18.1.16

SOL DE MINHA TERRA




Trago n'alma o sol de minha terra
a luz maior, claridade em mim
no som do Parnaíba que se encerra
o trilhar de um caminhar sem fim

carrego, imune, a força mais pura
a saudade do amor eternal
traçada nas glórias da loucura
do meu sonho alegre e jovial

trago, enfim, a lembrança das ruas
os quintais da infância e as luas
que no Poti vivem em transe

e sufoco as tormentas cruas
que fizeram as dores nuas
da dor de ti que me confrange.



Afonso Lima
Palmas/TO, julho de 2009
em A CIDADE EM CHAMAS: poema trágico de um crime impune
Teresina: Multiservice, 2010

17.1.16

CABEÇA DE CUIA, Herculano Moraes

                                      lenda piauiense.
                                      À Profª Clóris Oliveira.

Que sina maldita
   cabeça de cuia

                     boiando no rio cojuba emergida
                     sete marias não chegam jamais,
                                                              Cabeça de Cuia,

                     e boias insano brincando com os peixes
                     os olhos nas margens do rio comparsa

Crispim foi a água
   na fonte da pia.

                     e as mãos levantadas romperam a fronte
                     e o leite materno era rubro e tingia
                     de negro, teu negro horizonte,
                                                              Cabeça de Cuia.

Que sangue assassino
   manchou tuas mãos.

                     remeiro que passa varejando meu rio
                     não toques cojuba que boia ao teu lado
                     é o filho maldito, é Crispim condenado,
                                                              Cabeça de Cuia.

Meninas tão puras com nome de santa
não chegues tão perto da cuia boiando
É Crispim que espera, é o filho maldito
é Cabeça de Cuia esperando... esperando...

                     Que sina maldita
                        cabeça de cuia


Herculano Moraes
em SECA, ENCHENTE, SOLIDÃO
Porto Alegre: Editora EMMA, 1977

PESCADOR DE MITO, Wellington Soares


O pescador já pensava em desistir, pois não fisgara nada até ali, depois de horas brincando com a paciência, quando sentiu a vara envergar de repente, sob um peso insuportável, mergulhando a cara no fundo do rio.

Como os anos de pescaria falam mais alto, resolveu cansá-lo primeiro para, em seguida, tirá-lo fora. Só aí deparou-se, para espanto dele, não com um peixe grande, como era o mais provável, mas com a figura disforme do Cabeça de Cuia, mito de sua terra natal, apresentado geralmente como temor dos filhos malcriados.

Sob protestos da mulher, que alegava tratar-se de uma lenda e não de um peixe, mandou prepará-lo no capricho, com leite de coco e muito tempero, degustando-o com enorme apetite.

Ao final, apresentou-se no museu da cidade como o homem que tinha comido o Cabeça de Cuia. Hoje as pessoas que visitam o museu observam, com certa estranheza, aquele homem rude, de sorriso aberto e inscrição no peito, e não entendem o motivo de sua alegria. 


em LINGUAGEM DOS SENTIDOS
Teresina: 1991

16.1.16

O CLUBE DO VTS, de Gylberto Mariano




Numa piscadela, o Clube do VTS parece uma daquelas espeluncas de favelas onde se vende cachaça, com tira-gosto de frito de tripa e ovo com gema enegrecida pela ação prolongada da fervura da água. Apertado, com um rústico banco de marcenaria, não possui qualquer placa indicativa. Nem mesmo da Coca-Cola.

Quem tem a sorte de entrar no mais fechado clube de Teresina, vai descobrir que se trata de um lugar aconchegante, excelente para uma conversa descontraída. Não há televisão. Gravador, só para alguns e desde que a música seja genuinamente brasileira.

Diz-se clube para evitar a ação dos penetras. Na verdade, ali é uma confraria, onde só existem dois tipos de cervejas: a gelada, no ponto, e a quente, se algum maluco desejar.

O segredo do Sr. Vicente trindade dos Santos, nascido ali do outro lado do rio Parnaíba, em Timon, conhecido pelo singelo nome de VTS, é o atendimento, literalmente, personalizado, já que conhece as manias, desejos e defeitos de sua fiel clientela, mantida ao longo de quase trinta anos. Ele não tem nenhum empregado para servir os pra lá de cinquentões: São senhores boêmios, seresteiros, amantes da legítima música brasileira. A despeito disso, é difícil, quase impossível alguém do belo sexo aparecer por lá. Parece mais um clube do bolinha.

Além do tratamento “personalizado”, razão maior de seu sucesso, o Sr. VTS, a pedido, serve um peixe, chamado de dietético, sem similar no mundo. O segredo, bem é segredo mesmo. É uma delícia. Mesmo dispondo de um fogão de quatro bocas, ele nunca faz duas peixadas ao mesmo tempo. É na fila mesmo.

Lá tem presença marcada bons “gongozeiros”, acompanhados dos violões do Bruno e do Ludimar e, às vezes, do próprio Vicente. Com licença, vou citar alguns nomes: Irací, Sobrinho, Vitorino, o próprio Ludimar, que é repórter fotográfico. Há o que têm e sabem tudo – ou quasse – de música popular brasileira, pelo acervo que possuem (discos), como o advogado Gil, com mais de três mil títulos. 

Existem clientes metódicos, como o doutor Durwagner, famoso oculista da capital. Ele chega às 18:00 horas. Toma não mais que três Antarcticas e britanicamente, às 19:00 horas, retira-se com um polido boa noite.

É assim o VTS, que fica na Rua João Cabral, nº 30 – Sul.



Gylberto Mariano
em A SAIDEIRA: De bar em bar,
Teresina: julho de 1997

O BAR DA ENCRUZILHADA, Deusdeth Nunes




Mais de trinta anos de existência. Rua 24 de Janeiro, esquina com Olavo Bilac. Maury Mauá de Queiroz. Sua maior patente foi ter sido presidente do Piauí Esporte Clube. É o ponto preferido de uma seleta freguesia cuja filosofia é ditada pelo seu mais legítimo e assíduo representante, o poeta e vendedor de imóveis Jamerson Lemos: “Lá ninguém é de ninguém e todo mundo é de todo mundo”. O Bar da Encruzilhada, nome dado pelo saudoso Eudes Pereira, tem suas regras rígidas, que são cumpridas à risca pelo “caxias” proprietário. Regra primeira: ninguém pode falar mal de ninguém que o Maury dá esporro. Regra segunda: Não aceita jogo de nenhuma espécie entre os clientes, especialmente porrinha. Diz que lá não é cassino. Regra terceira: Não serve a freguês que chega com instrumento musical, alegando que lá não é estúdio de rádio. Regra quarta: Não admite aparelhos musicais nem carros com sons tocando alto. Regra quinta: Não serve a clientes que chegam sem camisa. Diz que quem gostava de descamisado era o Collor e se deu mal.

Fiado tem, mas só para cliente-ouro, aquele que se serve, alta confiança. O limite do fiado é dado por ele. Sabe quando cada um pode pagar. Hoje o tira-gosto é a fruta da época mas já teve tempo que o próprio Maury fazia o assado. Diz que cansou. Maury distingue dois tipos de fregueses: o cotidiano e o ocasional. O ocasional é recebido com reservas, passa por um estágio de observação. Só é servido depois dos cotidianistas. Se um novato reclama do atendimento, ele esnoba, perguntando qual é o número da ficha dele e que aguarde a vez. Os diaristas podem até mudar o canal do aparelho de TV. Atualmente, o Maury já não bebe com os fregueses, mas já foi bom nisso. Hoje, dizem que em virtude de uma cirrose que o deixou alguns dias no hospital, ficou receoso de beber, embora garantam que ele bebe escondido. A cara do dono não é lá essas simpatias, mas tem vez que ele está com a macaca. Como da vez que o intelectual Rubervam Du Nascimento ligou para 222-6502 pensando que era o escritório do Jamerson Lemos, pois tinha anotado como tal. Quem atendeu o telefone foi o próprio Maury, que já estava por conta com o poeta por causa de um “prego”:

- Alô, o poeta Jamerson Lemos está aí?
- Meu amigo, aqui é do estabelecimento comercial do senhor Maury Mauá.
- Mas ele me deu este telefone dizendo que era só chamar, ele é freguês daí...
- Rapaz, freguês meu fica é na calçada!

E bateu o telefone.

Mas o poeta Jamerson não liga para as zangas do Maury e o imortalizou no seu livro-poema As Suburbanas...

Saltando de bar em bar
poisaram no Encruzilhada.
Noturnamente madrugada,
mas Maury ali está
e mete cachaça neles
e pede para fechar.



em em A SAIDEIRA: De bar em bar,
Teresina: julho de 1997

15.1.16

OBSTÁCULO EM DESATINO




Eita meu rio Poty amado
Soube cá do outro lado
Pelas ondas do Joel
Que andas desembestado
Feito jumento sem mãe

Não te cabes mais no leito
Perdeste a calma e o jeito
Põe-se tudo a devorar

Cabeça de Cuia anda apavorado
Com medo de se afogar
Na conversão dos vinténs
Parnaíba deságua de vez em ti
E não tarda

Eras isto o que querias
Na vez de uma veia louca
De artérias entupidas
Correr sem prumo em descida

Quero ver de novo tua floresta de pedras
Milenares, eu quero
Tua vadiagem na Curva São Paulo
Esquecestes de ser os dengos dos manguezais
Das encostas e das Ilhotas já perdidas

Água tua agora sim
Cabelo não há de ter
Deixastes que aterrassem as lagoas
A teu descanso
O Rogério Newton me contou

Ai meu rio Poty amado
Não mais prenuncias o cheiro dos cajus
De Fátima e dos Noivos
És um obstáculo para os shoppings da city
Agora um river out side
E a culpa é tua, só tua…



Acilino Madeira
em Portugal, 06 de maio de 2009

12.1.16

ANZOL



Moro em Teresina
jangadeando jangadeando

Moro em Teresina
à trezentos metros da praia.
Coqueiros estão ali
ao azul próximos
próximos coqueiros, vê?
Verdes carrapichos, matinhos
n'areia, serp, serp.

Moro em Teresina.
5 da manhã morde-me
a praia.
Morde-me quente ali
à trezentos metros.

Ali a praia salga-me
os pêlos, salga-me
a língua, salga-me.




em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)

TERESINA ~ SÃO LUÍS ~ TERESINA




Teresina, você reduziu de ta~
manho, virou brinquedo, ma
quete de cidade daqui das nu
vens. Daqui de cima, você
pequenina passa e some dimi
nuta. Parnaíba~rio: risco
lírico no papel. Nossa Senho
ra das Dores, do Amparo, su
as espadas suas torres, espa
dam nossas bundas no céu. Te
resina limpa dominga azulada
verde mínima, daqui pego~te.


Tirirical da Cidade Antiga i
luminada de musgo e sol. Ao
contrário de Teresina, dila
tas na lupa da chegada. São
Luís, à medida que te sinto,
sinto pulsar forte tuas ve
ias; no ar te impero, te go
verno, frágil Ilha, no ar te
humilho. Ah velha Ilha! Doce
ilha de sal! Onde minha for
ça no teu chão? Miniatura on
de o gigante aéreo agora to
lo algemado transeunte? I
lha, meu passado te palmilha
espanto e encanto ~ brilhas
francesa menna, brilhas e
brilha meu amor nas tuas á
                                      guas



Jamerson Lemos
em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)

AS SUBURBANAS




Passeia no Subúrbio
meu Ócio. Dominga
paisagem. Distúrbio,
quitanda/pinga.
   Morre eletrocutado
operário na Ininga.


Segue o seu passeio o Ócio
tranquilo em sua ociedade.
Vê sapateiro com bócio,
casas de "caridade",
seguem Cachorra e Ócio
nos Subúrbios da Cidade.


Meu Ócio em cio-Cachorra
passeia a pé.
anda que nem a porra
no Itararé.
vê o velho povo
e a zorra.


Passa nos Três Andares
meu doce Ócio, meu bem,
e ali não há cismares ~
se conversa terra/mares,
a loucura dos Palmares,
a influência dos teares,
a via cega dos ares ~
cousas que nada têm.


