"LUCÍDIO FREITAS (27 anos) - Vida e Obra de 10 poetas piauienses que morreram jovens", por Zózimo Tavares




(...)


Nasci à noite à rua da Amargura
Trazendo sangue e fel em minha boca


(...)


Que valeu, pois, a minha glória,
Meus sonhos de homem superior;
Se um bem, na vida transitória,
Eu não alcanço, embora a glória,
Cinja-me a fronte de esplendor?


(...)




Poeta Alcides Freitas, no Rio de Janeiro, em 1911, via APL



LUCÍDIO FREITAS
27 anos



Glória, sonho e tragédia marcam a curta vida do poeta Lucídio Freitas. Intelectual precoce, aos 18 anos lançou, em 1912, seu primeiro livro, em parceria com o irmão, Alcides. Um ano depois, formou-se em Direito, no Rio. Aos 23 anos, em 1917, fundou a Academia Piauiense de Letras. Desde cedo, viu o espectro da morte rondando a sua casa. Dos 7 irmãos, apenas quatro alcançaram a idade adulta. Um dos principais nomes da Literatura Piauiense de todos os tempos, o poeta morreu na pobreza, deixando três filhos pequeninos (Corina, Alcides e Genuína) na orfandade, o mais novo com apenas 10 meses.

Lucídio Freitas nasceu em Teresina, em 5 de abril de 1894. Era filho de Corina e Clodoaldo Freitas (1855-1924), um dos principais intelectuais do Piauí no início do século 20. Fez os estudos iniciais na cidade natal. Por volta de 1903-1904, “era um anjo louro e chorão”. Bem mais novo que os colegas de escola, servia de brinquedo vivo para os mais velhos.

Seus amigos inseparáveis eram o irmão Alcides, os primos Osmar e Mário Couto e Cristino Castelo Branco. Juntos faziam curiosos jornais manuscritos, como O Cri-Cri e O Orvalho.

A infância de Lucídio incorporava um mundo bem mais ampliado, além das brincadeiras lúdicas, conforme anota a professora Teresinha Queiroz. Era o mundo da casa de seu pai, por onde circulavam literatos, políticos, sertanejos, violeiros, músicos, gente humilde.



Um andarilho


A família de Lucídio vivia com as malas na cabeça, em constante migração entre Teresina e São Luís. Em 1906, com 12 anos, ele foi morar na capital maranhense, onde seu pai passou a ser assessor do governador Benedito Leite e a atuar como jornalista político. Aí, em 1908, Clodoaldo participou da fundação da Academia Maranhense de Letras.

Após concluir os preparatórios no Liceu Piauiense, Lucídio seguiu para o Recife, com apenas 14 anos, para matricular-se no primeiro ano do curso de Direito. No final de 1912, prosseguiu os estudos em São Paulo, para concluir o curso, e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro. Aos 19 anos, formou-se em Direito. Aos 20, foi morar em Belém do Pará.



O livro de estreia


Quando publicou o primeiro livro, Alexandrinos, em parceria com o irmão Alcides, Lucídio tinha 18 anos. Os primeiros versos dos dois poetas resultaram num volume de 20 sonetos. Cada autor assinou dez poemas. O livro o revelou um dos maiores líricos da poesia piauiense.

“São, como o próprio título indica, sonetos construídos em versos decassílabos, através dos quais os irmãos se propõem a versejar sobre os mesmos motivos: ora a natureza pátria e sua pujante beleza tropical; ora os problemas da alma, complexos e sem solução”, analisa a professora Maria Gomes Figueiredo dos Reis, em estudo sobre a vida e a obra de Lucídio publicado na Revista da Academia Piauiense de Letras.



Nas altas rodas literárias


Depois de formado, Lucídio exerceu em Teresina os cargos de delegado geral de Polícia e lente de História do Brasil, no Liceu Piauiense. Mas foi por pouco tempo. Logo em seguida, fez a viagem de volta ao Rio de Janeiro, em busca de emprego e projeção literária, em companhia do poeta Zito Baptista, seu companheiro de letras e também de infortúnio.

É desse período sua maior aproximação com as rodas literárias cariocas, pelas mãos de Clóvis e Amélia Bevilacqua. O jovem poeta circula nas rodas mais famosas, frequentando Coelho Neto, Félix Pacheco, José Veríssimo e Hermes Fontes, entre outros. Andou pelas livrarias da moda e fez parte da boêmia literária.

