19.4.24

"De volta para casa, episódio I - poema flagrante", por Elio Ferreira



1


estou de volta
estou de volta para casa
como se tivesse a volta para os becos e quintais

estou de volta
de volta para casa
e deus é um menino preto de carapinha
q colhe ervas cidreiras
e brinca com os meninos numa luta corpo-a-corpo
e se enlameiam correndo atrás do besouro “cavalo-do-cão”

estou de volta:
as paredes da casa impregnadas de nosso cheiro
e a gente a se amar a partir de palavrões:
amor na lua cheia - canções
e o poema sem utilidade nenhuma para girassóis:
a tarde inicia as taiobas (coisas de monturo)
a tarde meninos a cobiçarem o arco-íris
a tarde um menino: mamãe arranca aquele
arco-íris pra mim!

estou de volta
um grilo griligrirrigrilama anoitece os homens
vive para o ferro sua dimensão de grilo:
um grilo na noite 100% grilo
um grilo na noite não sei quantos % esmeril
enche a noite o canto grilo:
engridente encravado na medula



2


o canto
(pedra ou metal)
flagra repiques a martelos
a outras falas
e a mim mesmo

o canto
o galo madrugada endoidou
comeu a flor da bigorna
comeu a estrela d’alva
comeu o chiqueiro: o bodejar amanhecendo
os quintais mistura a gritaria a casa toda:
a menina quase morta
quando acaba a essa hora da noite:
“e Zé P... não tinha nem vergonha
de se banhar no olho-d’água do Escurador”
- água boa pra se beber e outras serventias
agora toda empestada
- e a gente correndo da lepra:
escorrega a dor o coradouro
a Mesa-de-pedra
a roupa quarando no lajeiro
e a dor da fome não tinha cura:
vivia sol-a-pino



3


(a fala de dona Neném da Vereda Grande)

do amanhecer ao por do sol
a molecada gritando: Neném doida – “todo o transporte endoidou
derrubou – oh! não me mate na minha casa
- não me mate na minha casa”!
frechou numas cajás das cajás q frechou o galo
não sei q horas da madrugada – “e eu não tinha
nem água pra beber 1983 – me escondi:

o cercado todo ganhou!
todo ganhou”!
foi no comecinho de agosto e eu disse minha alma
do pai Joaquim – valei-me!
e o fogo ia tomando conta: lá estava
pior do q aquele lugar – rezo
todo o santo dia – q se chama o inferno
- minha cabeça onde bebi
água no asilo de suspensão às 3h da madrugada – oh
lugar pequeno pra caber gente: são cinco psiquiatras
é uma cabarezada na jardineira
o resto do inferno – a seca toda descansou
em abril
– e tem mais de não sei quantos mil homens
e a fome chega é assim ãããããããg nhang tem-tem-tem – ôi!
quem foi dona Neném?
a fome acompanha este defunto-sem-choro – não tenho
caderneta de nenhum coronel
menino – o jeito desses homens: “tira a
roupa – porra! tira a roupa – escrota! eu estou
te matando! eu estou te comendo”! – e eu não sabia
pra onde dava e eu não sabia de q jeito estava
e a malhada estava cruzada pelo diabo – entrou
sexta-feira – não posso gastar palavras:
minha sina - dizem
é morrer de uma febrezinha



4


Seu Né Preto – espere por mim
com banhos de alecrim
com histórias de Trancoso
com cantigas de passarinho
com 7 gerações bumba meu boi no terreiro:
não era gente debaixo não
– era boi mesmo:
cheio de artimanhas.
seu Né Preto:
me ensine a fazer uma gaiola
um papagaio de papel e o caminho daquela serra
onde se caçava alecrim

seu Né Preto – pouco se espera dos quintais:
senão a morte das fibras
a antropofagia das lombrigas
e o cocoricoooo do galo de Calcutá abanando a tarde
anoitece o nosso caralho
espantalhos na rua do Ouro
o ouro arrancado na mesa-de-pedra:
o “Escurador” não cura
nem lava a dor a roupa lavada
resvala a vida no lajeiro