Na Suburbana Redenção
passam o Ócio e a Cachorra ~
noturna caravana (Lei Arras)
pague-se de todo o coração
ao poeta~corretor a comissão ~
diz a cachorra e desamarra
o malote das costas e dá a mão
digo, a pata, ao Poeta e sarra
papo tantos de ilhas, penínsulas,
                        araras.
Tomam cervejas, canas, nessa rota,
   o Poeta se lembra que tem gota,
por fim, enfim, foi boa a farra.


Danado, corre e se persegue
como cachorro atrás do rabo.
Segue na frente e se segue ~
   é pouco de Deus e diabo.
Diz ter um livro no prelo,
   desliza liso em quiabo,
ignorante, doido e brabo,
passa no Monte Castelo.


Chega no Promorar
depois de passar no Saci
e ali não quis ficar,
conversa daqui,
conversa de lá,
come biscoito Pilar,
laranja Cliper
e a Cliper já não há,
entretanto, cabreiro, em pé,
toma café.


Pensa também Fratelli~vita
indo ao Parque Piauí,
(Fratelli~Vita não há.
O que é Fratelli~Vita?) ~
A Cachorra lhe pergunta.
Toma um gole de birita
Pernambuco Autoviária
Lhe surge à alma precária,
se lembra do Bongí
                          Camaragi
                                   be
                           Capibari
                                   be
                              Beber
                                  ibe


Saltando de bar em bar
poisaram no Encruzilhada.
Noturnamente madrugada,
mas Maury ali está
e mete cachaça neles
e pede para fechar.
O Ócio começa a chorar,
lembra do seu bom papá
da sua boa mamã,
também lembra da babá,
tem saudades da titia,
promete voltar um dia,
se piram pro Mafuá.


Descem no Mafuá
e voam para o Marquês
(direito de ir e vir.)
O Ócio doce, cortês,
declama os versos de Inês,
filosofa do porvir.
Pula o Ócio, pula pula
de alegria, cachaça, imbu,
se transforma numa mula,
(siriguela, tanja, caju,)
ali o bom pulula.
Pílula no Povo!
                      Pílula!


Vão à casa do Jair,
a Cachorra, já sem prumo,
resolveu tomar seu rumo
e dali se despedir.
Ócio sozinho se comove,
toma vat 69,
        tira gosto com couve,
delicia-se com Beethoven,
        tratado tal como Sir,
        pede para sair.


Depois de tanto trabalho,
Ócio sai do Itaperu,
Lembrando Caruaru,
que ali tomou Pitu,
e passa pelas "Malvinas",
vê um carro da Eturb,
(adeus, adeus, Primavera!)
devagar passa da ponte,
Nós e Elis lá defronte,
bebe um gim com vermouth
e chega ao Jóquei Clube.


Pois, bom, dali pra frente
mais nada o menino viu.
Não viu nem um navio
e ficou a ver navio.
(Menino de alma assanhada!)
Mas ali de tudo havia
e isto o menino via.
(Avia, rapaz, avia!),
uma via é uma via!
~ Ali não havia NADA.




em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)

A CIDADE PERDIDA, Álvaro Pacheco




Sobrevivem alguns terraços
mas não as madrugadas
e nem as melodias dos boleros.

Conversam os fantasmas
com medo de lembrarem
os instrumentos do edifício
da vida que veio depois.

Os pórticos
à luz do dia e os terraços
ao entardecer informam:

mudaram-se



Álvaro Pacheco
Teresina, agosto de 1986
em O SONHO DOS CAVALOS SELVAGENS (1967)

TERESINA VISTA DA COROA DO RIO PARNAÍBA, Chico Castro


da coroa do parnaíba
vejo teresina se mexer
indiferente flor na ponta de um fuzil
com todas as suas dores e seus apitos
vejo teresina se mexer
da coroa do parnaíba
depositário de tensões da semana:
peladas, barracas, flertes, putas
e da polícia que impede
os bêbados morrerem mais cedo
como se a vida que teresina
face a face impõe
fosse vida, fosse via
de coroa do parnaíba
vejo teresina se mexer
sem nenhum devir.


