29.10.11

BAIRROS DE TERESINA: I - CAJUEIRO, Jônatas Batista


É, talvez, o bairro mais alegre de Teresina.

Quando "Dona Tristeza", no seu penoso lidar, vai espalhando por todos os recantos da velha Chapada do Corisco, carradas de bocejos e cargas de espreguiçamentos, o pessoal dos Cajueiros dança, folga e se diverte a valer.

Nas noites de sábado, então, é um gosto a gente passear pelas ruas tortuosas do ensombrado teresinense. Cinco, oito, dez, doze saraus, pelo menos!...

Também é a coisa mais fácil deste mundo promover uma destas festas, umas dessas importantes soirées, a que o povo dá o título humilhante e expressivo de forró. É assim: três ou quatro pares, um tocador de harmônica ou sanfona, umas três garrafas de aguardente e o clássico e infalível e obrigatório panelão de panelada, a ferver, mesmo a um canto da pequena sala onde se dança, fazendo, com o seu bufar constante, um insuportável dueto com as notas enfadonhas da orquestra reles. Nada mais. Está feita a festa; está pronto o baile!... E assim, os bem aventurados habitantes dos Cajueiros - a república independente - como eles envaidecidos denominam o seu bairro, passam "vida santa e milagrosa", dançando, comendo panelada, fumando, bebericando aguardente, até alta madrugada, quando a festa não é interrompida no meio, por algum ruge-ruge de cacetes, ou tilintar de punhais...

Não raro, alguém se lembra dos velhos tempos e, então, o samba - o samba como outrora se fazia - impera, vaidosamente, por algumas horas, em pleno coração do alegre e pouco reconhecido recanto teresinense.

"Nas cordas desta viola
Vive um canário a chorar...
Saudade de quem se foi,
De quem não torna a voltar..."

E a viola soluça, geme e ri, enquanto uma nuvem de fina poeira se eleva no ar, ao doido sapatear de cabras turunas e morenas formosas.

É ali, nos Cajueiros, muito perto da nossa bem amada "cidade verde", que a gente tem a impressão de estar a duzentas léguas de Teresina, no centro dos sertões piauienses, onde a bucólica e feliz simplicidade dos corações se junta, se irmana, num abraço estreito e carinhoso à alegria estonteante e provocadora das almas despreocupadas. Não fosse o soldado de polícia, um tão assíduo frequentador daquelas rodas, e a impressão seria ainda mais perfeita, mais completa.

"Minha viola de pinho
Tem alma e tem coração,
Tem amor e tem carinho,
Tem canseira e tem paixão".

Oh! Os cajueiros... Como todos os bairros que se prezam, ele tem também a sua história própria, as suas lendas, as suas superstições.

Ainda há bem pouco tempo, o velho Chicão, um feiticeiro afamado daquelas bandas, contava-me um fato curioso e interessante, a propósito dos "anjinhos" - o abandonoado cemitério onde eram sepultadas todas as crianças que morriam naquelas redondezas, sem nenhuma das formalidades exigidas por lei.

- Mas como foi lá o caso do pagão? Perguntei ao preto velho que me deixara entrever, através de suas reticências e meias-palavras, alguma estória assombrosa, inconcebível.

- Foi assim patrão...

E começou:

- A Mariazinha era mesmo uma cabocla de fazer água na boca... Bonita até ali... Não fosse a bondade que sempre me carregou, a gente poderia bem compará-la a Nossa Senhora de Lourdes. Ela, porém, sempre orgulhosa, nunca fez parte do povo da sua laia. Queria ser muito boa, muito fina, e só dava ouvidos aos brancos, aos mocinhos de gravata e correntão. Até mesmo o Zeca Pagodeiro, seu parente perto, rapaz trabalhador e valente, que tanta vontade tinha de casar com ela, nunca foi assuntado. Vai, se não quando começou a passear, por estas bandas, o seu Joãozinho, do coronel Tavares. Era um rapagão bonito, de olhos azuis e cabelos louros. O namoro foi logo rasgado e sem mais cerimônias. Abraços, boquinhas, apertos de mão eram cousas que eles trocavam para todo mundo ver, sem vergonha e sem acanhamento. Em pouco tempo já o povo murmurava que a Mariazinha estava pejada... A velha Miquelina, em casa de quem foi ela pedir uns tamarindos verdes, foi a primeira a dar com a língua nos dentes. Uma cousa eu mesmo notei, e foi que a Mariazinha andava triste, amarela, com os olhos fundos, e tão esquecida de tudo, como se não fosse criatura viva. Seu Joãozinho já lá se tinha ido pra estranja, ela própria me contou, uma tarde, sentada aí na raiz deste cajueiro, onde o patrão está encostado. Foi acabar os estudos, se formar em doutor. A pobre rapariga cada vez se amofinava mais. Uns diziam que era de saudade do namorado, outros afirmavam que era mesmo filho... O tempo foi passando; o povo foi esquecendo; já ninguém falava mais em tal cousa quando, numa noite, ouviram-se gritos medonhos, uns gritos feios que faziam levantar os cabelos e apertar o coração. Correram todos; e também corri... Era a Mariazinha quem gritava, como uma doida varrida, estirada-no chão, a estrebuchar, com os olhos vidrados: "Meu filho! meu filho!!... não foi batizado... Está aqui chorando...". E apontava para o canto da casa, que é justamente onde hoje é o cemitério. A criança (neste ponto o preto velho tossiu, tomou fôlego) chorava como se estivesse morta de fome...

 - Que criança?

 - O filho da Mariazinha, o que ela havia morto ao nascer, e enterrado sem que ninguém soubesse.

E reatando a estória:

 - Ninguém viu o menino, mas o choro, que vinha do fundo do chão, toda gente ouviu. Também nunca vi tanto medo. Ninguém quis se aproximar. Eu fui me achegando e, assim que acabei as palavras: "Manoel, eu te batizo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo", fazendo, com um ramilho verde, uma cruz mesmo em cima do lugar, o choro acabou de vez...

- E a Mariazinha: - perguntei curioso.

- Morreu daí a três dias, espumando pela boca que parecia (Deus me perdoe) uma cadela danada.

- E depois?

 - A casa caiu; A velha Ricardina, a mãe da outra que estava entrevada há muitos anos, também morreu, e o povo passou a enterrar os inocentes neste lugar. Por isso é que ainda hoje se chama "anjinhos".

 E o velho Chicão se despediu, e lá se foi, rumo a sua toca, transferida para a Vermelha poucos dias depois daquela noite mal assobrada...

Como vêem, os Cajueiros tem também a sua poesia, a sua lenda, aliás bem interessante.

(Do "Correio de Teresina", de 21-07-1913)


Jônatas Batista
em Prosa e Poesia 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

28.10.11

TERESINA, Gregório de Moraes


Mangueirais, minha velha Teresina
O povo alegre, sorridente, vivo
O Mafuá num batucar festivo
Saudade, mestra e mãe que amar ensina

Falar de minha terra me fascina;
Meu Deus, é tudo um eternal motivo
O Parnaíba marulhando esquivo
O Barrocão; a luz da lamparina...

Correr, subir veloz num oitizeiro
Tentar erguer meu papagaio primeiro
Lembrança das casinhas. Há quem esqueça?

Vivi no meu desterro esta lembrança
Ó saudade do tempo de criança
Dos maternais beijinhos na cabeça.


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

26.10.11

O TERROR DA VERMELHA, Torquato Neto




a) - um filme é feito de dois planos:
a b c: um plano depois do outro
depois do outro depois do outro
depois do outro - planos. não é
feito de cenas, rapaziada - cineclube.

1 plano é 1 plano, porquanto
montagem é, ante sempre
montagem é, antesempre, uma análise
de planos. e mais soma/divisão
multiplicação/subtração. certo disso.
dziga vertov, citado por godard em
inglês: ...montar um filme antes
da filmagem, montar um filme durante
a filmagem, montar um filme depois
da filmagem.

b) - fotografar ontem, guardar
(SAUSÂDRADE)
fui a teresina pelo início de
junho (sanatório meduna), entrei
em contato com os rapazes que
haviam feito o jornal gramma e
partimos para um superoito de
metragem média que resultou neste
O TERROR DA VERMELHA (ou
qual outro nome escolherem). o
material filmado percorria
aceidentalmente acidentalmente
um fio de acontecimento, matéria
de memória de uma sópessoa em
equipe percorrendo roteiro de
lugares, quintais, paisagens-
plano geral
paisagens-planos-gerai,
distância. a cidade transformada
retornada transformada em
EM TRANSFORMAÇÃO. o jôgo
(from navilouca) VIR/VER/OU/VIR
etc (AQUI/ALI), títulos subtítulos
versos pontuação: TEXTO-LEGENDA,
ora ocupando totalmente o
fotograma ora
precisamente ilustrando-o
"sur-place", como
palavra-cenário (luiz otávio), e
também (galvão em OU),
palavracontradestaque, como
destaque (waly) na dança da
herondina. nove cassetes filmados,
filme ektachrome kodak.