5


por si mesmo o galo
e a sina de ser galo
(faz a vez do cavalo e do vaqueiro)
insulta outro galo
fere o espaço a goela
como o ferreiro fere o aço
a fogo
a talhadeira
a marreta
a martelo
mira o girassol o galo desafia o
girassol gira para o sol o galo
cisca a tarde o galo
defensor do quintal o galo
(entre fedegosos e ervas-cidreiras)
apunhala o inimigo outro galo
na marginalidade do monturo.

não o chamaria espadachim
não o chamaria cavaleiro medieval
não o chamaria gladiador
(à espera do toque de clarim)
chamo-o cangaceiro armado a punhal
afia a lâmina no lajeiro
o galo
empina a musculatura
o galo
canto de entardecer
o galo
desafio para outros quintais

estou de volta
como se tivesse a volta para os becos e quintais
e deus é um menino preto de carapinha.



Elio Ferreira
Em Floriano, Piauí, 1985
Inédito em livro
Publicado originalmente em: 
REVISTA SPHERA - Habitações do Encantado

31.8.23

ÀS VEZES QUANDO CRIANÇA, por Leo Lagosta 🦞


 

Às vezes quando criança
Somos enganados 
Tememos o bicho papão e o homem do saco
Mas sempre vem a mesma indagação 
Será se a vida após a morte
Não é o bicho papão?
E apenas um saco encobre a verdade?
Éramos apenas ingênuos
Quando crianças?



Inédito em livro


14.8.23

DOMINGUEIRA, por Chico Neto




revisitar a infância
percorrer a alma em todos seus arquivos
danificados irrecuperáveis
perdidos

as fotografias de menino
“o álbum com os girassóis na capa”
a ironia disso
família almoço domingo
Velhos quintais de calor
uma rede armada e vazia
e a porta da casa aberta
para as esquinas (que viriam depois)
de onde brotou essa saudade



Chico Neto
Poema inédito em livro
Enviado pelo autor


12.8.23

42, por Rubervam Du Nascimento




que importa
além do recado
deixado na porta

da roupa espetada
no pé de angico

parto nu para o poema
beijo a folha de papel
em branco

discuto com ele 
o tamanho da palavra

invento outro tempo
e ele me inventa



Em Marco Lusbel Desce ao Inferno,
1º Lugar no 1º Concurso Blocos de Poesia
Rio de Janeiro, RJ (1998)


29.7.23

O grito e o rio, por William Melo Soares




Não há nada de novo
na ordem do dia:
nem um sinal de alegria
nem um cheiro de esperança.


o grito de gol é de alegria
o ar que se respira é venenoso
a noite traga os bêbados
e as putas da paissandu


e ao mesmo tempo
o rio está morrendo
o rio está morrendo
o rio está morrendo
lentamente como o homem
com o cansaço do seu peso
na trincheira do seu medo


E não há nada de novo
na ordem do dia
nem um sinal de alegria
(por motivo de força maior)
nem um cheiro de esperança.