Chico Castro
em CAMISA ABERTA e OUTROS ASTRAIS 
Teresina: 1976

ELZANO SÁ NO DIA-RIO-I, Chico Castro


dia correr de cavalos
a certeza de não mais voltar
dia-rio correr como o rio
matar como o rio
no dia-rio, cedo, a manhã aflora, no dia-rio
ser maior que a fantasia
ser maior que o relógio tic-tac
frio dia-rio
dia-rio a certeza da sorte má
no dobrar de uma esquina
em qualquer rua de teresina


Chico Castro
em CAMISA ABERTA e OUTROS ASTRAIS 
Teresina: 1976

MOTIVO IGNORADO



João Severino da Silva, brasileiro, casado com Dona Justina (em 10 anos, 10 filhos), biscateiro e fazedor de ponto no Troca-Troca do Jorge melo, acordou pensativo. "Seu Gosto na Berlinda é um programa feito pelo próprio ouvinte. E atendendo à solicitação do jovem Irismar Noronha, do Parque Piauí, ouviremos com Genival Santos, Eu te peguei no Flaga." Justina aumentou o volume. João na mesa, comida pouca e a mulher cantando os sucessos de seu gosto... era agosto de 78. Tempo quente. João nasceu sob o signo de Peixes e o horóscopo garantia-lhe um bom dia para negócios; possibilidade de melhora no emprego; surpresas agradáveis, além de, naquela sexta-feira, ser dia propício para acertar na Loteria.

Um locutor se esgoelava enaltecendo a construção de um ginásio. Justina fazia o grolado pros meninos. João era pisoteado no ônibus. O ginásio tinha capacidade para 10 mil. João deixou com Justina Cr$ 10,00 "pra fazer as compras". O locutor enaltecia o cartolão. Justina repartia o grolado. João descia bisonho no terminal. evitou o burburinho e aspirou a catinga que emanava do Parnaíba e adjacências. Mais adjacências. Desde há muito João ficara incrédulo. A vida tava cada vez mais difícil. Caminhou lentamente e passou, sem ligar, por várias mãos estendidas em sua direção. Se repartisse o trocado ficaria sem o do ônibus. Não repartiu. O alto falante do terminal convidava o povo para grande acontecimento.

João atravessou a avenida maranhão pensando no filho menor acometido de coqueluche. o alto falante conclamava. Justina economizava. João chegava ao Troca-Troca.

- Tudo bem, joão? (perguntou Olimpo, barbeiro do Troca-troca desde o início - amigo de todos).
- Tudo... (respondeu João escondendo o jogo).

Chico Soldado, o maior trocador do local, aproximou-se alegre, após ter lucrado Cr$ 1.500,00 ao trocar um televisor Colorado preto e branco, por uma bicicleta monark (com documento e tudo) e ainda dois relógios ORIENT, com dois caboclos do ALTO DO BODE, que queriam ver o enterro do Papa pela televisão.

- João, rapaz, desta vez eu lavei a égua. Vê aí, rapas, novinhas! Aquele televisor tá só o bocal. Só vai dar pra racha deles - comentou Chico e saiu alegre. João não tava legal. pensava em casa.

O horóscopo previa um dia propício para negócios. João era pisciano.

- Quer comprar, João? É 38, Taurus, trazido da Zona Franca. (Chico Soldado falava baixinho pro policial fardado não ouvir)... E então, rapaz, tu me dá Cr$ 2.700,00, agora, e o restante amanhã, certo?

- Tudo amanhã... pago tudo amanhã - balbuciou joão pensativo, misterioso.
- Feito. Falou bonito. Amanhã às 8 pr'eu poder fazer outros negócios com o dinheiro. Negócio fechado. Taí um bom negócio pra você, homem. Revólver pra tirar de aperreio é este aí, mano. Não falha mesmo!



INSTITUTO MÉDICO LEGAL
= Necrópsia =

                                   Nome: João Severino da Silva.
                                   Profissão: ?
                                   End.: Embrião do Bela Vista.
                                   Dia: 04/08/1978. - Sexta-feira.
                                   Causa-Mortis: Suicídio por meio de disparo de revólver,
                                                           marca Taurus, calibre 38, cuja bala se encontra 
                                                           alojada na caixa craniana, acima do ouvido direito.
                                   
