana com pastel. Tudo vai ficar bem, ficaremos mais unidos. A gente segurando o choro. Depois do caldo, mamãe comprou uns quadrinhos antigos ao lado dos correios. Ainda hoje comigo aquelas histórias

Rodrigo M Leite, via blogue do autor,
Da série: Estrelas ou Poemas Esquecidos Incrustados no Ferro

28.7.15

PESCARIA ÀS SEIS DA TARDE NO BALÃO DA IGREJA DE SÃO BENEDITO, por Rubervam Du Nascimento



Um rio nos separa na pista de danças luzentes e procissões de veículos rio não de águas de carros. Na cidade de Teresina, tem um igreja cuja frente, fica voltada para uma avenida, que juntando-se com outras pequenas ruas no mesmo perímetro, vai dar no rio Parnaíba, - o maior rio da bacia hidrográfica da região Norte do Brasil, responsável pela separação geográfica entre os estados do Maranhão e do Piauí, e, o fundo, vai dar para outra artéria, considerada a mais elegante e luxuosa da nossa capital, - a Avenida Frei Serafim. Nesse ponto, - tanto pela frente como pelo fundo da igreja, - outrora, o "trottoir" (paqueração, pescaria) de proxenetas, gays, lésbicas, drag queens, travestis e principalmente prostitutas era intenso. A procissão de veículos motorizados era maior que a procissão de andores, mas dentro desses veículos estavam no volante - obviamente motoristas, - que não estavam ali para pescar luzes de holofotes de carro nem muito menos  pistas de rolamentos de veículos, eles estavam ali para pescar gente de rostos, carne, osso e espinha.



Rubervam Du Nascimento
em Guia Turístico Afro-cultural da Região Meio-Norte; Piauí e Maranhão
de Antônio Julio Lopes Caribé


3.12.15

a cidade frita é um alucinógeno, Lucas Rolim


[procurando um bar na frei serafim]

o calor de 1000fps derrete a cidade em super slow motion
a liquidez dos pedestres e do dia evapora diante de pupilas detonadas

as retinas absorvem delírios litúrgicos no compor das multidões
a balburdia dos pés pavimenta a bad trip dos passantes

os pombos engolem a luz e espalham-na pelos picos das cabeças:
regurgitam quarenta e 1 graus de insolações nas epidermes secas

nos olhos, o ruminar da lisergia induzida pela sensação térmica
cria imagens psicodélicas que se perfazem na dança solar

a expansão dos ossos colapsa a estrutura das marquises
calçadas desenham o efeito do calor ao longo do corpo
e homens-camaleão deslizam pela sombra no horário de almoço

o dia ácido amplifica as alucinações dos estudantes
no torpor dos malabares, dos carros e dos mendigos
*A Cidade Frita: livreto do poeta Rodrigo M Leite
Poema enviado pelo autor

11.4.16

"As Feras" ou "David Vai Guiar" (1972)








(...) fiz um filme que hoje é mais conhecido como Davi Vai Guiar ou Davi a Guiar, que no começo eu chamava de As Feras porque resolvi filmar tudo quanto era de maluco na cidade (na época havia uma gíria, “fera”, para designar se o cara ou a garota eram malucos) e criei um personagem chamado Inspetor Pereira, que era um policial perseguindo essa galera, esses cabeludos, essa rapaziada. Era um filme muito engraçado. (...) Eu quis fazer um filme em que eu filmava todos os malucos, todos os doidões de Teresina da década de 1970. Então eu filmei os meus amigos, filmei o grande bar da época que era o Gelatti – que ficava aqui na Frei Serafim – filmei o subúrbio, filmei gente fumando maconha, filmei meus amigos hippies, filmei os cabeludos, as meninas de minissaia, as namoradas, as namoradas dos meus amigos, usando como pontuação do filme um pensamento bem característico que era um inspetor de polícia perseguindo essa galera. O Inspetor Pereira era, digamos, o fio condutor da narrativa. Isso foi legal porque as projeções se tornavam um festival de gargalhadas, as pessoas se reconhecendo e havendo até mesmo uma torcida a favor dos malucos!