Em 1914, aos 20 anos, arrumou as malas e mudou-se para Belém, para exercer o cargo de juiz criminal. Na capital paraense, foi também professor da Faculdade de Direito e integrou-se facilmente às rodas literárias. Em 1916, casou-se com a paraense Ocearina Amazonas de Figueiredo. Era a sua segunda paixão arrebatadora. Adolescente, em Teresina, Lucídio apaixonou-se por uma jovem e perdeu seu primeiro amor para a tuberculose, perda perpetuada na saudade e na literatura.



O segundo livro


Em 1917, ainda em Belém, lançou o livro Vida Obscura, “um reflexo da alma do Autor e, talvez, o seu maior momento poético”, como enfatiza Maria Gomes Figueiredo dos Reis. “É através dos versos de Vida Obscura que Lucídio extravasa toda sua tristeza, sua desesperança, sua angústia. São lágrimas em forma de versos, versos que traduzem sua ânsia de vida, de eternidade”. A obra compõe-se de cinco partes que somam, ao todo, 50 poemas.

Por essa época, “as rodas literárias de Lucídio já estavam espalhadas em todo o Brasil, seguindo o mapa de suas próprias andanças estudantis e profissionais. Iam de Recife a São Luís, do Rio a Belém, passando por Teresina”, segundo a professora Teresinha Queiroz.



O terceiro livro


O livro seguinte, e último, Minha Terra, saiu em 1921 quando o poeta já guardava o leito da morte. A obra é dedicada ao bucolismo de sua terra, com exaltação da alma brasileira, conforme avalia Assis Brasil, em sua Antologia de Poetas Piauienses do Século XIX.

"Com os poemas de Minha Terra, convida-nos a cantar hinos de exaltação à terra natal", em sete momentos: Evoações; Cibele; As Estações; Aquarelas; Alma Religiosa; Era uma vez e Umbrae Amicae", ensina a professora Maria Figueiredo.



Um livro inacabado


O último livro de Lucídio não pôde ser concluído. Era História da Literatura Piauiense, que estava sendo elaborada desde 1920. Os primeiros trabalhos da obra reuniram estudos contemplando Leonardo Castelo Branco, José Coriolano, David Caldas, Luzia Amélia Queiroz Brandão e Licurgo de Paiva.

A publicação desses ensaios foi iniciada em 1921, na Revista da Academia Piauiense de Letras, sob o título Literatura Piauiense: Resumo Histórico. A doença do poeta interrompeu a pesquisa.



A fundação da Academia


Onde estava o poeta, estava a literatura. No final de 1917, em Teresina, catalisava os entusiasmos para a fundação da Academia Piauiense de Letras, evento oficializado a 30 de dezembro. Lucídio entendia que ele e seu grupo eram da vanguarda literária, contrapondo-se à velharia conservadora. Para eles, as letras puras se oporiam à política - corrupta e corruptora.



A cadeira 9 da APL


Na Academia Piauiense de Letras, Lucídio ocupou a cadeira n° 9 – que tem como patrono Alcides Freitas – e tornou-se patrono da cadeira 23. A Academia Piauiense de Letras passou a ser chamada de a “Casa de Lucídio Freitas”, num preito de saudade e reconhecimento literário ao saudoso escritor.

Abdias Neves, Celso Pinheiro, Cristino Castelo Branco, Higino Cunha, Martins Napoleão e, mais recentemente, Monsenhor Chaves e Assis Brasil – expoentes da literatura piauiense – dedicam estudos à vida e à obra do poeta.

O poeta louro de tantos versos sonoros, iluminados e ótimos, tinha um encanto pessoal irresistível: bonito, amável, simples, alegre, comunicativo, bem educado, trajando com esmero, causeur delicioso, pleno de elegância, de graça, de espírito, de finura e de distinção, parecia um ser à parte, baixando do Olimpo à terra”, descreve Cristino Castelo Branco.



Um jornalista ativo


Em Teresina, colaborou com os jornais O Cri-Cri, O Orvalho, O Piauí, O Nordeste, Jornal de Notícias, Diário do Piauí, Correio de Teresina, Litericultura, Revista da Academia Piauiense de Letras; em São Luís, escreveu no Pacotilha e no Diário do Maranhão; Em Belém, foi redator da Folha do Norte, de O Diário, Rui Barbosa, Paraoara, Estado do Pará, Diário Oficial e Guajarina, além de fundar e dirigir a revista Ephemeris, que morreu do mal do terceiro número; No Rio de Janeiro, escreveu matérias para a revista Fon-Fon e o Jornal do Comércio; Em Recife, colaborou com o Diário de Pernambuco e foi um dos redatores de A Liberdade.