c) - em seguida à versificação de
variadas férteis possibilidades
de edição (montagem), optou-se por
stanley donen. não há explicações
recomendáveis claras para a
escolha: pereceu-nos simplesmente
a mais NATURAL, CONCRETA, no
pensamento da transação com imagem
(e som): em movimento como forma de
narração concreta precisa necessária,
satisfatória. idade eletrõnica. mais
evidentemente, o
tempo/contratempo/contraoambo,
produção execução e a guerra,
(ONE PLUS ONE), godard, o filme das
famílias, televisão, cinemascope,
escambal, o diabo a 4.

d) - edmar (oliveira) o superstar
principal. mais: conceição, herondina
claudette, juçara, adélia maria,
dona salomé, livramento, etim,
paulo josé, durvalino filho, edmilson,
pereira, geraldo cabeludo, dr. heli,
galvão, joão clímaco d'almeida e
transeuntes. além de arnaldo.
arnaldo fez a maior grande parte da
câmera.


[1972]



Torquato Neto
Gramma, número 2
Teresina, 1972


25.10.11

Torquato Neto - síntese biográfica







Torquato Pereira de Araújo Neto (Teresina PI, 1944 - Rio de Janeiro RJ, 1972). Cursou Jornalismo no Rio de Janeiro, por volta de 1966, mas não chegou a concluir a faculdade. Nos anos seguintes compôs letras musicadas por Gilberto Gil  ("Geléia Geral", "Louvação"), Caetano Veloso ("Deus Vos Salve a Casa Santa", "Ai de Mim", "Copacabana", "Mamãe, Coragem") e Edu Lobo ("Lua Nova", "Pra Dizer Adeus"). Entre 1970 e 1972 atuou nos filmes Nosferatu no Brasil e A Múmia Volta a Atacar, de Ivan Cardoso, e Helô e Dirce, de Luiz Otávio Pimentel. No período também criou e redigiu a coluna Geléia Geral no jornal carioca Última Hora. Em 1973 ocorreu a publicação póstuma de seu livro de poesia Os Últimos Dias de Paupéria, organizado por Ana Maria S. de Coraújo Duarte e Waly Salomão. Três anos depois, foram incluídos alguns de seus poemas na antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1976. Em 1997 foram publicados quatro de seus poemas na antologia bilíngüe Nothing the Sun Could Not Explain, organizada por Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher. Torquato Neto foi um dos compositores mais inovadores da canção popular dos anos de 1970.


A MORTE NA PRAÇA, José Pereira Bezerra


Ilustração: Arnaldo Albuquerque

Domingo à tarde. Não passa das três. O sol intenso cobre parcialmente e incendeia a praça. Em frente ao Cine Rex um aglomerado de pessoas esperam ansiosos o início da sessão vespertina. Dum banco defronte, um homem moreno claro, barba grisalha por fazer emoldurando-lhe o rosto magro e pálido, contempla a movimentação. Faminto, fraco, é envolvido por uma indecisão que o abate. Não sabe se lê o jornal "O DIA", ou se fustigado pelo calor, observa indiferente o formigar de gente. A secura da garganta já denuncia a sede que o ameaça. Não tem dinheiro e a ideia de pedir a alguém o constrange. No dia anterior, por motivo de briga, passou a noite preso na Central de Polícia, e esse fato parece abatê-lo, apesar de não ser a primeira vez. Hoje, pela manhã, perambulou sem rumo nas ruas. Não teve coragem de por os pés em casa, "não tinha cara para isso". Cisma. O ar quente, abafado tira-lhe a paciência, mas não muda de lugar. "Ora porra". Um entorpecimento e suor frio invadem-lhe o corpo. A beira da náusea, o cérebro fraqueja. Range os dentes, procurando forças pra vencer a agonia. A imagem da mulher brigando e dos filhos chorando ferem-lhe a mente de relance. Os segundos passam, a pele perde a cor natural. A custo tenta soerguer a cabeça. Inútil. Tomba sem forças, escangotado. Semi inconsciente, imagens contraditórias e indesejáveis invadem-no. Dir-se-á que estar sendo fulminado por um edema fatal. O jornal foge-lhe as mãos, caindo em frente. Ora contrai o estômago, ora aperta o peito com as mãos crispadas. Num delírio torturante, até sons desconexos e vagos ferem-lhe os ouvidos. As pessoas continuam aglomeradas e ninguém percebe que está morrendo aos poucos. Ninguém socorre, nem vela existe nesse momento crítico de sua existência. Seus valores são colocados em dúvida diante da realidade. Agonizante, ouve gritos, vozes, de conhecidos e até dele mesmo, num alternar martelante e confuso.

