"Espaços culturais de Teresina-PI: cotidiano, memórias e sociabilidades (décadas de 1980 e 1990)", por Raimundo Nonato Lima dos Santos (trecho: Bar do Cuspe)



RESUMO


O texto aborda a história recente da cidade de Teresina, capital do Piauí­, tendo como objeto de estudo as sociabilidades e sensibilidades urbanas em espaços culturais da referida urbe, nas décadas de 1980 e 1990. Analisa as práticas sociais desenvolvidas nesses ambientes, por artistas teresinenses, interpreta a forma como esses artí­fices se relacionavam com os locais indicados e, avalia a importância desses espaços culturais para os artistas da cidade. Os sujeitos da pesquisa foram os artistas locais, com destaque aos atores, músicos e literatos, que vivenciaram os espaços culturais da cidade de Teresina no referido perí­odo. O campo temático da pesquisa se enquadra na história das cidades, na perspectiva da Nova História Cultural, que concebe a cidade como um problema e um objeto de reflexão, onde se pode trabalhar com o imaginário urbano, fazendo análises de discursos e imagens de representação da cidade, que refletem espaços, atores e práticas sociais. A narrativa foi construí­da com base em variadas fontes, que incluem jornais, crônicas e relatos orais. A análise dessas fontes e a discussão sobre memória e história oral contou com o aporte teórico de Ecléa Bosi (2003), Sônia Freitas (2002), Verena Alberti (2004) e Alessandro Portelli (2016). O trabalho apontou a Feira Popular de Arte, o Teatro de Arena, o Verdão e o Auditório Herbert Parentes Fortes, como significativos espaços de produção e consumo artístico para um público heterogêneo. Indicou as práticas sociais de notí­vagos, nos bares da cidade – tais como o Bar do Cuspe, o Sachas Bar, o Green Bar, o Zeus, o bar Elis Regina e o bar Nós e Elis – que tinham como elemento comum a frequentação de artistas, no palco e/ou na plateia. Mostrou que os principais espaços culturais de Teresina estavam localizados na região central da cidade. Salientou ainda que alguns jovens, especialmente aqueles ligados, direta ou indiretamente às artes, após a socialização no centro desta urbe se destinavam à Zona Leste da capital para completar a noite no bar Nós e Elis.


Os bares: espaços culturais alternativos


A cidade de Teresina possuía outros espaços que à primeira vista não poderiam se configurar em si como culturais[3], mas que eventualmente eram frequentados por artistas que faziam seus shows particulares e independentes. Era o caso dos bares. Esses espaços privados agitavam as cenas culturais da cidade. De acordo com nossos entrevistados, a boemia artística teresinense se fazia presente em espaços como o Sachas Bar, o Arte Bar, o Bar do Cuspe, o Bar do Toinho, o Café das Seis, o Bar da Sulica, o Bar Avenida, o Chaparral, o Raízes, a Churrascaria Beira Rio e o restaurante De Comer. Entre esses bares, havia outros que além da espontânea frequentação de artistas, ofereciam uma programação artística mais sistematizada aos seus clientes. Essa programação artística foi configurando esses bares como verdadeiros espaços culturais. Foi o caso do Bar Havana, do Pacatuba, do Encena, do Artes e Trastes, do Barbárie, do Green Bar, do Zeus, do Elis Regina e do bar Nós e Elis. Não faremos aqui uma discussão de todos esses bares, mas apenas daqueles que foram mais significativos para nossos contadores de histórias, como o Bar do Cuspe, o Sachas Bar, o Green Bar, o Zeus, o bar Elis Regina e o bar Nós e Elis. Esses espaços privados constituíam-se como uma alternativa aos espaços públicos que ofereciam atividades culturais e eram gerenciados pelo poder público municipal e estadual. 

Bar do Cuspe ficava localizado na Rua 13 de Maio em frente à Praça Pedro II. Esse bar funcionou durante os anos 1970 e 1980 (fechando suas portas em 1983), sendo constituído fisicamente por um fino corredor com aproximadamente 35m de comprimento, com 3,5m de largura, um balcão comprido e cadeiras e mesas de madeira bastante desgastadas (Sampaio, 1994).

O ator e dramaturgo Wellington da Silva Sampaio escreveu uma crônica sobre esse bar, intitulada “Bar do Cuspe”, sendo classificado em 3º lugar no I Concurso de Crônicas A. Tito Filho em 1993. Nesse texto literário, ele aponta a constante movimentação do bar que, apesar de pequeno e bem simples, atraia intelectuais e artistas de renome nacional, como os cantores Luís Melodia e Alceu Valença, e local, como o artista plástico Arnaldo Albuquerque, o ator e dramaturgo Afonso Lima, os atores Santana e Silva e Tarcísio Prado e o maestro Reginaldo Carvalho. “Dizem até que o nome Bar do Cuspe foi batizado pelo ilustre maestro Reginaldo Carvalho. Acredito que este nome veio em função dos muitos que lá bebiam e tinham como hábito cuspir no chão” (Sampaio, 1994, p. 135).