Sua pena prodigiosa dissecou os mais diferentes gêneros, variando da poesia à resenha biográfica, da crítica literária à polêmica política, das reminiscências acadêmicas às críticas de costumes, sem esquecer os assuntos jurídicos e os panoramas históricos e biográficos.

"Lucídio Freitas, em sua jornada constante e continuada de escrita, abordou não séculos, mas milênios de cultura”, entusiasma-se a professora Teresinha Queiroz. Segundo ela, “sua produção intelectual, parcialmente recuperada, agrega escritos que variam do Direito Penal à polêmica política, passando também de maneira muito forte pelo problema da construção da cidadania – especialmente nos textos gerados de forma direta ou indireta pelo contexto da Primeira Guerra (1914-1918)”.



Lucídio e a política


A incursão de Lucídio Freitas pela política é um tanto atribulada. Quando ele retornou a Teresina, no início de 1913, com o título de bacharel na mão, foi nomeado pelo governador Miguel Rosa (1912-1916) delegado-geral de Polícia de Teresina e lente de História do Liceu Piauiense.

O poeta ficou apenas três meses nos cargos, dos quais pediu exoneração em função do rompimento de seu pai com o governador. Antes da formatura, foi nomeado, em 1912, pelo então governador Antonino Freire, para o cargo de promotor público de Amarante, a terra natal do governador.

Lucídio foi fervoroso cabo eleitoral de Rui Barbosa, na sua campanha à Presidência da República, porém cedo desencantou-se com a política, chegando mesmo a concluir que ela e a literatura eram incompatíveis.



O jurista


Em seus dez curtos e intensos anos de atividade profissional, na área do Direito, Lucídio dedicou-se aos estudos do Processo e do Crime. Foi promotor público de Amarante e delegado-geral de Polícia de Teresina, cargo do qual pediu exoneração no final de 1913 e no qual foi substituído pelo poeta Nogueira Tapety.



O pesadelo da doença


A tuberculose foi um fantasma que entrou cedo para a vida de Lucídio Freitas. A doença roubou-lhe irmãos e irmãs, além de amigos, até alcançá-lo de forma implacável. Em setembro de 1920, os jornais de Teresina já comunicavam ao público a enfermidade e mesmo a gravidade da moléstia, segundo Teresinha Queiroz. A casa de Clodoaldo era um entra e sai, com gente querendo saber notícias sobre a doença do poeta.

Já em Belém, ele sentia os primeiros sintomas da doença fatal, como anotou Osvaldo Orico, um de seus biógrafos citados por Teresinha Queiroz:

Falava como um príncipe ou como um mago. De vez em quando, porém, levava o lenço à boca para tossir; e naquela tosse – Santo Deus! – naquela tosse mal podia eu imaginar que lhe ia a mocidade, a vida, dando razão ao fatalismo do destino, segundo o qual os jovens são os eleitos dos deuses”.

Um dia – prossegue – tomou um vapor, dizendo-nos que ia visitar Teresina. Disse-nos adeus com o lenço, prometendo que voltaria. Enganou-nos a todos. Não foi somente para Teresina. Foi para além, muito além, e perdeu-se de nós para nunca mais voltar”.



A última alegria


Clodoaldo Freitas tentou, como pai, dar ao poeta, já muito doente, o prazer da publicação de mais um livro, Minha Terra. Era o início de 1921. O volume ficou pronto em fevereiro, poucas semanas antes do falecimento de Lucídio, que morreu em 21 de maio de 1921.

O amigo Cristino Castelo Branco, desembargador, membro da Academia e pai do jornalista Carlos Castello Branco, depôs comovidamente sobre a morte do poeta: “Assisti à sua morte, numa clara manhã de maio, que naquele tempo, 1921, ainda não era o mês das missas, mas já o era de Maria, das rosas e dos poetas”.

E se revoltou com o fato de que o poeta tenha morrido “antes dos trinta anos, de tuberculose, vomitando sangue, no jorro trágico das hemoptises”.

“Além do sonho – conta Teresinha Queiroz – Lucídio levava em si também a angústia dos caminhos, cuja variedade e incertezas tracejou em belíssima conferência”. Em 1921, já perto da morte e bem distante da alma de sol de sua infância, escrevia:

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...



