1.1.16

De Uruguaiana à Rio Branco, de Aquidabã à Pedro II: a mudança de nome é também ressignificação das liturgias e ritos das sociabilidades, por Nilsângela Cardoso Lima



As primeiras décadas do século XX são marcadas por sensíveis transformações no espaço urbano brasileiro, através da revitalização das cidades.

No Piauí esse processo se configura pela alegação de novos hábitos e costumes relacionados ao viver em cidade. Particularmente em Teresina a onda progessista se dá por meio da criação e valorização de espaços de convivência e lazer: praças, ou passeios públicos, salas de cinema, bares, teatros, cafés, clubes etc. Ruas cada vez mais limpas e saneadas, iluminação com luz elétrica e telefone, são avanços da mesma época que também chegam. Permaneceriam ainda por muitos anos outros espaços tradicionais de sociabilidade, tendentes a ser menos valorizados, tipo adros e salões das residências da aristocracia.

Bem exemplifica essas mudanças, a reconstrução da praça Uruguaiana, depois Rio Branco, entre os anos 1909 e 1913; reconstrução que lhe confere a condição de passeio público predileto da capital; na década seguinte, esse logradouro se tornaria centro da atividade comercial local. Note-se que a valorização urbana da área dos fundos da velha matriz do Amparo em detrimento da parte da frente – o adro das festas de antes – é emblemática das transformações mentais do tempo.


Igreja de Nossa Senhora do Amparo, vista da Praça da Bandeira
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Em especial, a juventude de elite frequentava esse espaço das sete às dez da noite, quando, ouvindo o ‘sinal’ do apito da usina elétrica se recolhia aos lares. A Praça Rio Branco, ajardinada e com coreto, atrai a elite, mas também setores populares marginalizados; a segmentação é bem evidente, conforme o uso das áreas mais ao norte ou mais sul, por uns e outros.


Praça Rio Branco / fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Por estar localizada num ponto central da cidade e próximo a outros pontos de aglomeração e lazer, como por exemplo, a própria Igreja do Amparo, o Café Avenida e o Bar Carvalho, a Rio Branco caracterizava-se também como sala de espera de encontros previamente marcados, antes de dirigirem-se as pessoas aos referidos cinemas, teatros, cafés, bares e a outros locais de entretenimento da cidade.

Os anos 1930 chegam e com eles a perda de hegemonia da Rio Branco como lugar privilegiado do lazer dos teresinenses, isto em função da reforma da Praça Pedro II, antes chamada Aquidabã, em 1936. Com a reconstrução da Pedro II, e também a construção de prédios de arquitetura moderna ao redor dela, como o Cine Rex e o Cinema São Luis, além da revalorização do tradicional Teatro 4 de Setembro, torna-se ainda mais aprazível o clima da P2 para o “footing” da sociedade teresinense.

Do mesmo modo que a Praça Rio Branco oferecia um espaço propício a “namoricos” e ao desfile das moças com as últimas novidades da moda do Rio de Janeiro e dos cinemas, a Praça Pedro II se revela como o mais novo espaço para o divertimento da sociedade. O clima atrativo da praça, com seus jardins floridos e carnaubal decorativo, era ponto de encontro e desencontro de rapazes e moças, senhoras e senhores, constituindo-se na “única praça do mundo na qual jovens da época desfilavam em redor de um círculo, para deleite de seus admiradores”.


Praça Pedro II
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

As noite na Praça Pedro II decantavam uma iluminação pública, com animação de bandas da polícia e do exército, nas quintas-feiras e aos domingos, executando peças musicais. Nessa praça também eram promovidas as comemorações cívicas da cidade, além de comícios e outro agitos; palco, também, onde, em determinada época, certa intelectualidade trocava ideias e sabedorias.

Deve-se ressalta que a própria estrutura física original da praça resultava em contribuir, a exemplo da Rio Branco, para uma segregação social, quanto à sua utilização. Separada transversalmente por uma “rua”, tinha dois ambientes: a “praça de baixo”, local privilegiado para as chamadas ‘moças da sociedade’, enquanto que a “praça de cima”, também chamada de “praça das curicas”, era frequentada, em geral, por empregadas domésticas e pessoas do mesmo nível social. Era comum ouvir-se falar que na “praça de cima” as classe populares se divertiam, sendo ponto onde as moças mais pobres e soldados se encontravam.

O passei público de Teresina, também, pode ser visto como um refúgio para o público feminino que se encontrava no limite do espaço privado. O traçado requintado e atrativo das praças proporcionava um encontro de sociabilidades e de conveniências sociais. Mas é inafastável que o passeio público foi marcado por esse “apartheid” social invisível, mas muito presente dentro dos espaços de lazer e convivialidade da capital.

De outra parte, as festas e bailes eram atrativos que faziam parte do lazer teresinense, sendo realizados por ocasiões de aniversários, casamentos, viagens, vitórias políticas, dentre outras ocasiões que promovessem o encontro da “fina flor da sociedade” local. Tais festas possibilitavam que rapazes e moças demonstrassem os requintes da sua educação, bem como, consistiam em lugares elegantes, entre outras coisas, dadas as vestimentas da pessoas que os frequentavam. Os bailes eram festas tradicionais do lazer na cidade feitos em casas particulares, em decorrência da falta de locais apropriados para o divertimento na cidade.

A partir de 1920, eventos do tipo passaram a ser realizados em casa particulares e vão sendo transferidos para os clubes e salões que surgem na cidade. Pode-se destacar o Clube dos Diários, fundado em 1922, que passa a ser o local de encontro, lazer e diversão da elite teresinense, constituindo-se em local mais apropriado para os grandes bailes, também para as magnas sessões solenes da cidade, conferências e congêneres, além de récitas, concertos etc.

Voltando ao teatro e sobretudo ao cinema, como se viu, desde as primeiras décadas do século XX estão eles incorporando aos ritmos da cidade, sendo o Royal e Olímpia destacados cinemas da cidade, - ainda antes da idas e vindas da P2 e da abertura do moderno Cine Rex, inaugurado em 1939. Ambos apresentavam filmes mudos, exibidos de forma seriada. Devido a isto, as casas de espetáculo conseguiam manter uma clientela animada e constante, uma vez que as pessoas não queriam perder nenhum capítulo do filme. Entretanto, o cinema falado em Teresina é inaugurado em 12 de dezembro de 1933, com a exibição do filme americano “Doce como Mel”, no teatro 4 de Setembro. Este cinema apresentaria posteriormente filmes americanos e filmes de caubói. A chegada do cinema falado provocou mudanças no comportamento da sociedade, na medida em que as casas de cinema, até então existentes, começam a perder público para o 4 de Setembro, pois a elite e as pessoas de maiores recursos passam a assistir filmes ali.

Ressalte-se que, embora o cinema falado constituísse num dos importantes focos de entretenimento da cidade, não houve, de imediato, uma preocupação de se construir um lugar um lugar apropriado para a exibição de filmes. Os locais onde funcionavam os primeiros cinemas eram geralmente casas particulares e adaptadas. Nesse sentido, a inauguração do Cine Rex, casa de espetáculo própria e literalmente cinematográfica, dá orgulho aos teresinenses, sendo considerado “o mais bonito e moderno” que possuía a cidade.


Praça Pedro II, ao fundo Teatro 4 de Setembro (à esquerda) e Cine Rex (à direita)
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

Todavia, desde sua chegada, o escurinho do cinema foi alvo de reclamações de alguns setores da sociedade teresinense, principalmente daqueles ligados à igreja católica, por ser considerado um lugar de perdição para as moças de família. Logo, o ambiente do cinema propiciava a intensificação de flertes entre rapazes e moças. Do mesmo modo que o cinema, através de suas histórias romanescas, influenciava o imaginário do público feminino referindo-se aos relacionamentos amorosos.

Nesse contexto, a febre avassaladora do cinema, proporcionada pelo poderio dos Estados Unidos, faz com que a representação dramática teatral perca lugar para tal, não só pela concorrência, mas por falta também de quem a levasse adiante.

Nesse sentido, nos anos trinta do século XX, a arte cênica perde ainda mais espaço no lazer cultural de Teresina, quando o T4S é arrendado aos irmãos Ferreira, Alfredo e Miguel, para, como referido acima, a exploração do cinema na cidade. Tal medida criou um desestímulo maior aos amadores que demoravam a montar algum espetáculo. Além do que, o teatro em Teresina caracterizava-se como uma forma de lazer cara, dado o elevado preço dos ingressos e pela exigência do toalete. O T4S, única casa teatral da cidade, não permitia, assim, uma maior participação popular.