O proprietário do bar era conhecido como Seu Expedito e tinha a característica de atender bem todos os frequentadores, deixando-os à vontade. O carisma do proprietário, somado à tranquilidade do ambiente e à localização privilegiada, atraíram muitos boêmios àquela casa noturna, que não tinha hora para fechar. “Lá se brigava, se namorava, se discutia da música clássica ao Peru Rodou, da Maria da Inglaterra, bem como do teatro Brechiniano ao Grupo Beleza. Nada passava despercebido dos ávidos frequentadores do BDC” (Sampaio, 1994, p. 135). Um desses ávidos frequentadores do Bar do Cuspe foi o ator e cantor Moisés Chaves. Ao ser questionado por nós, durante a concessão de entrevista  para este trabalho, sobre os espaços de sociabilidade de Teresina nos anos 1980, frequentados especialmente por artistas, ele foi enfático ao responder que “Tinha uma coisa boa que era ainda o ‘quebra bunda’ do Theatro 4 de Setembro e o Arte Bar, que fica ao lado do Bar do Cuspe. Então, assim, na década de 80 eram os pontos que os artistas frequentavam [...]” (Moisés Chaves, 2012). O Bar do Cuspe fechou suas portas em 1983 e, em seu lugar, passou a funcionar uma lanchonete. Atualmente, o espaço físico desse antigo bar continua resistindo ao tempo, com a nova funcionalidade. Para o cronista Wellington Sampaio, essa resistência não é apenas física, material, mas também sensível, imaginária. Isto porque os fantasmas dessa antiga casa noturna ainda estariam ali tomando vinho gelado em doses ou copo cheio, pedindo fiado ao Seu Expedito.

"Ao entrarmos no mesmo local [depois de fechado por dez anos], ainda sentimos a vibração das acirradas discussões e a presença dos espíritos dos frequentadores que já partiram deste mundo, mas que ainda hoje caminham pelo seu corredor". (Sampaio, 1994, p. 136)


Considerações finais


O trabalho apontou a Feira Popular de Arte, o Teatro de Arena, o Verdão e o Auditório Herbert Parentes Fortes, como significativos espaços de lazer e de produção e consumo artístico para um público heterogêneo. Eram espaços públicos cujas atividades eram gerenciadas por organismos municipais e estaduais. As sociabilidades desenvolvidas nesses locais, como degustação de comidas e bebidas típicas, debates, apresentação/apreciação de artesanato e de espetáculos literários, cênicos e musicais. Encontros fraternos e amorosos marcavam esses espaços, imprimindo-lhes uma identidade afetivo-cultural que era reconhecida pelos citadinos. Estes por sua vez, ou pelo menos os sujeitos da nossa pesquisa, acabaram  concebendo esses lugares, consciente ou inconscientemente, como “lugares de memória”, no anseio de se preservar essas vivências urbanas (Nora, 1993). 

O estudo descreveu  ainda as práticas sociais de notívagos nos bares da cidade – tais como o Bar do Cuspe, o Sachas Bar, o Green Bar, o Zeus, o bar Elis Regina e o bar Nós e Elis – que tinham como elemento comum a frequentação de artistas, no palco e/ou na plateia. As várias sociabilidades praticadas nesses lugares, como conversar, comer, dançar, paquerar, eram geralmente acompanhadas pela degustação de bebidas alcoólicas e pela apreciação de uma boa música ao vivo, pelo menos em parte dos bares pesquisados.

Essas casas de divertimento noturno eram espaços privados que ofereciam atividades culturais para o público teresinense e que não se limitavam a sazonalidade dos projetos governamentais. Em nossa pesquisa, eles tiveram destaque nas lembranças de nossos contadores de histórias. Enquanto os espaços públicos tinham sua vivência atrelada aos eventos, ofertados geralmente numa periodicidade semanal e mensal, os espaços privados estavam diariamente disponíveis para produção e apreciação artística.

Outro aspecto perceptível em nosso estudo foi que os principais espaços culturais de Teresina estavam localizados na região central da cidade. Entretanto, ficou evidenciado que alguns jovens, especialmente aqueles ligados, direta ou indiretamente, às artes, após a socialização no centro desta urbe se destinavam à zona leste da capital para “completar a noite” no bar Nós e Elis.

Esses espaços, públicos e privados, com ou sem uma sistemática programação artística, constituíam-se  como culturais, pelo viés de nossas fontes. E se configuravam como espaços de sociabilidades, onde as interações ocorriam entre as pessoas, bem como entre pessoas e os espaços. Isto é, os citadinos transcendiam a materialidade e se envolviam na sensibilidade urbana que emanava daquelas interações.


[3] Esses  espaços  não  ofereciam  uma  programação  artística  para  seus  frequentadores  ou  não  havia  uma  sistematização de eventos culturais, bem como era apenas eventual a presença de artistas.



Raimundo Nonato Lima dos Santos, em
Espaços culturais de Teresina-PI: 
Cotidiano, memórias e sociabilidades (décadas de 1980 e 1990)


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