Durvalino Couto Filho em entrevista concedida a Jaislan Honório Monteiro 
Revista dEsEnrEdoS
Ano IV - número 15 - Teresina - Piauí - 2012



[...]



David Vai Guiar representa um clássico exemplo dessa flanância investigativa pela cidade. Trocadilho com o nome do principal protagonista —David Aguiar—, o título remete às intenções centrais do filme: utilizar as noções de guia e contra-guia para, a partir de um deslocamento sobre a cidade de Teresina, ir dando visibilidade e afrontando aos instrumentos panópticos de controle do espaço urbano, como os sinais de trânsito. A cidade que emerge na tela, composta por um cenário bucólico que revela pacatos bate-papos de final de tarde nas calçadas, é repentinamente submetida a uma vertigem expressa por motocicletas e automóveis que deslizam por suas ruas em alta velocidade. Ao som ao mesmo tempo agressivo e melancólico da banda de rock Pink Floyd o protagonista sorri quase furiosamente, enquanto, cabelo ao vento e a pretexto de guiar sua motocicleta, arrasta os olhares na contramão. O argumento do filme se concentra em um esforço para ler os signos da cidade com base em uma afronta aos regulamentos. Urubus, por exemplo, são apropriados como instrumento de uma estética minoritária, problematizadora da própria noção de belo. O destaque, entretanto, em David Vai Guiar, tanto quanto em O Terror da Vermelha, é dado às tabuletas de trânsito, as quais são consumidas sempre no sentido da negação.

Edwar de Alencar Castelo Branco
em Táticas caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis pela cidade.



[...]



Produção: Arnaldo Albuquerque e Durvalino Couto Filho
Câmera: Arnaldo Albuquerque, Durvalino Couto Filho e Edmar Oliveira
Roteiro e direção: Durvalino Couto Filho

18.11.14

a paz do pântano, por Paulo Machado



Nas ruas da minha cidade há lições?
           (É preciso aprendê-las)

Desfazer o enigma da Rua Grande,
Onde os revolucionários depredaram o bonde
E apagaram os gestos dos ditadores,
Numa rubra manhã de outubro.


(A malha da história sendo tecida pelas mãos operárias)


Lembrar o fantasma de um coronel loquaz
que acrescia cores às suas façanhas
e vadiava pela Rua da Estrela,
atravessando paredes,
sumindo na cinzentura da tarde.


Os paralelepípedos da Rua da Glória
tinham a densidade do sono nas tardes de verão.


Insisto:
aprender as lições que há nas ruas da minha cidade.
Na Rua Bela, era proibido amar.
(Há tempos proíbem as lições de liberdade, no meu País.)


Na Rua dos Negros, francesas faziam amor
com os filhos dos coronéis.


Na Rua Paissandu, havia sol nos corações dos amantes.


O tempo não apagou o que falavam os operários
da Companhia de Fiação, nos dias de cinza da ditadura Vargas.

Diziam coisas reais
aprendidas no galope das máquinas
e no silêncio das horas, nas noites insones.


O imperialismo saia do Cine Olympia
para as mesas do Bar Carvalho;
a Casa Inglesa penhorava a vida dos camponeses.


Não importa que o presente me apunhale.
Desafio o ódio
dos que desconhecem como é difícil penetrar
no âmago das verdade proibidas
e acreditar nos homens.


Caminho solitariamente pelas ruas da minha cidade
e guardo-me para desvendar seus segredos.
Como é difícil compreender
os mistérios de uma cidade,
mesmo que seja uma pequena cidade
situada na zona tórrida,
no nordeste do Brasil.


A Avenida Frei Serafim divide a cidade em duas fatias de medo.


Aos domingos a cidade está deserta e dócil
ao carinho da procura.

Parece que seus habitantes partiram
e nada deles restou.


A cidade, desabitada, treme de gozo
aos afagos dos estranhos,
mas nunca se entrega inteiramente.


Impossível dizer quantas faces tem a cidade.


A constância do azul, no céu da cidade,
ensina que é preciso renascer das cinzas da noite,
porque a vida é um contínuo amanhecer.