                                   Motivo: I g n o r a d o

_____________________________________
Dr. Custo de Vida Inflação da Silva
- Criminalista do I.M.L. -



Venâncio do Parque
em VIA CRUCIS - Verso e Prosa

ABERTURAS




As valas abertas na Miguel Rosa
  sacodem as vísceras do trafegantes.
    Abriram as tumbas,
      Abriram o Congresso
        e o Mengo invicto
          abriu a contagem.
            O último bêbado
              abriu o compasso
                e em pleno asfalto
                  dançou e dormiu
                      "Atenção para o comercial:
                        As inscrições da COPEVE
                          já se encontram abertas.
                            Abrindo esperanças,
                              vendendo ilusões".
                                  O Mestre Dezinho
                                    ingênuo e pacato
                                      abriu o cacete
                                        disse cobras e lagartos
                                          A um certo pintor da elite.

É tempo de ABRIR
  é tempo de vir,
    - de ABRIR e de VIR -
      de abrir o passado
        trazer os cassados
          para nossa nação.
            Em frente ao prostíbulo
              uma puta otimista,
                sorria e cantava
                 de pernas pro ar.
                    E nós transeuntes,
                      ficamos a cismar:
                        Será que é esta
                          a tal ABERTURA do seu Figueiredo?



Venâncio do Parque
em VIA CRUCIS - Verso e Prosa

1.1.16

De Uruguaiana à Rio Branco, de Aquidabã à Pedro II: a mudança de nome é também ressignificação das liturgias e ritos das sociabilidades, por Nilsângela Cardoso Lima



As primeiras décadas do século XX são marcadas por sensíveis transformações no espaço urbano brasileiro, através da revitalização das cidades.

No Piauí esse processo se configura pela alegação de novos hábitos e costumes relacionados ao viver em cidade. Particularmente em Teresina a onda progessista se dá por meio da criação e valorização de espaços de convivência e lazer: praças, ou passeios públicos, salas de cinema, bares, teatros, cafés, clubes etc. Ruas cada vez mais limpas e saneadas, iluminação com luz elétrica e telefone, são avanços da mesma época que também chegam. Permaneceriam ainda por muitos anos outros espaços tradicionais de sociabilidade, tendentes a ser menos valorizados, tipo adros e salões das residências da aristocracia.

Bem exemplifica essas mudanças, a reconstrução da praça Uruguaiana, depois Rio Branco, entre os anos 1909 e 1913; reconstrução que lhe confere a condição de passeio público predileto da capital; na década seguinte, esse logradouro se tornaria centro da atividade comercial local. Note-se que a valorização urbana da área dos fundos da velha matriz do Amparo em detrimento da parte da frente – o adro das festas de antes – é emblemática das transformações mentais do tempo.


Igreja de Nossa Senhora do Amparo, vista da Praça da Bandeira
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Em especial, a juventude de elite frequentava esse espaço das sete às dez da noite, quando, ouvindo o ‘sinal’ do apito da usina elétrica se recolhia aos lares. A Praça Rio Branco, ajardinada e com coreto, atrai a elite, mas também setores populares marginalizados; a segmentação é bem evidente, conforme o uso das áreas mais ao norte ou mais sul, por uns e outros.


Praça Rio Branco / fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Por estar localizada num ponto central da cidade e próximo a outros pontos de aglomeração e lazer, como por exemplo, a própria Igreja do Amparo, o Café Avenida e o Bar Carvalho, a Rio Branco caracterizava-se também como sala de espera de encontros previamente marcados, antes de dirigirem-se as pessoas aos referidos cinemas, teatros, cafés, bares e a outros locais de entretenimento da cidade.

Os anos 1930 chegam e com eles a perda de hegemonia da Rio Branco como lugar privilegiado do lazer dos teresinenses, isto em função da reforma da Praça Pedro II, antes chamada Aquidabã, em 1936. Com a reconstrução da Pedro II, e também a construção de prédios de arquitetura moderna ao redor dela, como o Cine Rex e o Cinema São Luis, além da revalorização do tradicional Teatro 4 de Setembro, torna-se ainda mais aprazível o clima da P2 para o “footing” da sociedade teresinense.