Uma dimensão interessante do lazer em Teresina ligado à revalorização e/ou criação desses novos espaços de sociabilidades, é o carnaval, a que se dá, então, uma nova roupagem e novas linguagens. As mudanças se deram, inclusive, na sua forma de apresentação, pois perde alguns elementos considerados ‘levianos’ para a participação do público feminino e católico, sobretudo na percepção da igreja, para quem o carnaval era “um atentado à moral e aos bons costumes, um perigo para as famílias cristãs e mesmo um causador de muitas ruínas”. Mas o carnaval se imporá desde então, ganhando a crescente participação da elite que, organizada em bailes, corsos e carros ornamentados, desfilava pela Praça Rio Branco, depois pela PedroII, e em tempo recentes, na Avenida Frei Serafim e, atualmente, com bastantes diferenciações, na Marechal Castelo Branco.

Durante a década de 1920, reitere-se, um dos elementos de muita valorização dos corsos foi o automóvel, então incorporado ao cenário urbano. Nas manifestações carnavalescas de rua participavam todas as camadas sociais que queriam se divertir. Todavia, sobreviviam as festas patrocinadas pela elite, geralmente feitas em clubes fechados ou em residências familiares, configurando-se num carnaval elegante e de acesso limitado. Eram bailes à fantasia ou máscaras, onde as pessoas se divertiam ao “som de orquestras que tocavam marchas e tangos”. Embora consideradas uma festa profana por excelência, os bailes carnavalescos, à medida que iam tomando um caráter ‘civilizado’ e familiar, facilitariam a presença das mulheres.

Uma pergunta se impõe: e o povo pobre da cidade, as classes populares como se divertiam? Embora essas formas de lazer em Teresina implicassem, em geral, no entretenimento da elite, as pessoas menos favorecidas, quando não participavam perifericamente dele, forjavam outras formas de lazer. Vale ressaltar que todas as camadas sociais foram, senão inseridas, influenciadas por esses novos símbolos do progresso e da civilização que as cidades ditas modernas ditavam.



Nilsângela Cardoso Lima
via Teresina 150 anos – 1852/2002 / Fonseca Neto (coord.)
Teresina: Gráfica e Editora Júnior, 2002


29.12.15

Menino no cais, Graça Vilhena


é uma criança sozinha
no cais vazio de barcas
vejo daqui o seu corpo
que a noite adormeceu
sem pensamentos e abraço

é um menino pequeno
sob o luar ao relento
feito uma flor no sereno


Graça Vilhena
em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

22.12.15

PASSA O TEMPO PASSATEMPO




agora andaremos na chuva.
tirando o susto e o tempo
o mesmo caminho e a luz
                        sobra-nos.

agora caminharemos rindo
da cara da vida das coisas
                         caras
o barato é o rio e a fonte
               da Pedro II

bem, agora, bem, muito bem.
dê-me um cigarro e vede



em SÁBADO ÁRIDO
Teresina: 1985

19.12.15

PROPOSTA, Chico Castro


eu quero ter uma cidade
como o sol que bate numa laranja
solitária em sua geografia
de laranja
eu quero ter uma cidade
com a mesma convicção
de quem elabora um objetivo fatal
eu quero ter uma cidade
que seja só cidade
que viva como qualquer cidade não
que morra como qualquer cidade


Chico Castro
em CAMISA ABERTA e OUTROS ASTRAIS 
Teresina: 1976

13.12.15

A CIDADE MORTA


IX


                     Um dia escavarão esta cidade
                             nas sobras do futuro
      mas não encontrarão o sorriso da garota da praia
nem o instante de felicidade que tiveram um homem e uma
                                    [mulher numa noite de intenso verão.

      Acharão talvez um slide colorido da paisagem
              mas que não dará ideia do que foi a cidade
                                         nem o seu povo
                                      microfilmado dia a dia
em congestões de tráfego, abusos de poder e falta de amor.

                É difícil que encontrem um documento válido
                       da incompreensão que gerou
                                             tantas incompreensões
mas encontrarão pedras fundamentais e pedras finais
                    e talvez vestígios de uma catástrofe de concreto

mas

              — e as catástrofes íntimas
                   e o que cada um em si morreu no cada dia,
                   o que restará?
                 
             E o que encontrarão do esforço de eternidade
             que (cada um) fizemos para não morrer?
                             E de nossa linguagem, quem terá os cantos?
       E dos nossos destinos, quem reconstituirá os sonhos?
                                          E de nossa angústia, quem verá os traços?
                                        E de nossa solidão, qual será a ruína?

Passarão pelos escavadores apenas fantasmas inapreensíveis
                    e a memória repousará incógnita
                                                     sob árvores de pedra
                                                e estilhaços de metal.

               
                                                                                         dez. 66


Álvaro Pacheco
em O SONHO DOS CAVALOS SELVAGENS (1967)

11.12.15

"As árvores da Avenida Santos Dumont"




As árvores da Avenida Santos Dumont
                dividem o céu entre sol e semáforos
Parece que a beleza esconde toda dor
                e descanso a cabeça cheia de nada
Suas folhas não ligam para o casal no bar
                nem os passageiros que decolam com medo
                em outro voo do Aeroporto Petrônio Portela
Passeio, sem pressa, respiro, o sangue circula
Minhas pernas percebem o cair da temperatura
Interessante percorrer a anatomia dos sentidos
Jamais entenderei tal alegria flutuante
                Todo limite é miragem nessa parte da cidade
Sem saber, as árvores crescem alterando
meu corpo por diferentes estados emocionais



Thiago E
poema enviado pelo autor

"As árvores da Rua Álvaro Mendes"




As árvores da Rua Álvaro Mendes
                não existem para o aprendizado dos hábitos
Na calçada quebrada em que caminho
                seus troncos engrossam, alheios às pessoas
Há profundas rachaduras nas cascas dos caules
Olhando aqui, ou tocando nelas, é possível
                conhecer suas rugas – as ruas do tempo vivido
O sol não tem ouvidos para reclamações.
Essa parte da cidade de brasa e sombra
                melhora o pensamento em modificação:
                aquele encanto claro de palavra nova
                transmitindo mais surpresas que entendimentos
Passei a ter resistência aos poluentes urbanos
e o impulso extremo de absorver tudo



Thiago E
poema enviado pelo autor

9.12.15

FESTIVAL DE MÚSICA DA CHAPADA DO CORISCO - CHAPADÃO




Em 1995, eu Aurélio Melo e Henrique Costandrade tomavamos umas cervejas em um bar restaurante localizado perto da Praça do Liceu, se não me engano Bar e Restaurante Cearense. Naquele ano existia um Centro Integrado de Arte-Ciarte/Centro, Da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, coordenado pelo ator Fábio Costa e o humorista Dirceu Andrade, este sim, em frente a Praça do Liceu. Era um Centro vivo com atividades de literatura, música, dança, teatro, artes plásticas e cinema.

Eu era diretor do Departamento de Arte da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, Aurélio era o coordenador de música e Henrique o coordenador do Caminhão da Cultural, um dos mais arrojados programas da Fundação, que era presidida por Dona Eugenia Ferraz. O Caminhão era equipado com som, luz, palco e uma equipe de seis pessoas, servindo a inúmeras associações de moradores, grupos culturais e artísticos, e às atividades da própria instituição, levando música, dança, teatro e cultura popular a diversos bairros de Teresina.

Estávamos exatamente vindo de uma atividade do Caminhão e paramos naquele bar para uma refrescada. Cerveja vai, cerveja vem surgiu a ideia de realização de um festival de música permanente para Teresina, no entanto, um festival que fosse diferente de tantos outros festivais já realizados na capital. A discussão rolou acalorada, e a cerveja, também, mais gelada.

Como diretor da Fundação comprei a ideia na hora. O festival seria realizado com uma nova dinâmica: seriam quatro eliminatórias realizadas nos bairros de Teresina, com a final no centro da cidade; O jurado seria o mesmo para as quatro eliminatórias, e o festival seria realizado com o apoio da associações de moradores e artistas dos bairros visitados. A categorias concorrentes seriam amador e profissional, com premiações distintas. Tudo acertado, precisávamos de um nome, algo impactante que aliasse identidade cultural e que fosse bom de marketing. Veio o veredicto final - Festival de Música da Chapada do Corisco e, como já estávamos chapados de cerveja, veio o subtitulo, chapadão. Assim nasceu o Festival de Música da Chapada do Corisco-Chapadão.

Para viabilização econômica do projeto contávamos com o bom transito de Henrique junto ao então secretario de finanças da Prefeitura de Teresina, Dr. Firmino Filho, por sinal, hoje prefeito da capital. Foi batata. Lançado o edital do festival a área musical de Teresina abraçou a ideia de uma forma surpreendente. Grandes músicos e compositores, cantoras e cantores piauienses participaram do Chapadão, que teve sua primeira edição em maio/junho de 1995.

Bairros como Mocambinho, Dirceu Arcoverde, Parque Piauí, Bela Vista, Piçarreira, Ininga e tantos outros receberam  o evento com festa em praça pública ou nos ginásios poliesportivos. Lembro de nomes consagrados de nossa música que participaram ou foram descobertos pelo Chapadão, como Rubinho Figueredo, Marlon Rodnei, Ostiga Junior, Paulo Utti, André de Sousa, Frank Farias; com shows nos intervalos de Gabi, Terra Francisco, Ensaio Vocal, Miriam Eduardo e tantos outros.

Passados mais de dezoito anos o Chapadão mudou de formato, foi muito modificado, mas ainda continua um grande festival e bastante significativo para a descoberta de talentos na área musical. Neste ano de 2012, eu, Aurélio e Henrique recebemos, no final de sua 18º Edição, realizada no Teatro de Arena de Teresina, uma placa comemorativa pela criação do evento, entregue pelo Presidente da Fundação, o músico e advogado Marcelo Leonardo e pela coordenadora de música, a cantora Luciana. Temos orgulho de algumas coisas na vida. Ter participado da criação do  Chapadão é uma delas.



Ací Campelo,
23 de dezembro de 2012
via blogue do autor

8.12.15

POEIRÃO | Narguilé Hidromecânico







A história desse disco começa em 2000, no Rock in Rio Café da Barra da Tijuca/RJ, na seletiva do concurso ESCALADA DO ROCK. Enganação exposta, burlamos todos as regras do tal concurso aquela noite. Simplificando: anarquisamos o negócio. Fomos cínicos e ácidos na entrevista com a TV, tocamos mais do que o tempo estipulado fazendo os caras desligarem o som do P.A. e o Bernardinho meteu um chutão na batera. E foi naquela noite que perdemos o tal concurso mas conhecemos aquela que viria ser a produtora do segundo disco do Narguilé, o POEIRÃO. Elza Cohen já havia lançado naquela época, através do projeto super demo, bandas como Planet Hemp, Jorge Cabeleira e outras algumas. O disco foi gravado no estúdio do Flávio Canecci, dos Funk Fuckers. Foi época de doideira entre as sessões de gravações em Copacabana, noitadas hardcore na zoeira no Sinuca da Lapa e farras com a gangue dos C.L.O.V.E.R. na Barra da Tijuca. Isso tudo resultou num disco pensado na sua feitura, diferente do primeiro. O conceito do disco gira em torno da relação entre o urbano e o rural sertanejo através de um ônibus de linha que levava o apelido de poeirão, que fazia rota pra Cacimba Velha, localização do sítio onde o repertório do disco foi criado e ensaiado. Fedendo a mofo e tossindo por causa dos ácaros do sótão do narguilé, faço agora um comentário faixa a faixa. Embaixo o link pra aqueles que não tem, ou perderam seu vale transporte pra essa viagem punk!


A vinheta de abertura do disco, a gravação de um telefonema a cobrar. Síntese do Narguilé naquela altura. Fazia a coisa acontecer mesmo que fosse debitado na conta do próximo!


1 - MAQUETES LOUCAS 0:08 (Fábio Crazy/Hernane Felipe)

Um rockão básico de 2 acordes com letra redundante, concreta, sem sentido...circular como é a música. Usamos um beat funk na intro e sample de Luiz Gonzaga. Muito boa de tocar ao vivo.


2 - REMÉDIO CASEIRO 3:56 (Nando Chá/Fábio Crazy/Hernane Felipe/Roberto Preá)

Uma evocação à insurreição sertaneja do cangaço, composta nas farras extremas dos CAIPORA. Pro Narguilé, tomou direção de um porradão punk em escala sertaneja e de dinâmicas e arranjo elaborado. Faz um permeio ingênuo nas brincadeiras de infância de crianças que tem o sertão e sua aridez como playground.


3 - JUMENTO BOM  7:42 (Márcio Bigli/Fábio Crazy)

Essa é um míssil. Baião sujo, de letra brutalmente ingênua, que depois vira uma metralhadora hardcore. Essa só dá pra tocar com raiva!!


4 - CROA  11:26 (Fábio Crazy)

A que foi mais longe nesse disco em termos de experimentações e outras maneiras de entender e produzir música. Um bumba meu boi de matraca sampleado sobre uma base de mpc criada pelo Dj Negralha... uma espécie de mantra de evocações de um candomblé eletrônico na coroa do rio Parnaíba.


5 -  PERSEVERANÇA DE CAATINGA 14:32 (Fábio Crazy/Dj Negralha)

Foi composta e produzida totalmente no Rio de Janeiro na época da gravação do disco. Parceria entre mim e Dj Negralha, foi resultado de experiências feitas no mpc dele. Eu fiz a letra e o Negralha sampleou a harmonia de uma gravação tosca dos CAIPORA. Entrou no disco na última hora.


6 - NOME AOS BOYS 16:32 (Fábio Crazy/Joselé Barbosa/Sandro Saldanha)

Essa música é a mais antiga de todo nosso repertório. Foi composta em 1989, ainda nos tempos do power trio punk SEM IDENTIDADE (nome fuleiro esse!). Na versão do Narguilé assumimos em seus riffs a influência RAGE AGAINST THE MACHINE. Há nela também muitos espaços pra experimentações de música nordestina.


7 - PRESENTIN 18:38 (Fábio Crazy)

Baião + hardcore. Básico, simples... Narguilé. A letra, em estrutura formal de quadras poéticas nordestinas tem um estilo Zé Limeira. Misturando farinha com mandacaru e Bruce Lee. Essa música foi uma festa em estúdio, com participações nos backing vocals de Josh S. e Daniel Hulk.


8 - MURIÇOCA  21:28 (Galvão Júnior/Fábio Crazy)

Hardcorezinho 100 por hora do tempo dos PIORES que fala de maconha. Criamos essa intro ainda em estúdio com o Flipper cantando um boizinho. A idéia era dar mais impacto quando entra o hardcore.


9 - FOLIA DE LONGE 23:00 (Hernane Felipe/Fábio Crazy)

Essa eu não sei o que rolou no estúdio. Não é eficiente como é a musica por si só. Uma metáfora através do homem que está entre o urbano e o rural. Tem referências locais na letra. Raimundo Soldado, Maria da Inglaterra, Praça da Bandeira, Quiosque do Dario e Luis do Óleo.


10- LISO CALLING (vinheta) 27:23


11 - MAQUETES LOUCAS (macaco mix) 27:57 (Maquetes Loucas Remix by Josh Satan) 

Versão eletro viajandona do Josh Satan. Neurótica, fecha o disco com outro extremento musical sem descosturar a colcha. Tem samples do Narguilé tentando derrubar um elevador de porta pantográfica num edifício em Copacabana.



link disponibilizado no blogue da banda para download:

6.12.15

A FÚRIA DO SOL




a fúria do sol
anima-se em outubro
nas folhas do ipê



Caio Negreiros
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

5.12.15

TERESINA




Foi na Chapada do Corisco à beira
Do Parnaíba, rio principal,
Que teve início a obra sobranceira
De fundação da nova capital.

Onde hoje é a Praça da Bandeira,
Saraiva, conselheiro imperial,
Chamou a nova urbe brasileira
De Teresina, um nome original.

Coelho Neto quando visitou-a,
Extasiado com o verdor, chamou-a
"Cidade Verde", carinhosamente.

E o Cineas, de boa vontade,
Compôs seu hino com a finalidade
De conservá-la viva eternamente.



Barripi
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

3.12.15

FLASHES DE TERESINA




Na Estação Ferroviária:
rostos anônimos soluçam adeuses.

Na Paissandu:
o tempo, o tempo eterno das raparigas.

Na pracinha escondida:
domésticas murmuram segredos.

No cais do Parnaíba:
a lembrança dos embarcadiços de água doce.

No Mercado Central:
o pregão vespertino dos feirantes.

À luz da lua:
dormem as flores, as flores roxas das salsas.



Halan Kardec Ferreira Silva
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

a cidade frita é um alucinógeno, Lucas Rolim


[procurando um bar na frei serafim]

o calor de 1000fps derrete a cidade em super slow motion
a liquidez dos pedestres e do dia evapora diante de pupilas detonadas

as retinas absorvem delírios litúrgicos no compor das multidões
a balburdia dos pés pavimenta a bad trip dos passantes

os pombos engolem a luz e espalham-na pelos picos das cabeças:
regurgitam quarenta e 1 graus de insolações nas epidermes secas

nos olhos, o ruminar da lisergia induzida pela sensação térmica
cria imagens psicodélicas que se perfazem na dança solar

a expansão dos ossos colapsa a estrutura das marquises
calçadas desenham o efeito do calor ao longo do corpo
e homens-camaleão deslizam pela sombra no horário de almoço

o dia ácido amplifica as alucinações dos estudantes
no torpor dos malabares, dos carros e dos mendigos
*A Cidade Frita: livreto do poeta Rodrigo M Leite
Poema enviado pelo autor

guia estético/sensível dos enredos da cidade




no tremular da palavra
se traduz a visão da

                                     tarde

o descaso desenha o som dos homens
na perturbação das poças de esgoto

a madrugada chuvosa constrói
espelhos e neles é presa a cidade
pintada em líquidos, visão e sons

o futuro especulado nas nuvens

o teste projetivo compulsório
na sombra da parada de

                                    ônibus

o homens famintos gargalhando
as últimas calorias do corpo em
resistência ao silêncio-caos do

                                    luto

e carburando seguem na tarde
soletrando as últimas réstias do dia...