A cidade e as tragédias familiares,
as muitas dores abafadas,
as vergonhas que as famílias guardam
no fundo das gavetas.


Minha cidade já viu morrer
muitos homens e silenciou.
E este silêncio ensina
que não basta ver a morte de homem
para aprender que a vida
se escreve com a melhor letra.


As ruas da minha cidade ensinam lições de solidão?


Conheço minha cidade,
como conheço o meu corpo.

Meu corpo propõe insurreições
e persiste, insubmisso, entrincheirado
nas ruas da cidade ensolarada.


A cada dia que passa,
a cidade torna-se difícil.

Os que a amamos,
Sentimos sua renúncia.


Enfurecida, a cidade é uma loba no cio.


Escapo à armadinha do tempo:
aprendi a árdua lição
de que as palavras são potros bravos.


Aprendi a inventar amanhãs,
moldando o futuro
com minhas angústias de homem.

Aprendi que sou um náufrago em mim mesmo
e já não procuro meu avesso
nos fracassos acumulados.


O presente insiste em me apunhalar.
Vejo minha cidade:
ancoradouro de fúrias invisíveis,
e seus horizontes repetidos.



Paulo Machado
em "a paz do pântano"
Oficina de Arte: Teresina, 1982


25.6.18

TERESINA - Bucólica visão dos anos sessenta, Herculano Moraes


i
g
r
esbelta
j
cal
massa
tijolão
tinta e telha

erguida no alto da jurubeba por frei serafim
vozes, cânticos, ritos, missas, congresso, oração
o santo negro abençoando a cidade de
Aparecida
c
degraus                   r                   degraus
degraus              u              degraus
degraus           z           degraus

fone                          carnaúba                       karnak
casa                                                              poder
casa                          carnaúba                       jardim
escola                                                           piscina
esquina                          estátua                         carnaúba
decetê                                                          esquina
casa                          carnaúba                       parada
casa                                                           casa
casa                          carnaúba                          casa
pão                                                            coop
esquina                        semáforos                      endemias


Herculano Moraes
em Legendas, 1ª edição
Edição do autor: Teresina, 1995

21.10.13

SR. CORNÉLIO



Cornélio Evangelista da Costa, o Sr. Cornélio, que completa 90 anos no próximo dia 28 de agosto, disse que não tem saudades de tempos atrás. "Gosto da Zona Leste de Teresina pelos seus arranha-céus", afirma. Há quarenta anos, ele se instaurou no ponto mais badalado do centro da cidade, a esquina da Praça Pedro II com a Avenida Antonino Freire, a menor avenida do mundo, construída para homenagear o governador do estado entre 1910 e 1912. O cardápio ainda é o mesmo: pão de queijo e refrigerante. Ele mesmo cuida da lanchonete até hoje. É um observador do seu tempo e diz que até os costumes mudaram. "Uma coisa interessante, os homens circulavam o coreto da Praça Pedro II pela direita e as mulheres, pela esquerda, era assim que se paqueravam. Se você fosse deixar a moça na casa dela, era casamento feito", revela. Ex-vizinho de figuras ilustres como os governadores Helvídio Nunes e Leônidas Melo, ele relembra que a atual area nobre da cidade, a zona leste, era um local de veraneio, onde os comerciantes do centro mantinham sítios para passar o final de semana. "As pessoas mais ricas da cidade moravam na Avenida Antonino Freire e na Avenida Frei Serafim", lembra. Natural de São João dos Patos "MA", Sr. Cornélio ficou viúvo às vesperas de completar bodas de ouro. "Foi amor a primeira vista. Tenho três filhos, cinco netos e dois bisnetos", disse. Sr. Cornélio não tem planos de parar. Todos os dias, o forno da lanchonete Mary Lucy assa mais de cem pães de queijo que são consumidos ainda quentes.