- "Você não presta, sem-vergonha!"
- "Estás condenado à morte por ti, covarde, não assumiste a luta".
- "Meu filho, não lhe falei? Você perdeu grande oportunidade e não assumiu a verdadeira postura de homem..."
- "Sou covarde, bem o sei, e meu egoísmo burguês me queima no fogo de minha fraqueza".
- "O seu maior erro foi não ter conseguido enxergar nem sentir o efeito alienante da cegueira..."
- "Vai e te lamente, mas no fundo o erro é da consciência que a sociedade impôs na formação de tua personalidade..."
- "Não vês, idiota, que foste manipulado de forma tão primitiva...?"
- "Eu daria tudo pra viver outra vez. Com certeza não seria mais um pústula..."
- "É tarde!"

Quando o vêem caído, acercam-se do cadáver que acaba de dar o último espasmo. Cada pessoa que se aproxima do círculo, estica mais e mais o pescoço pra melhor presenciar a miséria em sua forma mais simples - a morte. Esboça expressão fácil digna duma das pinturas mais patéticas de Koskoschka: olhos esbugalhados, boca entreaberta mostrando os dentes amarelos e cariados, e um fio de barba descendo num canto da comissura dos lábios. "Ah, que terá acontecido com este homem de Deus?" Sussurra uma velhota gorda, rosário entrelaçado nos dedos, trêmula. Faz-se um pequeno tumulto. Todos querem dizer alguma coisa. Rompante, aproxima-se do cadáver um homem moreno e forte, olhos vermelhos. Recende a cachaça. Brada com voz dominadora:

- Vejam quem é!?

Ato contínuo, um suspense assalta os presentes, que, perplexos, entreolham-se interrogativos.

- É Chico Valete. Que Deus o tenha entre os seus. Já foi por bem dizer rico, possuiu muitas propriedades, mas no jogo perdeu tudo ansiando ficar mais rico. Todos olham-no, atentos. Faz-se um silêncio frio, tumular. E, fazendo um gesto forte de cabeça, gira o corpo, resoluto e sai cabisbaixo, exasperado, como se acabasse de ler a sentença de morte do miserável.


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976
Desenho de Arnaldo Albuquerque, originalmente publicado no livro

23.10.11

LEMBRANÇAS DE AMOR, Hardi Filho


Não são somente lembranças
de um imenso amor vivido,
é um desejo insopitável
de vê-lo reconstruído.

Passaram anos e ainda
lateja na minha fronte
a dor de ver-te sumindo
no pó do tempo horizonte...

Ah se eu pudesse trazer-te
de retorno ao meu caminho
para de novo enredar-me
nas rendas do teu carinho!

Novamente andar contigo
de mãos dadas (que eu adora!);
repetir nossos passeios
pela Praça Deodoro...

Eu preciso, meu amor,
novamente te esperar
naqueles pontos de encontro
desta cidade sem par.

Esperar e ansiar de novo,
quase a perder o juízo,
pela graça de teus olhos,
pelo teu belo sorriso...

E receber-te do jeito,
da forma de antigamente,
com aquele abraço louco,
com aquele beijo ardente!

Reviver os bons momentos
que ainda me tocam fundo,
te encontrar cedo da noite,
na Praça Pedro II.

Voltear naquela praça
cumprindo o geral esquema,
ou então bulinar teu corpo
no escurinho do cinema...

Eu preciso te esperar
como tantas vezes fiz,
ansioso por teus beijos,
lá na praça João Luís.

Subir contigo os degraus
da Igreja São Benedito;
chegar ao ceú, com as asas
daquele amor infinito!

Quantas vezes nos metemos
em façanhas aloucadas...
Lembras o nosso equilíbrio
no fio das madrugadas?...

Corações cheios de encanto,
mãos afoitas...lábios quentes...
Tu querendo...mas parando
os meus arroubos frementes.

Como lembro os teus carinhos
e a tua sinceridade
na aventura que vivemos
tão própria daquela idade!

No campo do sentimento
o tempo passa e não passa.
As marcas de um grande amor
não há nada que desfaça.