                                    {
                                    no coração
                                    da praça pedro ii
                                    pulsam macramês
                                    polimórficos



Lucas Rolin
enviado pelo autor

1854, mercado central são josé




as vielas tomadas pelos negociantes
berram suas cores sujas na sombra do grande galpão

há uma inquietante majestosidade na estrutura antiga;
os olhares não pousam, mas a vida punge no abandono

o cheiro do artesanato em couro e dos peixes à venda,
eternos na mente do menino comprando banquinhos com o pai

as paredes e as colunas jogadas no esquecimento
denunciam um século e meio da memória da cidade

no silêncio de seu olhar, o menino se pergunta
quantos universos cabem lá dentro:

mercado central são josé,
o mercado velho de teresina...



Lucas Rolin
enviado pelo autor

"Deburraram"




Deburraram
nossa casa de barro
Lot(e)aram
nossa cada de carro
Un s carro



Kilito Trindade
em HOT... ...ATIVO

Teresina, 2015

2.12.15

SÃO PIAUÍ (1977) - Clodo, Climério e Clésio



Lado A

01 - 00:00 - A noite amanhã o dia (Climério)
02 - 03:31 - Cebola cortada (Petrúcio Maia/Clodo)
03 - 06:48 - Cantiga (Clodo/Clésio)
04 - 09:35 - Conflito (Petrúcio Maia/Climério)
05 - 11:22 - Folia ou pressa (Clésio/Augusto Pontes)
06 - 14:02 - Ilha azul (Clodo)

Lado B

07 - 16:26 - Zero grau (Clésio/Climério)
08 - 20:12 - Palha de arroz (Climério)
09 - 24:06 - Cada gesto (Clodo)
10 - 27:26 - Céu da boca (Clodo/Climério)
11 - 29:45 - Nudez (Clésio/Clodo)
12 - 33:25 - São Piauí (Bê/Climério)

(...)

ILHA AZUL | Clodo

quando eu saí
lá do Piauí
caboclo novo que nem vaquejava ainda
eu curti muito o Rio Parnaíba
levando toco de madeira e balsas
até que um dia eu vim parar aqui
nos olhos verdes da mineira clara
nesta cidade
esta maquete viva
feita de sonhos de um herói sem nome

um dia
quem sabe noite
de um mês qualquer
a gente grita laços fora e vai
falar da nossa vila
nossa ilha azul

(...)

PALHA DE ARROZ | Climério Ferreira

o rio beirando a rua
num arremedo de cais
o vapor de Parnarama
chegando de Palmeirais
o velho homem do porto
de olhos postos no rio
sentindo todo vazio
de sua pobreza em paz
Maria boca da noite
na Pensão Familiar
tem nos olhos de manhã
a luz clara do luar
cadê teu povo noturno
teu povo maior maria
teus operários da noite
nas oficinas do dia
ali onde habitou
a rua cheia de tédio
hoje mora outra dor
feita de casa e de prédio
já nem sei se essa rua
realmente existiu
ou se foi obra
de algum bêbado
num acesso de poesia
vendo no rio
outro sonho
mais refletido que a lua
inventou um cais tristonho
e os habitantes da rua
vendo no rio
outro sonho
mais refletido que a lua
e inventou um cais tristonho
e os habitantes da rua

(...)

SÃO PIAUÍ | Bê e Climério Ferreira

vem comigo menina
vem comigo aqui pra São Paulo
pra são pulo! – vem pra São Piauí
aqui tem um ar de Europa
um cheiro novo de África
tem operário a galope
sob o aboio da fábrica
tem boi de ferro e fumaça
na massa deitando a morte
de sorte que o centro-sul
desse estado dá no norte
no asfalto tem uma pedra
tem uma pedra no asfalto
que de repente num salto
se desfaz na boca
o beijo que se desprega
da nossa garganta louca rouca
poluída de calor
vem pra São Piauí
que a vida começa aqui
no viaduto do chão
por que não?
ou no riacho do chá.


(...)

Clodo, Climério e Clésio
LP São Piauí – RCA Victor – no. 103.0208 – 1977
Gravado no estúdio A da RCA Victor em São Paulo
Direção Artística – Osmar Zan
Coordenação artística e direção de estúdio – Ednardo
Arranjos e regência – Mário Henrique
Participações de Amelinha (vocal em “Cada gesto”) e Robertinho de Recife (guitarra e viola)

PALHA DE ARROZ




Capítulo XXXVII


[...]

Pau de Fumo ouviu toda aquela conversa do Comissário que dizia falar também pela boca do Delegado e do Chefe de Polícia. Ficou com água nos olhos e uma coisa apertando-lhe as goelas por dentro. E com vontade de perguntar como era que se deportava um brasileiro para outras terras também dentro do Brasil. O que significava aquilo? Exílio? Asilo! Banimento? Que Direito Interestadual seria aquele?! Aquilo não era nada mais nada menos do que safadeza. E por que não deportavam também Ceiça e os meninos?! (Por causa deles que roubava).

Em todo caso, ficar calado seria melhor. Bem conhecia de perto aquela polícia Civil.

— Seu Epitácio, eu quero ao menos permissão para me despedir da família.

— Que família, negro safado! Onde foi que já se viu um ladrão de sua estampa ter família?!

E os guardas riram a valer.

— (Miséria! Homo stupidus! Único animal do mundo que ri e chora. Chora infeliz! Ri, miserável! Chora das tuas desgraças! Ri das misérias dos outros!)



Capítulo XXXVIII


Lá se vai ele escoltado rumo Estação do Trem! Como estaria Ceiça àquelas horas? Os meninos... ?

O trem apitou. A mesma máquina velha, uma das mais antigas de todo o Brasil (do tempo de Mauá). A mesma que um dia levara seu amigo Parente para outras terras.

Lá se vai embora o negro Pau de Fumo! Num vagão de terceira classe. (De terceira não, que uma imundície daquelas não era classe nenhuma).

O trem apitando, mas não era o mesmo apito do dia da despedida de Parente. D modo algum nem de longe parecia com despedida de quem parte para outras terras. Parente um dia podia voltar. Ele, nunca! Era assim como se uma despedida eterna, - deste para o outro mundo. Ainda mais que o sino da viatura badalando. Como se fosse dobres de finado. Também lhe recordando os alarmes nos incêndios.

Seria que os demais planetas fossem também habitados?! Seriam tão desumanos quando aos da Terra seus habitantes? Haveria algum fundamento nas deduções de Flamarions e outros astrônomos? As fogueiras de Marte... Astronomia... Mecânica celeste...

Que saudade do colégio! Que vida aquela sua! Genoveva, Zefinha, Ceiça, os meninos... Maria Preá, 
dr. Leovigildo, a mulher dele... professor Cagliostro, Teresa Caga-no-caneco, Zefa Traíra, Chica Pote, Maria Sapatão...

Assim num momento, toda sua vida passando em seus sentidos como se uma gravação.

Pôs a cabeça a uma janela. Tudo escuro ainda. Mas sentia como se os vagões se retorcendo como um monstro pré-histórico nas curvas dos trilhos.

Que saudade dos tempos de estudante!

Seriam habitados os outros planetas? Na certa!

Noite ainda. Perto da ponte metálica do Parnaíba velho, pelejava mas não podia ouvir a cantoria dos sapos. Naturalmente que eles ainda estavam cantando, que o dia não havia ainda amanhecido. Mas o diabo do ruído do trem não deixava ninguém ouvir outra coisa. Mas sentia, perfeitamente, que àquela hora, com tudo ainda em plena escuridão, os sapos ainda estavam cantando. Cantando de fome. Fome de luz, que o dia não havia amanhecido. A luz ainda não havia chegado. E mesmo sem ouvir, mas apenas sentindo que os sapos ainda estavam cantando, a recordação dos filhos veio-lhe mais aguda do que tudo que até então sentia. É que cantiga de sapo parece com choro, especialmente com choro de menino que chora de fome. Decerto que àquela horas seus filhos estavam chorando. Ceiça também. Também eram sapos. Eles sapos pequenos, ela sapa velha. Sapos que choravam de fome. De fome, porque não havia ainda luz na terra. E também com pena do sapo velho dono da casa que partia. E este era que estava com fome de verdade. Fome de barriga. Fome de justiça. E a zoada do trem dizia direitinho:

— Tô com fome! Tô com fome! Tô com fome!



em Palha de Arroz (trechos),
Teresina: Oficina da Palavra, 2004, 4ª edição
Fotografia via blogue ÁgoraDaTaba

1.12.15

TERESINA




Outrora, em tempos que já vão longe. Teresina era uma cidade
ingênua e singela, onde só se respiravam eflúvios de amor, e a vida
corria na simplicidade mais bela!
Tempos que passam!
O cargueiro d'água, o tipo imorredouro do cargueiro d'água...

...

Os marujos, os congas, o boi.
No dia 1º de janeiro havia um alvoroço em todas as almas porque os
marujos tinham de desembarcar vindos do outro lado, na efetivação
completa de um folguedo tradicional e sabido.

...

E o boi... e o boi estardalhaçante, pirotécnico e ultra bizarro com a
atitude afamadíssima do Mané Folguista...
As novenas... Oh! e as novenas famosas e realmente sensacionais,
firot-máximo do interesse da terra, tradição gritante de uma época...

...os cajueiros, os célebres cajueiros mal-assombrados onde a
ingenuidade aldeã dizia passarem a noite abantesmas e lobisomens...
Tempos que passam... Eras que vão!...
Saudade que evoca!...



Olho de Lynce
Pseudônimo
1912
em Cadernos de Teresina
Ano XIV, nº 34, novembro de 2002

ENTREGRADES




na rua dos pássaros
um canarinho amarelo
me chamou de canto
e falou:

"eles não sabem, mas
eu sou claustrofóbico"



Lucas Rolin
enviado pelo autor

A POÉTICA DO HOMEM E OUTROS BICHOS ESQUECIDOS, por Menezes y Morais




Os olhos do poeta Hindemburgo Dobal Teixeira (1927-2008) brilhavam repletos de ternura naquela tarde, na qual ele, Cineas Santos e o autor dessas virtuais traçadas linhas, saboreávamos um cafezinho em sua casa, em Teresina (PI). De férias na cidade, morando em Brasília, sabendo que H. Dobal fora acometido pela doença de Parkinson, pedi ao CS que me levasse até sua casa.

Poeta consagrado, premiado, servidor público aposentado, cidadão do mundo que morou em Teresina, Rio de Janeiro, Brasília, Londres e Berlim, HD parecia feliz naquela tarde. Creio que isto aconteceu em 1994. Dobal indagou se eu queria café com açúcar ou adoçante. Diante a minha negativa, observou, com um sorriso sincero nos lábios:

"Você tem razão, doçura só a da vida".

CONVERSAMOS amenidades, dias depois eu voltei a Brasília, sem entretanto esquecer aquela frase ecoando na memória, que bem pode ser um verso: "doçura só a da vida".

O que mostra que Dobal não sofria da doença chamada alienação política, essa gente costuma creditar a vida as mazelas sociais e históricas que infernizam a odisseia humana, esquecendo que o verdadeiro inimigo não atende pelo nome "vida", mas pela alcunha "poder", a forma de como o "Estado" é organizado.

A vida é inocente. Como dizia Sarte, "o inferno são os outros".

SE DOBAL tivesse resistido um pouco mais, talvez sua viagem definitiva fosse prorrogada por mais tempo, pelo milagre das células-tronco, a grande esperança da revolução na medicina neste surpreendente século XXI.

H DOBAL debruçou-se sobre a existência humana, falando no "homem e outros bichos esquecidos", diz num poema. Nada escapou do seu olhar poético e crítico. Da solidão humana povoando a tarde, à solidão dos homens anônimos encharcando o dia.

Flashes da vida, retratos do cotidiano - Rio-Teresina-Brasília-Londres-Berlim - o atento olhar dobalino observou mudanças na geografia física da cidade - Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina, Os Signos e as Siglas (Brasília) - e nas paisagens humanas, produzindo uma poética onde não faltam mergulhos objetivos e subjetivos na condição humana.

A OBRA de HD dá uma sacudida dialética na cabeça e no estômago do leitor. Poeta de paisagens, tempo, gentes, lugares, dos rebanhos do tempo, do homem ou da vida simplesmente, Dobal ainda encontrou uma folguinha para criticar a poesia rimada e metrificada.

Mesmo quando escreveu ficção (Um Homem Particular), condimentou poeticamente a sua prosa, as vezes é um poema quase inteiro, embora com o final frouxo, aguado, prosaico.

O olhar atento do poeta registra mudanças na rota do tempo, o que faz de HD um cronista do tempo. A "Província" de Dobal é o mundo, mais ou menos como a aldeia de Marshall McLuan é a aldeia global.

A GLOBALIZAÇÃO do capitalismo começou no período das grandes navegações, no mercantilismo, quando o colonizador europeu transformou as populações nativas (chamadas índios) e povos africanos em mercadoria, mão-de-obra escrava.

Tudo isso consta do ideário poético de H. Dobal: os índios piauienses que foram massacrados (Acoroazes, Pimenteiras, Gueguezes, Tapuyas), ganharam um poema épico (El Matador), onde nomina um dos chefe da chacina, o tenente-coronel João do Rêgo Castelo Branco (1776-1780).

FALTOU o pistoleiro de aluguel, o assassino por encomenda de índios e africanos, o bandeirante Domingos Jorge Velho, que é nome de rua no país inteiro e de colégios, inclusive em Teresina.

DJV chefiou a expedição militar da monarquia que assassinou Zumbi dos Palmares (?-1695). Por todas os crimes que cometeu, sempre bem remunerado, DJV é considerado um "herói" nacional. Até quando?


Dobal exaltou heróis da independência - anônimos (Memorial do Jenipapo, "o sonho anônimo dos que morreram pela liberdade") e resgatou o histórico poeta piauiense Leonardo de Carvalho Castelo Branco ou Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco, que foi preso no Piauí, Maranhão e Portugal.

Em tempo: a vida do poeta e inventor Leonardo também deveria ser estudada nas escolas do ensino médio do Piauí e do país.

Não temos sequer um retrato de Leonardo. Lembro de algumas conversas que eu tive, na década de 1980, com o publicitário, letrista (tem obras-primas com o cantor e compositor Edvaldo Nascimento) e poeta Durvalino Filho, nas quais me dizia, empolgado:

"Vamos forjar um retrato do Leonardo".

A GRANDEZA ética e estética da poesia de HD parte do micro para o macro, da solidão para a alegria (me divirto lendo Serra das Confusões), da vida para a destruição da morte: a Poesia vive.

Dobal deu-se ao luxo de achar alguns dias inuteis, por ser um repórter do tempo, cuja poesia fotográfica não poupa o mal caratismo popular ou elitista.

A poética dobalina é uma radiografia da existência social, iniciando pelo começo, da Província à contemplação da paisagem, registrando universais tipos humanos.

NEM A gente simples e humilde com seus flagrantes de virtude e desvirtude escapou de suas retinas. As qualidades estéticas de HD já foram exaltadas por poetas e estudiosos da literatura. Entre eles Manuel Bandeira, Odylon Costa, filho, Álvaro Pacheco, Fábio Lucas, Cristina Maria Miranda de S. P. Correia, M. Paulo Nunes (grande contemporâneo e companheiro de Dobal), Almeida Fischer, Cineas Santos (anjo da guarda de Dobal, na fase aguda da doença de Parkison) e a professora Maria G. Figueiredo dos Reis.

LEMBRO bem daquela tarde, Cineas com o olhar fixo no poeta, eu bebendo café puro e Dobal sorrindo com seu jeito piauiense universal de ser, com sua ternura e humildade diante o mistério, se emocionando com o dia bonito pra chover.

Por que Deus não nos deu o poder de congelarmos o tempo nas retinas da tarde?



via blogue de Kernard Kruel



REMANSO, Gregório de Moraes


O Parnaíba imenso, adormecido
Pelas beiradas balsas deslizando
Balouçam leves, vão além singrando
Ao pôr do sol, do meu torrão querido

Velhas lembranças tenho revivido
O Mafuá, o Boi, os Reis, cantando
Pelo Cabral, tambores soluçando...
O canto do capote, vão, perdido!

É, tudo, sei, de outrora uma lembrança
Do meu alegre tempo de criança
Fazendo pescarias e caçadas!

Quisera ver outra vez minha terra
Andar a esmo qual pássaro que erra
Na imensidão perdida das chapadas!


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

25.11.15

TEMPO DE LEMBRAR 3 - Os Anos de Chumbo e a Verdade de Cada Um, Ací Campelo


O ano era 1976. Ainda não fazia teatro. Naquele ano eu comecei a escrever contos e a publicar em jornais de Teresina. Mesmo por que tinha ganho um concurso de contos promovido pela Fundação Cultural do Piauí, e publicado no Jornal O Dia, além de levar a bagatela de trezentos contos. Um espanto pra mim! Portanto, minha turma era o pessoal de literatura: contistas e poetas piauienses da geração mimeógrafo. Foi naquele ano que minha cabeça começou a mudar em relação a ditadura que tomou conta de nosso país.