William Melo Soares
O rio: antologia poética
Teresina: Edições Corisco, 1980


28.7.23

CARTOGRAFIA INFINDA, por Renata Flávia




Era dia de muito sol, como todos os dias
Quando Assis Brasil cruzava a Praça da Integração no Parque Piauí
M. Leite descrevia os urubus e o cheiro forte do mercado, quarteirões abaixo
Um ônibus marrom desce a Av. Maranhão
O centro brota no vão dos dedos de colegiais
Entre a beira e a coroa
Todos os dias é rio e cais
Arnaldo aparece de batom na capa do jornal anunciando a prainha que vem
Até hoje, a manhã recita Da Costa quando as barbas de um monge escorrem
[no Parnaíba antes das 7 horas
Todos os dias
O abandono cresce na fuligem do trânsito
Enquanto O.G. atende no Banco do Brasil da Álvaro Mendes, 1313
Chico faz o mesmo até às 4 da tarde
Quando desabotoa os dois primeiros botões da camisa rumo à Pedro II
Essa praça, onde H. Dobal caminha em círculos
Está entregue ao vazio
De frente, drogas, ratos e lixos circulam livremente onde antes havia poltronas de cinema
A 100 metros dali Paulo Machado enfrenta o poema da Teodoro Pacheco, 1193
No sentido contrário Genu reinventa fantasmas no último casarão da Antonino Freire
É dura a caminhada
Fontes Ibiapina passa na lateral da Central de Artesanato antes de descrever o incêndio
[e o salto metálico
Na Rua São João 1042 Torquato arruma as malas para partir, pois cansou
Não chore, Teresina é assim mesmo
Foi Faustino primeiro, depois tantos mais
Apesar de ser lindo o laranja neon desse sol que cai



Renata Flávia
Poema inédito em livro
Enviado pela autora


27.7.23

CIDADE SAFÁRI, por João Henrique Vieira



a cidade é um safári
passeamos com medo das mordidas da estupidez
somos um aquário poluído pensando que é monet
transitamos assustados pela paisagem de armaduras
entre ferros luminosos carregamos nossos sonhos

a cidade é um safári e os bichos não estimam ninguém
a encenação é um vício do medo
circo tela pichada filme pirata humor previsível moda lunática
anjos atropelados pelas ruas
atropelados pelo bom dia sem dono
atropelados no meio do filme
anjos atropelados pela ternura dão risadas do amor
e a beleza é o filho que dorme

a cidade é um safári e nos salvamos bêbados num bar vagabundo
glamour maquiado medo sonho céu
os bichos são mais bonitos quando se amam
é bom o sono seguro de quem dorme com amor
os bichos são mais bonitos quando afastam as cortinas do medo e pintam a embriaguez da
revolução e se amam

estamos descalços e já começaram a guerra
ainda procuro uns versos que valham a pena e já começaram a guerra
a cidade é um safári
uma diversão assustada e cheia de bichos entre o amor a morte e o riso.



João Henrique Vieira
publicado na oitava edição da Revista Garupa



26.7.23

Meu coração na calçada ou na exposição, por Chico Neto



Jazz na esquina de Fátima
You're my favourite work of art 
ruas e poemas inacabados
galerias à céu aberto
peito aberto também

num improviso de sax
águas salgadas escorrem em Teresina
enquanto as faces
escapam à pintura e fotografias

é mesmo espantosa essa tua maneira de estar sozinha
pausa pr'um cigarro
e aí?
já passamos os 30

por isso bésame bésame mucho



Chico Neto
Poema inédito em livro
Enviado pelo autor


As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino (fichamento)






Memória

As cidades e a memória 1

Diomira

"Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes".

As cidades e a memória 2

Isidoria

"O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade";

"Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações".

As cidades e a memória 3

Zaíra

"A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado";

"A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata";

"Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras".

As cidades e a memória 4

Zara

"O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota";

"Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória".

As cidades e a memória 5

Maurília

"Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais e prefira-a à atual, tomando cuidado, porém, em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional — que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi."

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos.

É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília.

Desejo


As cidades e o desejo 2

Anastácia

"A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer".

As cidades e o desejo 3

Despina

"A cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar".

As cidades e o desejo 4

Fedora

"Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la na cidade ideal, mas, enquanto construía o seu modelo em miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e o que até ontem havia sido um possível futuro hoje não passava de um brinquedo numa esfera de vidro".

Símbolos


As cidades e os símbolos 1

Tamara

"Os olhos não vêem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas";

"O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes";

"Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o que esconde, ao se sair de Tamara é impossível saber".

As cidades e os símbolos 2

Zirma

"A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente";

"A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir".

As cidades e os símbolos 3

Zoé

"Assim — dizem alguns — confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares";

"Mas então qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos?".