Quem tem passado bonito
vive um presente feliz.
Aquele tempo foi lindo!
esta saudade me diz.

Saudade que bem se ajusta
ao meu modo singular
de na vida esquecer penas
e só belezas lembrar.

Não podendo reviver
um tempo que foi tão bom,
me consola, amor, cantá-lo
em saudoso e alegre tom.

Mas eis que ocorre um milagre!
(Ninguém com isto se espante)
Neste momento ressurges
do tempo-nuvem distante...

Vens vestida de invisível
e aqui te fazes presente.
Só os meus olhos te vêem,
só meu coração te sente.


em Tempo Nuvem 
Teresina, 2004

14.10.11

MARIA TIJUBINA, Edmar Oliveira


Quando na madrugada de meninos boêmios a fome apertava, os filhos da zona norte só tinham uma direção: Maria Tijubina. Não era bem um restaurante. Uma venda num casebre que se equilibrava num barranco acima da linha do trem. Mas a quem Maria fazia deferência, podia examinar as panelas, nas trempes dos fogões, se a Mão-de-Vaca ou a Panelada, qual iguaria estava mais apetitosa. Eu era um destes fregueses, ainda menino, que Maria dava importância. E qual o meu orgulho de anunciar pra rapaziada que me acompanhava: hoje é dia da Panelada, tem um cheiro ótimo. – Maria, uma panelada e um arroz a mais. Este “arroz a mais” era a grande invenção da Maria. Com dinheiro muito curto nos bolsos a molecada desdobrava um prato feito pra dois ou três em um rango para quatro ou seis. Verdadeiro milagre da Maria na multiplicação da comida farta.

Maria Tijubina era antenada. Conhecia as turmas, os grupos, as encrencas e as fofocas de todos. E passava informação a (de) uns e outros, sentada na mesa do freguês, com seu paninho de espantar muriçocas, e que servia também pra limpar as mesas e pegar as panelas quentes. Na venda da Maria matava-se a fome e a sede de informação. Ali se sabia que a namorada de um tinha saído com outro. Que o respeitável político amancebara-se com aquela loura que uns e outros davam em cima. E, pior para a reputação de alguns, doutor Fulano, casado e pai de filhos, passou ali, numa dessas madrugadas, em companhia de suspeita sexualidade. Coisas simples da vida de província. E a gente perguntava pelos colegas e Maria respondia que este já passara ali torto e, com certeza, foi dormir; que aquele outro, certamente, ia chegar; que esse outro viajou pro sul.

A Panelada e a Mão-de-Vaca da Maria eram as iguarias das noites no Mafuá. Um mercado que virou bairro. Um bairro que virou conto. Assaí Campelo, figura que se confunde com a própria Teresina, morador do Mafuá, e vizinho do mercado, a pessoa mais importante da zona norte de Teresina, levou Caetano Veloso e Gilberto Gil e uns e outros artistas que visitaram Teresina pra comer panelada na Maria. Eles nem sabem do quê a comida é feita, mas Maria mostrou a tijubina pro Gil e pro Luiz Melodia...


12.10.11

TERESINA, MEU AMOR, Zezé Fonteles


teresina evolui bailarina
de um modo que encanta e fascina
reverberando de luz e calor.
sua face de moça menina
desperta com a brisa matina
explode em ondas de luz multicolor.

baila, minha dançarina,
meneios e graça, dançar sempre foi
essa dança cabocla, brejeira,
de gente faceira, o bumba-meu-boi.

um sol de amarelo vigor,
dessas paragens dono e senhor,
faz morada nas tuas esquinas,
meninas traquinas, menina flor.
desabrocha verde que verde é tua sina.
assim és, teresina,
teresina, meu amor!


Zezé Fonteles
em Poesia teresinense hoje
Teresina: FCMC, 1988

11.10.11

TERESINA, Wilton Santos


Teresina é um país à margem do Rio Parnaíba
onde Alice, Paris?
maravilha o sonho de meus irmãos

Teresina: Teresa e usina

Índias virgens versejam terreiros
batucam
tambores
a fogo. Afago:
Teresa Cristina é aqui
aqui dentro uma chapada em coriscos.

Teresina acorda com pardais
de meia
em meia hora passa ônibus pra Timon
besta tu se não vai ver
mercado velho
besta tu se não beber caldo de cana
a cana caiana das flores de Cuba
besta tu se não comer seriguela, sapoti, frito de porco
besta tu se não prosar nos olhos verdes da cabocla!


Wilton Santos
Poesia teresinense hoje
Teresina: FCMC, 1988

10.10.11

Wilton Santos - síntese biográfica


José Wilton Santos nasceu em Jenipapeiro (10/081955), Picos, atual Francisco Santos (PI) e faleceu em Teresina, no Piauí, em 2003. Poeta, compositor e professor. Licenciado em Geografia. Professor da rede estadual de ensino. Foi classificado em vários concursos literários, entre os quais: primeiro lugar no Concurso Torquato Neto de Poesia, promovido pelo C. A. e Departamento de Letras da UFPI (1980); primeiro lugar no Concurso de Poesia Falada na Praça e 1º Lugar no Concurso Prêmio da Costa e Silva de Poesia, ambos promovidos pela Secretaria de Cultura do Estado (1981 e 1982). Membro da União Brasileira de Escritores do Piauí. Foi um dos fundadores da União Piauiense de Escritores. Publicou: "Cerca de Arame" (1979); "Diadema" (1982); "Mosaico" (1991); "Ciclo Vital" (1993), “Lente de Contato” (1995) e “Academia” (1997), poemas. Participou dos livros "Postais da Cidade Verde" (1988) e de "Poesia Teresinense Hoje" (1988), organizado por Adrião Neto.

ANGICO, Glória Sandes


Perto do rio Poty
há um pé de angico
        um pé de angico
        ai um pé de angico

Perto do rio Poty
havia um pé de angico
havia um pé de angico

Foi arrancado pela mania de modernização
ou foi por causa de alguns bêbados motorizados?

Em Teresina
a noite é companheira e cúmplice
de homens e tratores


Glória Sandes
em A poesia teresinense hoje
Teresina: FCMC, 1988

9.10.11

PONTE METÁLICA, Adrião Neto


Velha ponte metálica
que num fraternal abraço
une Piauí e Maranhão
o trem que te cruza
é mais um fator de integração
entre os dois Estados.
Monumento histórico e paisagístico
não és apenas um cartão postal
que irmana Teresina a Timon
e sim, uma testemunha ocular,
do abandono, do descaso e da agressão
que o Parnaíba vem sofrendo:
seu leito que outrora
fora caudaloso
hoje é apenas um fio de lágrima
da mãe Natureza
chorando sua própria desgraça.
Comovida, pedes socorro
mas ninguém te escuta
enquanto isso, o Velho Monge
no auge da sua caduquice
transforma suas águas em coroas.


Adrião Neto
em Poesia teresinense hoje 
Teresina: FCMC, 1988

4.10.11

TERESINA, NOVEMBRO, Hardi Filho


A tarde quente escoa-se tranquila
na lentidão vazia dos minutos;
também vazia, ou quase, a casa estila
um vesperal torpor em seus redutos.

Na tarde morna a placidez desfila
o corpanzil isento de atributos;
em seus modestos vãos a casas asila
ares de afeto e salutares frutos,

cujos sinais estão por toda parte.
Aqui e ali encontra-se requinte
que denuncia amor, afeto e arte...

O momento é sensível. Na verdade,
velado de prazer, por conseguinte,
de simples glória e de feliz saudade!


Hardi Filho
em Tempo Nuvem 
Teresina, 2004

29.9.11

TERESINA, V. de Araújo


Teresina:
contornos sensuais, anatômicas formas;
árvores que balouçam, máquinas que trafegam;
firmamento verde, cáustica chapada;
teu anoitecer é como um tapete d'ouro,
linhas energéticas, relâmpago tece...
festival etéreo, canto de pardais.

Teresina:
posto avançado, indômita sentinela;
silo d'esperança, invencível guerreira;
artérias multicores, luminárias vivas;
teus edifícios erguidos, projetos ao vento,
são como velas, ao desafio do tempo,
de velozes jangadas... navegando céus.

Teresina:
(Metálica Ponte, Poti, Parnaíba...);
celeiro de bardos, sinfônica orquestra;
fagueiros meneios, viçosa menina;
teus olhos verdes, no irromper d'aurora,
são como casais que, unidos, oram...
sinos retumbantes, catedrais de fé.


V. de Araújo
Poemágico, a nova alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

25.9.11

BAR CARNAÚBA, Francisco Miguel de Moura


No Bar Canaúba
(onde é que fica? na memória?)
desempregados,
estudantes, senhores de terno e gravata.
A putaria de olhares trocados
                                              sensuais
Mulher contrapassa
                               homem com trapaça.
Faladores, cafezeiros, filadores,
torcedores, fumancistas, professores.
E o recado no ar para os descontentes
(1968 ou 64):
- O Comandante da Polícia Militar
mandou que fossem descansar
em paz, em suas casas:
- O Presidente caiu, não leiam os jornais.
Desce a noite. E a praça está lá...
Serenamente corre como o rio,
branco colar de contas, sem fio.
Entro no Teatro para assistir a um filme.
Bar Canaúba de ontem, você não caiu,
ainda te bebo na lembrança:
- liberdade curtida!


Francisco Miguel de Moura
em Poesia Incompleta 
Teresina: FCMC, 1997

12.8.11

Praça Pedro Segundo, dos anos 30 à década de 90, Diva Maria Freire Figueiredo


A atual Praça Pedro II, que nasceu como Praça João Pessoa e foi rebatizada, sucessivamente, com os nomes de Independência e Aquidabã. Desde cedo demonstrou sua vocação para centro artístico e cultural, quando se instalou o Teatro Concórdia nas meias águas do prédio do Quartel de Polícia, em 1879. Essa tendência é confirmada pela construção do Theatro 4 de Setembro, em 1894; do Clube dos Diários, em 1927 e do Cine Rex, em 1939. Todas essas obras estão localizadas no perímetro da praça ou na sua vizinhança imediata.

Em 1936, um pouco antes do inicio da construção do Cine Rex, quando dominava entre as construções da época o estilo Art Déco, foi transformada por lei em Praça Pedro II, ao tempo em que sofre uma reforma para a implantação de um projeto paisagístico, cujas intervenções arquitetônicas e o mobiliário são representantes desse estilo, passando a se constituir na área principal de lazer da cidade. Entre os serviços previstos pelo projeto, destacam-se como identificadores da obra realizada: a construção de um coreto, da escadaria de acesso à parte alta, do revestimento dos pisos, do calçamento da rua diagonal, da balaustrada de proteção entre os dois níveis da praça, da fonte luminosa; a instalação de sistema de iluminação com distribuição de postes por toda a área e de cinquenta e seis bancos de concreto; a transferência e instalação da estátua do imperador, antes colocada na Praça João Luiz Ferreira; o plantio de 41 fícus.

Nova reforma sofrida no final da década de 50 introduz algumas novidades. A mais marcante, sem dúvida, e bastante documentada, consiste no pitoresco lado cortado por uma imitação de tronco caído, construído em concreto, que se transforma no cenário preferido dos fotógrafos para a confecção de retratos dos teresinenses. É provável que seja também dessa época uma representação de globo terrestre, construída em estrutura de metal, bastante referenciada por pessoas que vivenciaram os passeios na praça durante os anos 50 e 60. No entanto, essas intervenções preservam as principais características da praça até a década de 70, quando a última grande intervenção, de caráter renovador, descaracteriza totalmente a proposta paisagística anterior, inaugurada quatro décadas atrás, bem como os acréscimos introduzidos com o decorrer do tempo.

Em 30 de novembro de 1998, a execução de um novo projeto resgata esse seu antigo desenho e os elementos arquitetônicos mais significativos da década de 30. Assim, cumpre-se mais uma etapa do projeto de recuperação do Sítio Histórico da Praça Pedro II, iniciado um pouco antes, em 21 de novembro de 1996, com a obra de reestruturação do Clube dos Diários e de sua integração ao Theatro 4 de Setembro, reformado e inaugurado, por sua vez, em 26 de abril de 1999.

A realização desse conjunto de obras, realizada ora pelo Governo do Estado, ora pela Sociedade de Amigos do Theatro 4 de Setembro, com o apoio da Fundação Estadual de Cultura e do Desporto do Piauí – FUNDEC, é uma realidade. Ela se tornou possível graças ao financiamento direto do Ministério da Cultura, através de recursos do Tesouro, a recursos alocados pelo Governo do Estado, bem como ao patrocínio da Empresa Brasileira de Telecomunicação – EMBRATEL, através do programa de financiamento da cultura – MERCENATO – também do MINC.

Praça Pedro II, reconstruída, desempenha um papel especial no contexto urbano do centro de Teresina: o caráter exemplar na consecução do objetivo maior do projeto de revitalizar toda a sua vizinhança, destacando a vocação natural da área para o desenvolvimento de atividades ligadas às artes, ao lazer e ao turismo.


Diva Maria Freire Figueiredo
Arquiteta e diretor da 1ª SubRegional do IPHAN
P2: Teresina, 2001

31.8.10

O MERCADO CENTRAL DE TERESINA NA HISTÓRIA, Reinaldo Coutinho


Ele faz parte da própria vida da cidade de Teresina, ao lado de magníficas construções oitocentistas da Praça Marechal Deodoro ou Praça da Bandeira. Quem dentre os teresinenses nunca andou no entremeio das bancas e quiosques de verduras, carnes, ferragens, utensílios domésticos e artesanatos do Mercado Central de Teresina, também conhecido como Mercado Velho ou Mercado São José? Antes da eclosão dos supermercados por ali as famílias, geralmente carregando sacolas ou cestos de fibras, escolhiam criteriosamente as melhores frutas e verduras e as carnes mais frescas, sem esquecer a pechincha. A urbe teresinense já gravitou em torno dele, que continua sendo um ponto de referência histórico, cultural e alimentício da Cidade.

Os alicerces do Mercado Velho foram implantados com a própria edificação da cidade pelo Conselheiro José Antônio Saraiva (1823-1895) em 1852, no então ponto de gravitação urbana da Cidade, a atual Praça da Bandeira. O logradouro foi chamado inicialmente de Largo do Palácio em alusão ao Palácio Governamental aí localizado. Depois, passou a denominar-se de Praça da Constituição. Mais tarde, Praça Marechal Deodoro da Fonseca, denominação que permanece nos dias atuais (FUNDAC). Claro que no seu início o velho mercado era uma simples feira que rapidamente se transformou numa robusta edificação.


 IMAGEM DE 1910 DA PRAÇA DA CONSTITUIÇÃO. VEMOS O MERCADO CENTRAL (1), ANTIGA SEDE DO GOVERNO PROVINCIAL E HOJE MUSEU DO PIAUÍ (2), ANTIGO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E HOJE LUXOR HOTEL; IGREJA N.S. DO AMPARO AINDA SEM AS TORRES, CONSTRUÍDAS SOMENTE NOS ANOS 1950 (4). FOTO: G. MATOS, ACERVO DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO

UMA IMAGEM BASTANTE ANTIGA, DO INÍCIO DO SÉCULO XX DO MERCADO CENTRAL, 
OBSERVANDO-SE AS PORTENTOSAS E SIMÉTRICAS ARCADAS /  IMAGEM: FUNDAC


Segundo a FUNDAC, o Mercado apresenta com a tipologia organizacional de uma antiga feira, com um pátio central e corredores internos e externos, destinados a lojas e açougues. Com traços arquitetônicos imponentes marcados por seus arcos em sequência e paredes de grande espessura, característica da arquitetura românica, atualmente encontra-se descaracterizado e “mascarado” por elementos construtivos que o fazem passar despercebido.

Consta historicamente que o edifício foi construído pelo doador do terreno logo após a fundação da Cidade, Sr. Jacob Manoel de Almendra Junior (1796-1859), Tenente-Coronel Comandante do 1º Batalhão de Infantaria.

Segundo a FUNDAC, com o passar dos anos sofreu várias intervenções, desprovidas de preocupações estéticas em preservar o seu estilo arquitetônico original, estando assim bastante descaracterizado. Permanece, entretanto, como um grande centro de comercialização dos mais variados produtos oriundos do território piauiense e de outras regiões brasileiras.

A edificação compreende atualmente uma quadra inteira, em parte com dois pavimentos, e abriga ainda em seu entorno pela Rua João Cabral um oceano de barracas dos mais variados produtos, notadamente alimentícios. Tem sua frente voltada para a Rua Areolino de Abreu; os fundos para a Rua Lisandro Nogueira (ex Rua da Glória), o lado direito para a Rua Riachuelo e o lado esquerdo para a Rua João Cabral. Inúmeras construções nas quadras vizinhas do mercado também orbitam em função de sua atratividade histórica.

Em virtude do espaço físico, o Mercado Central não pode mais se expandir, contrastando com o desenvolvimento e crescimento da cidade. Em consequência, sua expansão vem sendo feita através de barracas que se espalham em torno do velho mercado e no prolongamento das ruas que lhe dão acesso (FUNDAC).

Houve uma série de ampliações e ainda construção de anexos, provocando descaracterizações arquitetônicas ao longo das décadas, e hoje o Mercado abriga, além das atividades usuais, lanchonetes, restaurantes, sapatarias, lojas de artesanato, farmácias, lojas de redes e confecções, além de incontáveis barracas dos mais variados produtos no entorno de sua quadra.