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2.11.11

EVOCAÇÕES, Lucídio Freitas


IV


Têm as águas, aqui, estrondosos e estampidos,
Gritos de dor e gritos de agonia,
O mar, quer seja noite ou seja dia,
Fala somente,
Desumanamente,
A linguagem sombria dos gemidos.

O mar feio, disforme,
Simbolizando o mal, o ódio, a vaidade,
Bem se parece
Com a alma sangrenta e informe
E incalma
Desta grande Cidade,
Que desconhece
O amor - rebento original da alma...

O mar me aterroriza
Com seus rancores e ais incompreendidos
Vendo-o, suponho que ele sintetiza
O pranto amargo dos desiludidos,
Os gestos infernais dos oprimidos
Que a sede e fome morrem sobre a terra,
Porque o mar, no seu bojo ermo e profundo,
Encerra
Todos os sofrimentos deste mundo...
Causam-me horror e medo o barulho do mar.

Quando lhe escuto os uivos,
Levantam-se a tremer os meus cabelos ruivos,
Na alma sinto a correr um frio de gelar...

E ainda diz-me o destino, hediondo, a blasfemar,
Que eu tenho de morrer de um naufrágio no mar...

A Minha Terra... Uns doces movimentos,
Preguiçosos, suaves, sonolentos,
Têm as águas da terra em que nasci...
Jamais as vi
Rebentar em furor indômito de guerra,
Em desesperos e estertores...
As águas mansas lá da minha Terra
Só nos falam de pássaros e flores...

O Parnaíba, ao pôr do sol, encanta
A alma e o olhar.
Ele, claro, a descer, divinamente canta,
Rendilhado de esplêndida beleza,
Levando à flor da correnteza,
A boiar; a boiar.
Ramos de flores de reais matizes,
A epopeia de todos os felizes,
O almo esplendor de nossa Natureza...

Desce, e com o olhar o acompanhamos.
Desce, circula se envolvendo aos ramos
E ao nosso olhar se perde...

E, que saudade sente, e que saudades
Leva da noiva que é a Cidade Verde
- A mais linda de todas as cidade...


Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

16.10.13

"meu silêncio é planície morta"




meu silêncio é planície morta
do verde grandes lenços de linho
balançam a relva e assopram gemidos mudos
silvo de violino / aguilhão quando descansa

meu silêncio é a beira do poty
margens com-pressas
sussurrando loucuras / bandeirinhas vegetais
remando contra o re-mar

meu silêncio lençol horizontal
estendido no parnaíba
grande fala de poder falar e não precisar mais



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

12.1.16

MOTIVO IGNORADO



João Severino da Silva, brasileiro, casado com Dona Justina (em 10 anos, 10 filhos), biscateiro e fazedor de ponto no Troca-Troca do Jorge melo, acordou pensativo. "Seu Gosto na Berlinda é um programa feito pelo próprio ouvinte. E atendendo à solicitação do jovem Irismar Noronha, do Parque Piauí, ouviremos com Genival Santos, Eu te peguei no Flaga." Justina aumentou o volume. João na mesa, comida pouca e a mulher cantando os sucessos de seu gosto... era agosto de 78. Tempo quente. João nasceu sob o signo de Peixes e o horóscopo garantia-lhe um bom dia para negócios; possibilidade de melhora no emprego; surpresas agradáveis, além de, naquela sexta-feira, ser dia propício para acertar na Loteria.

Um locutor se esgoelava enaltecendo a construção de um ginásio. Justina fazia o grolado pros meninos. João era pisoteado no ônibus. O ginásio tinha capacidade para 10 mil. João deixou com Justina Cr$ 10,00 "pra fazer as compras". O locutor enaltecia o cartolão. Justina repartia o grolado. João descia bisonho no terminal. evitou o burburinho e aspirou a catinga que emanava do Parnaíba e adjacências. Mais adjacências. Desde há muito João ficara incrédulo. A vida tava cada vez mais difícil. Caminhou lentamente e passou, sem ligar, por várias mãos estendidas em sua direção. Se repartisse o trocado ficaria sem o do ônibus. Não repartiu. O alto falante do terminal convidava o povo para grande acontecimento.

João atravessou a avenida maranhão pensando no filho menor acometido de coqueluche. o alto falante conclamava. Justina economizava. João chegava ao Troca-Troca.

- Tudo bem, joão? (perguntou Olimpo, barbeiro do Troca-troca desde o início - amigo de todos).
- Tudo... (respondeu João escondendo o jogo).

Chico Soldado, o maior trocador do local, aproximou-se alegre, após ter lucrado Cr$ 1.500,00 ao trocar um televisor Colorado preto e branco, por uma bicicleta monark (com documento e tudo) e ainda dois relógios ORIENT, com dois caboclos do ALTO DO BODE, que queriam ver o enterro do Papa pela televisão.

- João, rapaz, desta vez eu lavei a égua. Vê aí, rapas, novinhas! Aquele televisor tá só o bocal. Só vai dar pra racha deles - comentou Chico e saiu alegre. João não tava legal. pensava em casa.

O horóscopo previa um dia propício para negócios. João era pisciano.

- Quer comprar, João? É 38, Taurus, trazido da Zona Franca. (Chico Soldado falava baixinho pro policial fardado não ouvir)... E então, rapaz, tu me dá Cr$ 2.700,00, agora, e o restante amanhã, certo?

- Tudo amanhã... pago tudo amanhã - balbuciou joão pensativo, misterioso.
- Feito. Falou bonito. Amanhã às 8 pr'eu poder fazer outros negócios com o dinheiro. Negócio fechado. Taí um bom negócio pra você, homem. Revólver pra tirar de aperreio é este aí, mano. Não falha mesmo!