As cidades e os símbolos 4

Ipásia

"Os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer".

As cidades e os símbolos 5

Olívia

"Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles".

Delgadas


As cidades delgadas 2

Zenóbia

"Dito isto, é inútil determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados".

Trocas


As cidades e as trocas 1

Eufêmia

"Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz — como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”, “sarna”, “amantes” — os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas";

"E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios";

As cidades e as trocas 3

Eufêmia

"(...) das inúmeras cidades imagináveis, devem-se excluir aquelas em que os elementos se juntam sem um fio condutor, sem um código interno, uma perspectiva, um discurso. E uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discursos seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa".

As cidades e as trocas 5

Esmeraldina

"Mas é difícil fixar no papel os caminhos das andorinhas, que cortam o ar acima dos telhados, perfazem parábolas invisíveis com as asas rígidas, desviam-se para engolir um mosquito, voltam a subir em espiral rente a um pináculo, sobranceiam todos os pontos da cidade de cada ponto de suas trilhas aéreas".

Olhos


As cidades e os olhos 1

Valdrada

"As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas".

As cidades e os olhos 2

Zemruda

"Cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distingui- los da calçada".

As cidades e os olhos 3

Bauci

"...contemplando fascinados a própria ausência".

As cidades e os olhos 4

Fílide

"Em todos os pontos, a cidade oferece surpresas para os olhos: (...)";

"Como todos os habitantes de Fílide, anda-se por linhas em ziguezague de uma rua para a outra, distingue-se entre zonas de sol e zonas de sombra, uma porta aqui, uma escada ali, um banco para apoiar o cesto, uma valeta onde tropeça quem não toma cuidado. Todo o resto da cidade é invisível".

As cidades e os olhos 5

Mariana

"Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que não podem se separar nem se encarar".

Nome


As cidades e o nome 1

Aglaura

"Portanto, se quisesse descrever Aglaura limitando-me ao que vi e experimentei pessoalmente, deveria dizer que é uma cidade apagada, sem personalidade, colocada ali quase por acaso. Mas nem isso seria verdadeiro: em certas horas, em certas ruas, surge a suspeita de que ali há algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico; sente-se o desejo de descobrir o que é, mas tudo o que se disse sobre Aglaura até agora aprisiona as palavras e obriga a rir em vez de falar";

"Por isso, os habitantes sempre imaginam habitar numa Aglaura que só cresce em função do nome Aglaura e não se dão conta da Aglaura que cresce sobre o solo".

As cidades e o nome 3

Pirra

"A minha mente continua a conter um grande número de cidades que não vi e não verei, nomes que trazem consigo uma figura ou fragmento ou ofuscação de figura imaginada".

As cidades e o nome 5

Irene

"A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar; cada uma merece um nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene".

Mortos


As cidades e os mortos 1

Melânia

"A população de Melânia se renova: os dialogadores morrem um após o outro, entretanto nascem aqueles que assumirão os seus lugares no diálogo, uns num papel, uns em outro".
Céu

As cidades e o céu 3

Tecla

"Por que a construção de Tecla prolonga-se por tanto tempo?, os habitantes, sem deixar de içar baldes, de baixar cabos de ferro, de mover longos pincéis para cima e para baixo, respondem: Para que não comece a destruição. — E, questionados se temem que após a retirada dos andaimes a cidade comece a desmoronar e a despedaçar- se, acrescentam rapidamente, sussurrando: — Não só a cidade".

As cidades e o céu 5

Ândria

"A cidade e o céu nunca permanecem iguais".



