5.4.20

"o tédio dos dias", Elias Paz e Silva


o tédio dos dias
os diasdetédio

                       a cidade profana
                       docemente santificada

                       as canções de improviso
                       andorinhas andarilhas
                       sobre a cúpula do tempo

                       a poesia sem sentido
                       dos últimos dias primeiros

os diasdetédio
o tédio dos dias

                       o dar de ombros
                       aos anúncios de grandes
                       tribulações e tremores

                       a dor compartida
                       na dor do irmão
                       vida dividida sem o pão

                       a fala do vento
                       na árvore velha
                       murmúrio de farta esperança

o tédio dos dias
os diasdetédio

                       o calor da terra
                       aquecendo os corpos inertes
                       evaporação de sopros e sombras

                       a visão do sonho
                       o sol arcoirizado
                       o campanário da igreja
                     
                       o simbolismo das coisas
                       rastros de astros
                       céu nuclear de bombas e bombons


Elias Paz e Silva
Poemário II
Teresina, 1991

POEMA DE UMA TARDE QUALQUER, Elias Paz e Silva


tarde
           ardente ocaso
           a alegria dos pardais
           que não cantam em mim
           mas no telhado
           onde um gato assustado lembra a infância

tarde
           alguma poesia nas veias
           um verso mordente correndo pela contramão
           ruminando a esperança
           na antenoite das certezas


Elias Paz e Silva
Poemário II
Teresina, 1991

Os vareiros do Rio Parnaíba, tema esquecido pelo Piauí, por Jorge Baleeiro de Lacerda


Em 1977, durante uma semana, estive em Parnaíba, Piauí, a que voltei outras vezes. Dessa feita, uma das figuras que conheci e com quem fui à Pedra do Sal foi o jornalista e escritor Raymundo de Souza Lima, que estudava os vareiros, os porcos-dágua, no dizer popular, do Rio Parnaíba, homens que passavam, com varões de até oito metros, as embarcações que faziam o trecho entre Terezina e Parnaíba, no tempo áureo da carnaúba, do babaçu e do couro.

Raymundo de Souza Lima, na praia da Pedra do Sal, costa do Piauí em janeiro de 1977

Até hoje, o Piauí ainda não publicou uma obra de peso sobre os vareiros, embora M Paulo Nunes, do Conselho Estadual de Cultura, tenha se dedicado muito a temas piauienses em sua revista Presença, publicada pelo CEC.

Lembro-me do carinho com que Raymundo de Souza Lima tratava o tema, que conhecia tão bem por tê-lo vivenciado nos anos 30 e 40.

No clássico Beira-Rio Beira-Vida, de Assis Brasil, o tema não é abordado, apenas faz referências. O assunto central é a prostituição, vida mundana à beira do rio que banha a cidade de Parnaíba.


Recentemente sugeri ao deputado federal Hugo Napoleão (que não foi reeleito, interrompendo 40 anos de vida pública) que publicasse pelo seu gabinete um livro ou uma plaquette sobre os vareiros do Rio Parnaíba, mas acho que não apareceu ninguém interessado em abordar o tema nem foram achados os apontamentos de Souza Lima.

Quando vivo, perguntei a Fontes Ibiapina, um dos mais notáveis escritores, por que não abordava o tema. Disse-me que lhe faltava experiência ribeirinha, convívio com o Vello Monge (o Parnaíba). Era do interior do Piauí, não da beira do rio, daí o seu desinteresse pelos vareiros, mas não descartava a possibilidade de uma dia escrever. Não teve tempo.


Oxalá a Prefeitura de Parnaíba e seus amigos da extinta Folha do Litoral, do saudoso Batista Leão, achem o manuscrito de Os Vareiros do Rio Parnaíba para que a cultura do Piauí ganhe esse estudo sobre um dos tipos mais tradicionais, hoje esquecido, pelo conselho de cultura do Estado de Da Costa e Silva. Fica o lembrete para Cineas SantosM Paulo Nunes, baluartes da cultura na velha Chapada do Corisco.