INSTITUTO MÉDICO LEGAL
= Necrópsia =

                                   Nome: João Severino da Silva.
                                   Profissão: ?
                                   End.: Embrião do Bela Vista.
                                   Dia: 04/08/1978. - Sexta-feira.
                                   Causa-Mortis: Suicídio por meio de disparo de revólver,
                                                           marca Taurus, calibre 38, cuja bala se encontra 
                                                           alojada na caixa craniana, acima do ouvido direito.
                                   
                                   Motivo: I g n o r a d o

_____________________________________
Dr. Custo de Vida Inflação da Silva
- Criminalista do I.M.L. -



Venâncio do Parque
em VIA CRUCIS - Verso e Prosa

21.3.20

Geraldo Brito e a história da música no Piauí: entrevista, por Laís Lustosa


"O #Abraçaço chega em Teresina, Piauí.
Na foto, com o poeta Geraldo Brito em Teresina, em 1979"
Fonte: Caetano Veloso via Facebook

Geraldo Brito é uma pessoa de múltiplos talentos: violinista, guitarrista e arranjador desde a década de 1970. Ele fez a primeira versão de Go Back, de Torquato Neto e traz muitas influências de jazz e blues. É professor de violão e guitarra da Escola de Música de Teresina desde 1984.

O senhor acha que o piauiense tem consciência da história da música do Piauí, dos anos 60 pra cá?

G: Não, não tem. Hoje ninguém tem. Eu acho que agora, a partir da década de 2000, houve essa procura, está se formando mais essa coisa do apanhado histórico. A faculdade resgatando, os alunos indo atrás. Eu acho que a partir dessa década de 2000 a gente pode retomar isso. Eu quero lançar um livro com coisas que eu escrevi, informações dessas décadas passadas. Nos anos 60, começaram a aparecer os chamados conjuntos, depois passou a ser grupo, hoje é banda. Mas eles estão copiando, tipo cover, faziam uma banda para tocar música que ouviam no rádio. Eu acho que essa minha geração nem se preocupou com isso, bateu essa coisa de fazer tudo autoral, fazer composições próprias.

O senhor acha que os músicos piauiense de hoje tem preocupação em estudar música?

G: Há. Hoje tem mais essa preocupação. Por exemplo, no tempo que eu comecei e outros músicos bem antes de mim não tinham essa facilidade que tem hoje. Hoje você pega uma música que você se interessa, vai ver na Internet, está tudo divulgadinho. Tablatura, partitura, letra, do jeito que você quer. Vídeo aula, por exemplo, os alunos veem exatamente o que os músicos estão fazendo. Então, isso tem proporcionado bons músicos. Hoje só não toca bem quem não quer, basta ter uma inclinação para tocar. A nossa formação era percepção auditiva. Botava o disco com aquelas vitrolas que tinham a rotação 45 rpm. Hoje não, está tudo aí.

Dos anos 70 pra cá, quais foram as principais variações de estilo da música piauiense, que o senhor pode perceber?

G: Quando a gente começou a fazer música, no meio dos anos 60 começou aquela coisa dos Festivais universitários. E só aconteciam no Rio de Janeiro, São Paulo, aqueles festivais famosos onde apareceram Chico Buarque, Caetano Veloso. Mas a partir dessa década surgiram vários em várias outras universidades. E, com essa facilidade, com essa adesão e explosão dos festivais, ficou em alta essas músicas do Fagner, Belchior, Geraldo Azevedo, música mais regionalista. Então nós absorvemos essa informação, de ouvir essa música. A gente fazia muita música mais regional. Aí vieram outras correntes que faziam músicas tipo blues. Tinha a corrente que fazia mais rock’n’roll e corrente que fazia a MPB mais tradicional. Hoje tem pessoas que começaram a trabalhar com xote, com baião. Hoje já tem até maracatu que é um ritmo de Recife, de Pernambuco.

Na sua opinião, quais são os três maiores nomes da música piauiense nos anos 70? E quais são os três maiores nomes de hoje?

G: Eu gostava muito do Cruz Neto, do Magno Aurélio, que é compositor e do Aurélio com o Zé Rodrigues. Esses três eu gostava muito. Hoje, eu estou ouvindo muito as músicas do Wagner Lacerda.  Eu gostei do disco novo, é o primeiro que eu gostei.  Acho legal essa coisa meio nordeste meio rock’n’roll. E tem um disco agora que eu achei legal, de um parceiro meu, chamado Glauco Luz, cantado pela Carol Costa. É um disco muito legal.

Na década de 70, havia uma preocupação de intelectualizar as letras das músicas. O senhor acha que isso aconteceu no Piauí também?

G: Isso era uma coisa geral. Começou com o Geraldo Vandré, Chico Buarque. Isso lá em 68, só veio eclodir aqui nos 70. As músicas da época faziam protestos. Antes de um show, tinha que passar todas as letras e levar na polícia federal. Chegando lá, eles passavam uma semana pra julgar, pra censurar ou não. E na hora do show, aquela música que você mais tinha mais gostado, chegava a hora de tocar e havia a censura. Então isso marcou. Ainda bem que quando foi em 85, na época que o Tancredo era presidente, realmente acabaram com a censura. Apesar de nesse governo terem censurado o filme Je vous salue Marie, de um cineasta francês chamado [Jean Luc] Godard. Foi um absurdo, a Igreja entrou na questão. Viram o filme como algo muito pejorativo e houve essa censura. Mas de lá pra cá não. Semana passada, o Caetano Veloso chamou o Lula de analfabeto. Eu não gostei muito, apesar de eu gostar muito do Caetano. É o outro lado da liberdade de imprensa, coisas que você jamais imaginaria ver ou ouvir nos anos 60 até 80.