Do mesmo modo que a Praça Rio Branco oferecia um espaço propício a “namoricos” e ao desfile das moças com as últimas novidades da moda do Rio de Janeiro e dos cinemas, a Praça Pedro II se revela como o mais novo espaço para o divertimento da sociedade. O clima atrativo da praça, com seus jardins floridos e carnaubal decorativo, era ponto de encontro e desencontro de rapazes e moças, senhoras e senhores, constituindo-se na “única praça do mundo na qual jovens da época desfilavam em redor de um círculo, para deleite de seus admiradores”.


Praça Pedro II
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

As noite na Praça Pedro II decantavam uma iluminação pública, com animação de bandas da polícia e do exército, nas quintas-feiras e aos domingos, executando peças musicais. Nessa praça também eram promovidas as comemorações cívicas da cidade, além de comícios e outro agitos; palco, também, onde, em determinada época, certa intelectualidade trocava ideias e sabedorias.

Deve-se ressalta que a própria estrutura física original da praça resultava em contribuir, a exemplo da Rio Branco, para uma segregação social, quanto à sua utilização. Separada transversalmente por uma “rua”, tinha dois ambientes: a “praça de baixo”, local privilegiado para as chamadas ‘moças da sociedade’, enquanto que a “praça de cima”, também chamada de “praça das curicas”, era frequentada, em geral, por empregadas domésticas e pessoas do mesmo nível social. Era comum ouvir-se falar que na “praça de cima” as classe populares se divertiam, sendo ponto onde as moças mais pobres e soldados se encontravam.

O passei público de Teresina, também, pode ser visto como um refúgio para o público feminino que se encontrava no limite do espaço privado. O traçado requintado e atrativo das praças proporcionava um encontro de sociabilidades e de conveniências sociais. Mas é inafastável que o passeio público foi marcado por esse “apartheid” social invisível, mas muito presente dentro dos espaços de lazer e convivialidade da capital.

De outra parte, as festas e bailes eram atrativos que faziam parte do lazer teresinense, sendo realizados por ocasiões de aniversários, casamentos, viagens, vitórias políticas, dentre outras ocasiões que promovessem o encontro da “fina flor da sociedade” local. Tais festas possibilitavam que rapazes e moças demonstrassem os requintes da sua educação, bem como, consistiam em lugares elegantes, entre outras coisas, dadas as vestimentas da pessoas que os frequentavam. Os bailes eram festas tradicionais do lazer na cidade feitos em casas particulares, em decorrência da falta de locais apropriados para o divertimento na cidade.

A partir de 1920, eventos do tipo passaram a ser realizados em casa particulares e vão sendo transferidos para os clubes e salões que surgem na cidade. Pode-se destacar o Clube dos Diários, fundado em 1922, que passa a ser o local de encontro, lazer e diversão da elite teresinense, constituindo-se em local mais apropriado para os grandes bailes, também para as magnas sessões solenes da cidade, conferências e congêneres, além de récitas, concertos etc.

Voltando ao teatro e sobretudo ao cinema, como se viu, desde as primeiras décadas do século XX estão eles incorporando aos ritmos da cidade, sendo o Royal e Olímpia destacados cinemas da cidade, - ainda antes da idas e vindas da P2 e da abertura do moderno Cine Rex, inaugurado em 1939. Ambos apresentavam filmes mudos, exibidos de forma seriada. Devido a isto, as casas de espetáculo conseguiam manter uma clientela animada e constante, uma vez que as pessoas não queriam perder nenhum capítulo do filme. Entretanto, o cinema falado em Teresina é inaugurado em 12 de dezembro de 1933, com a exibição do filme americano “Doce como Mel”, no teatro 4 de Setembro. Este cinema apresentaria posteriormente filmes americanos e filmes de caubói. A chegada do cinema falado provocou mudanças no comportamento da sociedade, na medida em que as casas de cinema, até então existentes, começam a perder público para o 4 de Setembro, pois a elite e as pessoas de maiores recursos passam a assistir filmes ali.

Ressalte-se que, embora o cinema falado constituísse num dos importantes focos de entretenimento da cidade, não houve, de imediato, uma preocupação de se construir um lugar um lugar apropriado para a exibição de filmes. Os locais onde funcionavam os primeiros cinemas eram geralmente casas particulares e adaptadas. Nesse sentido, a inauguração do Cine Rex, casa de espetáculo própria e literalmente cinematográfica, dá orgulho aos teresinenses, sendo considerado “o mais bonito e moderno” que possuía a cidade.


Praça Pedro II, ao fundo Teatro 4 de Setembro (à esquerda) e Cine Rex (à direita)
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

Todavia, desde sua chegada, o escurinho do cinema foi alvo de reclamações de alguns setores da sociedade teresinense, principalmente daqueles ligados à igreja católica, por ser considerado um lugar de perdição para as moças de família. Logo, o ambiente do cinema propiciava a intensificação de flertes entre rapazes e moças. Do mesmo modo que o cinema, através de suas histórias romanescas, influenciava o imaginário do público feminino referindo-se aos relacionamentos amorosos.

Nesse contexto, a febre avassaladora do cinema, proporcionada pelo poderio dos Estados Unidos, faz com que a representação dramática teatral perca lugar para tal, não só pela concorrência, mas por falta também de quem a levasse adiante.

Nesse sentido, nos anos trinta do século XX, a arte cênica perde ainda mais espaço no lazer cultural de Teresina, quando o T4S é arrendado aos irmãos Ferreira, Alfredo e Miguel, para, como referido acima, a exploração do cinema na cidade. Tal medida criou um desestímulo maior aos amadores que demoravam a montar algum espetáculo. Além do que, o teatro em Teresina caracterizava-se como uma forma de lazer cara, dado o elevado preço dos ingressos e pela exigência do toalete. O T4S, única casa teatral da cidade, não permitia, assim, uma maior participação popular.

Uma dimensão interessante do lazer em Teresina ligado à revalorização e/ou criação desses novos espaços de sociabilidades, é o carnaval, a que se dá, então, uma nova roupagem e novas linguagens. As mudanças se deram, inclusive, na sua forma de apresentação, pois perde alguns elementos considerados ‘levianos’ para a participação do público feminino e católico, sobretudo na percepção da igreja, para quem o carnaval era “um atentado à moral e aos bons costumes, um perigo para as famílias cristãs e mesmo um causador de muitas ruínas”. Mas o carnaval se imporá desde então, ganhando a crescente participação da elite que, organizada em bailes, corsos e carros ornamentados, desfilava pela Praça Rio Branco, depois pela PedroII, e em tempo recentes, na Avenida Frei Serafim e, atualmente, com bastantes diferenciações, na Marechal Castelo Branco.

Durante a década de 1920, reitere-se, um dos elementos de muita valorização dos corsos foi o automóvel, então incorporado ao cenário urbano. Nas manifestações carnavalescas de rua participavam todas as camadas sociais que queriam se divertir. Todavia, sobreviviam as festas patrocinadas pela elite, geralmente feitas em clubes fechados ou em residências familiares, configurando-se num carnaval elegante e de acesso limitado. Eram bailes à fantasia ou máscaras, onde as pessoas se divertiam ao “som de orquestras que tocavam marchas e tangos”. Embora consideradas uma festa profana por excelência, os bailes carnavalescos, à medida que iam tomando um caráter ‘civilizado’ e familiar, facilitariam a presença das mulheres.

Uma pergunta se impõe: e o povo pobre da cidade, as classes populares como se divertiam? Embora essas formas de lazer em Teresina implicassem, em geral, no entretenimento da elite, as pessoas menos favorecidas, quando não participavam perifericamente dele, forjavam outras formas de lazer. Vale ressaltar que todas as camadas sociais foram, senão inseridas, influenciadas por esses novos símbolos do progresso e da civilização que as cidades ditas modernas ditavam.



Nilsângela Cardoso Lima
via Teresina 150 anos – 1852/2002 / Fonseca Neto (coord.)
Teresina: Gráfica e Editora Júnior, 2002