"NAS DUAS CIDADES", por Ogmar Monteiro




Dupla residência


Não obstante terem os meus pais passado a residir em Flores, hoje cidade de Timon, quando eu contava quatro anos, estive sempre dividido em residir lá e cá.

O caso foi que os membros das famílias de meus pais, na quase totalidade, residiam em Teresina. Aliás, sendo primos os meus genitores, tinham, como disse anteriormente, um tronco comum.

Por outro lado, pela ordem de nascimentos, o meu pai era o caçula de 17 irmãos, dos quais sobreviveram somente 11, e minha mãe foi a 10ª entre os 17 irmãos, nos 16 partos de sua mãe, em decorrência de um casal de gêmeos. Mas criando-se também apenas 11 irmãos.

Do lado paterno eram 4 homens e 7 mulheres e do lado materno o inverso. Sofia, Lúcia, Cincinnata e Adélia Mariana; Manoel, Sêneca, Antônio, João, Gutemberg, Astrolábio e Luiz. Esse descompasso de idades, entre irmãos múltiplos, redundou em grandes diferenças etárias entre os primos.

Os filhos de meu tio Santídio, por exemplo, nasceram no fim do século passado e foram criados brincando com meus pais, ele de 1890 e ela de 1895, que tinham a mesma faixa etária.

Em casa do meu tio Né, irmão de minha mãe, os filhos eram também mais velhos do que eu. Tornei-me, por isso, solicitado a permanecer nestas casas e outras quando lá aparecia, além da casa dos avós maternos, onde minha mãe ia amiúde, vez por outra deixando-me pernoitar com os meus pais e os filhos do tio Luiz, seu irmão caçula que, se casando por último, ficou residindo com seus maiores, na ampla casa, como providencial companhia para o casal de velhos.

Além do nosso lar em Timon ser bem próximo à beira do rio, havia ao meu dispor a vasta quinta que o margeava, onde fruía da intimidade com a água.

Era a casa que ficava mais perto do porto de canoas para passagem de uma cidade a outra. Tornou-se-me, por isto, familiar o pessoal que labutava nas canoas da passagem, não sendo difícil conhecer pelo nome ou alcunha e fazer sempre identificação dos passadores: Damásio, de longos bigodes; Manoel Francisco, com compleição hercúlea; Camilo, com os feixes de músculos retalhando a plástica; Isac, jovem, e muitos outros que se sucederam ao longo dos anos nesse mister.

A nossa quinta, além do grande número de árvores frutíferas, tinha plantios de cana, bananeiras e capim com o qual eram alimentadas as rezes da vacaria.

O banho de rio era o grande deleite, além das inundações nas suas cheias, quando invadia a nossa quinta e muitas outras em ambas as margens. Foi assim na cheia de 1924, quando bebi água no meu pré-afogamento, e quando aprendi a nadar e remar.

O convívio com o “velho monge” era de tal forma íntimo que poderia ser definido com um pé lá e outro cá, principalmente quando tive a minha canoa e integrei-me definitivamente ao rio, tornei-me assim “parnaibano”, se não quase anfíbio, identificado ao “homo parnaibanus”, no conceito terminológico de Odilinho.


O rio


A água exerce o fascínio.

O calor equatorial quase impõe a procura do deleite do banho de imersão.

Duas forças convergentes levam-nos à sofreguidão do mergulho. 

Essas forças preponderam sobre os habitantes de ambas as margens do “velho monge”. Isto, do banho de rio, principalmente no tempo das coroas é com tal ímpeto que nem as mais aterradoras ameaças ou as admoestações mais veementes afastam os banhistas, embora vez por outra se afoguem os mais afoitos. Morriam jovens no meu tempo de menino, continuam morrendo agora quando estou velho. Os exemplos vistos não elucidam as dúvidas; não convencem; não servem de silogismo; se ele se afoga, logo eu poderei me afogar.

Não. A lógica é equívoca e inversa. Ele afogou-se. Eu não me afogarei.



O susto


Disse alhures que na cheia de 1924, quando contava seis anos, tive o meu pré-afogamento. Tentando brincar no embono este virou levando-me para o lado de baixo.

Naquele ano aprendi a nadar e remar. Dez anos depois considerava-me exímio nadador, não temia as águas violentas nas cheias transbordantes; contestava as lendas do cabeça de cuia e as “busões de surubim de cama” capazes de engolir adultos.

Confiava no meu vigor atlético. Supunha-me insuperável. Superior a tudo e a todos. Apagara-se na memória o primeiro susto quando o embono virou.

O rio estava pleno.

Não transbordara, porém tinham submergido as coroas. A água barrenta ia de uma ribanceira a outra. A calha estava cheia, repleta do elemento líquido indo de margem em margem.

Alguns jovens, comigo na beira do rio, no “Porto da Cadeia”, batiam água quando houve o desafio:

"Quem quer atravessar o rio a nado comigo?"

Outros com igual arrojo ou loucura disseram:

"Eu."

Uma meia dúzia dos presentes, inclusive eu e meu primo Elmo, iniciamos o nado temerário. Realmente para nós não seria aquela a primeira vez. Inúmeras outras aventuras inconsequentes em cheias transbordantes já tínhamos experimentado com êxito.

Saímos na rampa do Mercado. O porto da Cadeia em Timon é defronte da Cepisa, atualmente, e, a desaparecida rampa em Teresina ficava à esquina do Depósito de Madeira, "O TOTE".

Até aí tudo bem. Margeando o rio até a moita de tabocas da Usina Elétrica retomamos a nado no sentido inverso.

O fluxo da corrente do lado do Maranhão para o Piauí neste trecho do rio. O nadador tem a força centrífuga a seu favor quando vem para Teresina, mas o esforço será redobrado ao voltar.

Próximo ao porto-do-fio, fui acometido por uma câibra violenta. Sabia da coroa submersa, prendi a respiração e desci verticalmente, pisei em terra. Mas a água cobriu-me. Voltei à tona e procurei boiar. Em decúbito dorsal flutuei ao sabor da corrente. Vi a ponte metálica sobre mim quando as águas me levavam rio abaixo. Tudo tem fim. Agarrei-me às canaranas. A câibra passara mas me sentia extenuado, mesmo assim, segurando-me em tudo, arrastei-me para fora d’água.
TERESINA DESCALÇA | 5º VOLUME
Fortaleza: 1988



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