O senhor acha que os piauienses não valorizam a música feita aqui, os artistas locais?

G: É. Eu não vejo isso com tanto gosto como eu vejo com a música do Ceará. Você chega lá, toca muito, principalmente nas rádios, universitárias. Por onde eu ando no nordeste, eu vejo que toca bastante. Aqui que eu acho que não. A rádio Cultura toca mais, outras rádios alternativas… Mas, mesmo assim, ninguém se liga muito. Que isso mude, daqui pra frente, que haja mais procura, maior interesse nas músicas. Houve uma lei daquela vereadora, Trindade, na época que era vereadora dela que obrigava as rádios a tocarem 20% da programação de música piauiense.  Mas elas ficaram com raiva e não tocavam na programação normal, tocavam no domingo, num momento qualquer rapidamente. Agora até toca muita música brasileira, mas a música americana é bem mais forte. Mas mesmo assim, as rádios tocam uns forrós que vêm de Fortaleza, e não tocam nada da gente.

Quanto aos recursos técnicos disponíveis para gravação e distribuição da música piauiense, você acha que são satisfatórios?

G: Antes não tinha, mas hoje já tem vários estúdios, como o estúdio do Márcio Menezes, que fica lá na Morada do Sol, é o Bumba Records. Eu, por exemplo, estou gravando um projeto instrumental no estúdio da Rádio Pioneira. Hoje já dá pra fazer isso legal.

O senhor foi contemporâneo de Torquato Neto. Como o senhor avalia a contribuição dele para a música popular local e nacional como um dos expoentes do movimento tropicalista?

G: Eu fui contemporâneo assim, quando eu estava começando a fazer música, ele morreu, de maneira que eu só o vi de longe por aqui. Houve essa aproximação por parte dele com um grupo que estava fazendo jornal. Mas o interesse dele era de gente que estava começando a compor, e o Torquato saiu daqui logo. Tinha conhecido Caetano e Gil na Bahia, e daí surgiu o movimento Tropicalista com momentos muito marcantes naquela fase do Brasil, ao mesmo tempo em que faziam uma ponte com as coisas que estavam acontecendo lá fora, como os Beatles e Jimi Hendrix.

Como foi atuar no cenário cultural piauiense marcado pela censura militar?

G: Na época braba da ditadura mesmo, no tempo do AI-5, ano 68, não tinha ainda ninguém fazendo essas coisas. Quando se começou a fazer música, já estava no governo Geisel, tudo tinha censura. Então foi uma barra muito pesada que se passou. Tinha um jornal chamado Chapada do Corisco que acabou porque era muito perseguido. Se você tivesse um livro vermelho era censurado, tirado de circulação, porque se era vermelho, você era considerado socialista. Cheio de bobagem. Mas aí houve a anistia em 79. Já nos anos 70, o pessoal que tinha sido exilado começou a voltar.

O senhor sofreu algum tipo de represália nessa época?

G: Sofri, como eu já falei, fui censurado pelo governo. Fazia a música, mandava, ensaiva, e na hora eles não liberavam.

Mas eles diziam já na hora do show?

G: Por exemplo, hoje é sexta e o show seria domingo. Eu levo a música hoje, sexta. Liberavam ou não amanhã ou um dia antes. Já é sábado e não tem nem mais como ensaiar coisas novas. Era irritante por isso. Era uma coisa que violava os direitos humanos.

Eu vi que o senhor é formado em Administração pela UFPI. Por que o senhor resolveu seguir a carreira musical e não a carreira de administrador? O que pesou na escolha?

G: Eu comecei a compor em 72. Quando foi em 74 eu passei no vestibular. Foi uma época que a faculdade era uma coisa muito valorizada, todo mundo tinha que fazer. E eu também tinha interesse. Eu gostava de economia, queria entender economia, mas não tinha. O que mais se aproximava, onde a gente estudava teoria econômica, era administração. Não tinha nem o curso aqui, eu tive que fazer em Parnaíba, no campus da Universidade Federal. Quando eu estava no terceiro ano, a música já começou a ser algo muito forte. No terceiro ano, passei no vestibular para música, mas tinha que terminar administração. Mas a música me pegou mais de uma maneira muito forte. Hoje, não que eu me arrependa de ser músico, mas eu queria ter visto as coisas por um outro lado mais racional.

(...)

Geraldo Brito entrevistado por Laís Lustosa (laislm@hotmail.com)
Publicado originalmente em Entretenewsmento

9.4.14

Barros Pinho - síntese biográfica




José Maria de Barros Pinho (Teresina, 25 de maio de 1939 / 2012). Poeta, contista, político (Prefeito de Fortaleza/CE entre 1985 e 1986). Principais obras: Natal de barro lunar e quatro figuras no céu (1960), Planisfério (1969), Circo Encantado (1975), Natal do castelo azul (1984 ) e Carta do Pássaro (2004). A Viúva do Vestido Verde, publicado pela Record, foi cotado para o prêmio Jabuti de Literatura. Carta do Pássaro, reconstitui sua infância no engenho de seu avô, às margens do Rio Parnaíba, no Piauí. Membro da Academia Cearense de Letras.

31.3.16

PORTAL DA CIDADE, Cineas Santos




Portal da cidade, a Praça Saraiva era o desaguadouro natural dos que chegavam a Teresina na década de 1960. Paus-de-arara, mistos, jardineiras despejavam passageiros empoeirados e sonolentos no meio da praça, enquanto os chapeados disputavam, no grito, a bagagem dos que tinham algo a transportar. Mocinhas ágeis e prestativas se prontificavam a levar o “chegante” à “pensão mais em conta”, nunca esquecendo de garantir ser o estabelecimento  “um ambiente totalmente familiar”. Quem vinha a negócio fretava carros de aluguel (jipe, rural-willys), mais pose que necessidade, já que as distâncias a percorrer eram pequenas. Os que necessitavam de cuidados médicos, quase sempre muito pobres, armavam redes sujas nos galhos das árvores em busca do refrigério da sombra. Os que vinham tentar a sorte – náufragos e deserdados – limitavam-se a zanzar a esmo como moscas tontas.

A praça era uma imensa feira livre onde se vendia quase tudo: de animais vivos a óleo de puraquê, “a farmácia que o freguês carrega no bolso”, garantiam os camelôs. Sem maior esforço, podiam-se encontrar ali especialistas nas mais diversas atividades: borracheiro, barbeiro, soldador, amolador de tesoura, cozinheiro, raizeiro, vidente e benzedor, sem contar a legião de marreteiros e descuidistas, prontos a engrupir os desavisados. Pedintes de todas as idades esparramavam-se no chão, recitando desgraças “de cortar coração”.

Numa manhã esplendente (2 maio de 1965), despejaram-me na Praça Saraiva. A poeira da estrada embaçava-me a visão e o medo latejava em cada milímetro do corpo. Por intuição, percebi o que me esperava: fome, indiferença, solidão. Uma cigana decrépita, cheirando a sarro de cachimbo, prontificou-se a ler-me a mão, mas uma das “agenciadoras de hóspedes” foi mais rápida e me arrastou para a Pensão Nova, na Paissandu. O cartão de visitas da pensãozinha era um inconfundível cheiro de urina que se fazia anunciar na calçada. Na portaria, um negro velho, com ar de mãe preta, fazia as honras da casa. Foi direto e conciso: “O pernoite, com direito a café da manhã, custa dois cruzeiros. Pagamento adiantado”. De posse do dinheiro, desmanchou-se em mesuras: “Se precisar de alguma coisa, é só chamar. Eu sou que nem téu-téu: não durmo nunca!” e piscou, malicioso…

À noite, enfurnado num quartinho escuro e quente, sob o fogo cerrado das muriçocas, eu nem suspeitava que aquela ruazinha de aspecto sórdido fosse o caminho mais curto entre o Clube dos Diários e o prazer. Estrela, Fascinação, Amambay… Proxenetas, cafetinas, prostitutas, tangos, rumbas, boleros, perfume barato, bebida “batizada”, estrias camufladas, boêmios, bêbados, pedintes. A dois quarteirões da pensãozinha ordinária, diluíam-se todas as fronteiras. A Paissandu era o único espaço democrático da cidade: bem-nascidos e bundas-sujas dividiam, equitativamente, generosas rações de sífilis…

Aos poucos, a cidade mostrava suas múltiplas faces. Em meio às agruras, alguns encantos: o Parnaíba, o verde, as mulheres. Eu vinha de uma terra sem rios e sem lembranças de rios. Ver tanta água fluindo rumo ao desconhecido me pareceu um desperdício. O verde dos quintais me enchia os olhos: “um oásis sem deserto”. Quanto às mulheres… por elas, fiquei e não me arrependo. Com o tempo, a cidade foi-se adonando de mim, até me fazer esquecer que um dia morei em outro lugar. Teresina me basta.



Cineas Santos
Crônica de abertura de TERESINA PARA AMADORES
Livro ainda no prelo

28.10.11

TERESINA, Gregório de Moraes


Mangueirais, minha velha Teresina
O povo alegre, sorridente, vivo
O Mafuá num batucar festivo
Saudade, mestra e mãe que amar ensina

Falar de minha terra me fascina;
Meu Deus, é tudo um eternal motivo
O Parnaíba marulhando esquivo
O Barrocão; a luz da lamparina...

Correr, subir veloz num oitizeiro
Tentar erguer meu papagaio primeiro
Lembrança das casinhas. Há quem esqueça?

Vivi no meu desterro esta lembrança
Ó saudade do tempo de criança
Dos maternais beijinhos na cabeça.


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

16.10.13

LUA RUA




O poema concreto Lua Rua apresenta graficamente características do quadrilátero original da planta do projeto urbanístico concebido, no meado do século XIX, para a cidade a ser construída à margem direita do rio Parnaíba. Na concepção do poema, foram levantadas informações históricas e culturais relacionadas à contribuição dos escravos negros ladinos à construção da cidade de Teresina, trazidos das fazendas de criação de bois e cavalos, instaladas no Vale do Rio Canindé. (Paulo Machado via blogue do artista plástico Amaral)

1.12.15

REMANSO, Gregório de Moraes


O Parnaíba imenso, adormecido
Pelas beiradas balsas deslizando
Balouçam leves, vão além singrando
Ao pôr do sol, do meu torrão querido

Velhas lembranças tenho revivido
O Mafuá, o Boi, os Reis, cantando
Pelo Cabral, tambores soluçando...
O canto do capote, vão, perdido!

É, tudo, sei, de outrora uma lembrança
Do meu alegre tempo de criança
Fazendo pescarias e caçadas!

Quisera ver outra vez minha terra
Andar a esmo qual pássaro que erra
Na imensidão perdida das chapadas!


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

23.11.15

ARNALDO ALBUQUERQUE [2]


O sujeito era tão intenso que uma crônica ou duas não dão conta da sua peregrinação num destino que carregava cravado no umbigo. Sua história nos quadrinhos e no desenho animado deixou herdeiros que reconhecem a filiação e uma tese de mestrado faz uma análise do seu lado marginal à marginalidade.