Ítalo Calvino
em "As cidades invisíveis"
Ilustrações de Matteo Pericoli
Companhia das Letras: 2017


25.7.23

Perambulando pelos bares noite a dentro, por Geraldo Almeida Borges



Teresina é uma cidade repleta de bares e botecos por todos os lados e por todas as esquinas. O bar Café Avenida não ficava em nenhuma avenida, como reparou o poeta Edmar Oliveira. Hoje seu espaço não passa de um estacionamento do Luxor Hotel. Nos seus de tempos de glória era frequentado principalmente pelos sírio-libaneses, a comunidade árabe, no final da tarde, na saída do expediente comercial. Era como se o bar fosse uma extensão da casa deles, de tanto que ficavam à vontade. Ali, conversavam em seu idioma natal. Ninguém compreendia patavina do que estavam dizendo, provavelmente falavam de seus negócios.

Como tudo tem seu tempo, chegou a minha vez de começar a frequentar e conhecer os bares da cidade. Mas, antes de me sentar no bar Carnaúba e começar a beber com os amigos, preciso falar de um bar muito mais antigo. Chamava-se bar Carvalho e ficava na praça Rio Branco. Ainda o alcancei. Foi lá que tomei a minha primeira cerveja na companhia de um tio. E fiz a minha iniciação etílica. 

Voltemos ao bar Carnaúba, que foi o primeiro com o qual me habituei. Ali, sentados, com os amigos, os cotovelos em cima da mesa, copos espumando de cerveja, servidos por uma garçonete bonita, sorridente, e que todo freguês desejava. Discutíamos sobre política e putaria. O bar ficava do lado do Theatro 4 de Setembro. Teve o destino de quase todos os bares, um dia desapareceu. Mas a gente sempre encontrava um bar de portas abertas, como um templo nos esperando.

Um dia encontrei um bar onde demorei mais tempo bebendo. Este parece que não ia se acabar tão cedo. Também se  acabou. Era o Gelate, que ficava na avenida Frei Serafim, defronte da casa de sobrado do poeta Durvalino Couto. Ali bebia a turma dos meninos que escreveram as edições do jornal Gramma, e que marcou profundamente a história cultural piauiense. O dono do bar era o Raimundo. O seu tira-gosto era delicioso. Mas só começava a servi-lo quando já estávamos na terceira cerveja. Ninguém sabia de que era feito. Estalava na boca como torresmo. Um dia ele nos revelou o segredo do tira-gosto. Falou para mim que era tripa de galinha torrada.

Andando de bar em bar, perambulando pelas ruas de Teresina e falando dos bares que não existem mais, podemos citar o bar Acadêmico, que ficava na praça Pedro Segundo, o bar do Setenta e um, que ficava na esquina do Fripisa, no chamado Alto da Moderação, onde funcionou o antigo Mercado Novo, o bar e livraria Punaré perto da praça João Luiz Ferreira, do professor e sociólogo Antônio José Medeiros. 

Quem bebe nunca se lembra de todos os bares e botecos por onde andou, embora tenha os seus preferidos. Bendito esquecimento. No momento me recordo do bar do Sebastião, perto do beco, na saída do beco. Era um boteco onde se tirava água do joelho em uma lata detrás de um biombo de madeira. Ali tomei muita cachaça com o meu primo Alberoni Lemos. Tinha os bares da Paissandu, dos cabarés. Toda casa de tolerância era um bar, onde, geralmente, se bebia na companhia de mulheres; também se acabaram. Tinha o bar da Maria Tijubina para o mais discretos. Para os mais escandalosos, era Maria Tabaco de Sola. Muitos artistas e intelectuais em visita a Teresina terminavam a noite por lá para comer panelada, ou mão de vaca, eram levados pelo Açaí Campelo. Ficava à margem da estada de ferro, no Mafuá. Alguém deu na veneta de fazer um curado para o Metrô, e lá se foi o bar da Maria.