Lucídio e Machado de Assis


A professora Maria Figueiredo traçou um paralelo entre Lucídio Freitas, fundador da Academia Piauiense de Letras, e Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras:

Em 1894, aos 30 anos, Machado de Assis lançava seu primeiro livro de poesia as Crisálidas; Lucídio, em 1912, com apenas 18 anos, publicou seus Alexandrinos; ao fundar a Academia Brasileira de Letras, em 1986, contava Machado de Assis com 57 anos; Lucídio, em 1917, aos 23 anos, fundou a Academia Piauiense de Letras; Machado publicou sua última obra, Memorial de Aires, em 1908, com a idade de 69 anos; é de 1921 a edição do último livro de Lucídio: Minha Terra, tendo nosso poeta 27 anos; Machado de Assis morreu aos 69 anos, vivendo, portanto, 41 anos mais que Lucídio. Ousamos afirmar que, se Lucídio tivesse vivido mais 41 anos, talvez nos tivesse legado uma produção tão rica quanto a que nos deixou Machado.

Como vimos, Machado produziu, viveu mais, publicou, imortalizou-se; Lucídio pouco viveu, pouco produziu, imortalizou-se. Ambos foram intelectuais que se preocuparam com a cultura brasileira, com o desenvolvimento das letras e com a divulgação do nome do nosso Brasil”.

Clodoaldo Freitas, bebendo na taça de fel dos desgraçados, dedicou ao filho o soneto Dor de Pai:


Eu nunca me prostrei ante os altares
Nem jamais invoquei de Deus o nome;
Vendo, entretanto, o mal que te consome,
Ergo, contrito, ao céu tristes olhares!

(...)

Na agonia mortal dessa certeza,
Contemplo a definhar, cheio de espanto,
Gênio, glória, beleza e mocidade!



A poesia de Lucídio Freitas


O incêndio


O ar queima, o vento queima, a terra queima e abrasa.
Ondas rubras de Sol batem fortes na areia...
No espaço nem sequer um leve ruflo de asa,
Passa aos beijos do Sol que fustiga e esbraseia.

Fogo de um lado e de outro e o vento o incêndio ateia,
Da planície a fazer vasto lençol de brasa;
E o fogo sobe e desce, e volta, e mais se alteia,
E abraça e beija, e morde a ossatura da casa.

Nisto um grande rumor pela terra se escuta.
Braços abertos no ar, soluçando, o Castelo,
Se desmorona, enfim, depois de estranha luta.

Velho Castelo Real! Ó sombra de outra idade!...
Lembras hoje, depois desse horrível flagelo,
As ruínas de Sol no poente da Saudade!...

(Alexandrinos, 1912)


No poema Perscrutadoramente, Lucídio traduz, premonitoriamente, toda a dor de seu sofrimento causada pela doença que o levaria à sepultura:


Perscrutadoramente


Perscrutadoramente os olhos ponho
No que fui, no que sou, no que hei de ser,
E alucinado dentro do meu sonho
Sinto a nulidade do nascer.

Minha origem componho e recomponho.
Venho do berço ao túmulo... viver
Um instante só, e após, ermo e tristonho,
Sob o ventre da terra apodrecer.

Homem - parcela humilde, humildade e obscura,
Que anda perdida e despercebida
Buscando os vermes de uma sepultura –

O que foste? O que és? para onde vais?
Esta angústia maldita da tua vida
Foi a maldita angstia dos teus Pais!


(Vida Obscura, 1917)


Do pai, de quem tanto o destino o aproximou no sofrimento, procurou seguir os passos e o exemplo:


A meu pai


Esqueço todo bem que, em minha estrada,
Prodigamente, como um Deus, semeio,
Fazendo meu o sofrimento alheio,
Amparando toda alma abandonada.

Quantas e quantas vezes tenho em meio
Da vida, dentro a noite erma e gelada,
Confortado a velhice desgraçada,
Na mornidão amiga do meu seio!

Para servir aos meus irmãos padeço
E dou-lhes a água o pão, o teto e o leito
E o beijo que consola e que bendiz...

Mas todo bem que faço logo esqueço
Para guardar apenas no meu peito,
A saudade de um bem que eu nunca fiz...


(Minha Terra, 1921)



Teresina apagou-se


Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

Eu sigo, e eu vou para a perpétua lida.
Espera-me, distante, uma outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a minha febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


(Minha Terra, 1921)



Sociedade dos Poetas Trágicos
Vida e Obra de 10 poetas piauienses que morreram jovens"
Teresina: Gráfica do Povo, 2006


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