18.2.16

RUMO NORTE (1979) - Irene Portela






01 - De São Luiz a Terezina - João Do Vale & Helena Gonzaga - 0:00
02 - Sanharó - João Do Vale & Luis Guimarães - 3:16 
03 - Sabiá - João Do Vale, Luis De França & José Cândido - 5:33 
04 - Nécio Costa - João Do Vale - 7:20
05 - Passarinho - João Do Vale & José Lunguinho - 10:23
06 - Fogo No Paraná - João Do Vale & Helena Gonzaga - 13:33
07 - Lua Peixe - Irene Portela - 17:14 
08 - Até Quando - Irene Portela - 19:18
09 - Dia De Festa - Irene Portela - 21:31
10 - Alcântara - Irene Portela - 23:46
11 - Folha Verde - Ricardo Gouveia & Irene Portela - 25:13
12 - Na Hera Dos Muros - Irene Portela & R. Parreira - 28:09
13 - Guerreiro - Irene Portela - 31:12 



[...]



DE SÃO LUIZ A TEREZINA | Irene Portela 
Composição de João do Vale & Helena Gonzaga 


Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai que dor no coração

E a trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Bom dia Caxias
Terra morena de Gonçalves Dias
Dona Sinhá avisa pra seu Dá
Que eu tô muito vexado
Dessa vez não vou ficar

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Boa tarde Codó, do folclore e do catimbó
Gostei de ver as cabroxas de bom trato
Vendendo aos passageiros
"De comer" mostrando o prato

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Alô Coroatá
Os cearenses acabam de chegar
Meus irmãos, uma safra bem feliz
Vocês vão para Pedreiras
Que eu vou pra São Luís

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai que dor no coração

E o trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa



[...]



Depois de mais de dez anos de carreira, sem conseguir gravar, foi descoberta pelo produtor Marcus Vinícius, como compositora, intérprete e diretora musical do espetáculo "A missa do vaqueiro". Em 1979, lançou pelo selo Marcus Pereira seu primeiro disco, "Rumo norte", interpretando diversas composições de sua autoria, entre as quais "Lua peixe", "Dia de festa", "Guerreiro", além de diversas composições de João do Vale, como "De Teresina a São Luís (trem do Maranhão), em parceria com Luís Gonzaga, "Sabiá" e "Fogo no Paraná". Via Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira.

BALADA DOS MORTOS NA PAREDE ETC., por Menezes y Morais




teus mortos
estão nas paredes
nos álbuns
memórias
dramas

te espiamudos
denunciam calados
o crime q comeste

teus mortos
não perdoaram

eles vivem
todo dia
quando reparas
nos álbuns
           paredes
                       memórias
                                     dramas
é inútil tentar/remover os mortos/
dessas paragens
eles estão em ti

te acompanham
procriam na sala
quarto lembranças

convive com os mortos
é mais seguro do q conviver com os
vivos
a vida é túmulo em via



Menezes y Morais
em DIÁRIO DA TERRA (1984)



PÉS-DE-VENTO, Cinen de Sousa




Pelas quintas, quintais e passeios
ainda o benevolente
verde da cidade.
Carnaubeiras da Antonino Freire,
na Vila Poti, amendoeiras,
oitizeiros resistem pelas calçadas do centro
e alamedas.
O caneleiro secular! Algarobas, jatobás, figueiras.
Por que não dizer num alto-falante
que há mais que o verde
um roseiral, colibris e pôr-do-sol
entremeio
a esta Cidade-planeta
de risco aberto, um caso de amor e mil amantes
e esta cor do sol pelo firmamento
como pés-de-vento
que brota livre e engravida pessoas.



Cinen de Sousa
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

17.2.16

NÓS E O ELIAS, Feliciano Bezerra




Eram os anos 80. Alguns arautos da sociometria dizem que foram os anos da década perdida. Bobagem, foram anos galantes; claro que havia algo de ressaca do desbunde dos anos 70, mas a cultura continuava a respirar, e em Teresina um de seus respiradouros mais interessantes era o bar Nós e Elis

Refúgio da arte e da cultura piauiense, lugar de exercício da imaginação, de consumo delicioso de farras estéticas, o Nós e Elis tinha algo aurático, não se repetia, não tinha reprodutibilidade (contrariando Walter Benjamin). Ir ao Nós e Elis era um ato natural e pleno de significação, sabíamos de antemão que valeria a pena sair de casa. Os shows, os recitais, as conversas, os papos cabeça dos intelectuais em transe, os pequenos torneios ideológicos, os diagnósticos políticos, os projetos culturais traçados ali entre copos e mentes, os encontros furtivos, os exercícios de fidelidade conjugal, tudo animava as noites etílicas, alegres e abertas. 

A abertura começava pela própria estrutura do bar. Arquitetonicamente ele se abria para a rua, não havia uma rígida divisão espacial entre o dentro e o fora. Outro item interessante de suas divisões é que entre o palco e as mesas havia um pequeno corredor, indo do balcão do bar até os banheiros, pelo qual funcionava uma espécie de passarela. Nessa travessia praticava-se, digamos, exercícios narcísicos, pois ninguém passava por ali sem ser notado; às vezes era desafiador, poderia atrapalhar o espetáculo, de tão próximo do palco. Os mais discretos e tímidos evitavam aquele caminho e saiam enroscando-se por entre as mesas até chegar aos banheiros. Os espalhafatosos e os distraídos faziam questão de usar a travessia, invariavelmente cumprimentavam quem estava no palco, posando de íntimo do artista e descolando um naco de exibição. Mas isso era feito com certa puerilidade, sem muitas implicações, o Nós e Elis dava permissões, era um espaço que realmente abrigava vários instintos. 

Toquei e cantei muitas vezes lá, não cheguei a ser um músico ‘residente’ como muitos colegas, orgulhosamente, o foram, mas experimentei o encanto, havia algo de diferente em tocar naquele bar, sempre me pareceu o palco principal da noite Teresinense. 

O Elias era um misto de dono de bar e agitador cultural, a forma como ele concebeu o Nós e Elis refletia sua cabeça de homem de esquerda (à época a nomenclatura ainda se sustentava), que acreditava no binômio cultura e política e no incremento desses dois campos. Elis Prado Jr. era político e ao mesmo tempo um rigoroso amante das artes. Suas inarredáveis exigências em nome da qualidade eram desafiadoras, porém gratificantes, pois só ali, nós artistas, poderíamos experimentar e ousar. Ele checava pessoalmente o set list de quem fosse cantar e ia cortando qualquer concessão a canções gastronômicas, qualquer sucesso fácil e ocasional ou pérolas do cancioneiro romântico ligeiro. E um detalhe, avisava-nos: “não aceite pedidos, toque seu repertório”. Era rígido e doce, circulava entre as mesas, com uma taça de conhaque na mão, conversando com todos, sempre entusiasmado com alguma ideia. Eventualmente subia ao palco pra dizer poemas, um lírico inveterado. 

Era admirável a energia e a determinação do Elias, ilustro com o seguinte episódio que me aconteceu: certa noite de sexta-feira eu estava em casa, por volta das dez horas, já encerrando minhas atividades noturnas e preparando-me para dormir quando bateram à porta. Era o Elias, e antes mesmo de eu me desfazer da surpresa ele deu boa noite e foi direto: “Fifi, estou sem ninguém pra tocar hoje à noite, vai ter que ser você, vim buscá-lo, pagarei cachê dobrado e ao terminar venho lhe deixar em casa”. Era incrível, e minha casa, no Monte Castelo, não era tão perto assim. Bem, diante do imperativo convite, só me restava obedecer, peguei o violão e fui. Toquei, foi uma ótima noite, recebi o cachê (dobrado) e fui devolvido a minha casa. Este era o Elias, naquela noite, por alguma razão o músico escalado faltou e como o Nós e Elis não podia ficar sem atração o Elias dava um jeito.   

O Nós e Elis era a urgência da expressão, o Elias era a urgência da ação, tão urgentes que foram embora muito rápidos. Saudades. 



Feliciano Bezerra (Fifi)
em Nós & Elis: A gente era feliz - e sabia
Organizado por Joca Oeiras

RIO SECO, Clóvis Moura




         Cemitério de peixes enterrados
no areal ardente e transparente,
pedras que furam os pés dos caminhantes
marcaram a transferência dos sedentos.

         Pedaços de memórias marulhantes
ainda chegam à noite nos seus ecos
e roteiros de barcos são fantasmas
na memória de luas macilentas.

         Há no sol que caustica as suas curvas
um sádico desdém por suas margens
que hoje se fundem ao leito que líquido.

         As carcaças de tíbias e caveiras
de bois marcam a distância do mistério
e o suor é sua linfa derradeira.



Clóvis Moura
em Flauta de Argila (1992)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

TERESINA | GENTE BOA, A. Tito Filho




DONDON, repórter, redator, tipógrafo, revisor, diretor, impressor, vendedor, proprietário do jornal "O Denunciante", noticioso, crítico, censor de costumes, espinafrador de políticos e administradores. Um dia os poderosos do momento consideraram louco o jornalista e vingativamente o puseram no hospício. Quando saiu, pensou-se que recuaria nas censuras e espinafrações. Desassombrado, reapareceu mais valente, sem que lhe faltasse o esclarecimento identificador do parafuso frouxo: "O dono deste órgão esteve recolhido ao asilo dos doidos, onde passou dez dias, seis por conta do governo e quatro por sua própria conta". Exerceu ainda o oficio de vendedor de feixes de capim em lombo de jumento. Três animais ensinados. De acordo com a voz de comando de Dondon, os jegues seguiam pela direita, pela esquerda ou efetuavam alto. Dava gosto ver o comandante pelas ruas, calças sungadas até os joelhos, alpargatas vistosas, camisa de manga arregaçada, oferecendo capim aos burros de Teresina.

MARIA SAPATÃO, negra gorduchona, beiços grandes, dentes alvos, peitões caídos, pernas fortes, barriguda e bunduda pezões nos sapatões famosos, enfeitava-se de um dilúvio de voltas baratas no pescoço, boa dúzia de pulseiras nos braços roliços, anéis pelos dedos das mãos, até no polegar. Era o toque de nobreza idiota passeando as ruas.

JAIME DOIDO, dos mais acatados birutas da cidade. Famoso cabo de eleições da antiga União Democrática Nacional, a famosa ODN como a apelidava a chacota dos adversários. Não gostava de dinheiro muito. Dinheiro só de pouquinho. Dinheiro muito fica dono da gente - filosofava da forma de bom lelé da cuca.

AVIÃO, dos citados, o único que ainda não se foi desta para melhor vida. Risonho. Põe caixa enorme de papelão na cabeça e sai a enchê-la de quanta besteira arrecada pelas calçadas. Aprecia encontros noturnos com perus em quinta de casa alheia. Quando o procuravam, devolve a ave que morre na véspera. Vive a imitar velhos filmes e seriados de aviação:

- Onnnn... onnnn... onnnn... onnnnn - acompanhando os roncos fanhosos de movimentos ondeados da mão direita espalmada, como se estivesse em reproduzir as piruetas de heróis cinematográficos à procura dos homens maus.

E avião faz de mocinho, indicador apontando, firme, como revólver de balas sem conta. e ele:

- Morreu, bandido covarde... tá... tá... tá... tá...

Representações nas vias públicas. De graça.



via Jornal O DIA
em 20 de agosto de 1989

MENINO DE RUA, V. de Araújo




Em flagrante denúncia,
aquela criança sem teto,
sem nome, sem pai...
com saltos mortais
escreve sua história,
enquanto banha despida
nas águas poluídas
das fontes luminosas.



V. de Araújo
em POESIA TERESINENSE HOJE
Teresina: FCMC, 1988

15.2.16

DESDE SEMPRE, Elias Paz e Silva


no cotidiano da cidade
o dia eterno se inaugura
alegre rumorejar de flores


Elias Paz e Silva
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

3.2.16

PESADELO ATROZ, Nogueira Tapety




Mal sabe ela que todo esse desregramento
é o véu sob o qual minha tortura oculto,
Pois quem vive como eu de tormento em tormento,
Necessita viver de tumulto em tumulto...

O que eu busco ao bordel, é a paz do esquecimento,
Mas na noite do vício em as mágoas sepulto,
Como um raio a luzir, de momento a momento,
Fere-me o pensamento o clarão do seu vulto.

Foi o vício o recurso extremo, o último apelo,
Que lancei, torturado, ao rumores do mundo,
Para me libertar deste amargo desvelo.

E quanto mais me excedo e em rumores me afundo,
Mais se arraiga em minh'alma este atroz pesadelo,
Este afeto infeliz cada vez mais profundo.


                               Teresina, 1915



Nogueira Tapety
em Arte e Tormento (1990)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

"Lucidamente", Chico Castro




Lucidamente
te encontrei Help pela cidade
foi a maior felicidade
a maior camaradavagabundagem.

Sua avemente
você me deixou
show
show
muito louco
louco
louco.

Anda menina ama
deixa o fio teu riso passar
passarinhar passarinhar passarinhar.

Suavemente
luciacidamente
eu voo.



Chico Castro
em O Livro da Carona 
Teresina: Edição do autor, 1994

PONTE WALL FERRAZ, Guardia




Vou pela medida da velocidade
Onde rola pedra de dureza grave
Onde a gravidade puxa pro abraço
Vou pelo caminho em que tudo move
Onde o vento sopra um calor de lava
Onde a morte quer desvirginar a alma

Vou surfando trem na hipervia
Nessa guia sigo viagem
Vou surfando trem na hipervia
Tempo adentro peço passagem



(...)



Canção do segundo LP da Guardia. Gravado entre 2014 e 2015 por Jan Pablo e Cavalcante Veras na Canis Vulgaris Records. Produzido por Jan Pablo e Cavalcante Veras. Mixado e Masterizado na Canis Vulgaris Records por Jan Pablo.



Guardia / Imperfei (2015)
Jan Pablo e Cavalcante Veras
Canis Vulgaris Records

2.2.16

II OS DIAS, H. Dobal




Sobre as águas de um rio onde vareiros
silenciaram suas mágoas.
Sobre outro rio cantado
por lavadeiras,
e o riozinho proclamado
pelos buritizeiros,
sobre os brejos sem nome
onde os riachos começam,
sobre todas as águas
o espírito perene.

Sobre o espírito das águas
que memoraram os dias,
sobre um rio perdido onde os bichos do mato
beberam o fim da tarde,
sobre um vale pastoral onde os rios pensam
sobre a música de vida
dos rios reduzidos a um nome
                                         PARNAÍBA
sobre os rios plenos,
os dias consumidos.



H. Dobal
em O DIA SEM PRESSÁGIOS
Rio de Janeiro: Editora Artenova Ltda. 1969

PASSEIO PELA CIDADE DO SOL, Raisa de Caldas Castelo Branco




Sentada no banco da Praça da Bandeira
o vento todo precipitado
moldava as palavras
derramadas sobre a folha do Caneleiro.
Estiquei os dedos até agarrar
a outra ponta do tempo, e
uma gota de orvalho respingou
no canto norte da cidade.
Dois rios se uniram alegremente.
E o espaço nu e tímido,
agora escorria entre linhas
um quente marrom-esverdeado.
Aceitamos o convite.

Sutilmente
nos traços suaves do Mestre -
agarrei o sol intenso aderido ao sorriso
da senhora do lenço macramé.
E a luz que se esvaía dos poros
fez a alegria pertencer
à nervura sinuosa da folha.
Da ponta sobre o papel.
Das flores na cerâmica azul.
Do boneco Crispim
sobre a estante de madeira cor de cajuína.

Entretanto,
foi de tanto pousar no olhar do povo acolhedor
que a vida tomou as palavras pra si,
E eu, sentada no banco da mesma praça,
vislumbrei o seu mergulho eterno,
ziguezagueante,
sob o céu de Teresina.



Raisa de Caldas Castelo Branco
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

1.2.16

O SILÊNCIO DA "CARMINHA", Luiz Brandão





Agora a eterna e inseparável companheira está só, guardada na pequena e acolchoada caixinha que ele cuidava como o berço de uma criança. "Carminha” não pode entender a súbita separação e a ausência daqueles dedos ágeis que a tocavam elegantes e delicadamente. Também não tem mais a presença dos lábios que a sopravam, às vezes suave, às vezes freneticamente para produzir as mais diferentes e perfeitas notas, numa completa sintonia entre o animado e o inanimado.

“Carminha“ é o nome da flauta de Netinho, o talentoso músico de São João do Piauí que faleceu, prematuramente, na sexta-feira passada, 22 de março, mas cujo nome já está imortalizado em várias canções que compôs e nas que ajudou seus companheiros a compor.

Irrequieto, Netinho da Flauta não teve paciência para ficar nos bancos da universidade, o que talvez tenha sido uma percepção de que sua passagem por aqui não fosse longa. O primeiro instrumento foi-lhe dado pelo pai. Autodidata, em pouco tempo descobriu sua verdadeira vocação e se tornou conhecido no meio artístico por dominar, como poucos, os sons que saiam da sua “Carminha”.

E ele conseguiu demonstrar seu talento nos tempos do Grupo Candeia, do Grupo Varanda, em apresentações nos bares como “Nós e Elis”, no Theatro 4 de Setembro, em praças, em penitenciárias, nas casas do amigos e nos botecos..

A “roça” e o mar eram seus lugares prediletos. Além da música, a labuta com a terra e com os animais eram ocupações preferidas, até porque se considerava um verdadeiro representante do sertanejo, do homem do campo. E era verdade! Netinho se emocionava, tocava e cantava com alma as músicas que falavam coisas do sertão, do nordestino, embora fosse um defensor da ideia de que não existe música de um lugar só. Ele costumava dizer que “a música é universal, tanto faz do sertão do Piauí quanto do Japão. A diferença só está na qualidade”.

Elétrico, o DA Flauta facilmente conquistava a simpatia das pessoas com sua alegria e um jeito espontâneo de agir, criando expressões e palavras que rapidamente passavam a fazer parte da linguagem dos que conviviam com ele. Onde chegava não passava despercebido, retorcia o pescoço, amarrava o cabelo em rabo de cavalo e longo partia para a lorota. Quando se sentia sem espaço, “saia por riba do lajeiro”.

Netinho deixou muitos amigos e admiradores. Era um “cidadão do mundo” como ele mesmo fazia questão de dizer. “Minha casa é o meu chapéu”. Esse espírito aventureiro viajou o Brasil afora, fazendo shows e parcerias com músicos renomados como Xangai, Elomar, Vital Farias e muitos outros.

Apesar de seu enorme talento e da grande facilidade em se relacionar, Netinho da Flauta não passava muito tempo no mesmo lugar. Ao sentir que a situação não estava sob seu controle, avisava logo aos amigos “vou vazar”, ou então “meu irmão, vou decepar os testículos do miau, ou seja, vou capar o gato”. Aí pegava sua Carminha e sumia. Com ele não tinha “dois tempos’ e as dificuldades, essas “comia com coentro e acebolado”.

Tão apegado às mulheres, DA Flauta vivia mudando de lagartixa. Quando pensava na liberdade resolvia “a parada” rapidamente. Era admirador do “Vagal”, o malandro honesto, sujeito esperto. Para Netinho ninguém morria, “pegava o eterno”, o ônibus para o além. Certa vez lhe perguntaram se um amigo comum era diabético, pois passara mal numa festa. De pronto respondeu: “- Não, ele é diambético, fuma uma diamba danada".

Por essa maneira diferente de enfrentar o mundo e se relacionar com as pessoas, muitos “chegados” de Netinho ainda não conseguiram entender o momento que estão vivendo. Não se conformam com o silêncio da “Carminha”. Alguns não acreditam que aquele moço forte e corajoso tenha morrido tão repentinamente.

A esses amigos cabe apenas mandar um recado ao DA Flauta: todos nós achamos que você “pegou o eterno” muito cedo. Mas não há problema, porque qualquer dia “a gente se encontra pra uma outra folia”. Quieta!



Luiz Brandão
em DIÁRIO DO POVO
em 26 de março de 2002

ELIS... & NÓS, Cláudia Brandão




Elis, sozinha, já ocupava um lugar especial no meu coração, por sua voz espetacular e por sua capacidade única de dar vida às canções que interpretava. Aprendi a gostar dela com um dos meus irmãos mais velhos, o Iglesias. Quando,  à Elis, juntou-se o “nós”, no famoso bar da zona leste, meu encantamento foi imediato, não só pelo nome, mas pelo clima de descontração e intimidade com a música de qualidade, marca registrada da casa.

Ainda adolescente, começando a cursar Comunicação, passei a frequentar o lugar e a incorporar aquele espírito descontraído de papos sempre animados, sem pressa alguma, quando podíamos discutir desde as mais simples questões do cotidiano às teorias mais complexas sobre a formação do universo. O tema e a conclusão da conversa era o que menos interessavam. Bom mesmo era ficar ali, ganhando horas ao sabor do acaso, sem nenhum código preestabelecido ou formalidade de qualquer natureza.

Em pouco tempo, o Nós e Elis virou a “praça” dos tempos modernos. Lugar de encontro para quem queria ver novos e velhos amigos e saber o que estava acontecendo na cidade. Era como uma confraria, formada por pessoas que gostavam de arte, cultura e “causos”.

A proximidade física com o pequeno palco onde os artistas se apresentavam fazia com que nos sentíssemos parte do show. Dava até para interagir com os músicos, pedindo a canção da nossa preferência. Tudo atendido na maior cordialidade possível. Lembro do Geraldo Brito, do Netinho da Flauta, da Laurenice França, do Cruz Neto e de tantos outros artistas piauienses que batiam ponto assiduamente por lá.

O lugar era apertado, mas nem por isso desconfortável. Pelo contrário, fazia parte do charme do bar o número reduzido de cadeiras, porque assim circulávamos de um lado a outro, permitindo que todo mundo pudesse encontrar todo mundo. E, cada vez que esbarrávamos em algum conhecido, era motivo para um brinde, uma celebração especial.


Ao pé do balcão, sob a luz do luar, começaram grandes amizades, alguns namoros e, dizem, até casamentos. Também ali se perderam grandes amores. Mas todo bar que se preze precisa mesmo ser testemunha de histórias de amor, tristes ou alegres. E com o Nós e Elis não foi diferente. A mais triste de todas, porém, foi o anúncio do fim do bar. Perdíamos a nossa referência, nosso templo de lazer, ficando em nós apenas a saudade de um lugar em que a boa música embalava nossos encontros, sob o olhar silencioso da pimentinha Elis.



Cláudia Brandão
em "No Nós & Elis: A Gente Era Feliz – e sabia"
Teresina: Gráfica Halley, 2010
Organizado por Joca Oeiras

29.1.16

GARAPEIRA ESTUDANTINA, José Ribamar Garcia


                                                                     "Filomena cadê o meu / Filomena cadê o meu
                                                                     O meu beijo gostoso / Que você prometeu."


A letra dessa canção, tocada na amplificadora instalada em frente à Merenda, tinha esse refrão, que papai acompanhava num assovio quase inaudível. E, quando não havia freguês, ele ficava na porta da garapeira, com a mão esquerda apoiada no portal e o corpo um pouco inclinado, relaxado, apreciando o movimento da rua, que chamava de cinema. Dali observava também o filho, que se distraía no velocípede, circulando o quarteirão. Este velocípede fora um presente ao menino por ter tomado uma série de injeções sem fazer escândalo. Palavra sua era honrada, custasse o que custasse.

- Macho, mesmo, o meu filho!

A sabedoria: louvar as boas ações e rebater as más no momento exato, de forma que não ficasse na criança qualquer dúvida ou sentimento de injustiça.

A penúltima casa comercial a desaparecer naquele trecho da Rua Coelho Neto. Sobreviveu por duas décadas, o suficiente para marcar presença na vida da cidade. A Casa Carvalho na esquina, depois ela - Guarapeira Estudantina -, o Cine São José, outra garapeira, que não chegou a ser sua concorrente, tendo logo fechado as portas, e a farmácia Botica do Povo no fim da quadra. Do outro lado da rua, a Rádio Difusora, onde, aos domingos pela manhã, havia um programa de auditório com o animador Rodrigues, apresentando cantores, calouros e distribuindo prêmios. Uma espécie de Silvio Santos piauiense. A Merenda, misto de bar e lanchonete, vendia uns pastéis quentinhos, saborosos, e uma abacatada forte, gostosa. A amplificadora ficava à sua porta, no alto dum poste, repercutindo as músicas tocadas na vitrola (havia dezenas delas pela cidade). No Cine São José, o porteiro me deixava entrar de graça, mas não entendia nada do filme, devido à pouca idade. E não me aquietava, saía a todo instante para contar a papai o que via na tela. Em seu lugar surgiria o armazém, também São José.

O prédio era simples, comum, espaçoso, com duas portas de entrada. E o nome garapeira estudantina escrito à tinta na fachada. O balcão em forma de "L". Ao entrar, se via tudo: a prateleira tomando a parede de ponta a ponta, a engenhoca, montada sobre um tripé de ferro fixado ao chão, bem visível para que o freguês visse o caldo descer fresquinho das moendas, que um dia triturou o dedo indicador do proprietário, deixando-lhe a marca eterna.

- Quantos dedos eu tenho nesta mão (a direita)? - perguntava ao filho.

- Quatro e meio.

E ele ria, com aquele riso franco. Seguindo, um armário pequeno, onde se guardavam documentos e o revólver, Smith and Wesson, calibre 32. O depósito de pães, comprado na padaria da Praça do Liceu. Tudo limpo, asseado. Daí o sucesso com a freguesia, vasta, variada. A casa continuava para os fundo, com outros compartimentos, destinados ao armazenamento da cana-de-açúcar. Ao lado, o terreno vazio, usado para a guarda o bagaço e, também, para o plantio de mamoeiro. O frutos eram colhidos de vez, cortados nas extremidades e riscado em vertical para escoar o leite. Assim, amadureciam sem amargume. Amadurecidos, eram expostos, à venda, sobre o balcão. Outra fonte de receita, afora a do vinagre. Este preparado da cana estragada, após um processamento simples, mas demorado, que despendia dias e requeria paciência. 

A cana era entregue na porta, trazida por velhos caminhões. Nem sempre havia fornecimento regular deste produto. Em alguns meses do ano, escasseava, chegando a faltar. Era um tormento, pois, sem ele, não tinha como trabalhar. E, para evitar a a paralisação, papai corria o interior, em longas e exaustivas viagens, a fim de comprar diretamente do produtor, que, nessas circunstâncias, cobrava acima do normal. O custo saía mais caro ainda por causa do frete. Enquanto isso, para não se parar, vendia-se refresco de abacaxi ou de coco. Mesmo assim, a demanda diminuía porque o pessoal preferia mesmo era o caldo de cana. Gelado, natural (sem gelo) ou misturado, ingerido com pão, massa grossa ou fina. Era um lanche barato, nutritivo. Diziam, inclusive, que servia para aumentar o leite materno de quem amamentava, assim como para se certificar da cura da blenorragia, pois, se após um copo de garapa não descesse mais o líquido, era porque se estava definitivamente curado. Se isso tinha base científica ou não, é outro assunto. A crença havia.

O seu dia começava cedo. Abriam-se as portas às seis da manhã, antes já se tendo apanhado os pães na padaria. O empregado chegava às sete, indo buscar o gelo na fábrica da beira do rio de propriedade do Sr. Joaquim Nelson. Trazia duas barras, que eram serradas em pedaços colocados num recipiente que os conservava por todo o expediente, encerrado às nove da noite, quando se lavava a casa. A cana, antes de ser moída, era raspada.

Sábado era o dia das esmolas. E aparecia pedinte de todos os cantos. Formavam até fila que dobrava a esquina da Casa Carvalho. Cada um ganhava uma caneca cheia de garapa e um pão. A maioria já conhecida. Dentre eles, estava sempre o "Doutor", mais débil mental que mendigo. Tinha mania de ler anúncios, o que fazia de maneira engraçada, soletrando pausadamente cada sílaba.

Pedia-se para que lesse, e ele não se fazia de rogado. Olhava os cartazes pregados nas paredes e caprichava: "bri-lhan-ti-na Glos-to-ra, Bi-o-tô-ni-co Fon-tou-ra". Pobre "Doutor", tão manso, tão inofensivo, tão idiota. 

Na verdade, o fim da Garapeira Estudantina começou com a doença de papai. Bastou que este adoecesse para que ela entrasse em decadência. A freguesia foi sumindo aos poucos. E o novo proprietário, ignorando os segredos do negócio, não pôde evitar a sua queda. O fechamento de suas portas foi, sem dúvida, o final de uma época naquele trecho da cidade.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

ESTIGMAS, Carvalho Neto




devolva
meus sapatos rotos
que já não tenho estradas sem fim.

devolva o ciclo dos ventos
onde jovens valsavam suas esperanças
e risos
ao sabor das águas e dos mitos
flores de beira rio.

devolva as escrituras
não as do mar morto
as gravadas na cerâmica
bela e frágil
do poti velho.

devolva o princípio mágico
o verbo, o poema.



Carvalho Neto
em REVISTA PRESENÇA
Ano XXI, número 35, Teresina, 2006

EVOCAÇÕES, Lucídio Freitas


I


Como é bom recordar... Lembrando, a gente
Como num sonho de ouro se ilumina.
Recordação é fonte, alta e divina,
De onde brota o consolo do presente...

Recordar... reviver o que a neblina
Do tempo encheu de névoas, de repente...
Voltar atrás, rever, serenamente,
A alma e a cinza de um bem que não termina...

Como é bom recordar! Prolonga a vida
Vivendo os dias mortos, revivendo
Nas sombras outra sombra ainda querida...

Recordo. O pensamento esvoaça, a esmo.
Recordo, e recordando é que eu vou tendo
A infinita consciência de mim mesmo...



Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

28.1.16

CARTÃO POSTAL 80, Chico Castro




Espirrei:
Lixo da mais pura aspirina.
Sou:
De papel passado em cartório,
que tal?

Um homem urbanizado
entre prédios, luzes e avenidas
carros-galos
som sobre som sobre sonho
ufa:
não me ouço mais
nem gritando comigo mesmo.



Chico Castro
em O Livro da Carona 
Teresina: Edição do autor, 1994

IMPRESSÕES DE VIAGEM, Edmar Oliveira


Uma amiga perguntou pelo Piauinauta, que não sai há quase um mês, e eu falei que estava enrolado com o lançamento do meu TERRA DO FOGO em Teresina e que tinha de ficar lá por uns dez dias. Ela então falou: “sei, você está de licença paternidade”. Acertou assim.

Cheguei para o “Sarau dos Amigos do Cineas” na Oficina da Palavra, onde o livro foi muito bem recebido. Passei toda a semana indo ao stand do Leonardo, que tem editado livros de escritores da terra (muito bem caprichados), autografando o TERRA DO FOGO, que por sinal esgotou o estoque de lançamento. Eu e Salgado Maranhão fizemos um bate-papo literário discutindo o meu livro e o dele (MAPA DA TRIBO) para uma plateia de cinquenta a sessenta pessoas às oito horas da manhã, o que me surpreendeu. Geraldo Borges estava lançando ESTAÇÃO TERESINA anunciado aqui no Piauinauta anterior.

Boas conversas com Paulo Tabatinga, Gisleno Feitosa, Rodrigo M Leite, Durvalino Couto, Feliciano Bezerra, Wellington Soares, Cineas Santos, Graça Vilhena, Paulo Vilhena, João Carvalho, Fonseca Neto, Alexandre Carvalho, Gilson Caland, Climério Ferreira e  Helô, Keula Araújo, Luana Miranda, Poeta Willian, a muito jovem e bonita escritora Fran Lima, Deusdeth Nunes e a turma do Conciliábulo, entre tantos outros que tive por bem encontrar. Fui entrevistado por várias emissoras de rádios que cobriam o evento, entre elas a de Marcos de Oliveira e a de Leide Sousa. E ainda deu tempo gravar um depoimento sobre o cinema marginal dos anos 70 para Patrícia Kelly e Morgana, que fazem um documentário como monografia do curso de história e jornalismo. As meninas são brilhantes. E eu estou tão velho que virei pesquisa. Mas é bom ser reconhecido.

Tinha tudo pra ficar contente. Mas não fiquei.

Me hospedei no Hotel Central, em frente ao Clube dos Diários, ao lado da Praça Pedro II e seu Teatro 4 de Setembro, complexo que foi outrora o centro pulsante e cultural da cidade. Após cinco dias fui para a casa do meu irmão Maioba angustiado pela solidão. A cidade entre os dois rios, que se estendia do encontro de suas águas no Poty Velho até a Vermelha (citada no filme genial do Torquato Neto) não existe mais. Foi definitivamente abandonada por seus habitantes que atravessaram o Rio Poty e ergueram uma cidade moderna na zona Leste. Mas que não tem nenhuma lembrança da minha cidade.

A minha cidade é uma cidade fantasma. Os poucos e pobres habitantes que ali ficaram não saem de noite nas suas ruas escuras com medo de assalto. Trancam-se em suas casas. Os de mais posses fazem cercas elétricas para protegerem a sua solidão. As ruas foram entregues ao drogados, aos desocupados que ocupam uma cidade sem lei e sem ordem. Em suas ruas desertas, mesmo ao meio dia, encontrei duas pessoas usando drogas. Não senti qualquer medo. Eram pessoas que eu conhecia da minha infância naquelas, outrora, ruas agitadas. Agora estavam os dois usando drogas numa cidade trancada com medo deles. Esquisito. Conversamos sem medo entre nós. Eu não me senti ameaçado por eles. Fiquei com pena de a cidade os terem tragado pela fumaça de um inexistente futuro.

Sem querer contrariar os meus anfitriões do Salão do Livro do Piauí (SALIPI), até entendo os seus motivos de o terem tirado da Praça Pedro II para que acontecesse este ano na Universidade Federal, que também fica na Zona Leste da nova cidade. Mas não concordo.

Desculpem, mas penso que a cultura abandonou também a cidade antiga. Não digo que ficou elitista porque a Universidade pública congrega estudantes de todas as classes. Mais ainda com o sistema de cotas. Mas acho que a cultura abandonou também a cidade antiga. É preciso que analisemos este fato mais devagar. Não vou fazer agora.

No livro que em Teresina fui lançar conto uma história triste que a cidade tinha esquecido. Os incêndios dos anos 1940. Acho que em breve um cronista vai contar essa história, também muito triste, do abandono da cidade antiga. A impressão que eu tive, e que me encheu de tristeza, é que ela não mais existe. E uma cidade sem passado é uma cidade sem futuro. 


em 15 de junho de 2014
em Piauinauta

UM ESTRANHO EM TERESINA, Cunha e Silva Filho




Estive há pouco em Teresina e desta feita me achei um peixe realmente fora d’água, um estranho no ninho. Não que o desejasse, mas a culpa, leitor, é unicamente minha. Quem manda não a ter frequentado mais amiúde.

Da janela do hotel, lá fora, dava uma espiada para o que poderia ver que valesse a minha atenção ou curiosidade. Pois não é que procurei e achei. Era a visão de uma mulher, em plena tarde de um sol escaldante, caminhando, caminhando, caminhando, debaixo de uma sombrinha. Claro que não foi só aquela mulher que portava uma sombrinha para abrigar-se do sol abrasante. Não me lembro de outras vezes que andei por Teresina de reparar nesse costume local, aliás, bem justo e necessário, de usar uma sombrinha contra o rigor solar. Esse hábito me parece ser apenas feminino, já que não vira nenhum homem utilizando um guarda-sol.

Aqui no Rio de Janeiro, usar uma sombrinha ou guarda-chuva, em pleno calorão, não é comum como na “Cidade Verde”. Lá é hábito; aqui, é exceção, chega mesmo a ser constrangimento para quem dele faz uso com receio de se ver vítima de um gaiato qualquer perguntar-nos se está por acaso chovendo. O carioca sofre, mas não abre o guarda-sol. “Os cariocas somos pouco dados” aos guarda-chuvas, ou chapéu de sol ou muito menos a uma sombrinha, para nos intrometermos, sem sermos chamados, no labiríntico intertexto machadiano.

Das últimas vezes que fui a Teresina não me passava pela cabeça um persistente temor de violência. Não me queira por isso na conta dos paranoicos, dessas criaturas que, nas grandes cidades, passam a ter medo de tudo diante da disparada da violência dos últimos anos.

Confesso-lhe, leitor, porém, que, em Teresina, só andei mais em carro particular que, no meu caso, era do meu amigo, o ensaísta M. Paulo Nunes, de sorte que não me expus à sanha de algum pivete ou assaltante.

Num final de manhã, notei que, no hotel, não dispunha de papel para escrever, nem de caneta; a que trouxera comigo na viagem se perdeu não sei onde. Lá fui às ruas de Teresina. Algumas delas eu conhecia de priscas eras. Com o tempo, a gente perde um certo traquejo de andar por ruas de nossa cidade. Entretanto, o “eu” do presente era outro, e as ruas, à altura em que as podia identificar, não ficavam em trechos por mim palmilhados com assiduidade no passado.

Mesmo assim, criei coragem e, vendo o nome de uma rua e de outra, alguma, conhecida, outra, não, fui dar na bela Av. Frei Serafim, que divide dois lados de parte da cidade. Indaguei aqui, ali e, por fim, consegui encontrar uma papelaria. Comprei um caderninho escolar de poucas folhas e uma caneta azul. Lembrei-me, então, que teria que comprar um exemplar da edição daquele dia do jornal Meio-Norte. No hotel, depois do café, já havia passado uma vista no exemplar que me interessava, aquele no qual havia uma reportagem sobre mim a propósito de conferência que iria fazer na Academia Piauiense de Letras. A reportagem tinha sido feita no dia anterior por ocasião do lançamento, no Museu Odilon Nunes, de mais um número da excelente revista Presença, com apresentação de M. Paulo Nunes. Procurei o exemplar em mais de uma banca até que o encontrei. A reportagem exibindo foto minha, saíra bem escrita, mas continha um erro. A jornalista que me entrevistara omitira do meu nome literário, a palavra “Filho”. Sem querer, virei o nome de papai. Ainda bem que estava em boas mãos paternas e na mídia jornalística que ele tanto amava.

Voltando a Teresina, tópico principal desta crônica, pude observar outras coisas. Me convenci por completo  de que sou um estranho na cidade. Perdi mesmo o bonde da história de Teresina.

A minha Teresina não é a de hoje. Ela ainda existe e se estende por todo o velho centro da urbe. Lá vejo, intactos, alguns pontos de referências; o Theatro 4 de Setembro, o Rex, a Praça Rio Branco (o relógio!), o prédio do Arquivo Público (ó tempos da infância!) da rua Coelho Rodrigues e que, hoje, comporta também o Conselho Estadual de Cultura, a Praça Pedro II, o Karnak, a Praça João Luis Ferreira, o antigo Prédio dos Comerciários (que, um dia, fora o mais alto edifício da cidade), a Praça do Liceu (ah, sim, Landri Sales!), o Liceu Piauiense, as igrejas de São Benedito, a minha preferida, a do Amparo, a das Dores, a Praça da Bandeira, muito modificada e maltratada, e principalmente as queridas e amorosas ruas da velha Teresina, nas quais tudo nelas me leva inexoravelmente ao passado. Ah, ia-me esquecendo, o velho rio Parnaíba, o Poti (agora com sua enchente e suas vítimas). Enfim, esse passado soterrado no tempo, me está, contudo, vivo e ora me leva à alegria, ora à melancolia. 

O que não se circunscreve a essas ruas, a esses prédios, a essas arquiteturas variadas alcançadas pela minha geração não parece fazer parte da minha memória. A Teresina nova, trepidante, dos arranha-céus não me atrai. Essa Teresina verticalizada se iguala às outras metrópoles, vira mesmice. Nada tem a ver comigo em Teresina.

Relendo os belíssimos poemas de Paulo MachadoPost card/57” e “Post card/77” extraídos do livro Tá pronto, seu lobo? e “Nas ruas da minha cidade há lições? (É preciso aprendê-las)", retirado do livro A paz no pântano (1982), que se encontram na antologia A poesia piauiense no Século XX, de Assis Brasil, vejo que a poesia de Paulo Machado, de alguma forma, me conforta e não me deixa esquecer essa Teresina. Os dois primeiros poemas citados se valorizam pela riqueza semântica resultante de sua arquitetura contrapontística em termos de realidades espaciais semelhantes aliadas a realidades temporais diversas. O terceiro poema, ainda inserido na categoria do tempo fluído, reforça o tom rememorativo de viés rebelde na transposição da realidade histórico-social. Poemas de grande impacto estético que, em mim, despertam, de certa forma, por coincidência ou não do fenômeno poético, quase a mesma sensação provocada por aquela maneira de descrição pulsante, vibrátil, vigorosa, do realismo inusitado de Cesário Verde (1855-1886), como seriam exemplos os versos abaixo do poema “Post card/57":


                                    No mercado central pretas carnudas
                                    Vendiam frito de tripa de porco
                                    Fígado picado e caninha.


Os novos bairros, avenidas, artérias, em suma, o espalhamento topográfico horizontal da cidade me espanta e ao mesmo tempo me dá a sensação de que estou em outro lugar, que nada tem mais a ver comigo, e com o meu espólio (triste espólio devorado pelo tempo!) de relembranças. Estas, por definitivo, vou encontrar num cruzamento qualquer da minha própria Teresina da memória.



Cunha e Silva Filho
via Portal Entretextos

MANHÃ DE SOL NAS CLASSES, Guardia Nova







todo domingo renovo o sal
sol e desgraça na capital

vou de novo só pra ver
pelo salão de festa
olha o corpo que dança
pela força que resta

uma tá preta sem parasol
outra vermelha no futsal

bate 36 poses
na beirada azulada
no rasinho piscina
no fundo engole água

embaixo do sol
pode acontecer
isso e muito mais amor

péra deixa chegar fevereiro
penso direto na hora de tá lá
vou cantando vou chegar primeiro
deixa despelar a cara

pela manhã produtora
hora duradoura dourando sem mar
numa cena obscena
outra dança pra moda
não enxergo a saída
quem atou minha vida aqui

debaixo do sol
pode acontecer
isso e muito mais amor



(...)



Primeiro LP da Guardia, gravado em 2013 com produção de Jan Pablo e Cavalcante Veras, com exceção a "Melvin Jones" produzida por Dmitri Petit e Jan Pablo. Todos os instrumentos presentes no disco foram tocados e programados por Cavalcante Veras, Dmitri Petit e Jan Pablo. Participação especial de Bruno Marques na bateria de "Setenta e Seis" e Makeh (Violante) na voz de "Vestida de Branco".



Guardia Nova (2013)
Jan Pablo/Cavalcante Veras
Canis Vulgaris Records

27.1.16

SOB OUTROS CÉUS, Da Costa e Silva


IV



Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata...

O seu destino em retratar consiste,
Porém o rio tudo o que retrata,
De alegre que era, vai tornando triste,
No fluido espelho móvel de ouro e prata...

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou desta maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.

Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio...



Da Costa e Silva
em Pandora (1919)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

ZEZÉ LEÃO, VALENTE E TEMIDO, Arimatéa Carvalho




José Leão (Zezé Leão): Se Pernambuco teve Lampião, no Piauí reinou Zezé Leão. A frase rimada serve para ilustrar a fama dessa figura histórica, polêmica e discutida. Filho de uma das mais importantes famílias piauienses, a Arêa Leão, José nasceu em 1901 e morreu em 1956, num episódio cruel e que dá bem a dimensão do tipo de realidade que cercou seus 55 anos de vida.

Zezé Leão foi morto pela polícia no município de Água Branca e teve o seu corpo dilacerado. No Cemitério São José, onde foi enterrado, os coveiros contam que seu corpo chegou dentro de um saco, tamanha a mutilação sofrida.

A polícia fazia parte da trajetória de Zezé Leão de duas formas. A primeira foi bastante honrosa. Em 1930, após liderar ao lado dos irmãos Miguel, João e Júlio a Revolução no Piauí, ele recebeu o título de capitão da Brigada Militar que, mais tarde, viria a ser a Polícia Militar. Como militar, Zezé foi valente e temido.

Seu segundo envolvimento com os militares, no entanto, revelou-se desastroso. Próximo do Quartel Militar, que funcionava no prédio do Centro Artesanal, na Praça Pedro II, Zezé reencontrou-se com o capitão Vanderlei numa mesa de bar. O oficial já havia detido Zezé por homicídio. Segundo registro da época, o "Lampião do Piauí" matara um soldado. Gole vai, gole vem, surge uma discussão a respeito da prisão do Zezé. Bem mais alto e forte, o capitão dá um soco no valente jovem. Horas depois, o militar estaria morto. Zezé foi à sua casa, pegou uma arma, voltou a abateu Vanderlei.

A prisão de Zezé Leão não representou o fim de sua história de mortes e coragem. Folclore à parte, a maioria das mortes não ocorreu por crueldade ou capricho. A origem de sua fama de matador está num conflito de terras envolvendo sua família, os Arêa Leão, e o coronel José Liberato, outro grande latifundiário da região do município de São Pedro - que depois daria origem a um punhado de cidades como Água Branca, Hugo Napoleão e Miguel Leão (homenagem ao mais velho dos quatro irmãos homens da família).

A briga entre os Arêa Leão e Liberato pela posse de terras se alastrou por mais de uma década no interior do Estado. Foi o conflito armado que provocou o aparecimento do bando de jagunços, profissionais contratados para executar "serviços" e proteger as fazendas. Zezé Leão e seu bando ficaram famosos, mas há grande diferença entre ele e Lampião: enquanto o primeiro era latifundiário e de família tradicional, o outro era um nômade errante.

As mortes de ambos os lados terminaram em processo na Justiça. O julgamento do coronel José Liberato ocorreu no Tribunal de Justiça que, à época, instalava-se no prédio do hoje Museu do Piauí, em frente à Praça da Bandeira, no centro de Teresina. Liberato era acusado pelos Arêa Leão de homicídio e o evento mobilizou toda a capital. Os advogados do coronel, Adolfo Alencar (tio do empresário Valter Alencar) e Mário José Batista, também eram brigados, o que provocou uma curiosa defesa: cada profissional usou uma tese. Liberado foi absolvido. Ainda hoje a vida de Zezé Leão é tabu. Sua família se recusa a comentar o assunto.

Um dos filhos, Altamiranda, funcionário da Prefeitura Municipal de Teresina, informou que os irmãos ficaram magoados quando um escritor tentou publicar livro com o título "O Cangaceiro Zezé Leão". A família não divulgou o nome do escritor. Os jornais das décadas de 40 e 50 têm registros de episódios envolvendo Zezé Leão.

História Macabras e Cruéis, o folclore tratou de embaralhar o que é verdade e o que não passa de ficção na vida do temido Zezé Leão. A coragem do ex-militar deu origem à frase "valente que nem Zezé Leão", bastante comum no interior piauiense.

Conta-se que, no final da tarde, ele sentava-se no alpendre do casarão da fazenda Altamira, em São Pedro, e escrevia seu nome na fachada do imóvel usando o revólver. Embora seja difícil imaginar tamanha destreza com um revólver a ponto de desenhar letras com rajadas de balas, a história correu o Estado e hoje é contada como verdade.

Em outro episódio, Zezé Leão viu um negro assoviando e perguntou qual era a música. "É Asa Branca", respondeu o negro. O valentão mandou o rapaz assoviar até inchar os lábios e depois disse para ele ir embora. Quando o negro ia cumprir a ordem, Zezé o matou com sete tiros de revólver.

Segundo a tradição popular, Zezé teve duas orelhas arrancadas e penduradas num cercado, antes de ser morto, em 1956. Mas a versão oficial não registra o fato.

Entre as muitas histórias, duas são verdadeiras: Zezé Leão mandou dois de seus jagunços capturarem no Bairro Vila Operária, numa obra do colégio Leão XIII, dois trabalhadores que haviam fugido da fazenda da família. Os jagunços levaram os homens à força, alegando que eles tinham saído das terras de Zezé com dívidas. Os dois nunca mais foram vistos.

Além disso, o polêmico membro da família Arêa Leão destruiu um dos jornais de Teresina por motivos políticos, conforme relato do prefeito Wall Ferraz em seu livro de memória.

No Cemitério São José, na zona Norte de Teresina, os coveiros mais antigos relatam a fama de valentão de Zezé. Passando 42 anos de sua morte, o "Lampião do Piauí" sobrevive em episódios impressionantes, sejam verídicos ou fantasiosos.

De acordo com um deles, não foi a polícia que matou Zezé. Ele teria sido assassinado por um caboclo e só então os militares se apossaram de seu corpo.

O ex-capitão da Brigada Militar foi casado com dona Olinda e tem muitos herdeiros vivos, entre filhos, netos, bisnetos e sobrinhos. A maioria não gosta de lembrar o passado.

"Eu Conheci Zezé" - Zezé Leão era educado e gentil quando estava sóbrio. "O problema acontecia quando ele bebia", relembra o professor Moaci Madeira Campos, que conheceu o valentão pessoalmente e protagonizou um curioso episódio com o homem que virou sinônimo de coragem.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil vivia em estado de sítio informal. Os cidadãos precisavam de um salvo-conduto para viajar dentro do pais e o clima era de tensão. O professor Moaci Madeira Campos tentava visitar a noiva no interior e aproveitava o único caminhão que fazia o percurso. Quando o veículo chegou ao posto militar situado no Bairro Tabuleta, na zona Sul da Capital, a polícia mandou o motorista parar:

Foi exigido o salvo-conduto de todos os ocupantes do caminhão. Como o documento do professor estava com prazo vencido, o militar responsável pela fiscalização disse que não permitiria que ele prosseguisse. "Aí Zezé Leão virou para mim e disse: O senhor vai viajar sim, professor. Vamos ver se o senhor não viaja!", relata Madeira Campos. Ele confessa que ficou com medo da reação de Zezé, caso o militar resolvesse comprar a briga. "Mas, graças a Deus, fomos liberados e não aconteceu nada", conta o professor.