Claro, que eu já tinha conhecimento dos desmandos e das atrocidades dos militares, mas é que as coisas chegavam tão lentas e atrasadas no Piauí, que poucos iluminados se davam ao luxo de estar em dias com os últimos acontecimentos. Ainda mais que eu convivia com o pessoal do Cepi-Centro de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares, da Fundação Projeto Piauí, criada no governo Alberto Silva, que em plena ditadura investia uma grana preta em pesquisa educacional, música coral, artes plásticas, cultura popular e teatro, coisas que eu adorava. Portanto, era um período em que a cultura piauiense parecia viver num oásis em pleno país que a polícia espancava atores, quebrava teatros, proibia músicas e prendia artistas. Por aqui quase não se tinha conhecimento que a ditadura tivesse feito seus estragos na própria classe artística piauiense.

Minha mudança de rumo veio com os infindáveis papos nos botecos de Teresina, onde poetas, contistas, jornalistas, músicos e atores varavam noites em recitais, bebedeiras, namoros e, principalmente, resistência politica, tudo regado no mais sincero respeito um pelo outro. Onde o coletivismo substituía o individualismo e a luta era pelo bem comum. Criatividade à flor da pele. Longe dos botecos de hoje onde o ego e o individualismo de alguns assassinam e enterram ideias brilhantes de outros.

Veio 1977, e com ele minha entrada no mundo do teatro, quando fiz a estreia de minha primeira peça no Theatro 4 de Setembro, símbolo e orgulho de nossa cultura, que me deu o impulso de nunca mais parar. No ano seguinte, senti as garras da ditadura rondando ao meu lado. Minha segunda peça falava sobre um coronel latifundiário que era morto por um roceiro. Fui chamado na Policia Federal, onde o censor foi direto e grosso: "Pode mudar o final da peça. Um roceiro não pode matar um coronel, ainda mais por questão de terra". Caramba. Mas sem aquele final a peça não existiria. A sentença final do censor:"Então, não apresente a peça". Putz!

A peça era feita pelos atores Lili Martins, Afonso Miguel Aguiar, Lorena Campelo e Ribamar, não falei nada para eles. Na minha cabeça era uma estupidez aquela censura e cabia a mim resolver tudo. Negociei com o censor. No final da peça, faríamos apenas a menção que o coronel iria morrer e, antes que ele caísse, a luz se apagaria. Lindo, não! O censor engoliu, e mandou dois agentes assistir ao ensaio geral. Como o diretor era eu, assim fizemos. Como raramente eles iam assistir ao espetáculo fizemos o texto do jeito que estava, e o coronel terminava estirado no palco, morto pelo roceiro. Pura transgressão! Tempos depois essa peça seria assistida por Plínio Marcos, ícone da dramaturgia brasileira, no Theatro 4 de Setembro, e quando eu fui apresentado ele me falou que seria melhor eu escrever um romance sobre aquele fato, pois assim eu contaria tudo que estava entrelinhas. Mas eu nunca escrevi romance algum.

Depois, já freguês do Departamento de Ordem da PF, pois fazia liberações de peças e eventos da Federação de Teatro Amador do Piauí, da qual era secretario, comecei a ter pavor e, ao mesmo tempo, ódio da ditadura. Duas ocasiões me marcaram muito naqueles anos. A primeira vez foi quando a Federação promovia o dia internacional do teatro. Distribuímos os convites do evento, feitos pelo querido amigo e ator Lili Martins, quando fui chamado à PF. No final do convite estava escrito uma frase: "Um beijo na bunda". Dessa vez foi de lascar. Um bafafá do caralho. O censor ficou irritado. Que era aquilo? Um beijo na bunda? Que mensagem era aquela? Vamos proibir esse evento, seu Campelo! Passei quase três horas conversando com o homem, e explicando que não tinha nada a ver, que era apenas uma saudação. Saudação com um beijo na bunda! Realmente era difícil de acreditar, mas foi tudo contornado. Mas aconteceu o pior, o Lili, irreverente que era, numa das cenas que fazia no evento em comemoração ao dia do teatro, sabendo que a PF não gostara do convite, arriou as calças e mostrou a bunda pra plateia. Risos gerais! Era o ano de 1980.

A outra vez, foi quando eu vinha do Bar Sachas, templo dos artistas de teatro, que ficava ali na Avenida José dos Santos e Silva. Do Sachas só se saia ao amanhecer. Era uma eterna festa. Não sei por que eu cismei de ir embora ainda cedo. Andei pouco fui agarrado por um troglodita e jogado dentro de um fusca. Lá dentro estavam mais dois. Começamos a rodar em Teresina, e as perguntas eram repetitivas, e os tapas no peito eram horríveis, e o queimado no pulso com baganas de cigarros era uma coisa dolorida. Perdi a noção do tempo. Não sabia por onde andávamos nem tinha a mínima noção do que queriam. Eu era apenas um rapaz querendo fazer teatro em Teresina. Ali estava a face mais escura dos anos de chumbo, vilipendiar e amedrontar. Me soltaram no centro da cidade quando o dia vinha amanhecendo. Corri para casa. O pulso queimado e ardendo, chorando de uma raiva interna e de uma impotência horrorosa. Contei pra minha família. Muitos amigos do teatro e da literatura foram à minha casa conversar comigo. Ainda andamos por alguns lugares que passei, mas eu não me lembrava de nenhum rosto. A partir dali minha convicção ainda ficou maior de que deveria continuar no meu oficio de teatro.

E assim faço até hoje. Ano em que completarei, no mês de novembro, 35 anos de teatro. Vai ser uma festa!

Ací Campelo2 de abril de 2012 via blogue do autor

TEMPO DE LEMBRAR 2 - Anos 70, A Turma e os Apelidos




Nos anos de 1970 quase todos os amigos tinham apelidos, ou codinomes, o meu era BD, e só os mais íntimos sabiam o que significava. Tinha o Fuinha, o Sargento, o Til, o Lento, o Billy, o Maca e o Jota, este era o meu melhor amigo. Alguns apelidos eram inventados por mim e o Jota e os apelidados nem precisavam saber por que ficava entre nós mesmos. Nós curtíamos pra caraba inventar os codinomes. Foi com o Jota que vivi bons anos da minha juventude, onde tudo era descoberto de forma fantástica e compartilhado nos mínimos detalhes. Aquilo que não sabíamos íamos atrás com uma curiosidade infernal. Algumas vezes nos dávamos mal, mas nunca nos arrependíamos do que tínhamos feito. Apenas partíamos para outra.

No ano de 1973 eu estudava no Colégio Helvidio Nunes, onde a farda chamava atenção pelas cores fortes, a calça caqui e a camisa de um amarelo intenso que, também, ganhou o apelido de picolé de abóbora. Eu ia sempre impecável para o colégio, desde o kichutte limpinho até a camisa super gomada. E me comportava como um verdadeiro estudante, e era mesmo, apesar dos amigos não acreditarem. Isso por que nos finais de semana meu comportamento era totalmente diferente, bebia toneladas de uísque Royal Label, que era nossa cachaça e varava as noites atrás de festinhas e de cabarés. Jota se deliciava com aquilo. Olhando para a minha cara ninguém era capaz de acreditar no que eu seria capaz de fazer. Minha reputação no Colégio era muito grande, comportamento exemplar. Coisa de ser escolhido para pelotão da parada de sete de setembro. Uma parada dura. Sete de setembro naqueles tempos não era brincadeira, era coisa de patriotismo verde amarelo ditatorial. Faltar aquilo significava castigo certo. Se bem que o castigo era ensaiar a marcha dias e dias, e ainda por cima não poder beber véspera de feriado. Mas tinha muito estudante que adorava e sentia orgulho em ser pelotão. Jota não aguentava me ver marchando. Minha reputação como estudante ginasial foi além, pois fui convidado para ser vice-presidente do grêmio escolar. Eu mesmo não entendi por que. Quem me convidou para aquilo foi um dos meus melhores amigos, esse sim, popularíssimo no Colégio, o Raimundinho Santana, para nós o Til, um cara fantástico acima do bem e do mal. Lembro de ter sido chamado na diretoria pelo professor Agnaldo Camilo que conversou comigo e confirmou minha participação na chapa do grêmio. Afinal de contas nada podia fugir ao controle da direção. Passei a ser importante. Foi muito interessante aquela experiência, que contarei mais adiante.

Jota era uma figuração, um cara muito louco, como de resto eram todos os jovens interessantes daqueles anos. Não estava nem aí para estrutura nenhuma, mas era um verdadeiro amigo, divertido e sincero. Além de beber muito, o que não era novidade, tomava anfetaminas aos quilos. Como ele era gerente de farmácia ficava fácil. "Olha, aí BD, uns optalidons." Eu recusava, por que detestava comprimidos desde pequeno quando mamãe me enchia deles para me curar de asma. Mas eu garantia suas loucuras no Colégio quando ele ia dopado por que tomava seis comprimidos de um tapa só. Ele adorava revistas em quadrinhos e disco de rock. Na sala de aula ficava viajando nos quadrinhos e, vez em quando, soltava uma gargalhada que ninguém entendia nada, só eu. Jota era galante e paquerador, e vivia me botando pra cima das meninas. E fazia isso, mesmo sabendo que eu era namorado da irmã dele. Dizia que as meninas gostavam de mim, e que ele arranjava namoradas por que era meu amigo. Mas eu não estava muito aí para as meninas, não. Achava muita dificuldade namorar, para mim era um saco aguentar um namoro. Mas a turma aproveitava, namorava pra caralho. Um dia apareceu a Aninha, transferida do turno da manhã. Aninha era bonita, sorridente e despachada. A turma se deu bem com ela. Me apaixonei por Aninha. E Jota lascou: - "Pô, BD, todo mundo já passou a mão na Aninha, cara!". E os outros quando me viram de mãos dadas com Aninha não acreditaram. Caramba, esse cara é abestado. Pois é, eu quero é ela mesmo Jota, e pronto. Achava Aninha linda, de pele cheirosa. Foi ela quem me ensinou a beijar de língua. Mas era só eu virar as costas que Aninha se agarrava em outro. Um dia à noite, quando o Colégio realizava um festival de quadrilhas Jota me pegou com Aninha, não sei por que eu já estava com a saia dela na mão. Quando sair de onde estava Jota partiu pra mim; -"Pô, BD, mas tu não faz assim com minha irmã não, faz?" Não, faço não. E não fazia mesmo. Namorei Aninha muito tempo até perdê-la de vista.

O Royal Label que bebíamos já não era o suficiente. Jota estava cada vez mais louco com suas anfetaminas. Ficávamos horas e horas ouvindo rock em sua casa: Rolling Stone, The Who, Santana, Alice Cooper e os cantores country americanos, como Willie Nelson, Jonh Cash, Cat Stevens e Bob Dylan, claro. E tome uísque e pilulas. Willie Nelson era um cantor machonheiro, segundo sua biografia, que fazíamos questão de ler, não só a dele mas de todos os outros cantores e conjuntos que nos curtíamos. Então, um dia Jota cismou em fumar maconha. "Topa, BD, fumar maconha?". Topo.

Não foi difícil encontrar a erva que naquele período tinha o apelido de baseado. No fundo já sabíamos a quem procurar, o difícil era pedir. No entanto, nem foi difícil assim. Quem nós deu o primeiro baseado foi um amigo do peito, que vivia enfurnado em seu quarto com seu violão, arrodeado de discos. Nem é preciso dizer que tinha sido ele o responsável pelo nosso gosto musical. Vivia curtindo, além daqueles conjuntos e cantores acima, The Doors, Pink Floid, Emerson, Lake e Palmer, Jimmy Hendrix, The Beatles e a voz gutural de Janis Joplin. No quanto dele tinha um retrato de Jim Morrison, o líder pirado do The Doors, que tinha morrido de overdose. Esse nosso amigo era o Maca. "Pois é, BD, é tu quem vai pedir maconha ao Maca, sacou? Tu tem mais moral". Tenho, caramba! E assim eu fui. Ganhamos dois baseados. O Maca era um pouco mais velho que nós e morava no Bairro Marques, na Vila dos Militares. Ele barbariza nas barbas do exército. Tudo normal, irmão, dizia ele. Lembro que era um dia de sábado, e depois de ouvirmos uma sessão de rock na casa do Maca fomos para a casa do Jota. Estávamos ansiosos, afinal de contas era a primeira vez que iriamos fumar maconha. Foi uma curtição ao som de Bob Dylan "Blow in the Wind", e dos Rolling Stones "Angie", sem falar dos Jackson Five, antes de Michael Jackson virar pop star. Depois fomos jogar futebol nas quadras do 25 BC. Sempre fazíamos isso. Naquele dia nada nos metia medo, e Jota bolava de rir na quadra mesmo quando levava uma bicuda no meio da canela, deixando os caras sem entender nada.

No ano de 1976, Jota se mudou com toda sua família para São Paulo. Perdi um grande amigo, mas já sabia me virar sozinho.



Ací Campelo,
em 19 de janeiro de 2012
via blogue do autor

SOBRE IDENTIDADE, CARNAVAL, PERDAS E CINZAS, por Ací Campelo



Agora que já foi decretado o fim dos desfiles das Escolas de Samba de Teresina - e que meus ouvidos cansaram de perguntas se sou a favor ou contra - posso escrever e recordar algumas lembranças e lançar algumas questões.

Sou um apaixonado pelo carnaval, combina com meu jeito tímido e extrovertido, afinal de contas é no carnaval que podemos fazer tudo aquilo que queremos, pois é naquele espaço de dias da embriaguez, da música e da alegria que todos somos iguais, ou quase. Há mais de 40 anos moro no Bairro Mafuá, pertinho da Vila Operária um dos berços do samba piauiense. Convivi desde os anos 70 com escolas e blocos carnavalescos, pó de maizena e lança-perfume. Teresina era uma festa no carnaval: River Atlético Clube, Cabos e Soldados, Jockey Clube, União Artística Piauiense, Clube Pirantinga, Classes Produtoras, Flamengo, Marques, Baixa da Égua, Palmeirinha, Frei Serafim e os desfiles das Escolas de Samba, imperdível, meu velho! Triste foi quando parou tudo nos anos 80. Teresina parecia ter escurecido sem as festas de momo, uma escuridão que desnorteou os tamborins e calou as cuícas; um amargor na goela dos puxadores de samba-enredo e uma tristeza sem fim nos corações dos compositores e dos foliões.

Veio os anos 90. As fantasias guardadas e o peito dos apaixonados pelo carnaval batendo cada vez mais forte, desistir nunca! Esperança e ritmo na cadência do samba. As forças se aglutinaram e, em 1993, aconteceu um evento denominado Reviver Carnaval, um Seminário realizado pela Fundação Cultura Monsenhor Chaves e a Secretaria de Esportes e Lazer - Semel, na Casa da Cultura de Teresina, tudo acompanhado por uma exposição de fotos, fantasias carnavalescas. Foi a partir dali os tamborins começaram a esquentar. Participei de uma mesa onde estava Marcos Peixoto, o super-produtor cultural que fazia a Micarina com grandes trios baianos, nada que impedisse nosso carnaval de existir. O seminário foi todo documentado, e ali estavam todos os presidentes de escolas de samba e pessoas apaixonadas pelo carnaval deixando suas idéias e opiniões. O carnaval tinha voltado para a alegria de todos, principalmente minha. Tenho o documento, quem quiser ler me peça uma cópia.

1994, todas as Escolas de Samba na Avenida Frei Serafim. Mauro Monteiro, um gigante, dando tudo de si como organizador. O povo de Teresina invadiu a Frei Serafim, que ficou pequena, veio Marechal Castelo Branco, brilhante ideia, mais espaço e conforto. Em 1997, um ingrediente a mais: o corso carnavalesco e o caminhão das raparigas-atrizes piauienses representando, criação da FCMC, sob a responsabilidade de Cecilia Mendes, Afonso Lima, Laria Sales, Ací Campelo, Daniel, Wellington, uma festa! No começo, dois caminhões apenas, dez anos depois o corso tomaria conta da cidade. Mas, e agora? Como ser feliz no carnaval se não vai mais existir desfiles? Como ficará o corso? Aliás, corso pra que?

O mais terrível de tudo é negar a tradição. Escolas de Samba sempre existiram em Teresina, há mais 50 anos, não é, então, uma tradição? Não é uma história? Por isso é que às vezes penso que nós somos culpados pela nossa incrível capacidade de negar a nós mesmo. Estamos sempre acabando com aquilo que construímos, com aquilo que pode sugerir nossa identidade cultural, nossas raízes, nossas heranças, então, ficamos navegando e boiando sem paradeiro, na busca de qualquer tábua de salvação, num desrespeito total à construção de nossa cidadania. No Piauí, o gosto pessoal de alguns quando se apoderam do poder paira sobre o gosto dos outros. Não gosto, não quero, não tem pra ninguém. Mesquinhez pura.

Fico comigo a lembrar do bloco do Pererê, alô Ral! Do bloco da Tijubina do Mafuá, criado por Ubirani Rocha, do qual banquei o letrista dos sambas e, por último, do Baião de Boi, do Severinos Santos, onde desfilei nos últimos três anos. E o Bosco com sua Escola de Samba da qual me homenageou, me colocando no Samba Enredo? E o príncipe do carnaval, senhor da glória Manuel Messias. Onde vamos dançar agora? E pra quem? Não irei aos bairros vê escolas de samba desgarradas fazendo coro para trios elétricos, nada contra, absolutamente. Acho que até os próprios bairros irão estranhar, afinal de contas muitos deles se dirigiam a avenida para vê as escolas, não é verdade?

Mas, vamos com calma. A identidade de um povo é construída pedra sobre pedra e, às vezes, ficam só as pedras, para renascer das cinzas matando a tirania. Que viva o carnaval!



Ací Campelo,
em 27 de julho de 2009
via blogue do autor


24.11.15

ADEUS, MINHA BELA TERESINA




Estou sendo saudosista com este artigo, com absoluta certeza e, também, com absoluto prazer. O centro de Teresina, minha bela e querida cidade, está ficando desfigurado, feio, cheio de vazios que a fazem sem vida. Semana a semana uma casa de sentido histórico vai ao chão, sem pena e sem dor. E nós ficamos mais pobres de identidade, de sentidos, procurando no pensamento ao menos uma resposta para tanta insanidade. Claro que existem milhares de respostas, mas nós não queremos escutar as respostas que inventam. A nós, amantes dessa cidade e de sua história, gostaríamos mesmo era que ela continuasse com seus casarões particulares, de onde ela começou e de onde gerou sua gente, suas histórias e nossa herança cultural.

Quando eu fui diretor de arte da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, da Prefeitura de Teresina nos anos 90, precisamente de 1993 a 2000, foi feito um levantamento completo de todas as casas, monumentos e prédios históricos da cidade. Um trabalho primoroso feito com todo rigor e dentro dos parâmetros de arquitetura e urbanismo. Lembro que o profissional contratado para o trabalho o fez, muitas vezes, durante a noite para não vazar exatamente o seu trabalho, pois serviria para catalogação e preservação histórica. Milhares de fotos foram batidas das casas, prédios e monumentos da cidade, o que gerou uma documentação guardada pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves a sete segredos. Coitados de nós. Quando a documentação foi para a Prefeitura de Teresina as casas começaram a cair de uma por uma. Longe de mim qualquer ligação, mas a coincidência foi incrível. Lembram? O centro de Teresina começou a despencar de uns dez anos para cá.

O que nos deixa tristes e impotentes diante de tanta barbárie pela ganância especulativa, é a indiferença de muitos. A gente escuta de pessoas formadoras de opinião de que Teresina é novinha em folha, portanto, não tem ainda memória histórica. Para que conservar casas velhas, prédios velhos caindo aos pedaços apenas de 150 anos? Vai ter memória histórica quando, então? Dessa forma, infelizmente, nunca. Outros, usando de uma bobice sem tamanho a taxam de cosmopolita. Cidade de passagem, onde o novo mais novo do mundo globalizado está aqui no outro dia. Somos antenados mais do que os outros. É tanto que não damos valor ao que é nosso: ao nosso cantor e compositor, ao nosso bailarino, ao nosso artista plástico, ao nosso teatro, aos nossos literatos, ao nosso futebol, ao nosso bumba-meu-boi, ao nosso folclore. Claro, estamos derrubando tudo. Queremos tudo no chão e que nada se levante, só assim podemos louvar e amar ainda mais o que é do outro. Falta a muitos a percepção de que o outro guardou, e vende caro a nós mesmo aquilo que é deles e que eles louvam e amam.

O exemplo que nos deixa de cabeça baixa está em nossa própria região.Vamos aos estados do Maranhão, onde o centro histórico está totalmente preservado e faz um bem danado você andar à noite e ver dezenas de barzinhos abertos em frente a belos prédios e casarões, onde artistas encantam e cantam seus ritmos e folguedos: O Estado de Pernambuco, com seu Recife velho fazendo um contraponto com o Recife novo: A Bahia, onde o pelourinho destila história e cultura por seus corredores pintados de cores fortes e iluminados, e o Ceará, bem aí, onde o Complexo do Dragão do Mar faz convergir em um mesmo espaço a diversidade cultural em todos os sentidos. Nós, aqui não. Somos os tais, os maiores do mundo, não precisamos de história, muito pior de identidade cultural, ainda mais de simples casarões e prédios velhos a atrapalhar o progresso! Progresso que vem em quatro rodas - e tome carros em lugar de gente. Daqui a pouco Teresina será um grande estacionamento. E nós, que gostamos tanto dessa cidade, estaremos enjaulados e condenados a viver de lembranças. Lembranças? Não, para ser melhor, de banzo. Nunca mais veremos Teresina nenhuma.



Ací Campelo,
em 27 de julho de 2009
via blogue do autor

O RIO PARNAÍBA




         Gargarejo de mortes de afogados 
e brilho de luar sobre o silêncio 
ruídos sem barulho de asas brancas 
invisíveis na esteira do mistério.

         Embarcações fantasmas com seus remos
violentando o espelho da corrente 
e a história dos antigos moradores 
que perlustraram a estrada do degredo.

         Nas margens as perguntas os inquéritos 
o tiro a interjeição e a morte cinza: 
gargalhada de álcool nas bodegas.

         A indiferença escorre como gosma 
e o rio na derrota da incerteza 
leva faunas estranhas no seu ventre.


 
Clóvis Moura
em "Argila da Memória" (1962)

CÂNTICO DOS PRANTOS, por Menezes y Morais




1 – da geografia dos rios

os rios conhecem a terra
musgos, relvas, pradarias.
ribanceirando os caminhos
ao encontro de outros rios.



desmatamentos, queimadas, esgotos
indústrias. roubo de areia
dos leitos para as caras moradias
canais de fezes, do mundo,
cercas, nada disso impede os rios



2 – o movimento dos peixes

os rios têm o seu povo
universos que se agitam
no milagre da existência
da vida de todo dia.



choram o verde que era verde
e hoje é seca, cinza, prantos.
choram os meninos travessos
que aplacam a ira dos rios.
choram os meninos e os bêbados
que morrem nas águas vadias,
nas águas da morte funda
da terra sem moradia.



3 – o tempo social dos rios

os rios choram seus mortos
nas enchentes e marés,
os rios cantam seus mortos
nas chuvas das cabeceiras.
lamento das lavadeiras
no barulho dos anzóis
nos esgotos que recebem
nas barragens que constroem.



é para os rios que convergem
as lavadeiras do Brasil.
assembléia de mães pobres
confluência da esperança.
com o sabão da miséria
i a grandeza cotidiana das mãos
ensaboam e enxagoam
a sujeira dessa vida.
vida de pobres e ricos
de dores y alegrias.



nesses tempos de miséria
os rios são o choro da terra.



Menezes y Morais
O Rio: Antologia Poética
Teresina: Edições Corisco, 1980



A CHAPADA DO CORISCO E SEUS ACLIVES




I


Teres Ina - Teresina florave
aveflor momento e movimento
enigma dos frutos e da terra
- finito instante infinito

Vens de longe moiçola grave
a começar de um tempo antigo
(Portugal nobreza brazões)
mas não tenhas sangue azul



II


Vê agora quando o sono
quando à tarde quando à noite
quando à madrugada à manhã
se eleva às ervas sangue de antanho

Vede o campo verde e sua porta
ah! quanto de luz há em ti
como tens e cresces só em sol
e brilhas no sal do teu banho

Assim, descalça e menina,
percorrer teu ventre e o colo
é-me a hóstia teu mistério
e meu sonho teu ar estranho



III


Teresina, dorme sutil menina.
Frágil/forte moiçola dorme.
Veste de vento teus ares,
esfria-te-me nesta noite enorme.
Estica-te-me os pelos soturnos
pomares e luzes disformes.

Teresina solene de amores,
imensa tranquila e sombria.
Evocas menina/moiçola
retretas bailes romarias,
jardins e bosques e flores. 
Teresina - solene colores.



em SÁBADO ÁRIDO
Teresina: 1985

O CAIS DO RIO




o cais do rio
                      é
                      dos timoneiros
                      das lavadeiras
                      dos bêbados
                      dos poetas
                      e
das putas da paissandu
(o cais do rio
se deixa possuir por todos
em suas entranhas)

no cais do rio
as putas da paissandu
(como o esperma dos homens
que as possuem a qualquer hora)
constroem seus cemitérios particulares.



Kenard Kruel
O Rio: Antologia Poética
Teresina: Edições Corisco, 1980

23.11.15

INTIMIDADE INQUIETANTE


para os adoradores do finado Nós & Elis


Um dia a flor que lamentava a perda do encanto
Secara em vida e seiva
Antes da estreia de um Outono
Que se ouvira falar

Sei do Inverno quando me sinto triste
Na frieza da alma úmida
Em veste que não protege
Bogarins despetalados

Antes do Verão esnobe e pabo
A Primavera pôs-se a consolar
A mesma flor sedenta de resgate
Com promessas de cores firmes
E cheiros renovados.

Tudo imaginação
Em minha aldeia
Não vingam as quatro estações

Só a utopia e a felicidade
Estampada no rosto de Alice
Ou talvez de Nicinha
Em tempos de carnavais.



Acilino Madeira
em Porto/Portugal, 18.09.09
via blogue do artista plástico Amaral
http://setcuia.zip.net/arch2010-02-14_2010-02-20.html