"O RIO", por Herculano Moraes




O rio de minha terra é um deus estranho. 
Ele tem dentes e tem braços e sabe rir, 
como sabe chorar nas noites de solidão.

É muito calmo o rio de minha terra. 
Suas águas são feitas de argila e de mistério, 
sua alma é profunda e tão cheia de pecados homicidas... 
(foi ele que levou o meu irmão).

O rio do meu mundo é um deus estranho.

Um dia ele deixou o monótono galopar de corpo mole 
e foi subindo as poucas rampas do seu cais, 
e foi ver o movimento da cidade 
e visitar as taperas marginais.

Tão fogoso e tão potente estava o rio 
que todo um povo se juntou para enfrentá-lo.

Mas ele prosseguiu indiferente 
carregando nos seus braços bois e gente 
até roçados de arroz e de feijão.

Depois subiu os degraus da Igreja Santa 
e postou-se horas sob os pés do Criador. 

E voltou devagarinho... 
até deitar-se novamente no seu leito.
 
Mas toda noite o seu olhar de rio 
fica boiando entre as luzes da cidade.



Herculano Moraes
em SECA, ENCHENTE, SOLIDÃO
Editora EMMA: Porto Alegre, 1977

Comentários

Veja também: