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31.8.10

O MERCADO CENTRAL DE TERESINA NA HISTÓRIA, Reinaldo Coutinho


Ele faz parte da própria vida da cidade de Teresina, ao lado de magníficas construções oitocentistas da Praça Marechal Deodoro ou Praça da Bandeira. Quem dentre os teresinenses nunca andou no entremeio das bancas e quiosques de verduras, carnes, ferragens, utensílios domésticos e artesanatos do Mercado Central de Teresina, também conhecido como Mercado Velho ou Mercado São José? Antes da eclosão dos supermercados por ali as famílias, geralmente carregando sacolas ou cestos de fibras, escolhiam criteriosamente as melhores frutas e verduras e as carnes mais frescas, sem esquecer a pechincha. A urbe teresinense já gravitou em torno dele, que continua sendo um ponto de referência histórico, cultural e alimentício da Cidade.

Os alicerces do Mercado Velho foram implantados com a própria edificação da cidade pelo Conselheiro José Antônio Saraiva (1823-1895) em 1852, no então ponto de gravitação urbana da Cidade, a atual Praça da Bandeira. O logradouro foi chamado inicialmente de Largo do Palácio em alusão ao Palácio Governamental aí localizado. Depois, passou a denominar-se de Praça da Constituição. Mais tarde, Praça Marechal Deodoro da Fonseca, denominação que permanece nos dias atuais (FUNDAC). Claro que no seu início o velho mercado era uma simples feira que rapidamente se transformou numa robusta edificação.


 IMAGEM DE 1910 DA PRAÇA DA CONSTITUIÇÃO. VEMOS O MERCADO CENTRAL (1), ANTIGA SEDE DO GOVERNO PROVINCIAL E HOJE MUSEU DO PIAUÍ (2), ANTIGO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E HOJE LUXOR HOTEL; IGREJA N.S. DO AMPARO AINDA SEM AS TORRES, CONSTRUÍDAS SOMENTE NOS ANOS 1950 (4). FOTO: G. MATOS, ACERVO DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO

UMA IMAGEM BASTANTE ANTIGA, DO INÍCIO DO SÉCULO XX DO MERCADO CENTRAL, 
OBSERVANDO-SE AS PORTENTOSAS E SIMÉTRICAS ARCADAS /  IMAGEM: FUNDAC


Segundo a FUNDAC, o Mercado apresenta com a tipologia organizacional de uma antiga feira, com um pátio central e corredores internos e externos, destinados a lojas e açougues. Com traços arquitetônicos imponentes marcados por seus arcos em sequência e paredes de grande espessura, característica da arquitetura românica, atualmente encontra-se descaracterizado e “mascarado” por elementos construtivos que o fazem passar despercebido.

Consta historicamente que o edifício foi construído pelo doador do terreno logo após a fundação da Cidade, Sr. Jacob Manoel de Almendra Junior (1796-1859), Tenente-Coronel Comandante do 1º Batalhão de Infantaria.

Segundo a FUNDAC, com o passar dos anos sofreu várias intervenções, desprovidas de preocupações estéticas em preservar o seu estilo arquitetônico original, estando assim bastante descaracterizado. Permanece, entretanto, como um grande centro de comercialização dos mais variados produtos oriundos do território piauiense e de outras regiões brasileiras.

A edificação compreende atualmente uma quadra inteira, em parte com dois pavimentos, e abriga ainda em seu entorno pela Rua João Cabral um oceano de barracas dos mais variados produtos, notadamente alimentícios. Tem sua frente voltada para a Rua Areolino de Abreu; os fundos para a Rua Lisandro Nogueira (ex Rua da Glória), o lado direito para a Rua Riachuelo e o lado esquerdo para a Rua João Cabral. Inúmeras construções nas quadras vizinhas do mercado também orbitam em função de sua atratividade histórica.

Em virtude do espaço físico, o Mercado Central não pode mais se expandir, contrastando com o desenvolvimento e crescimento da cidade. Em consequência, sua expansão vem sendo feita através de barracas que se espalham em torno do velho mercado e no prolongamento das ruas que lhe dão acesso (FUNDAC).

Houve uma série de ampliações e ainda construção de anexos, provocando descaracterizações arquitetônicas ao longo das décadas, e hoje o Mercado abriga, além das atividades usuais, lanchonetes, restaurantes, sapatarias, lojas de artesanato, farmácias, lojas de redes e confecções, além de incontáveis barracas dos mais variados produtos no entorno de sua quadra.


3.12.15

1854, mercado central são josé




as vielas tomadas pelos negociantes
berram suas cores sujas na sombra do grande galpão

há uma inquietante majestosidade na estrutura antiga;
os olhares não pousam, mas a vida punge no abandono

o cheiro do artesanato em couro e dos peixes à venda,
eternos na mente do menino comprando banquinhos com o pai

as paredes e as colunas jogadas no esquecimento
denunciam um século e meio da memória da cidade

no silêncio de seu olhar, o menino se pergunta
quantos universos cabem lá dentro:

mercado central são josé,
o mercado velho de teresina...



Lucas Rolin
enviado pelo autor

21.11.15

"virão de novo os dias dos banhos na chuva"




virão de novo os dias dos banhos na chuva
ah os dias dos banhos na chuva
e a chuva era boa e fria
e escorria das bicas
das casas ricas
e das calhas
das casas pobres
e havia meninos correndo
na chuva
algazarra de meninos correndo na chuva
batendo os dentes de frio
e rindo e rindo e rindo
na chuva

virá de novo o dia
em que o menino
comeu a fruta peca
e sentiu o amargo na boca
a louca levantou a roupa
e o menino viu aterrorizado
viu e ouviu sua risada
e sentiu pela primeira vez
desatar-se
a tormenta do desejo

pois vem de lá
da antevisão do futuro
este filme a se desenrolar
na tela da memória

vem de algum lugar
(e onde?)
a imagem do pai
o terno branco
saindo para trabalhar de bicicleta
a mãe de saia rodada
blusa de algodão
bordados miúdos

pois há sempre um tempo de ternura
quando a vida se guarda
em porta-joias
para ser usada em gotas

assim
se conservou o congá de tia duquinha
a tititinha
a índia velha feiticeira que dançava na chuva
cantando pontos de macumba e incorporando pretos velhos
no meio da sala perfumada com defumador de sambaíba

tititinha
a bruxa
de mil encantos e sortilégios
que habitava as terras do bem-querer
e aprendeu com os orixás e pretos velhos
a arte do esquecimento das coisas sérias

assim foi se desmemoriando de tudo enquanto
até se esquecer
por derradeiro
do roteiro da morte

e havia uma cidade
havia
naquele tempo
uma cidade antiga
esquecida no fundo dos olhos

"eu estou comprando
por qualquer dinheiro
uma cidade antiga
uma cidade velha
de ruas estreitas
e pessoas vivas
que um dia se perdeu
na retina escura
de um menino vadio
que se escondeu na noite
e nem notícias deu

mas hoje eu sei
que em qualquer esquina
ou ponta de rua
deste lugarejo
resiste intacto
puro imaculado
um beijo de menina"

e vêm do fundo do olfato os cheiros
de goiaba madura caderno novo
pastilha de hortelã bolo frito
o cheiro do capim cortado
pelos homens da limpeza pública
o cheiro da madeira dos caminhõezinhos entalhados
pelos presos da penitenciária
o cheiro do uniforme engomado
camisa bege calça cáqui
sapato vulcabrás

o cheiro sem passado
nem futuro
dos retirantes
nos paus-de-arara
tangidos pela seca
amontoados
sob as árvores
da praça saraiva

os imigrantes do ceará
que fediam a fome
sezão
catarro
empilhados como latas vazias
enferrujados de poeira
entrevados de tanto chão
com pretume nos pés

crianças de cabelos desgrenhados
pela seca
esticada de sol
e narizes escorrendo um sumo
no colo de mulheres desgrenhadas
ramela nos olhos

não havia poesia
no cheiro de merda e mijo
dos imigrantes que roubavam a paz dos sobradões
e não serviam ao sossego dos cidadãos de bem
por isso eram expulsos a cassetete
para os longes da tabuleta
onde miséria fome e choro
não incomodassem
as pessoas de família
e eles pudessem receber
(a prudente distância)
os donativos entregues pelas mãos caridosas
das senhoras de nossa mais fina sociedade

(mesmo a mais severina das fomes
termina um dia
embebida na memória
e se presta quando nada
ao ofício inútil dos poetas)

invade a alma o cheiro
das fraldas defumadas
com alfazema
pela preta velha
o cheiro de talo de buriti cortado
o cheiro da sala encerada
do café torrado com rapadura
na cozinha do casarão

mundo de cheiros

o cheiro
do orvalho da manhã
das folhas das begônias
de mijo ardido nos fundos da igreja
de vela estearina da sacristia
das flores murchas nos altares
dos ramos das palmeiras de domingo de ramos
e o cheiro de incenso ah o cheiro eterno dos incensos
queimados em turíbulos de prata
evolando-se ao céu
à honra de um deus suave
morador das redondezas

o cheiro dos charutos de seu joão
o cheiro forte das velhas cachimbeiras
e o cheiro da cachaça entranhada
no balcão da bodega de seu zeca

à noite
as ruas tomadas
pela embriaguez dos cheiros de jasmin
resedá
copo-de-leite
dama-da-noite
o cheiro doce dos jardins da casa branca
onde morava a moça rica
que derramava rios de fogo e desejo
à passagem do menino de olhos baixos
e opresso coração

ainda resiste
desde as lonjuras daquele tempo
o cheiro das boras assadas
no forno de barro
da avó miúda
que mascava fumo
e dela ficou-me o cheiro
do fumo de rolo
as peas de fumo
escondidas entre tijolos
e o cheiro da lenha verde
estalando no fogão

e o cheiro das folhas e raízes
que usava com secular segurança
no combate às enfermidades
doo corpo e da alma

velame pra urina presa
angico pra diarreia
mulungu pra acalmar doido
arnica pra machucadura
catuaba pra ressurreição de macheza
paulista pra abortar prenhez indesejada
caroba pra afinar o sangue
aperta-ruão pra doença do mundo
aroeira pra desmantelo da senhora
erva-cidreira pra mal de angústia

o odor agudo das ervas mágicas
nos tabuleiros do mercado velho
de vasta qualidade e serventia
anunciadas com letras mal tracejadas
desde uma
que era tiro-e-queda
para arrancar catarro encroado em peito de menino
outra que atraía amor e sorte
a até uma que expulsava vício de jogo ou senvergonheza

vastidão de cheiros
o cheiro do jacá de carvão
o cheiro do estrume de gado espalhado no roseiral
regado pela minha mãe
o cheiro de alfenim
pitomba bolo de goma
pirulito beiju com coco

e o cheiro bom
do sonho de eleonora

o cheiro que subia da terra molhada
pelos primeiros pingos de chuva
o cheiro
de brilhantina glostora
o cheiro do suor dos mecânicos
e o cheiro
dos surubins que subiam a olavo bilac
desciam pelos cajueiros
e ganhavam a estrada nova
no ombro de homens de torso brilhante

e no mercado velho
o cheiro de vísceras de peixe
carne-de-sol
molho-pardo
camarão
melancia
cuscuz de milho
pimenta-de-cheiro mão-de-vaca frito de porco farinha-dágua
perfume barato torresmo

em tudo e por todos os cantos da memória
o cheiro de gente
o cheiro bom de gente

e o cheiro  da praça
guardado para sempre
num canto iluminado do coração
o cheiro fresco das manhãs
sim
o cheiro das manhãs
das alvoradas
o frescor das manhãs
daquele tempo

e de outro tempo
a sombra dos ingás
as flores amarelas dos ipês
as folhas novas dos oitizeiros
dos juás
das figueiras
dos brotos vermelhos dos cajueiros

e vem do chão a imagem
viva dos acidentes
que a morte não alcançou
o dedo cortado de gilete
o lápis de ponta feita
o canivete afiado
a manga verde e o sal
(que torquato me ensinou a comer
escondido da mãe e das tias)
o cio dos gatos noturnos
as balsas de buriti descendo o rio
as canoas e os vareiros e os vapores
conduzindo mulheres pudicas
saias compridas sombrinhas estampadas
e homens de chapéu-de-massa
camisas de riscado
parnaíba afiada na cintura

naquele tempo
os rios corriam para o mar
e o mar ia dar no céu
onde as nuvens purificavam a água
que caía doce e fria e criadeira
para irrigar a terra
e para encher os riachos
que enchiam os rios
onde de proa do vapor mais alto
dava pra ver o adeus de tuas mãos
e o vento em teu cabelo

(como sabido
vapor subindo rio
faca peixeira
dedo cortado
e aceno de mãos no cais
sempre acabam em poesia)

compenetrado de seu poder
muito sério e muito grave
o menino sabia que o tempo é da natureza dos rios
por isso
colocava a mão na água
contra a corrente
empurrava a água
e assim parava
por um brevíssimo momento
o rio
do tempo



Paulo José Cunha
em Perfume de Resedá
Teresina: Oficina da Palavra, 2009
via uns2poemas

6.11.11

O PRISIONEIRO DA LIBERDADE, José Pereira Bezerra

"A gratidão é uma forma sutil de desforra;
o beneficiado recobra a sua superioridade
no esforço de ser grato".

João Davidson

Um homem moreno, forte, aparentando quarenta anos... Diziam ser louco... Estava deitado no cais e contemplava as águas do velho Parnaíba que corriam silenciosas.

Desde quando deixara a família, há muitos anos atrás, por querer recobrar a liberdade - admitia ele quando falavam no assunto - sempre dormira no cais e gostava de lá. Era como sua própria casa... A paz que o cimento frio, o céu azul cheio de estrelas, as águas mansas do rio refletindo as luzes dos postes, lhe proporcionavam era realmente confortadora.

Conhecia todas as mulheres que faziam e vendiam comida no mercado velho. Elas, não raro, davam-lhe prato-feito sem nada em troca. Gostavam, sim, gostavam demais dele; ajudava-lhes carregar as compras, fazia compras, dava recados... Era de inteira confiança e muito útil - diziam elas, umas às outras, abanando o fogareiro com uma grande panela em cima; a comida fervia... É verdade também que de vez em quando ele dormia com uma delas.

Ele gostava de passear pelas ruas de Teresina, sentar-se perto das fontes luminosas. Fontes luminosas. Não, não gostava de andar perto delas... Nunca mais se esqueceria do que aconteceu com ele numa tarde calorenta de outubro... Estava suado, com muito calor... Dera uma vontade de lavar o rosto e molhar a cabeça... Estava longe do rio... Caíra na besteira de utilizar a água da fonte luminosa, pra que!? Levou um grande choque elétrico... Quase morreu... Nunca mais se esqueceria disso... Ficaria como exemplo... Fontes luminosas eram como a mulher do diabo, bonita de verdade, mas matava... Concluiu ele perdido em pensamentos.

Sofria de insônia e às vezes passava a noite toda acordado. Aquela noite era uma delas; de vez em quando olhava para uns cestos de tabocas, dispostos em pilha ao seu lado... Às vezes falava sozinho, como quem dialogasse com o rio que ele conhecia melhor que ninguém... Não, não tenho medo do Cabeça de Cuia falava de si para si, como para dar prova de sua coragem - pois já o vi várias vezes... É verdade que o brilho da cuia preta me fez ficar meio arrepiado... Mas foi só a primeira vez... Depois me acostumei... Dizem que ele só se desencanta quando levar sete virgens... Não sou mulher, não tenho medo.

Nesse instante chegou no cais uma mulher correndo. Mulher nova, lábios pintados de vermelho, cabelos compridos, trajando um vestido semilongo vermelho, com um longo corte em cada lado que dava para ver boa parte das coxas pareceu que ela nem sentiu a presença dele, ou talvez pensasse que estivese dormindo... Não estava... Talvez tivesse vindo do cabaré da Paissandu, e fosse tomar banho, está fazendo mesmo muito calor - pensou.

A mulher começou a despir-se descontraidamente com movimentos rápidos e bruscos... Num segundo estava só de calcinha amarela... Tinha os seios ainda bem duros... Veio-lhe uma vontade de agarrá-la, mas se conteve... Já era muito vê-la banhar nua em sua frente e naquela hora... A mulher ficou instantes na beira do rio, pensando e... Tbungo n'água. Ele continuou deitado no cais mas a observava atentamente, tentando ver melhor seu corpo nu e molhado, cintilante pelo reflexo da luz... Porém, minutos depois, ele notou que a mulher não sabia nadar, porque se debatia desordenadamente contra as águas barrentas do rio, como estivesse afogando-se, mas sem dá um grito sequer... Ele levantou-se imediatamente... Pulou n'água do jeito que estava, vestido de calça e camisa e foi de encontro à mulher, que subia e descia... Com gestos rápidos e firmes, agarrou-a por trás e rapidamente guindou-a até o cais. Ela permaneceu calada; já havia bebido uns goles d'água. Ele fitou-lhe o corpo nu... E como levado por um desejo forte aproximou-se dela e começou apalpar-lhe o corpo... Ela não dizia nada, naturalmente gostava - pensou.

- Por que você entrou no rio, se não sabia nadar?

- Queria morrer... Esta vida é um inferno... Madame surrou-me, ameaçou-me, expulsou-me do cabaré... pensava que eu queria o homem dela... ele era quem vinha atrás de mim... Disse chorando baixinho, aos soluços.

- Não chore... não faça isso mais, não - disse puxando-a contra si - o mundo é grande, e sempre existe um lugar pra quem quer viver...

Fizeram amor ali mesmo. Parou de chorar e naquela madrugada não pensou mais em suicídio.


José Pereira Bezerra
em O prisioneiro da liberdade
Teresina, 1978(?)

21.8.16

Teresina anivessariou: 164 anos

Teresina, por Dino Alves

Quando eu nasci Teresina ainda ia fazer 100 anos no ano seguinte. Palmeirais, meu berço, nem tinha dez anos que deixara de ser Belém. Sou filho de cidades novas. Quase contemporâneas. E nesta semana Teresina aniversariou em dezesseis. Cidade menina. Parece um passarinho que troca de penas ainda pela primeira vez. 

Conheci cidades na Europa que conservam suas ruas e algumas construções de muito antes dos portugueses chegarem por aqui. Mas Teresina está abandonado o traçado geométrico que o jovem Saraiva imaginou, antes de virar Conselheiro do Império. Oeiras, mesmo abandonada para dar lugar à nova capital resiste no seu casario colonial centenário. Teresina queimou suas casas de palhas antes de fazer 100 anos. E vai chegar ao segundo século absolutamente irreconhecível no seu passado. Tem jovens que nasceram na cidade nova que nunca puseram os pés na cidade velha.

Inexorável, Teresina atravessou o rio Poty para o leste e esqueceu a cidade velha. A festejada ponte estaiada funciona como um portal moderno que nos faz adentrar na cidade nova, o que para mim – que a deixei há quarenta anos – não faz qualquer sentido. Sou contemporâneo da ponte metálica que nos separava de Timon, da Avenida – que nem precisava chamar de Serafim –, da Igreja das Dores, da Amparo, da São Benedito, da Pedro II, do Clube dos Diários, da Rio Branco, da Estação, do Marquês, da Vermelha, da Piçarra, do Poty Velho, do Mercado Velho, do Mafuá, da Vila Operária, do Porenquanto – bairro de nome poético que era pra ser provisório e está perpetuado no esquecimento da cidade antiga.

A minha saudade está esmaecendo e ficando sem lugar.

Quando Teresina aniversaria me lembro do poeta Lucídio de Freitas:

Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida.
Espera-me, distante, em outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


em 21 de agosto de 2016

2.9.14

THERESINA, Geraldo Borges


Theresina. Chapada do Corisco. Por enquanto um passeio por tuas ruínas, cortes trilhos vias férreas trem na linha uma parada na estação esplanada um encontro em uma antiga esquina velhos tempos assombração para-raios trovões poty velho cadeia velha catanã cabeça de cuia morro do querozene morro do urubu morro da jurubeba cajueiro barrocão pacatuba memorare matadouro maria sapatão maria xerém manuel avião ou manelão cinema poeira jaime doido nicinha pedro cabeção geraldo come gente bibelô não se pode porca do dente de ouro braguinha vermelha do laurindo piçarra casa amarela rua paissandu quitadinha clube dos diários footing na praça pedro segundo gelado no mercado velho na banca de seu paulirio rosa do banco rio parnaíba casa dos sete tabacos estrada do gado cruzeiro seu caçula sua garapeira padeiro de madrugada leiteiro com seu leite batizado burro jumento caroça galinha caipira beiju de tapioca água de pote em caneco de alumínio areado mata-mosquito com bandeira amarela na porta campo de aviação feira de amostra ilhota catarina matinha mafuá maria tijubina palmerinha estrela glória beco do alberoni maria da inglaterra vapor gaiola fiação baixa da égua palha de arroz tabuleta alto da moderação capelinha de palha lucaia ônibus da macaúba tá na boca gregório pirajá santa rosa pipira sabiá banana passada em quibane para secar zezé leão bar imperial teresina cajuina por enquanto tens outra arquitetura novas paisagens e outros personagens de teu nome tiraram o H que era mudo mas me fez cantar.


Geraldo Borges
via Piauinauta

22.10.13

EU, TERESINA E ELE, Wellington Soares


Há seis meses namorávamos e nada. Ao contrário dos outros, bolinar comigo não queria. Como um pedaço de descaminho, no dizer dos rapazes, chateada fiquei. Valfrido, esse era o seu nome, nem aí. Sua estranheza me prendia cada vez mais a ele. Que o amava, não tinha dúvidas, mas não podia continuar subindo pelas paredes.

- Transar comigo, por que você evita?
- Só cai no chão, a manga, quando está madura.
- Tanto tempo assim, como posso?
- Pela bela serrana, Jacó muitos anos esperou.
- Mas eu o amo.
- Amar é saber, no momento exato, tirar o cílio do olho.
- Quando, então?
- De Teresina se embriagar e se despir com pureza.

Com o coração aberto, deixei me levar por suas mãos seguras e macias, descortinando outros horizontes. De barco, o Velho Monge atravessamos para Timon, cruzando com pescadores de redes vazias. Na volta, um suco delicioso no Abraão, tendo como troco palavras de estímulo. À tardinha, um faroeste no Rex, balas de horror raspando minha cabeça. Maria da Inglaterra e seu Peru Rodou, no Clube dos Diários, a noitada fechando, o sabor de cerveja nas bocas geladas.

Acordada cedinho, um café reforçado na Piçarra, ânimo para encarar a arte misteriosa de seduzir. No troca-troca, sob um escaldante sol, o comércio de tudo, menos o do amor, inegociável. O gostoso cheiro da panelada, nunca provada no Mercado Velho, no meu estômago faz alegria. O restante da tarde, navegamos na beleza do encontro dos rios, onde deixei claro ao Cabeça de Cuia não me chamar Maria e muito menos virgem. De bicicleta, à noite, vários bairros da cidade percorremos. Na despedida, sem esperar, ouvi:

- Amanhã, esteja pronta, será o dia.
- Onde? A que horas?
- Dezesseis, na praça da Bandeira, sem atraso.
- Vou de carro?
- Não, sem nada, só você. De lá partimos.
- Que mais?
- Relógio sem ponteiros.

Noite em parafuso, sem conseguir os olhos pregar. A espera, alfinete ferindo o corpo, compensa? Do ônibus, descemos em frente ao motelzinho, mãos coladas e a galope os desejos.

Depois dali, mesmo com os apelos dos velhos, nunca mais retornei, nem fui em casa pegar nada. Ele me bastava. Era, sem exagero, uma pessoa muito especial. Que outro homem, diga, me levaria a conhecer e a amar Teresina? Comendo estas piabas fritas agora, nas coroas do Parnaíba, tendo-o ao meu lado, a vida passa a ter sentido.


Wellington Soares
em Maçã Profanada
Teresina: 2003

AVIÃO




- Paizinho, me conta uma história.

- Era uma vez um doido muito bacana chamado Avião.

- Avião por quê?

- Ele vivia imitando barulho de avião. Assim: ãoãoão. E, com o braço, fazia acrobáticas piruetas, como se fosse um de verdade.

- Que legal! Que mais ele fazia?

- Ah, gostava de distribuir brinquedos para as crianças.

- Um Papai-Noel?

- Sim, o mais bondoso e simpático que já existiu.

- Você ganhou presentes dele?

- Muitos. Ele andava com um jacá cheio de brinquedo. Quando apontava na esquina da Lindolfo Monteiro, desembestávamos alegres para abraçá-lo. Recebia-nos sempre com um sorriso enorme no rosto. Era o mais feliz de nós todos.

- O que ele dava pra você?

- Bola, revólver, pião, carro, peteca...

- E as meninas não ganhavam nada?

- Claro, elas recebiam boneca, pulseira, casinhas para montar...

- Como ele conseguia todos esses brinquedos?

- Comerciantes do Mercado Velho e redondezas davam para ele.

- Por quê?

- Gostavam dele. Também se não dessem, ele pegava assim mesmo.

- Ele seria capaz disso?

- Claro, o Avião era capaz de tudo para ver uma criança feliz.

- Conta mais sobre ele, paizinho.

- Ele vivia pulando o rio Parnaíba da ponte metálica.

- Não acredito!

- Era sim. Ele dizia ser o Tarzan. Botava uma faca na boca e jogava uma boneca no rio. em seguida, batendo nos peitos e dando aqueles gritos, saltava para salvá-la.

- Que corajoso! Ele não tinha medo de morrer afogado?

- Não, salvar a jovem em apuros era o mais importante.

- Você não falou que era uma boneca?

- Falei sim. Mas para ele, que se achava Tarzan, ela era uma garota que precisava de ajuda. Afinal, para que servem os heróis?

- É mesmo! Agora sei por que você fala tanto nele.

- Ele era meu herói preferido.

- Mas por que você está chorando, paizinho?

- Porque ele traz de volta toda minha infância. Ele era para nós, garotos da Clodoaldo Freitas, uma pessoa muito especial.

- Não é melhor, paizinho, você dormir comigo esta noite?



Wellington Soares
em Por um triz
Teresina: Fundação Quixote, 2007

11.10.11

TERESINA, Wilton Santos


Teresina é um país à margem do Rio Parnaíba
onde Alice, Paris?
maravilha o sonho de meus irmãos

Teresina: Teresa e usina

Índias virgens versejam terreiros
batucam
tambores
a fogo. Afago:
Teresa Cristina é aqui
aqui dentro uma chapada em coriscos.

Teresina acorda com pardais
de meia
em meia hora passa ônibus pra Timon
besta tu se não vai ver
mercado velho
besta tu se não beber caldo de cana
a cana caiana das flores de Cuba
besta tu se não comer seriguela, sapoti, frito de porco
besta tu se não prosar nos olhos verdes da cabocla!


Wilton Santos
Poesia teresinense hoje
Teresina: FCMC, 1988

8.2.13

RUA DO MERCADO VELHO




Não há poesia nas esquinas
Só o grude negro dos anos
Esmaecendo as cores das paredes
                                            /nuas
Com realidade e ausência de rimas



em Artesanato existencial 
Teresina: Corisco/Sapiens, 1998

20.7.15

BALADA DE TERESINA – A CIDADE VERDE, de Barros Pinho



recordo
a adolescência
nas árvores
de minha cidade

no circo
das areias
que ainda
circula
em meu juízo

no cais
onde aprendi
a história
da pureza

no riscos
das gatas
espreitando
em cada esquina
da rua paissandu

na rua
pedro II
onde rodei
com a primeira
namorada

no vaga-lume
ferindo
o otimismo
no escuro
do cine-rex

nos bons
comícios da udn
naquele tempo
mulher de muito
respeito

nos bichos
oficiais
pássaros
camelôs
do mercado velho

nas íntimas
novenas
de são raimundo
na piçarra

na vulgaridade
eletrônica
da mensagem
de um alguém
para um certo alguém
que está ausente

nos meus gritos
ecoando
a céu aberto

olha a laranja
olha a bananeira

olha a saudade



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


1.11.11

TERESINA NO PASSADO, Guaipuan Vieira


No final de maio de 1996, retornei a Teresina, integrando a Comissão de Intercâmbio Cultural de Fortaleza, a convite da Academia de Letras Vale do Longá. Ficamos hospedados no Hotel São José, à margem direita do rio Parnaíba, no coração da Verde Capital. Além da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, estavam o diretor desta, o escritor Alberto Santiago Galeno e o poeta Paulo de Tarso. Alberto me pedira para levá-lo ao Mercado Central, pois desejava comprar um chapéu de vaqueiro feito no Piauí. Eram quinze horas de sábado. O silêncio pairava no centro, devido o final de semana. Mesmo sabendo que àquelas horas seria impossível encontrar o mercado aberto, tive que atender o pedido.

Alberto, que caminhava a passos lentos e, cambaleando, estava calado, mas observador. Paulo, que nos acompanhava, admirava os velhos casarões e o rio que solitário descia entrecortado pelas coroas, indagou a Alberto:

- Doutor, o senhor conhecia Teresina?

Ele, sem pensar, duas vezes respondeu:

 - De passagem. Guaipuan não nos conta a sua história.

A responsabilidade pesou-me nos ombros. Calado, como menino repreendido, não sabia por onde começar. As recordações refletiam à mente. Mas uma luz me surgiu dos anos 60. Tive que superar o desafio, e conjugar costumes, tradições e modos de vida de um povo que, embora embriagado pelo vício e prostituição, deixara página de sua história, vez por outra folheada por algum pesquisador.

 - Isso aqui foi a famosa Palha de Arroz. O nome vem das torrefações. Nesse meio funcionou o baixo meretrício, o Q.G. era o cabaré Barrinha, conhecido por “tabaco”, freqüentado pelos “porcos-d’água”, que eram os ajudantes das embarcações.

Paramos um pouco, sob a sombra de oitizeiros, direcionados para o sul, a uma distância de 200 metros. Articulando, mostrei-lhes onde funcionava a usina termelétrica, que fornecera energia para toda a cidade, até a década de 60, substituída por uma caldeira a diesel, vinda de Alagoas, não esquecendo seus ritmados apitos como de uma maria-fumaça, que até as 21 horas servia-nos de relógio, quando num toque de despedida saudava a noite, que paulatinamente ia em busca do novo dia. Nessa época, o rio Parnaíba era navegável. De longe também se ouvia o rugir dos vapores, lanchas e alvarengas vindos do sul do Estado, transportando mercadorias e passageiros, em direção ao Porto, que ficava limitando a Praça da Bandeira, por onde iremos passar.

Recomeçamos a caminhada. Ao cruzarmos a rua Paissandu, fizemos outra parada. Não poderia esquecer de citar que fora o núcleo dos tradicionais cabarés, como “Estrela”, “Fascinação”, “Imperatriz”, “Nove Horas”, “Gerusa”, “Raimundinha”, “Joana de Paiva”, entre outros. Subimos na rua em direção à Praça Pedro II. Na mente conduzia a surpresa que Alberto tanto esperava. Uma outra parada não fazia mal. Afinal, procurava descrever Teresina no passado, mostrando-lhes os pontos que serviram de concentrações desses personagens.

 - Onde estamos? Indagou-me.

 - Olhe, nessa casa comercial, “Rádio Ion”, foi o bar do Zé Cazuza. Às 12 horas de uma sexta-feira de 1948, o tenente Wanderley bebia aqui. Ao perceber a passagem de Zezé-Leão, o chamou. Depois de uma ligeira conversa, lembrou-lhe que em certa ocasião tinha-o prendido. Zezé, calmamente, embora entrecortado do insulto, perguntou-lhe se ia demorar no bar. Ele, ufano de autoridade, respondeu-lhe que sim. Zezé, enfatizou:

 - Voltarei logo.

Em questão de 20 minutos, o lúgubre estúpido, armado com um revólver 38, mudava o ritmo da cidade. A rádio Pioneira, que funcionava na rua Senador Teodoro Pacheco, aqui, próximo, em primeira mão, divulgou o acontecimento em reportagem exemplar de Carlos Said. No dia seguinte, as manchetes dos principais jornais: “ZEZÉ-LEÃO MATA TENENTE WANDERLEY E FOGE".

- Ah, foi assim! Sua fama chegou no Ceará, exclamou Alberto.

Paulo, aproveitando a deixa, nos contou que seu tio-avô, Cel. Domingos Gomes de Freitas, que residia em Tauá CE, tinha um criado que era o responsável pela compra de mantimentos (gêneros alimentícios) da Casa Grande. Segundo seu avô, certa ocasião, o criado, chegando de viagem, já na entrada do município, fez uma ligeira parada numa venda para beber uma pinga. Ao pagar a dose, foi surpreendido pois já estava paga. Ele então perguntou ao dono da venda o nome do desconhecido para agradecer. Esse, ouvindo, respondeu-lhe:

“José de Área Leão
A onça sussuarana
das matas do Piauí".
- E você quem é, caboclo?
Sem bater pestana, que nem um bom improvisador, informou-lhe:

“Eu sou um cachorro preto
da zona do cariri
acuador de onça sussuarana
das matas do Piauí”.
E até logo!!!

Zezé baixou a cabeça, bebeu outra pinga e exclamou: “muito bem!” Um dos seus seguranças indagou-lhe: “Pega o homem, coronel?!

-“Não. Cachorro que acua onça é respeitado".

Continuamos a caminhada. Logo estávamos na Praça Pedro II. Ali, para mim, foi um pesadelo. Não controlava as ideias, que se misturavam com as lembranças, dificultando concatenar o raciocínio, porque a Praça continuava sendo o cordão umbilical dos que edificaram a invejável história da terra.

De um lado, o Centro de Artesanato, guardando consigo lembranças do velho quartel da polícia militar. Do outro, o Cine Rex, solitário, que nem ancião, nem parecia que vencera os seus concorrentes: Cine Guarany, Olímpia, São Luís, Rio Branco, entre outros. Um cartaz lembrava Alfredo Ferreira que foi o fundador do cinema em Teresina, e o primeiro filme exibido, que era norte-americano e falado, tinha como título: “Doce como Mel.”

O Theatro 4 de Setembro, guardião da cultura, silencioso, trazia consigo recordações da luta ferrenha que travou para se desligar do cinema, para ser o que é: palco de espetáculos teatrais. Ao lado, a Galeria das Artes, num oculto quadro, descrevia o saudoso Bar Carnaúba, cercado de artistas e intelectuais. As horas corriam. Alberto, mergulhado no impressionismo, esquecia a compra do chapéu. Paulo não perdia nada da explanação. Anotava, na agenda, os subsídios para a história do município.

Guia turístico, contador de história ou causos. Sei lá quem eu era. Prosseguimos. Seus entusiasmos aumentavam. Embora quisesse parar a narração, não podia. Sempre algo chamava a atenção.

O silêncio recordava-me os tempos idos, quando menino, de calça curta, procurando remédio nas farmácias Santo Antônio, Lili e São Pedro, de Pedro Vasconcelos. Não encontrando, ia direto à farmácia “Coleta’, onde Jaime da ‘botica” fazia a manipulação de medicamentos. Naquele tempo era assim. Com essa reflexão sobre o passado, logo chegamos à Praça Rio Branco. Estava a esmo. Não parecia o logradouro de concentração de poetas populares, da ceguinha Maria Viana, no órgão, interpretando canções bregas; de aposentados driblando a velhice, tentando afeiçoar a nova geração. A brisa fria da tarde os enchia de indagações, estava num árduo ofício, não podia dissolver fatos do folclore teresinense.

-Nesse prédio da Caixa Econômica, funcionou o comércio do Carcamano, à noite tinha uma preta velha vendendo manuê; a fatia do bolo custava um tostão, e media um palmo. Tornou-se admirada pelo pessoal de vida noturna, através dos improvisos de propaganda:

“Chega gente, está na hora
Compre logo o manuê,
Compre mesmo, sem demora.
Manuê da preta velha
Tem segredo de essênça,
Inda mais com bom café
Muda até sua presença”.

Observa-se, de certa forma, que a cultura popular, destacando-se a poesia, nasce da necessidade de sobrevivência dessa gente. A não importância desses fatos contribui veementemente para o anonimato do autor, o que aconteceu com modinhas, adágios e alguns provérbios.

-Com certeza, enalteceu Alberto. Tive que ser breve nas citações, haja vista que algo mais nos aguardava. Estamos na Praça da Bandeira.

Recorda-me o pequeno zoológico, a feira dos pássaros e a do troca-troca. Nessa época chamava-a de bacia, por formar um círculo e ser de baixo relevo. Deu guarida a grandes circos, como Garcia, entre outros. Hoje, as grades que a cercam, nos reflete a ligeira impressão de que é prisioneira, e que nada tem de majestosa! Vê-se silente, concentra suas atenções no Teatro de Arena, palco dos acontecimentos culturais, de ação preservadora das tradições da terra.

Veja “Domingos Fonseca”, do alto, sussurra a poética sem jaça, em louvação aos poetas que versejam “sua poesia”, nos Festivais de Violeiros do Nordeste. Eram 17h30min, os pardais começavam a harmoniosa sinfonia sobre os frondosos oitizeiros, em contemplação a mais um dia que se findava. Apressamos os passos, cruzamos o Mercado Central, logo saímos no desativado Cais do rio Parnaíba. De retorno ao hotel, oportunidade em que falei sobre o Velho Monge, das extintas carrancas e dos banhos aos domingos nas piscosas águas, onde as coroas são atraentes praias, que desfilam preciosas sereias, musas inspiradoras que nos confortam a alma, principalmente quando se tem um bom anzol. Alberto, satisfeito, sorriu. Paulo ficou ansioso para conhecê-las. Seguimos para o hotel, contemplando o pôr do sol, rica beleza natural. Alguns minutos, como se fora beber água, os deixei à vontade. Próximo ao hotel, Alberto exclamou:

-Gostei bastante do passeio e da sua narração. Só me falta o chapéu!


Guaipuan Vieira

15.10.18

Não se Pode, por João Ferry



Quando eu era menino andava em voga
A história da "Não se Pode",
Uma mulher esguia, que de toga
Como um fantasma, à toa, de pagode
Altas horas da noite então vagava.

E quando alguém seu nome perguntava
Invariavelmente respondia,
Com a voz cava e cheia de agonia:
"Não se Pode!" "Não se Pode!"

Era um fantasma esquisito e feio
De estatura comum, mas que crescia
Toda vez que cigarros acendia
Nos lampiões das esquinas e do passeio.

Escaveirada, de carão ossudo,
olhos sem brilho, sem nenhum clarão,
A "Não se Pode" era um duende mudo
Alma penada pela solidão.

Soldados de patrulha da cidade
Uma noite entenderam de segui-la.
Mas a "Não se Pode", como um cão de fila,
Evitava qualquer intimidade.

Suas pegadas no chão jamais se viu

E do velho quartel para o mercado,
Seus pontos preferidos,
Era como um vulto malfadado
Dos mistérios do além, desconhecidos...

E quando uma noite fugia pelo espaço
"Não se Pode" também no seu regaço
Em fumaças de pós se desfazia...

A minha alma também é assim
Se alguém sacode
Os sofrimentos que meu peito esconde
Pressurosa e bem triste ela responde:
"Não se Pode!" "Não se Pode!"



João Ferry
em Chapada do Corisco (1952)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


28.1.16

UM ESTRANHO EM TERESINA, Cunha e Silva Filho




Estive há pouco em Teresina e desta feita me achei um peixe realmente fora d’água, um estranho no ninho. Não que o desejasse, mas a culpa, leitor, é unicamente minha. Quem manda não a ter frequentado mais amiúde.

Da janela do hotel, lá fora, dava uma espiada para o que poderia ver que valesse a minha atenção ou curiosidade. Pois não é que procurei e achei. Era a visão de uma mulher, em plena tarde de um sol escaldante, caminhando, caminhando, caminhando, debaixo de uma sombrinha. Claro que não foi só aquela mulher que portava uma sombrinha para abrigar-se do sol abrasante. Não me lembro de outras vezes que andei por Teresina de reparar nesse costume local, aliás, bem justo e necessário, de usar uma sombrinha contra o rigor solar. Esse hábito me parece ser apenas feminino, já que não vira nenhum homem utilizando um guarda-sol.

Aqui no Rio de Janeiro, usar uma sombrinha ou guarda-chuva, em pleno calorão, não é comum como na “Cidade Verde”. Lá é hábito; aqui, é exceção, chega mesmo a ser constrangimento para quem dele faz uso com receio de se ver vítima de um gaiato qualquer perguntar-nos se está por acaso chovendo. O carioca sofre, mas não abre o guarda-sol. “Os cariocas somos pouco dados” aos guarda-chuvas, ou chapéu de sol ou muito menos a uma sombrinha, para nos intrometermos, sem sermos chamados, no labiríntico intertexto machadiano.

Das últimas vezes que fui a Teresina não me passava pela cabeça um persistente temor de violência. Não me queira por isso na conta dos paranoicos, dessas criaturas que, nas grandes cidades, passam a ter medo de tudo diante da disparada da violência dos últimos anos.

Confesso-lhe, leitor, porém, que, em Teresina, só andei mais em carro particular que, no meu caso, era do meu amigo, o ensaísta M. Paulo Nunes, de sorte que não me expus à sanha de algum pivete ou assaltante.

Num final de manhã, notei que, no hotel, não dispunha de papel para escrever, nem de caneta; a que trouxera comigo na viagem se perdeu não sei onde. Lá fui às ruas de Teresina. Algumas delas eu conhecia de priscas eras. Com o tempo, a gente perde um certo traquejo de andar por ruas de nossa cidade. Entretanto, o “eu” do presente era outro, e as ruas, à altura em que as podia identificar, não ficavam em trechos por mim palmilhados com assiduidade no passado.

Mesmo assim, criei coragem e, vendo o nome de uma rua e de outra, alguma, conhecida, outra, não, fui dar na bela Av. Frei Serafim, que divide dois lados de parte da cidade. Indaguei aqui, ali e, por fim, consegui encontrar uma papelaria. Comprei um caderninho escolar de poucas folhas e uma caneta azul. Lembrei-me, então, que teria que comprar um exemplar da edição daquele dia do jornal Meio-Norte. No hotel, depois do café, já havia passado uma vista no exemplar que me interessava, aquele no qual havia uma reportagem sobre mim a propósito de conferência que iria fazer na Academia Piauiense de Letras. A reportagem tinha sido feita no dia anterior por ocasião do lançamento, no Museu Odilon Nunes, de mais um número da excelente revista Presença, com apresentação de M. Paulo Nunes. Procurei o exemplar em mais de uma banca até que o encontrei. A reportagem exibindo foto minha, saíra bem escrita, mas continha um erro. A jornalista que me entrevistara omitira do meu nome literário, a palavra “Filho”. Sem querer, virei o nome de papai. Ainda bem que estava em boas mãos paternas e na mídia jornalística que ele tanto amava.

Voltando a Teresina, tópico principal desta crônica, pude observar outras coisas. Me convenci por completo  de que sou um estranho na cidade. Perdi mesmo o bonde da história de Teresina.

A minha Teresina não é a de hoje. Ela ainda existe e se estende por todo o velho centro da urbe. Lá vejo, intactos, alguns pontos de referências; o Theatro 4 de Setembro, o Rex, a Praça Rio Branco (o relógio!), o prédio do Arquivo Público (ó tempos da infância!) da rua Coelho Rodrigues e que, hoje, comporta também o Conselho Estadual de Cultura, a Praça Pedro II, o Karnak, a Praça João Luis Ferreira, o antigo Prédio dos Comerciários (que, um dia, fora o mais alto edifício da cidade), a Praça do Liceu (ah, sim, Landri Sales!), o Liceu Piauiense, as igrejas de São Benedito, a minha preferida, a do Amparo, a das Dores, a Praça da Bandeira, muito modificada e maltratada, e principalmente as queridas e amorosas ruas da velha Teresina, nas quais tudo nelas me leva inexoravelmente ao passado. Ah, ia-me esquecendo, o velho rio Parnaíba, o Poti (agora com sua enchente e suas vítimas). Enfim, esse passado soterrado no tempo, me está, contudo, vivo e ora me leva à alegria, ora à melancolia. 

O que não se circunscreve a essas ruas, a esses prédios, a essas arquiteturas variadas alcançadas pela minha geração não parece fazer parte da minha memória. A Teresina nova, trepidante, dos arranha-céus não me atrai. Essa Teresina verticalizada se iguala às outras metrópoles, vira mesmice. Nada tem a ver comigo em Teresina.

Relendo os belíssimos poemas de Paulo MachadoPost card/57” e “Post card/77” extraídos do livro Tá pronto, seu lobo? e “Nas ruas da minha cidade há lições? (É preciso aprendê-las)", retirado do livro A paz no pântano (1982), que se encontram na antologia A poesia piauiense no Século XX, de Assis Brasil, vejo que a poesia de Paulo Machado, de alguma forma, me conforta e não me deixa esquecer essa Teresina. Os dois primeiros poemas citados se valorizam pela riqueza semântica resultante de sua arquitetura contrapontística em termos de realidades espaciais semelhantes aliadas a realidades temporais diversas. O terceiro poema, ainda inserido na categoria do tempo fluído, reforça o tom rememorativo de viés rebelde na transposição da realidade histórico-social. Poemas de grande impacto estético que, em mim, despertam, de certa forma, por coincidência ou não do fenômeno poético, quase a mesma sensação provocada por aquela maneira de descrição pulsante, vibrátil, vigorosa, do realismo inusitado de Cesário Verde (1855-1886), como seriam exemplos os versos abaixo do poema “Post card/57":


                                    No mercado central pretas carnudas
                                    Vendiam frito de tripa de porco
                                    Fígado picado e caninha.


Os novos bairros, avenidas, artérias, em suma, o espalhamento topográfico horizontal da cidade me espanta e ao mesmo tempo me dá a sensação de que estou em outro lugar, que nada tem mais a ver comigo, e com o meu espólio (triste espólio devorado pelo tempo!) de relembranças. Estas, por definitivo, vou encontrar num cruzamento qualquer da minha própria Teresina da memória.



Cunha e Silva Filho
via Portal Entretextos