Fizemos um jornal na década de 1970, que circulou apenas duas vezes, mas nomeou uma geração: “Gramma”. E as duas capas eram dele. A do número um, aqui reproduzida, é uma obra prima. No nome Gramma detalhes podem ser acompanhados com uma lupa de cenas proibidas na nudez com erotismo digno de um Wolinski. Entre às cenas de sexo, o coração de Jesus pende do meio do primeiro M com a inscrição blasfêmica “o coração de Jesus era de pedra” e na última perna desse primeiro M a própria face do Cristo contrasta com o inferno que queima a lascívia do outro M. Mas no conjunto das letras o mal parece vencer o bem da religião. As outras letras parecem vencer o M do Cristo, mas é nele que se pode ler “a maior curtição”. O desenho central parece um autorretrato que arranca o coração do peito num rasgo tão grande que expõe as vísceras abdominais de forma chocante. Singelas flores emolduram o quadro.


Essa capa faz prescindir o conteúdo do jornal na temporalidade. É o que fica. É a transgressão que nos representa, toda uma geração, num desenho dele. Na mesma época era fundado o Charlie Hebdo na França, e aqui na terra “O Pasquim” já era reconhecido por dialogar com a contracultura. Era no desenho do Arnaldo que nós gritávamos, no estado mais atrasado da federação brasileira, que o sertão entrava no cenário da contracultura.


E ele continuou desenhando. Emplacou alguns cartuns n’O Pasquim. Fez ilustrações para livros de contos, como as que publicamos aqui. No traço a violência e o erotismo. Duas formas de protestos incontestes.


Mas foi agora, já depois de sua morte, que tomei conhecimento, pela internet, de um grande e futurista desenho. Um felizardo declara que ganhou o desenho do próprio Arnaldo em 1982. Em um cenário futurista, que lembra Metrópolis do Fritz Lang, prédios de Teresina e Timon (cidade fronteiriça do Maranhão) fazem um paredão às margens do Rio Parnaíba. O leito do rio secou e um fiapo de esgoto corre por baixo da Ponte Metálica (símbolo da cidade, quando ainda não tinha a ponte estaiada). Premonição do artista?


Depois silenciou. Parecia que a obra tinha ficado pronta. Só caminhava de casa para o botequim do meio do quarteirão. Tomava uma ou duas pingas. Bastavam. E o caleidoscópio do artista girava num mundo que ele não quis habitar por ter sempre se mantido à margem. Ele só saiu do nosso campo visual, mas continua à margem. Agora na terceira margem do rio, como no conto do Guimarães Rosa.

2.12.15

PALHA DE ARROZ




Capítulo XXXVII


[...]

Pau de Fumo ouviu toda aquela conversa do Comissário que dizia falar também pela boca do Delegado e do Chefe de Polícia. Ficou com água nos olhos e uma coisa apertando-lhe as goelas por dentro. E com vontade de perguntar como era que se deportava um brasileiro para outras terras também dentro do Brasil. O que significava aquilo? Exílio? Asilo! Banimento? Que Direito Interestadual seria aquele?! Aquilo não era nada mais nada menos do que safadeza. E por que não deportavam também Ceiça e os meninos?! (Por causa deles que roubava).

Em todo caso, ficar calado seria melhor. Bem conhecia de perto aquela polícia Civil.

— Seu Epitácio, eu quero ao menos permissão para me despedir da família.

— Que família, negro safado! Onde foi que já se viu um ladrão de sua estampa ter família?!

E os guardas riram a valer.

— (Miséria! Homo stupidus! Único animal do mundo que ri e chora. Chora infeliz! Ri, miserável! Chora das tuas desgraças! Ri das misérias dos outros!)



Capítulo XXXVIII


Lá se vai ele escoltado rumo Estação do Trem! Como estaria Ceiça àquelas horas? Os meninos... ?

O trem apitou. A mesma máquina velha, uma das mais antigas de todo o Brasil (do tempo de Mauá). A mesma que um dia levara seu amigo Parente para outras terras.

Lá se vai embora o negro Pau de Fumo! Num vagão de terceira classe. (De terceira não, que uma imundície daquelas não era classe nenhuma).

O trem apitando, mas não era o mesmo apito do dia da despedida de Parente. D modo algum nem de longe parecia com despedida de quem parte para outras terras. Parente um dia podia voltar. Ele, nunca! Era assim como se uma despedida eterna, - deste para o outro mundo. Ainda mais que o sino da viatura badalando. Como se fosse dobres de finado. Também lhe recordando os alarmes nos incêndios.

Seria que os demais planetas fossem também habitados?! Seriam tão desumanos quando aos da Terra seus habitantes? Haveria algum fundamento nas deduções de Flamarions e outros astrônomos? As fogueiras de Marte... Astronomia... Mecânica celeste...

Que saudade do colégio! Que vida aquela sua! Genoveva, Zefinha, Ceiça, os meninos... Maria Preá, 
dr. Leovigildo, a mulher dele... professor Cagliostro, Teresa Caga-no-caneco, Zefa Traíra, Chica Pote, Maria Sapatão...

Assim num momento, toda sua vida passando em seus sentidos como se uma gravação.

Pôs a cabeça a uma janela. Tudo escuro ainda. Mas sentia como se os vagões se retorcendo como um monstro pré-histórico nas curvas dos trilhos.

Que saudade dos tempos de estudante!

Seriam habitados os outros planetas? Na certa!

Noite ainda. Perto da ponte metálica do Parnaíba velho, pelejava mas não podia ouvir a cantoria dos sapos. Naturalmente que eles ainda estavam cantando, que o dia não havia ainda amanhecido. Mas o diabo do ruído do trem não deixava ninguém ouvir outra coisa. Mas sentia, perfeitamente, que àquela hora, com tudo ainda em plena escuridão, os sapos ainda estavam cantando. Cantando de fome. Fome de luz, que o dia não havia amanhecido. A luz ainda não havia chegado. E mesmo sem ouvir, mas apenas sentindo que os sapos ainda estavam cantando, a recordação dos filhos veio-lhe mais aguda do que tudo que até então sentia. É que cantiga de sapo parece com choro, especialmente com choro de menino que chora de fome. Decerto que àquela horas seus filhos estavam chorando. Ceiça também. Também eram sapos. Eles sapos pequenos, ela sapa velha. Sapos que choravam de fome. De fome, porque não havia ainda luz na terra. E também com pena do sapo velho dono da casa que partia. E este era que estava com fome de verdade. Fome de barriga. Fome de justiça. E a zoada do trem dizia direitinho:

— Tô com fome! Tô com fome! Tô com fome!



em Palha de Arroz (trechos),
Teresina: Oficina da Palavra, 2004, 4ª edição
Fotografia via blogue ÁgoraDaTaba

30.7.15

EU, A CIDADE E O RIO | Capítulo 1 (trecho), João Batista Dias Pinheiro


Em Teresina vendia-se tudo, até a própria balsa, cujo material era utilizado para muros de quintal. Os donos das balsas e eventuais passageiros regressavam, às vezes, em barco a vapor, ou senão, a pé ou a cavalo. Os mestres e contramestres, geralmente, regressavam a pé, por falta de condições financeiras para comprarem cavalos. Verdadeiros heróis. Recebiam em Teresina o pagamento de seus trabalhos, faziam pequenas compras para as necessidades da viagem, além de alguns presentes para a família e partiam de volta. Com o saco às costas, preso com alça nos ombros, um chapéu de palha e calçados de couro, atravessavam o Rio Parnaíba à altura de Timon e seguiam pelo Maranhão, procurando encurtar a enorme distancia. Conhecendo bem as trilhas, procuravam fazer uma linha reta em sua viagem de Teresina a Ribeiro Gonçalves, alimentando-se de qualquer jeito, especialmente com rapadura e farinha de mandioca e dormindo onde anoitecia. Após percorrer mais de quinhentos quilômetros, andando cerca de cinquenta quilômetros por dia, chegavam a Ribeiro Gonçalves após dez dias de marcha intensa.


João Batista Dias Pinheiro
em EU, A CIDADE E O RIO: À MEMÓRIA DE RIBEIRO GONÇALVES/PI
Teresina: Gráfica do Povo, 2013

10.4.16

VOLLEY BAR, William Melo Soares




volley bar
rock e pelada
coroas do parnaíba

nêgo valti
dava o mote
piau frito
e outras coisas

o pôr do sol
o sorriso
menina flor da paisagem
Piedade oferecia
rabo de tatu gostoso

volley bar
sorriso e farra
vida efêmera
eterna areia

volley bar
sorriso e farra
vida efêmera
eterna areia

volley bar
gente bonita
lâmina d'água
à flor da areia



William Melo Soares
em Nadança dos Peixes - Antologia Provisória
Teresina: Bienal, 2015

12.4.16

RÉCITA, Francisco Miguel de Moura


                                            Para o amigo Ozildo Barros

1


Lixo atômico!
Ai, minha terra Francisco Santos!...
                                           Picos!...
Em vez de plantar mandioca
Vai plantar o câncer.
Ai dos meus rios,
Ai das minhas fontes,
            Pontes
     Lençóis freáticos!
O país do não come,
O país do não veste,
O país do não ouve,
O país do não chove,
- Piauí, triste/teste/toste.
Vamos receber o lixo do luxo,
Vamos receber o câncer dos ossos,
Vamos receber o câncer dos olhos,
Dente por dente, por dentro, olho por olho.

Meu grito contra o lixo atômico
É um grito histriônico:
- À merda, bomba! – Todas as bombas!


       
2


Não se pode mais plantar
                              batatas
Nas chapadas de Francisco Santos.
Não se pode! Não se pode!
Lá vão depositar o lixo dos “estranjas”...
No Piauí, não se pode, não se pode!

Ai, pátria do “não chove”,
Não come,
Não dorme.
Aí vem a bomba e sua carga
Amarga!
Molhemos nossos olhos, olhemos
Nossos próprios ossos.
Ai das nossas águas rio arriba,
                                 rio abaixo!..
Ai, Parnaíba, “velho monge”
Das nossas terras!
Ai do nosso sangue! Dói.
Morrendo nos veios, nos vales, nas chapadas,
Não se pode mais plantar mandioca,
Não se pode mais plantar mais nada.
                                      Nem poesia.
Ai, não se pode, não se pode, não se pode!


                         
3


Lixo atô-mico!
Luxo atômico para são paulo!
                                        r i o
                        brás     íl     ia...
Lixo para o Piauí,
Lixo, bicho!
Gente do Piauí come lixo
                        o  pobre,
                           opóbrio!
                        o burguês.
Não esse lixo-luxo-energia
                des-man-te-la-da.
Fora o lixo atômico,
fora toda a lixívia!

Quem não sabe que o bicho e o homem
                                             não comem?

FORA, POLÍTICOS E CIENTISTAS
QUE SÓ ENTENDEM DO ATÔMO,
MAS NADA DO HOMEM!
                   
NEM do ab(do)mem.



Francisco Miguel de Moura
Poemas recitados pelo autor, em 23.10.1986, no bar Nós & Elis, logo que soube que o lixo atômico viria a ser despejado nalgum lugar do Piauí. Francisco Miguel de Moura nas noites em outubro, andava com o também poeta Ozildo Barros e baixavam no bar Nós & Elis, em Teresina, para conversar, recitar e revolucionar o tempo e o ambiente. Via blogue do autor.


12.1.16

TERESINA ~ SÃO LUÍS ~ TERESINA




Teresina, você reduziu de ta~
manho, virou brinquedo, ma
quete de cidade daqui das nu
vens. Daqui de cima, você
pequenina passa e some dimi
nuta. Parnaíba~rio: risco
lírico no papel. Nossa Senho
ra das Dores, do Amparo, su
as espadas suas torres, espa
dam nossas bundas no céu. Te
resina limpa dominga azulada
verde mínima, daqui pego~te.


Tirirical da Cidade Antiga i
luminada de musgo e sol. Ao
contrário de Teresina, dila
tas na lupa da chegada. São
Luís, à medida que te sinto,
sinto pulsar forte tuas ve
ias; no ar te impero, te go
verno, frágil Ilha, no ar te
humilho. Ah velha Ilha! Doce
ilha de sal! Onde minha for
ça no teu chão? Miniatura on
de o gigante aéreo agora to
lo algemado transeunte? I
lha, meu passado te palmilha
espanto e encanto ~ brilhas
francesa menna, brilhas e
brilha meu amor nas tuas á
                                      guas



Jamerson Lemos
em NOS SUBÚRBIOS DO ÓCIO (1996)

11.11.13

TÃO TERESINA, QUE DÓI, Cineas Santos

Ao poeta Paulo Machado

Era um tempo sem colheita / mas havia a crença:/ viver não doía tanto. Bem que poderia ter sido assim; não foi. Numa manhã de cristal, dessas que só acontecem em Teresina, fui literalmente despejado na Praça Saraiva. Era maio de 65. Nos bolsos, dezoito cruzeiros, uma carta de recomendação, que se revelaria inútil, e um endereço de um quase-parente que jamais procurei. Nos olhos, a poeira da estrada e o espanto diante do novo. No corpo inteiro, o medo latente.

De cara, três surpresas. A primeira, preocupante: a quantidade de carros trafegando nas ruas.. Carecia tomar tento pra não voltar para a aldeia convertido em notícia ruim. A segunda, estimulante: a abundância (taí a palavra adequada!) de mulheres por toda parte. De onde eu vinha, só se via algo parecido no dia da procissão do Padroeiro. A terceira, elucidativa: o Parnaíba. O risco inexpressivo dos manuais de geografia, na verdade, era uma veia aberta, generosa, encharcando de vida a terra, os bichos e a gente do Piauí.

Depois de zanzar por pensões ordinárias, atraquei na UPES (hoje, CCEP) onde já amontoavam outro náufragos. A casa poderia acomodar, com desconforto, dez pessoas. Éramos oitenta! Normalmente, faltava água e não havia um único banheiro, o que na verdade não fazia tanta falta, já que também não havia o que comer. "Deus só dá o frio..."

Desbravar a cidade era um desafio. Na P2, as mulheres, como animais em exposição, circulavam graciosamente. Os homens, mãos no bolso para disfarçar, conferiam, aferiam, faziam propostas. No coreto, a bandinha da PM atacava de dobrados e marchinas, "programa de velho". Na parte alta, recrutas bolinavam curicas. Na Paissandu, a noite nunca envelhecia. Estrela, Amambay, Fascinação: boleros, varizes, cerveja e gonorréia. Eh, Antônio Leiteiro!

No Clube dos Diários, a fina flor da burguesia embalava-se ao som do Barbosa Show Bossa em "tertúlias", onde havia um pouco de tudo: namoros, conchavos, negócios, jogatina. Como um cão de guarda, Marcelino conferia o pedigree de cada novo sócio e escorraçava os indesejáveis. E eu comendo com a testa.

No Carnaúba, homens e ratos disputavam o mesmo espaço, com ligeira vantagem para estes que, na condição de provadores, beliscavam tudo sem pagar nada. No Flutuante, meninos entanguidos e piabas elétricas disputavam migalhas, sob o olhar complacente das lavadeiras seminuas. 

Nos programas de calouros, Ruy - o primeiro cabeludo da cidade - fazia paródias geniais: "Garota de Timon nunca teve vez / Nem que seja bonita / Nem que fale inglês / Lá é tudo tinindo / E quem governa é o padre Delfino". Valdenir, com voz chorosa, cantava "Maria Helena", sempre "a pedidos". Nos saraus familiares, Silzinho e Assis Davys cantavam "Perfídia" com sotaque caribenho.

Nos embalos jovens, Brasinhas, Metralhas, Sambrasa arrepiavam. Luz e cor: calça boca de sino, bota calhambeque, rum com coca-cola, minisaia de napa, milk-shake. Nas mãos afoitas e nervosas, passeavam inicentes baseados. "Me segura que eu vou dar um troço!"

Nas emissoras de rádio, "o mundo em ondas sonoras". A. Tito Filho vertia cultura pelos poros; Ary Scherlock esbanjava glamour; Figueiredo fustigava os desafetos (todo mundo) com o seu Almanaquinho do Ar; Roque Moreira comandava o Seu Gosto na Berlinda; Mariquinha e Maricota estilavam veneno; Al Lebre enchia o saco de meio mundo com seu chocalho madrugador; Deoclécio Dantas e Carlos Augusto vergastavam políticos e delinquentes, e Dom Avelar, com sua autoridade de pastor, apacentava o rebanho com a "Oração por um dia feliz". Tudo tão Teresina!

No Theatro 4 de Setembro, rolava tudo: Maciste, Tarzã, ídios, caubóis, tapas e beijos. No carnaval, realizavam-se os concorridos bailes promovidos pela Prefeitura, com direito a tombos no piso inclinado. Na Semana Santa, a exibição da indefectível "Tragédia do Gólgota" encenada por Santana e Silva. Nas página de O Dia, Fabrício Arêa Leão escrevia crônicas laudatórias em aramaico, enquanto Dona Elvira atiçava a "fogueira das vaidades" dos novos-ricos. Eh, cidade amada!

No Lindolfo Monteiro, Gringo, Vilmar, Evandro e Sima agitavam a galera, enquanto Carlos Said desancava os "energúmenos" em linguagem tão pomposa, que muitos se sentiam lisonjeados. Mas o melhor mesmo era ofender a mãe do juiz, sabendo que ele estava ouvindo tudo. Te segura, Braz!

E tão envolvido estava, que nem me dei conta de que a cidade crescia, inchava; cercada de favelas, prenhe de cursinhos, panificadoras, motéis, templos evangélicos, casa lotéricas, carros importados, mendigos, telefones celulares e o escambau... E aqui estou eu, bestamente, amando essa pobre cidade transitória, como se fosse a mais importante do mundo. E é!


em As Despesas do Envelhecer 
Teresina: Corisco, 2001

10.4.12

VISTA DE TIMON, por Francisco Miguel de Moura



Onde o teu verde olhar, mulher?
No corpo não, nos olhos não.
Quanto asfalto, lixo, TV, esgoto, favela.
Prédios do INPS (agora INAMPS), do Hotel (Luxor)
Piauí e da Associação Comer-cia(I), entre
- mangueiras que não dão mangas -
perdido a gente se vê.

Do lado de cá te olhando
Como se admira um postal
bem nos olhos esta canção
senti.
Canção menor, de amor de mais
de quinze anos e um filho,
e dos dias já vencidos.

Volto a fita dos meus sonhos,
Ponho-me no âmago Poti/Parnaíba,
bem onde as águas se irmanam escuras

e os desejos se perdem,
e me declaro réu:
- Narciso em teus espelhos.



Francisco Miguel de Moura
em 145 anos: Teresina cidade futuro
Teresina: FCMC, 1997


26.7.15

O MENINO DA PACATUBA



Dos meninos consumidos no sol da Pacatuba ficaram lembranças. Dessas lembranças Paulo José Cunha constrói o seu universo poético. Delas e da evocação do País do Piauhy. Tudo na maneira de Geraldo Melo Mourão (o que glorificou o País dos Mourões) e Manoel de Barros (o que expôs a Gramática do Chão) e no mesmo plano elevado.

Uma das funções da poesia é desencantar lembranças, sujeita, no entanto, ao risco de tornar-se apenas uma prosaica enumeração. PJC cumpre esta função, evitando este risco. O seu mundo poético surge da poesia intrínseca das lembranças, realçada pelo poder que as palavras adquirem no contexto. As palavras vivificam as imagens e as pessoas: atrás da igreja das Dores o grotão por onde corriam as águas do inverno, a suave ladeira da Estrada Nova por onde se chegava à Pacatuba, onde hoje deve vagar o espírito irreverente de Vitinho, que ali frequentou a aula de D. Maria Patu.

A tia Maria, a branca de fala mansa (para nós era a comadre Maria), o seu Raimundo Luço (primeiro cliente de um advogado que mais tarde reconheceu não ter os defeitos necessários para vencer na profissão e se bandeou para a categoria dos poetas). PJC saca da memória um verso de Quasimodo (“la dura um vento che ricordo aceso”); na Pacatuba havia no máximo a brisa de maio que empinava os papagaios de papel.

O menino da Pacatuba, a infância restituída, volta, das areias do tempo, nas cercas de melão-de-são-caetano, na figueira ao lado da casa de seu Pombo, no terreno baldio da esquina do quarteirão, nas tijubinas, nas mangas verdes, comidas com sal, às escondidas, enquanto o Parnaíba, o rio grande dos tapuias, no fundo das ribanceiras, rola o seu dia perene.



H. Dobal
Prefácio do livro O perfume de Resedá, de Paulo José Cunha
Teresina: Oficina da Palavra, 2009

9.10.11

PONTE METÁLICA, Adrião Neto


Velha ponte metálica
que num fraternal abraço
une Piauí e Maranhão
o trem que te cruza
é mais um fator de integração
entre os dois Estados.
Monumento histórico e paisagístico
não és apenas um cartão postal
que irmana Teresina a Timon
e sim, uma testemunha ocular,
do abandono, do descaso e da agressão
que o Parnaíba vem sofrendo:
seu leito que outrora
fora caudaloso
hoje é apenas um fio de lágrima
da mãe Natureza
chorando sua própria desgraça.
Comovida, pedes socorro
mas ninguém te escuta
enquanto isso, o Velho Monge
no auge da sua caduquice
transforma suas águas em coroas.


Adrião Neto
em Poesia teresinense hoje 
Teresina: FCMC, 1988

30.3.16

RIO QUE DESÁGUA NO CORAÇÃO, Nelson Nunes




Rio, vida que corre lânguida
e incansavelmente banha a terra
e a alma do povo que te chama Parnaíba
Rio, de onde nasces e por onde vens
avolumando-te, cavando no chão o teu leito
vens, também, cravando na terra o nosso destino

Eu, minúscula embarcação, quando te navego hoje
e no afago de tuas águas serenas e calmas
sinto as mãos do velho Monge cansado de perdoar
vou, pouco a pouco, perdendo a esperança
a fé, que nas pedras teu limo ajudou a cultivar,
de que os homens te deixarão envelhecer em paz.



Nelson Nunes
em O RIO – Antologia Poética
Edições Corisco, 1980