Revista Veja 
Edição 2229 
Ano 44 - nº 32, em 10 de agosto de 2011

5.11.13

PREVISÃO DO TEMPO, Rodrigo M Leite


o morto esboçado no chão com sua moto
não é lembrado no mercado central
onde cresceu e não aparece há anos
o recém nascido evangelina rosa
grita primavera rouca
coro que anoitece os olhos do pai
pétalas de aço enferrujado
rasgam o asfalto frei-serafim meio-dia
quentura dos infernos
ônibus tiram fino das garotas cpi, todas iguais
a cidade respira pulmões encardidos
e o som vibrante de linhas com cerol nos postes mafuá
trilha o cotidiano de almas estendidas em varais


Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita
Teresina: 2013 (versão atualizada)

17.8.14

FANTASMAS DO VELHO BALNEÁRIO DOS DIÁRIOS




Fantasmas, fantasias oníricas de viciados em drogas, inumeráveis pichações e imundície velam o antigo casarão de dois pavimentos, abandonado na Praça Ocílio Lago, onde funcionava o Balneário do Clube dos Diários, no Jóquei. Só os despojados, como o idealista, advogado, escritor e jornalista, Kenard Kruel, topariam a proeza de resgatar o prestígio do vetusto patrimônio, transformando-o em centro de manifestações artísticas.  E o show já começou. Exige apoio de autoridades e amantes das artes. Kenard iniciou a limpeza, atende compromissos no local, organiza arquivos da Fundação Nacional de Humor. O médico José Aírton juntou quatrocentos amigos, festejou seu aniversário ali, conseguindo 12 mil reais para a instituição. Construtoras prometem reformas.

A Fundação Nacional de Humor projeta, para breve, show e escola de humor na praça, museu de arte contemporânea, além de festivais de cartuns, caricaturas, quadrinhos.

A geração atual pouco ou nada sabe sobre aquele bucólico prédio e sua praça, urbanizada há algum tempo. A tarefa inicial de Kenard Kruel já espantou boa parte das miragens e lucubrações.

Entre as décadas de 1950 e começo de 60, o Bairro do Jóquei praticamente não existia. Imensa floresta cobria quase toda a Zona Leste de Teresina. Só a velha ponte de madeira, onde, hoje, se ergue a Ponte Wall Ferraz, servia de passagem sobre o Poti. Construiu-se outra ponte, a Juscelino Kubistchek, de concreto, na segunda metade dos anos 50, ligando a Avenida Frei Serafim à Zona Leste. Coronel Miranda, proprietário do jornal O Dia, juntou grupo de notáveis amigos, fundaram o chique Jóquei Clube, com manhãs dominicais lotadas de banhistas, além das corridas de cavalos e tertúlias semanais. Endinheirados adquiriam lotes enormes e arborizados, construíam modernas residências, desfrutavam a noturna temperatura serrana.

O Jóquei Clube atraiu expressivos associados do Clube dos Diários. Em resposta, líderes diaristas, comandados por Moisés Cadah, doutor João França, Edgar Nogueira, general Gaioso, Durvalino Couto, João Carneiro e Camilo Santos Hidd, fundaram o Balneário Clube dos Diários, que se estendia da atual Praça Ocílio Lago à Avenida N. S. de Fátima, onde se ergue um supermercado. Duas piscinas e bar ocupavam o segundo pavimento do prédio. Aos domingos, música ao vivo. Filhos de sócios iam do centro da cidade, de ônibus, lotavam o balneário a partir das 9 da manhã de domingo, até 2 da tarde. Certa manhãzinha, ainda escura, Hermínio Conde, neto de Antonino Freire, governador no início do século XX, dirigiu-se ao Balneário ainda deserto. Num salto do trampolim, faleceu.  Meu cunhado Marcos Hidd, filho de Camilo Santos, parece delirar, recordando um tempo, quando Teresina começava a se esbaldar nos recentes balneários, Jóquei, Diários, logo mais o Iate Clube. Ainda se curtiam deliciosas manhãs, nas praias alvíssimas e límpidas águas do Poti e Parnaíba.   

A Fundação Nacional de Humor tenta resgatar alguns sonhos que se perderam com o crescimento e modernização de Teresina. Se não cuidar, fantasmas e fantasias oníricas cuidarão do lixo.



José Maria Vasconcelos
via blogue do poeta Elmar Carvalho
em 16/08/14