Jorge Baleeiro de Lacerda
Coluna BRASILIDADE PARANISMO SUDOESTE
Publicado originalmente em 31/01/2015 08:45, via

Vareiro, Gregório de Morais


Chamar de bravo, de gigante, é pouco
Pois mil tormentas a sorrir domina
Este é o Vareiro, sim de Teresina
Do Parnaíba, desvairado, louco

O velho Rio se revira, rouco
Ruge. A garganta fétida, assassina
Grita o Vareiro: o céu se ilumina!
E não lhe importa o combater, tampouco

Depois do batalhar naquelas águas
Depois de disputarem suas mágoas
Vão mundo afora, vão tranquilos, mansos

São companheiros que nem Deus separa
Segue o Vareiro, épico, assim, não pára
De cara em punho a dominar remansos!


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

Os "Vareiros" do Rio Parnaíba, por Humberto de Campos






Humberto De Campos
Os “vareiros” do Rio Parnaíba

Boletim Paulista de Geografia (BPG) é uma revista científica publicada desde 1949 pela Seção São Paulo da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP). Publica artigos originais e inéditos, resenhas, entrevistas, traduções e notas relacionadas à Geografia. Qualis B3 (2013-2016) ISSN: 2447-0945



4.4.20

Espécie de Amor, Gregório de Moraes


Quando eu encontro
por estes corredores do pensamento
os gritos da minha meninice
através das células da alma
chamando os colegas
gritando os colegas
caindo na água
do parnaíba;
pulando estas cercas de buriti
de um bucolismo subdesenvolvido
que fere as entranhas
e
gera saudades
..............................................................................

Quando tudo isto
de apagar mangas
e cajus
e
sentar no tamborete
de madeira
inclinado contra a parede,
surge assim
de mansinho
dentro de mim mesmo
eu me alargo em dores
e
morro de tristeza.


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

1.4.20

03 poemas de "Ser Movediço", de Rodrigo M Leite




frio


perder-se entre panos encardidos
domésticas oníricas dunas
tender ao deslocamento
ao canal desabitado
ao sabor do cimento com lodo
com os testículos tímidos
quebrar o gelo do teu sexo depilado
lamber a tua febre: adorar os musgos

as lesmas foder



(...)



teu corpo feito um rio
águas turvas arrepios
minha saída naufragar
teu sexo feito peixes
cardumes cardumes
o meu desejo ir pescar



(...)



sob o ford amarelo que rumina
entre marquises, mel mercado

da noite ganhei frio e promessas do álcool
recriei o caminho da volta

quarteirões de vandalirismos abandonados
para namorar entre frutas podres neon







Ser Movediço, 
poemas de Rodrigo M Leite
ilustrações de Gabriel Archanjo
1ª edição - download


Destinerário, de Adriano Lobão Aragão (Download)

APRESENTAÇÃO

Uma das seções do meu livro “Yone de Safo”, de 2007, intitulada “Nordestes”, foi escrita a partir das divagações sobre algumas das localidades nordestinas que eu havia visitado (“Recife, do alto”; “Campina Grande, anoitecer”), certas reminiscências (“Distrito Federal”) e, é claro, minha cidade natal, Teresina (“O engenheiro inglês”; “Entre campo e cidade”). Por contar com apenas com 5 poemas, sempre achei que era um trabalho inacabado. Algum tempo depois, decidi ampliar essa seção visitando outras cidades pelo interior do Piauí, principalmente, e, aos poucos, me veio o anseio de transformar essa experiência em um livro de poemas autônomo, desvencilhado do trabalho realizado em 2007. Hoje, esse projeto chama-se “Destinerário”, consistindo numa jornada que envolve poesia e fotografia. Os poemas foram inspirados nas impressões de viagem, no que pude ver e sentir em cada cidade visitada. Além de pesquisar sobre esses lugares e fotografá-los, todos os poemas nasceram das anotações que fiz na própria cidade que inspirou cada poema. Os primeiros textos (“Cocal” e “Inhuma”) são de 2014; os mais recentes (“Ouro Preto” e “Canindé”) são de 2019. Iniciei o “Destinerário” pensando também em conhecer melhor o próprio estado onde nasci e vivo, mas não estabeleci um limite político-geográfico. É por isso que o Ceará é bem presente na obra, além poemas escritos no Maranhão, Tocantins, Alagoas, Sergipe e Minas Gerais. E, futuramente, em outras edições, pretendo ampliar a quantidade de cidades e estados. Mas o que realmente importa no momento é que, com a publicação deste livro, seja possível que esses poemas e imagens circulem pelas cidades que os inspiraram. Creio que foi para elas que escrevi este “Destinerário”. Adriano Lobão Aragão, Teresina, março de 2019

Destinerário_AdrianoLobãoAragão_Download_pdf

ESCOLA DE DATILOGRAFIA REMINGTON





Arquivo pessoal Rodrigo M Leite


31.3.20

Maria Divina, a mais conhecida vendedora de pastel do Estádio Lindolfo Monteiro, Por Pedro Laurentino

Foto extraída do livro "As Caras de Teresina", de autoria do escritor Deusdeth Nunes (Garrincha),
publicada no facebook de Everardo Torres, via Portal Pensar Piauí

Morreu Maria Divina, a mais conhecida vendedora de pastel do Estádio Lindolfo Monteiro. Ficou famosa devido ao programa humorístico 'Um Prego na Chuteira' do querido Deusdeth Nunes dos Santos - o Garrincha, que antecedia às narrações esportivas das tarde de domingo. O bordão: "PATROCÍNIO DO PASTEL DA MARIA DIVINA: COMEU, MORREU! Bateu uma baita saudade do pastel, do Lindolfo e de Teresina. (Por Pedro Laurentino, via WhatsApp)

26.3.20

O Dirceu é um mundo, por Renée Moura


Pra vocês não acharem que só posto coisa ruim desta cidade esquecida pelas divindades ocidentais, vou falar sobre um aspecto bom daqui. Não é daqui exatamente, mas é de uma quase outra cidade que fica a sudeste daqui. Estou me referindo ao Grande Dirceu, que engloba todos aqueles bairros periféricos ali de perto.

Fui hoje ao Renascença II comer uma pizza numa tal Pizzaria do Jorge com a Iarazona e sua cambada - aniversário dela, da Iarazona, claro. O caminho de ida foi meio massante. Da UFPI para o Renascença, passei cerca de uma hora sacolejando dentro do famoso Rodoviária Circular I lotado - aquele típico de 18h.

Chegando no bairro, encontrei a Iarazona e fomos até a tal pizzaria. No caminho, paramos numa nova lojinha de metal, daquelas bem novinhas mesmo. E passava longe de ser tão poser quanto a MORAL. Tinha só umas camisas de bandas, alguns dvds de shows e alguns porns. Entrei lá meio sem botar fé - o dono tinha a maior cara de teresinense forrozeiro - mas depois vi que lá é bem legal.

O dono parece que foge à ignorância local, conhecendo algumas bandas do meio metal e, acreditem, conhecendo até o Wacken da Alemanha - não que ele já tenha ido lá... que eu saiba.

Lá eu encontrei um dvd do Enslaved, que por acaso estou assistindo neste exato momento. É um show na Polônia, o Live Retaliation. Nem preciso dizer o quão f...da é o tal show!!! E vou aparecer lá novamente pra comprar uns dvds do Dimmu Borgir e uns do Amon Amarth.

Comi meus dois pedaços de pizza e fui pra parada de ônibus às 20:45. Esperei pelo ônibus que chegou somente às 21:30 e desci em casa somente às 22:30 - ao menos fui sentada numa cadeira dessa vez. Os minutos de espera renderam muitas conversas revoltantes com algumas amigas que me acompanharam. Mas nada que deva ser dito assim tão abertamente - certas coisas é melhor manter pra si mesmo ou divulgar somente quando você tiver dinheiro pra sair da cadeia.

Sei que hoje voltei pra casa feliz e menos revoltada com este mundinho chamado Teresina, porque percebi que esse não é o único mundinho das adjacências. Talvez não seja nada tão estrondoso ter  uma loja de metal no seu bairro. Mas pra mim, que moro num pedaço de chão esquecido pela juventude e pela sensatez, uma loja de metal seria um oásis.

A única coisa que azedou minha volta foi o nojo que senti daquelas pessoas à porta do tal Liver Pub ali na tal avenida Dom Severino. Aquela gente muito "rica" que anda de carro bonito e cabelo espichado, mas que não tem nem um ovo frito pra comer em casa... Mas isso não vale o desprezo estampado em formas de palavras minhas.

Vou perguntar o telefone da tal lojinha e o nome também. Depois posto aqui.


Renée Moura
Via reneemoura.blogspot.com
Em 19 de março de 2010

Geração Teresina, Alex Sampaio


Houve um tempo
Em que andavam pela cidade
Rapazes e moças
Atraentes e de verdade

Nas paredes de um mundo seu
Que aparecem na minha mente
São loucos esses movimentos
Das coisas mortas

Mas espero o que vem por aí
Uma geração em Teresina
De rapazes e moças
Que não sejam
suicidas


Alex Sampaio
Em "Ressuscito na cidade suicida"
Teresina, 2017

21.3.20

Esfoliar os calos dos pés no concreto da quadra, por Rodrigo M Leite







Ainda nem alcançava os pedais, mas gostava daquele jogo de cintura, alternando de um lado para o outro, o varão bem lisinho. Todo mundo comemorando a inauguração do ginásio. Eu só queria o vento nos peitos. Até voltar para pegar o boné no chão era divertido. Imagina. Ficava mirando ele na volta, de butuca, preparando o bote. Pescava de primeira, meu pé o arpão. Nem descia da bicicleta. A inauguração da nova quadra atraiu tudo quanto é parente e aderente. Os tios vieram da zona rural. Aquele dia, a casa cheia de primos, ninguém falou sobre a doença do vovô. O cimento fascinava: nós que vivíamos com ciscos nos olhos, poeira nos cabelos. Sempre comigo aquela sensação de esfoliar os calos dos pés no concreto da quadra. O suor forte por cima misturado com do vigia







Rodrigo M Leite
Inédito em livro





Naquele dia mamãe apareceu mais cedo na escola. Acabara de sair do leito de vovô, no HGV. Não fizemos perguntas, já sabíamos que ele havia partido. Caminhamos abraçados pela Frei Serafim, suando, na cola de um caldo de cana com pastel. Tudo vai ficar bem, ficaremos mais unidos. A gente segurando o choro. Depois do caldo, mamãe comprou uns quadrinhos antigos ao lado dos correios. Ainda hoje comigo aquelas histórias

Rodrigo M Leite, via blogue do autor,
Da série: Estrelas ou Poemas Esquecidos Incrustados no Ferro

Geraldo Brito e a história da música no Piauí: entrevista, por Laís Lustosa


"O #Abraçaço chega em Teresina, Piauí.
Na foto, com o poeta Geraldo Brito em Teresina, em 1979"
Fonte: Caetano Veloso via Facebook

Geraldo Brito é uma pessoa de múltiplos talentos: violinista, guitarrista e arranjador desde a década de 1970. Ele fez a primeira versão de Go Back, de Torquato Neto e traz muitas influências de jazz e blues. É professor de violão e guitarra da Escola de Música de Teresina desde 1984.

O senhor acha que o piauiense tem consciência da história da música do Piauí, dos anos 60 pra cá?

G: Não, não tem. Hoje ninguém tem. Eu acho que agora, a partir da década de 2000, houve essa procura, está se formando mais essa coisa do apanhado histórico. A faculdade resgatando, os alunos indo atrás. Eu acho que a partir dessa década de 2000 a gente pode retomar isso. Eu quero lançar um livro com coisas que eu escrevi, informações dessas décadas passadas. Nos anos 60, começaram a aparecer os chamados conjuntos, depois passou a ser grupo, hoje é banda. Mas eles estão copiando, tipo cover, faziam uma banda para tocar música que ouviam no rádio. Eu acho que essa minha geração nem se preocupou com isso, bateu essa coisa de fazer tudo autoral, fazer composições próprias.

O senhor acha que os músicos piauiense de hoje tem preocupação em estudar música?

G: Há. Hoje tem mais essa preocupação. Por exemplo, no tempo que eu comecei e outros músicos bem antes de mim não tinham essa facilidade que tem hoje. Hoje você pega uma música que você se interessa, vai ver na Internet, está tudo divulgadinho. Tablatura, partitura, letra, do jeito que você quer. Vídeo aula, por exemplo, os alunos veem exatamente o que os músicos estão fazendo. Então, isso tem proporcionado bons músicos. Hoje só não toca bem quem não quer, basta ter uma inclinação para tocar. A nossa formação era percepção auditiva. Botava o disco com aquelas vitrolas que tinham a rotação 45 rpm. Hoje não, está tudo aí.

Dos anos 70 pra cá, quais foram as principais variações de estilo da música piauiense, que o senhor pode perceber?

G: Quando a gente começou a fazer música, no meio dos anos 60 começou aquela coisa dos Festivais universitários. E só aconteciam no Rio de Janeiro, São Paulo, aqueles festivais famosos onde apareceram Chico Buarque, Caetano Veloso. Mas a partir dessa década surgiram vários em várias outras universidades. E, com essa facilidade, com essa adesão e explosão dos festivais, ficou em alta essas músicas do Fagner, Belchior, Geraldo Azevedo, música mais regionalista. Então nós absorvemos essa informação, de ouvir essa música. A gente fazia muita música mais regional. Aí vieram outras correntes que faziam músicas tipo blues. Tinha a corrente que fazia mais rock’n’roll e corrente que fazia a MPB mais tradicional. Hoje tem pessoas que começaram a trabalhar com xote, com baião. Hoje já tem até maracatu que é um ritmo de Recife, de Pernambuco.

Na sua opinião, quais são os três maiores nomes da música piauiense nos anos 70? E quais são os três maiores nomes de hoje?

G: Eu gostava muito do Cruz Neto, do Magno Aurélio, que é compositor e do Aurélio com o Zé Rodrigues. Esses três eu gostava muito. Hoje, eu estou ouvindo muito as músicas do Wagner Lacerda.  Eu gostei do disco novo, é o primeiro que eu gostei.  Acho legal essa coisa meio nordeste meio rock’n’roll. E tem um disco agora que eu achei legal, de um parceiro meu, chamado Glauco Luz, cantado pela Carol Costa. É um disco muito legal.

Na década de 70, havia uma preocupação de intelectualizar as letras das músicas. O senhor acha que isso aconteceu no Piauí também?

G: Isso era uma coisa geral. Começou com o Geraldo Vandré, Chico Buarque. Isso lá em 68, só veio eclodir aqui nos 70. As músicas da época faziam protestos. Antes de um show, tinha que passar todas as letras e levar na polícia federal. Chegando lá, eles passavam uma semana pra julgar, pra censurar ou não. E na hora do show, aquela música que você mais tinha mais gostado, chegava a hora de tocar e havia a censura. Então isso marcou. Ainda bem que quando foi em 85, na época que o Tancredo era presidente, realmente acabaram com a censura. Apesar de nesse governo terem censurado o filme Je vous salue Marie, de um cineasta francês chamado [Jean Luc] Godard. Foi um absurdo, a Igreja entrou na questão. Viram o filme como algo muito pejorativo e houve essa censura. Mas de lá pra cá não. Semana passada, o Caetano Veloso chamou o Lula de analfabeto. Eu não gostei muito, apesar de eu gostar muito do Caetano. É o outro lado da liberdade de imprensa, coisas que você jamais imaginaria ver ou ouvir nos anos 60 até 80.

O senhor acha que os piauienses não valorizam a música feita aqui, os artistas locais?

G: É. Eu não vejo isso com tanto gosto como eu vejo com a música do Ceará. Você chega lá, toca muito, principalmente nas rádios, universitárias. Por onde eu ando no nordeste, eu vejo que toca bastante. Aqui que eu acho que não. A rádio Cultura toca mais, outras rádios alternativas… Mas, mesmo assim, ninguém se liga muito. Que isso mude, daqui pra frente, que haja mais procura, maior interesse nas músicas. Houve uma lei daquela vereadora, Trindade, na época que era vereadora dela que obrigava as rádios a tocarem 20% da programação de música piauiense.  Mas elas ficaram com raiva e não tocavam na programação normal, tocavam no domingo, num momento qualquer rapidamente. Agora até toca muita música brasileira, mas a música americana é bem mais forte. Mas mesmo assim, as rádios tocam uns forrós que vêm de Fortaleza, e não tocam nada da gente.

Quanto aos recursos técnicos disponíveis para gravação e distribuição da música piauiense, você acha que são satisfatórios?

G: Antes não tinha, mas hoje já tem vários estúdios, como o estúdio do Márcio Menezes, que fica lá na Morada do Sol, é o Bumba Records. Eu, por exemplo, estou gravando um projeto instrumental no estúdio da Rádio Pioneira. Hoje já dá pra fazer isso legal.

O senhor foi contemporâneo de Torquato Neto. Como o senhor avalia a contribuição dele para a música popular local e nacional como um dos expoentes do movimento tropicalista?

G: Eu fui contemporâneo assim, quando eu estava começando a fazer música, ele morreu, de maneira que eu só o vi de longe por aqui. Houve essa aproximação por parte dele com um grupo que estava fazendo jornal. Mas o interesse dele era de gente que estava começando a compor, e o Torquato saiu daqui logo. Tinha conhecido Caetano e Gil na Bahia, e daí surgiu o movimento Tropicalista com momentos muito marcantes naquela fase do Brasil, ao mesmo tempo em que faziam uma ponte com as coisas que estavam acontecendo lá fora, como os Beatles e Jimi Hendrix.

Como foi atuar no cenário cultural piauiense marcado pela censura militar?

G: Na época braba da ditadura mesmo, no tempo do AI-5, ano 68, não tinha ainda ninguém fazendo essas coisas. Quando se começou a fazer música, já estava no governo Geisel, tudo tinha censura. Então foi uma barra muito pesada que se passou. Tinha um jornal chamado Chapada do Corisco que acabou porque era muito perseguido. Se você tivesse um livro vermelho era censurado, tirado de circulação, porque se era vermelho, você era considerado socialista. Cheio de bobagem. Mas aí houve a anistia em 79. Já nos anos 70, o pessoal que tinha sido exilado começou a voltar.

O senhor sofreu algum tipo de represália nessa época?

G: Sofri, como eu já falei, fui censurado pelo governo. Fazia a música, mandava, ensaiva, e na hora eles não liberavam.

Mas eles diziam já na hora do show?

G: Por exemplo, hoje é sexta e o show seria domingo. Eu levo a música hoje, sexta. Liberavam ou não amanhã ou um dia antes. Já é sábado e não tem nem mais como ensaiar coisas novas. Era irritante por isso. Era uma coisa que violava os direitos humanos.

Eu vi que o senhor é formado em Administração pela UFPI. Por que o senhor resolveu seguir a carreira musical e não a carreira de administrador? O que pesou na escolha?

G: Eu comecei a compor em 72. Quando foi em 74 eu passei no vestibular. Foi uma época que a faculdade era uma coisa muito valorizada, todo mundo tinha que fazer. E eu também tinha interesse. Eu gostava de economia, queria entender economia, mas não tinha. O que mais se aproximava, onde a gente estudava teoria econômica, era administração. Não tinha nem o curso aqui, eu tive que fazer em Parnaíba, no campus da Universidade Federal. Quando eu estava no terceiro ano, a música já começou a ser algo muito forte. No terceiro ano, passei no vestibular para música, mas tinha que terminar administração. Mas a música me pegou mais de uma maneira muito forte. Hoje, não que eu me arrependa de ser músico, mas eu queria ter visto as coisas por um outro lado mais racional.

(...)

Geraldo Brito entrevistado por Laís Lustosa (laislm@hotmail.com)
Publicado originalmente em Entretenewsmento