O segundo encontro entre Madeira Campos e Zezé Leão não foi menos interessante. Dono do Colégio Leão XIII, o professor recebeu a inesperada visita do ex-capitão. Ele estava bêbado e reclamava que havia discutido com o dono do colégio onde seus filhos estudavam. "Fiquei com medo que ele pedisse para transferir os alunos para meu colégio, pois não me relacionava tão bem com o dono do outro estabelecimento. Mas o convenci a não levar o caso adiante", diz.

Segundo Madeira Campos, Zezé era de "fino trato" e muito de sua fama surgiu dos conflitos armados entre a família Arêa Leão e o coronel José Liberato que, por incrível que pareça, era parente desse grupo familiar.



Arimatéa Carvalho
em Jornal Meio Norte, Alternativo, 
9 de agosto de 1998

A PENITENCIÁRIA, José Ribamar Garcia




Nasci atrás da penitenciária, numa casa de meia-água, com a fachada desbota e avermelhada pela poeira da rua de terra solta. Não tinha luz elétrica, nem água encanada. Mas era de telha, o que representava segurança, porque, na época, a cidade vivia sob o terror dos incêndios. E estes só aconteciam nas casas cobertas por palhas de carnaubeira ou babaçu. Havia dia de ocorrerem de três a quatro incêndios. Fato nunca investigado devidamente pelas autoridades, que acabavam jogando a culpa nos políticos da oposição. Estes replicavam, dizendo que o governo queria livrar a cidade dos pobres, por isso lhes queimava as casas. E aquela fora a melhor que meu pai conseguiu alugar para alojar a família. Recém emigrado do Maranhão, ele ganhava a vida trabalhando exaustivamente, fazendo de tudo na garapeira do amigo conterrâneo. E eu cheguei naquele clima aterrorizante, numa madrugada chuvosa de modo inesperado até, sem parteira por perto. O que obrigou o papai a sair, no temporal, às carreiras, pela cidade que pouco conhecia, à cata de uma. Mas não deu para esperar. Quando ele chegou com a parteira, por sinal semicega, eu já estava entre as pernas de minha mãe, esperneado aos berros. O cordão umbilical foi cortado pelo tato.

A penitenciária me fascinava. Não pela dimensão de seu prédio, ou pela altura de seu muro, coberto por fios elétricos descascados. Conta-se que fugitivos morreram eletrocutados por esses fios. Essa fascinação consistia numa curiosidade de saber o que se passava no interior e como era a vida de sues habitantes e a razão que os levara para ali. Quando indagava às pessoas grandes esse motivo, respondiam-me com evasivas respostas, ou de modo vago, lacônico, talvez por comodidade ou por acreditarem que criança não deveria saber dessas coisas. E me enfatizavam que preso não prestava, era gente ruim, sem alma, capaz de tudo. Isso, com certeza, me foi desenvolvendo um sentimento para com ele de repulsa, desprezo. 

Quando via a turma de presos limpando as ruas, as praças ou descendo escoltados, à Firmino Pires, rumo ao tribunal, sentia algo como se fosse nojo. Realmente, pareciam uns páreas: maltrapilhos, subnutridos. Espantava-me que os meninos de minha rua não tivessem o mesmo sentimento, pois demonstravam admiração e até piedade. Também não me metiam medo. Nem mesmo um de quem diziam que matava crianças para comer os miolos. Dos famosos, sobres os quais corriam estorias de bravura e valentia, como o Catnã ou Zezé Leão, simplesmente, eu não acreditava nas estorias. E os achava iguais, sem valor algum. Nos julgamentos de crimes envolvendo gente importante, que a Rádio Difusora se preocupava em transmitir, sempre me colocava ao lado da acusação. Não me deixava inclinar pelas palavras bonitas da defesa. E me revoltava com a absolvição. No entanto, a curiosidade de saber o cotidiano da cadeia estava comigo.

Gostava de passar pela sua porta de bicicleta, ou nos ônibus que faziam as linhas de Timon e Matadouro, a fim de espiar o seu interior. Mas não via além do portão de ferro dividindo o longo corredor de entrada. À frente, do outro lado da rua, sob enormes árvores, os guardas passavam o dia conversando, enquanto um se escondia dentro da guarita. Viam-se, também  em conversas com os soldados, alguns presos, certamente os de bom comportamento ou financeiramente remediados. Aliás, não se notava preso endinheirado limpando logradouros públicos. Essa discriminação me causou estranheza. E me mostrou o inverso da moeda. A sociedade traça normas de conduta e quem as violar será segregado, isolado; Porém, se o violador for possuidor de bens materiais, a regra é mudada. A própria sociedade se inclina, se corrompe, invertendo seus valores. Percebi cedo na farsa dos julgamentos. A balança da justiça pendendo contra o pobre de dinheiro para vergonha da deusa Nêmesis. 

Ao lado do portão de entrada, espalhados sobre a calçada, os presos expunham, à venda, seus trabalhos de artesanato, feitos de madeira, cerâmica, embira. Bem elaborados, confeccionados. Caminhões de madeira com réplica de várias marcar de carros de verdade. Mas, impulsionado pelo meu sentimento, acima dito, preferia os caminhões de buriti que meu irmão fazia e com os quais brincava, enchendo-os de capim, apanhado no próprio largo da penitenciária para dar de comer aos meus preás-do-rei. Mesmo porque os que meu irmão fazia, além de mais bonitos, não custavam dinheiro.

Nesse largo que se estendia diante do prédio, até circo fora armado, mas depois a prefeitura suspendeu licença para essa finalidade, alegando medida de segurança. Já se falava em segurança... Tolice, aqueles presos subnutridos não tinham força para se evadir. Nunca ouvi falar de fugas, nem de tentativas, pelo menos, em massa. Os que conheci, mais tarde, viviam resignados, conscientes de que estavam pagando o crime cometido. E ainda respeitavam a Justiça, inclusive conhecendo a sua vulnerabilidade.

O sentimento de repulsa, nojo, que eu tinha daqueles infelizes foi, com o decorrer do tempo, me abandonando. Exatamente à proporção que esse mesmo tempo me foi exibindo o lado real, cru, incolor do homens. E constatei que nem sempre o transgressor é o único culpado de seu ato. Uma série de circunstâncias, um conjunto de coisas complexas o faz transgredir. E nem a sabedoria das ciências, ainda, conseguiu transpor esse obstáculo, no sentido de evitar ou compelir o desvio desse comportamento. O homem permanece na sua ilha, fechado, isolado, incógnito dele mesmo, sobretudo.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

25.1.16

TERESINA, Fernando Ferraz




Verde cartão-postal,
iluminada entre espelhos
de rios que se encontram,
Teresina absorve e emite luz
adubando e cultivando a vida
na energia do calor de seu povo
e no coração dos que dela se encantam.



Fernando Ferraz
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

O RIO, Paulo Machado


ao poeta Cineas Santos


preciso urgentemente escrever um poema!

que os versos sejam vorazes,
lembrando o rio de minha cidade,
comendo as pedras do cais.

mas como escrevê-lo?

como domar o rio de minha cidade
à condição de poema?

o rio de minha cidade não pede adjetivos,
principalmente recusa os que o tornam abstrato.

o rio de minha cidade é um rio migrante,
por que aprisioná-lo no corpo do poema?

o rio de minha cidade guarda em suas entranhas
o orgulho do homem sozinho.

o rio de minha cidade é água viva na carne,
água pesada na memória.

o rio de minha cidade é torto
como uma cicatriz,
fazê-lo reto seria contradizê-lo.

vivê-lo, petrificá-lo nas retinas.
esquecê-lo, jamais.

preciso urgentemente escrever um poema!



em "ta pronto seu lobo?" 
Edições Corisco: Teresina, 2002 (2ª edição)

23.1.16

TERESINA


                                                  para g.c.


Levei horas em teu caminho
e ao te encontrar
mergulhei
pela tenras flores de tuas mãos

Vi que estavas em cada pequena fresta
de meu impreciso contorno

Adestrei minha vontade voraz de devorar tuas palavras
em cada canto teu descobri uma saudade
daquilo que eu jamais conhecera



Ana Paula Pedro
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

DEFINIÇÃO, por Torquato Neto


                                            para nacif elias


Teresina:
ausência
de uma presença...
presença
da mesma ausência
só memória na memória
sempre viva.
só saudade... só distância
só vontade.
...e um ardor medonho no peito.


                                            (Rio, 23/08/62)


Torquato Neto
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão


22.1.16

FAZIA SOL... NO RIO NÓS DOIS...




Naquele dia lá no rio nós dois
quais dois delfins espadanando nágua,
brincávamos com puerícia louca,
sorríamos sem meditar em mágoas.
Eu via as curvas brancas dos teus seios
de líquidas pérolas matizadas...
Ai! vibraram em mim tamanhos desejos,
meu corpo ardia - volúpias alarmadas!
O sol tão brando "curiava" ao longe
perlongando as curvas do maiô escasso
com a sutileza dos intrusos raios...
Nós dois sorríamos um sorriso lasso
esquivantemente a devolver carinhos...
e o sol ao longe olhando com olhar devasso!



Humberto Guimarães
em JUVENÍLIAS

LOURO, Herculano Moraes

                             À memória de Euclides Marinho.

Tinha a loucura do espaço,
a lúcida vertigem do sonho.

Sua vida era um filme inacabado
como o próprio amor.

Planava no espaço como um gavião
- os cabelos ensolarados
pela vida.

                 (que será do espaço
                 sem o sol dos seus cabelos?
                 que será da nuvem
                 que brincava de ter medo
                 ao seu planar?
                 que será da vida
                 derrotada em pleno espaço?)

                 Projétil a esmo,
                 asas sem rumo,
                 pássaro ferido
                 arremessado no tempo.

O coração enciumado da terra
manchado de sangue.
O coração dos homens
torturado de dor.


Herculano Moraes
em SECA, ENCHENTE, SOLIDÃO
Editora EMMA: Porto Alegre, 1977

O TERROR DA VERMELHA, de Torquato Neto




Parte 1:




Parte 2:




Parte 3:





Direção: Torquato Neto
Filmado em Teresina-PI, em 1972
Câmera: Arnaldo, Albuquerque
Edição em Super 8: Carlos Galvão

Elenco: Edmar Oliveira, Conceição Galvão, Geraldo Cabeludo, Claudete Dias, Torquato Neto, Etim, Durvalino CoutoPaulo José Cunha, Herondina, Edmilson, Carlos Galvão, Xico Ferreira, Arnaldo Albuquerque e os pais de Torquato, Heli e Salomé.


(...)


É o caso de sua única produção como diretor, "O Terror da Vermelha'', que veio a ser exibida publicamente pela primeira vez em 2001, 28 anos após sua morte, na mostra "Marginalia 70 - O Experimentalismo no Super-8'', evento que fez parte do projeto "Anos 70; Trajetórias'' do Itaú Cultural sob a curadoria do professor Rubens Machado Jr. O valor desta exibição está no fato de que assim se resgata um documento de um período singular da recente produção cultural do país. Seu significado é muito maior do que o que emana da aura romântica desprendida de seu suicídio. O Terror da Vermelha é o registro incontestável da verve e do domínio por Torquato Neto dos fundamentos da linguagem cinematográfica, um de seus lados ocultos que ficou adormecido na virtualidade do seu mito marginal. Até então o que havia era apenas a referência ao filme em dois textos poéticos que constam da segunda edição dos Últimos Dias de Paupéria (p.339-346), no qual Torquato fixa uma espécie de roteiro que mais tarde servirá de base para a montagem feita por Carlos Galvão em 1973. Torquato nunca chegou a ver seu filme montado. A montagem que foi exibida na mostra em 2001 foi feita por Ana Maria Duarte, que foi casada com o poeta. Carlos Galvão também montou uma outra versão, com algumas cenas que não constam da montagem de Ana Maria Duarte e com uma trilha sonora diferente. O resultado é, em termos gerais, praticamente o mesmo, contudo na versão de Galvão as imagens onde aparecem as "palavras-cenário'' (VIR, VER, OU, AQUI e ALI) estão mais nítidas. Na primeira versão, montada dor Ana Maria Duarte e que foi exibida publicamente em 2001 a trilha sonora oscila de uma atmosfera tropicalista para o suspense que precede os confrontos nos filmes de western.

O Terror da Vermelha foi rodado em 1972, quando Torquato Neto voltou para Teresina a fim de se internar para uma desintoxicação. Neste ponto de sua trajetória todas as rupturas com os companheiros tropicalistas já tinham se dado e as crises eram constantes. Do convívio com um então grupo de estudantes que se articulava em torno do jornal Gramma, do qual participava Carlos Galvão, nasceu o elenco da única produção que teve Torquato Neto na direção.


"(...) fui a Teresina pelo início de
junho (sanatário (sic) meduna), entrei
em contato com os rapazes que
haviam feito o jornal gramma e
Partimos para um superoito de metragem média que resultou neste
O TERROR DA VERMELHA (ou qual outro nome escolherem).''
(TORQUATO NETO. Úlimos Dias de Paupéria, página 339)



Trecho do artigo "O Terror da Vermelha: estética da agressão e rigor formal de Torquato Neto no cinema" de Silvio Ricardo Demétrio, da Universidade de São Paulo



21.1.16

CHAPADA DO CORISCO (1979) - Clodo, Climério & Clésio




Lado A

1. Rixa [Clodo/Climério] 00:00
2. Flor do Coqueiro (Pita) [Clésio/Clodo] 02:10
3. Morena [Naeno] 05:27
4. Chapada do Corisco [Clodo/Climério] 10:01
5. Dia Claro [Dominguinhos/Clésio] (Part. Esp.: Dominguinhos) 12:55

Lado B

6. Oferenda [Clésio/Clodo/Climério] (Part. Esp.: Fagner) 17:40
7. Modo de Ser [Clodo] 20:48
8. Timom [Clésio/Climério] 24:13
9. Enquanto Engoma a Calça [Ednardo/Climério] 28:31
10. Revelação [Clésio/Clodo] 31:45

(...)

CHAPADA DO CORISCO | Clodo/Climério

eu me conheço
eu não me arrisco
eu não mereço 
ficar longe da chapada do corisco

é que a cidade é verde
é que ela me amadurece
é que eu vim de lá menino
e nada me acontece

quem sabe o que quer
fuma qualquer cigarro
traça qualquer pinga
tira qualquer sarro

quem não sabe sabe
não conhece bem
quem ensina o cabe 
não cabe ninguém

(...)

TIMON  | Clésio/Climério

o Timon não tá no barco
tá na terra
do outro do rio eu chego lá

vou ver meu amor

entre mágoas que esse rio não separa
corre essa canoa embarcação
pra ver meu amor

(...)

Segundo álbum dos irmãos piauienses ClodoClimério e Clésio. Lançado pelo selo Epic da gravadora CBS, cuja direção artística estava sob o comando de Fagner. O LP se chamou Chapada do Corisco (título de uma das faixas, assinada por Clodo e Climério) e contou com a participação dos músicos Manassés, Abel Ferreira, Dino das 7 Cordas, Tuti Moreno, Dominguinhos e o próprio Fagner, dentre outros. Estão presentes no disco as faixas "Revelação", sucesso na voz de Fagner, e "Timon", regravada por Marlui Miranda em seu álbum "Revivência". A capa do LP foi criada por Fausto Nilo, juntamente com Januário Garcia.

20.1.16

SIGLAS POÉTICAS & OUTROS LANCES





APEP - CCEP - LOTEPI?
$ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $ $... e só!
FDP - H.G.V. - CRP?
Briga... bate/mata... prende.
FAGEP - IAPEP - FAZENDA?
E a renda? Onde é que está a renda?
UFPI - CODIPI - CCNIPE - COHAB?
? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ?... e Itaraté II!
PTB - PSD - PC do P?
Quem disse que Paulo César voltará pro Parnaíba?
COBAL - PMT - CBD - FRIPISA?
"E eis a relação dos congelados..."
CEPISA - AGESPISA - TELEPISA e o Bacalhau?
Eternos preços de semana-santa.
PETROBRÁS - OPEP - e IDI AMIM?
Em cartaz: "Em busca de um crioulo doido".
OTEP - DDT - Prece Poderosa?
"Há no ar um estranho perfume que mata".
PIEMTUR - ODD ou OMO?
Prefiro sabão de coco. É muito mais útil...
FUNAI - FEEMA e SUDAM?
"Temos índio a molho-pardo e Juruna grelhado com
batatas fritas".
Bah! Com tanta sigla,
tanta inoperância
e tantos projetos estatísticos



Venâncio do Parque
em VIA CRUCIS - Verso e Prosa