Tinha o bar da Ria Ana, com suas mesas rústicas, na calçada, cobertas com toalhas quadriculadas; era o bar da moça Rita Maria, ou melhor, Ritinha. O bar do meu primo Humberto, no bairro Porenquanto, com suas cadeiras na calçada debaixo das sombras das mangueiras, onde o poeta Sid Abreu dava o ar de sua graça, bebendo dose de pinga e recitando poesia. Tenho certeza que me esqueci de muitos bares, onde me embriaguei. Lembrei, agora mesmo, foi bar do Tetéu, que ficava no coração da praça Saraiva. E funcionava a noite toda. Não posso me esquecer do bar do Santana. Este parece que ainda existe. Talvez seja um dos bares mais antigos de Teresina. Já mudou de lugar algumas vezes. Mas sempre levava os seus fregueses. Faltava falar no bar Nós e Elis. Pronto. Está falado. Já foi até objeto de um livro. A palavra para ele é saudade. Momento de curtição, existencialismo, e muitos encontros inesquecíveis. Ficamos sem o bar e perdemos uma grande estrela. mas não vamos perder os bares, embora eles desapareçam, da noite para o dia, outros os substituem, e até parecem os mesmos, com os seus garçons solícitos, nos enchendo os copos de cerveja com colarinho ou sem colarinho.



Geraldo Almeida Borges
em Província Submersa - Crônicas Teresinenses (século XX) 
Personagens, mitos e monumentos
Editora Caetés: Rio de Janeiro, 2011.


6.7.23

"Teresina, meados de julho, noite fria", por Chico Neto



o caminhão do lixo abafa os passos
do vagabundo
que também eu
nunca deixei de ser
apesar da roupa de homem
dos sapatos que visto
apesar de tudo isso
de poema, de julho, do lixo

amigo
a vida não fracassou
que não há isso de fracassar
naufragamos apenas para sermos outros
estarmos soltos da última rota

um desses anjos me disse:
não esteja triste
é irremediável a poesia



Chico Neto
Escrito após retornar de Amarante/PI, em 2016
Enviado pelo autor


10.6.23

Tigre Lobo Cobra, de Mário Eugênio



Tigrelobocobra é o novo trabalho de Mário Eugênio, gaitista da extinta banda de blues BR-316. Foram meses trabalhando em cima das músicas e estudando processos de mixagem e masterização para fazer exatamente tudo que há nas 10 músicas desse álbum já disponível em todas as plataformas de música.

A força do disco não se prende apenas às guitarras pesadas e gingadas; existe uma atmosfera misteriosa, raivosa e, por vezes, sensual nas letras carregadas de referências literárias, lutas e assombros.

A gaita também exerce sua atração em algumas faixas, trazendo um pouco da versatilidade que o Mário já vinha mostrando no BR-316 ou em participações e gig’s com o André de Sousa, Clínica Tobias blues e outras bandas das antiga de Teresina e arredores.

“Por isso eu sou a tua espora, eu sou a cigarra que te agoura até às 6” e o som indignado de “Eu farei a tua hora e a tua vez” celebram a hora e a vez de tacar fogo nos racistas. Imagens delicadas como: “barco e pescador deslizam no oceano como um deus dormente” brilham no mar em “Barra Grande”.

A alegoria fantasmagórica de “Apenas uma sombra no meu quarto” rodeia diversas faixas, tanto na história contada na letra como na própria melodia e esses são frutos de uma paixão literária-musical pelo assombro, mistério e a solidão como também aparece em “Às vezes se esconder não é covardia”. Visões de Melville, Shepard, Hesse, Quincey+Baudelaire rodeiam as estrofes e, muito mais que referências diretas, é possível ouvir a atmosfera desses autores em notas, batuques, graves e um canto talhado e não pretencioso.

Tigrelobocobra traz desde o nome referências do caminho trilhado na composição da arte do Mário Eugênio, o delicado e irresistível perigo do Tyger no poema de Blake, a esperteza audaciosa e compartilhada do lobo e o arrastado serpetino da construção destes caminho, todos eles juntos.

Enfim, um disco diversas histórias, referências, entregas, paixões, com raiva e sensualidade.

Apresentação da Poeta Renata Flávia, publicada originalmente na Revista ACROBATA - literatura, artes visuais e outros desequilibrios, em  24 de fevereiro de 2023



Conheça o artista Tigre Lobo Cobra: