22.10.13

EU, TERESINA E ELE, Wellington Soares


Há seis meses namorávamos e nada. Ao contrário dos outros, bolinar comigo não queria. Como um pedaço de descaminho, no dizer dos rapazes, chateada fiquei. Valfrido, esse era o seu nome, nem aí. Sua estranheza me prendia cada vez mais a ele. Que o amava, não tinha dúvidas, mas não podia continuar subindo pelas paredes.

- Transar comigo, por que você evita?
- Só cai no chão, a manga, quando está madura.
- Tanto tempo assim, como posso?
- Pela bela serrana, Jacó muitos anos esperou.
- Mas eu o amo.
- Amar é saber, no momento exato, tirar o cílio do olho.
- Quando, então?
- De Teresina se embriagar e se despir com pureza.

Com o coração aberto, deixei me levar por suas mãos seguras e macias, descortinando outros horizontes. De barco, o Velho Monge atravessamos para Timon, cruzando com pescadores de redes vazias. Na volta, um suco delicioso no Abraão, tendo como troco palavras de estímulo. À tardinha, um faroeste no Rex, balas de horror raspando minha cabeça. Maria da Inglaterra e seu Peru Rodou, no Clube dos Diários, a noitada fechando, o sabor de cerveja nas bocas geladas.

Acordada cedinho, um café reforçado na Piçarra, ânimo para encarar a arte misteriosa de seduzir. No troca-troca, sob um escaldante sol, o comércio de tudo, menos o do amor, inegociável. O gostoso cheiro da panelada, nunca provada no Mercado Velho, no meu estômago faz alegria. O restante da tarde, navegamos na beleza do encontro dos rios, onde deixei claro ao Cabeça de Cuia não me chamar Maria e muito menos virgem. De bicicleta, à noite, vários bairros da cidade percorremos. Na despedida, sem esperar, ouvi:

- Amanhã, esteja pronta, será o dia.
- Onde? A que horas?
- Dezesseis, na praça da Bandeira, sem atraso.
- Vou de carro?
- Não, sem nada, só você. De lá partimos.
- Que mais?
- Relógio sem ponteiros.

Noite em parafuso, sem conseguir os olhos pregar. A espera, alfinete ferindo o corpo, compensa? Do ônibus, descemos em frente ao motelzinho, mãos coladas e a galope os desejos.

Depois dali, mesmo com os apelos dos velhos, nunca mais retornei, nem fui em casa pegar nada. Ele me bastava. Era, sem exagero, uma pessoa muito especial. Que outro homem, diga, me levaria a conhecer e a amar Teresina? Comendo estas piabas fritas agora, nas coroas do Parnaíba, tendo-o ao meu lado, a vida passa a ter sentido.


Wellington Soares
em Maçã Profanada
Teresina: 2003

Wellington Soares - síntese biográfica




Wellington Soares nasceu em Teresina - PI. Contista e professor. Durante muitos anos organizou o SALIPI (Salão do Livro do Piauí) e atualmente edita a revista de arte e cultura Revestrés. Tem publicado: Linguagem dos sentidos; Maça Profanada; Por um triz; Um beijo na bunda; O dia em que quase namorei a Xuxa.

BIBELÔ, Elias Paz e Silva


bibelô
o brinquedo preferido
das crianças e velhos

travestido de mulher
resmungar maneiro
o alvo predileto das pedras e insultos

bibelô
um homensério
que o amor corrompeu
antes mesmo dos rapazes alegres
já era a graciosa das ruas

ENIGMA NO AR, Elias Paz e Silva

para H. Dobal e Paulo Machado

que anjo sobre a cidade
anuncia coriscos na nuvem?
mensageiro do poente
o sol se declina em fogo no oriente
clarazul céu de enigmas
decifra homens taciturnos de esperança
os rios riscos primitivos
seca suas margens de areia e sonho
um artifício de paisagens
pontifica demolindo memórias antigas
à fome de justiça sobrevive
o rapaz da rua da glória
o que que há que não
se intui quando o vento de setembro na pele imita carros de fogo
uma aliança renovada
sustenta o arco-íris na retina dos habitantes
depois do verão solar
chuva de raios trovões no metal dos pára-raios das árvores secas
o relógio rosa da praça rio branco
ensina uma política de signos sob a velhice retórica
o mesmo anjo que circundou uma espiral
a margem da floresta de pedra a retidão da frei serafim silencia:
VIVER É VINGAR-SE DA MORTE!


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

1ª LIÇÃO DA CIDADE, Elias Paz e Silva


aprender nos tortos
passos do quarentinha
a poesia marginal da cidade
os guetos a fome
e o grunhir
dos que sobrevivem como lixo
cartão-postal
para os olhos desatentos dos turistas


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

O SON(H)O DA CIDADE, Elias Paz e Silva


o sonho da minha cidade
é amarelo
na sua paisagem iluminada
(na pele de seu rio sujo)

o sono da minha cidade
é o sonho do seu povo
que dorme na mesma esperança
de todos os dias


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

CIDADEZINHA, Elias Paz e Silva


vamos
assistir à televisão na praça,
enquanto o dia bobo não vem.
nem um lobo
pra quebrar a rotina,
nem um beijo
tolo da amada.

vamos
assistir à televisão da praça,
enquanto vamos inventar um lobo,
e uma amada também.
tá pronto?


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

TER É SINA II, Elias Paz e Silva


cidade sem memória
sol e sombra do nada
sitia os deserdados

                  o fogo o terror nas casas de palha
                  os pedaços da doméstica
                  quarentinha bibelô nicinha

guerra silenciosa e
capital redistribui os espaços
da fome e dá forma à frei serafim

                  os anos fiados em miséria
                  perdidos à sombra do tempo
                  perpetuados à luz do dia
                  fabricados armazenados

teresina: claudino & cia
tajra tajra tajra taJRa tajra tajra

                  à igreja do santo negro
                  submersa em lendas
                  superpõe-se as torres
                  do amparo e a crença dos fiéis

paisagem artificial
se interpõe à brisa libertina
espigões tramam a colheita diária
de calor e cansaço

                  um monumento à morte
                  potycabana anfiarte
                  divisa a linha da vida
                  na miragem das coroas

ao lírico por do sol
avermelhando as cortinas
o rio se dá assoreado fulminado
entre navios sonâmbulos
paruaçu, rio de sonho, salve, salve.

                  um pescador de horizontes
                  senamora sete moças virgens
                  sobre o neon de natal da ponte

pára-raios vigiam o mito
coriscos já não riscam noite
não se pode dizer de lendas
antenas sensíveis decifram céu de enigmas


Elias Paz e Silva
via Recanto das Letras

Elias Paz e Silva - síntese biográfica



Elias Paz e Silva [ ✰ 26/11/1963 ] nasceu em Teresina - PI. Poeta, contista, cronista e jornalista. Bibliografia: Poemário I (1991); Poemário II (1991). Participou dos livros: Poesia Teresinense Hoje (1988); Novos Contos Piauienses (1984); Outros contos piauenses (1986); A Poesia Piauiense no século XX (1995), entre outros.

Memória (Caminhos de Estrelas), de Menezes y Morais




Vênus incendiava teus cabelos naquela noite
em que caminhávamos refletidos nas águas
margens assassinadas do rio poti
e no mangal
eu viajei na constelação dos teus olhos
e te dizia
a vida vai além daquilo q a gente imagina
e a liberdade pode estar ali
na próxima esquina
e sobre os trilhos noturnos
convergendo olhares favelados
com a tua mão esquerda dentro da minha direita
sentimos o fogo estrelar daquela noite azul
no céu de teresina
e o vento soprou leve
sussurrando em tua boca
entre o rio e a cidade existe um caminho
onde o tempo cicatriza toda dor



Menezes y Morais
em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina/Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


Menezes y Morais - síntese biográfica






José Menezes de Moraes (29/07/1951) nasceu em Altos - PI. Poeta, contista, jornalista e professor. Licenciado em História. Bibliografia: Laranja partida ao meio (1978); O suicídio da Terra; Pássaros da terra com paisagens humanas (1982), entre outros; Participou do livros: Tudo é melhor que nada (1974); Ô de casa (1977); Aviso prévio (1977), entre outros.


HOMENS DE BRONZE, por Rubervam Du Nascimento




por que esse homem
vestido de bronze
na avenida central
em pleno meio-dia
não reclama de nada
sequer do calor do sol

o que ele olha
algum esqueleto no céu
não sabe ao certo
cegou antes
ao aceitar o posto
de vigia da noite

não me pergunte
o que eu acho
dos donos desta cidade
vestidos de bronze
que não mais se movem
nem para fugir do sol



Rubervam Du Nascimento
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão


O GUARDADOR DE PORTÕES, por Rubervam Du Nascimento



Numa cidade qualquer
alguém vestindo preto segura os portões
uma história sem nenhum pavor
se uma cidade ainda tem portões

Durante a noite alguém voa por cima das igrejas velhas
por cima das casas velhas
por cima das cadeias velhas
por cima das escolas velhas
por cima dos cabarés velhos
por cima de tudo

                Tudo é velho
como uma sombra escondendo a manhã

apenas um grito novo
se resguarda

e solta a porta das palavras.



Rubervam Du Nascimento
Antologia poética das cidades brasileiras
Christina Oiticica (coordenadora)
Shogun editora e arte LTDA.: Rio de Janeiro, 1986


P2, por Rubervam Du Nascimento


Há uma praça
no centro da cidade

que fica acesa
quando engole a tarde

reparte seus fantasmas
com quem passa

namora em silêncio
os segredos do tempo

sobe no coreto
ouve a retreta

dorme no colo
em "P2" (livro sobre a Praça Pedro II)
Teresina: Livraria e Editora Corisco Ltda, 2001


RASTROS #3, por Rubervam Du Nascimento



manhã raivosa no jornal
menino filho da rua
degolou outro menino
por causa de uma bola

silêncio na cidade
égua cega no cio
sem sair do sobrado
venceu jogo no grito

não tem jeito a morte
continua com a face fria
grave mal o abandono
que aflige nossos dias



Rubervam Du Nascimento
em Os cavalos de Dom Ruffato
Recife: Fundação de cultura da cidade do Recife, 2005


Rubervam Du Nascimento - síntese biográfica





Rubervam Maciel do Nascimento  (31/07/1954) nasceu em São Luís - MA. Formado em direito, poeta. Tem publicado: A profissão dos peixes; Os cavalos de Dom Rufatto; entre outros. Fotografia: Rubervam, em sua performance Corpo a corpo – A profissão dos peixesno Alpha, em 18.7.1993.

21.10.13

SR. CORNÉLIO



Cornélio Evangelista da Costa, o Sr. Cornélio, que completa 90 anos no próximo dia 28 de agosto, disse que não tem saudades de tempos atrás. "Gosto da Zona Leste de Teresina pelos seus arranha-céus", afirma. Há quarenta anos, ele se instaurou no ponto mais badalado do centro da cidade, a esquina da Praça Pedro II com a Avenida Antonino Freire, a menor avenida do mundo, construída para homenagear o governador do estado entre 1910 e 1912. O cardápio ainda é o mesmo: pão de queijo e refrigerante. Ele mesmo cuida da lanchonete até hoje. É um observador do seu tempo e diz que até os costumes mudaram. "Uma coisa interessante, os homens circulavam o coreto da Praça Pedro II pela direita e as mulheres, pela esquerda, era assim que se paqueravam. Se você fosse deixar a moça na casa dela, era casamento feito", revela. Ex-vizinho de figuras ilustres como os governadores Helvídio Nunes e Leônidas Melo, ele relembra que a atual area nobre da cidade, a zona leste, era um local de veraneio, onde os comerciantes do centro mantinham sítios para passar o final de semana. "As pessoas mais ricas da cidade moravam na Avenida Antonino Freire e na Avenida Frei Serafim", lembra. Natural de São João dos Patos "MA", Sr. Cornélio ficou viúvo às vesperas de completar bodas de ouro. "Foi amor a primeira vista. Tenho três filhos, cinco netos e dois bisnetos", disse. Sr. Cornélio não tem planos de parar. Todos os dias, o forno da lanchonete Mary Lucy assa mais de cem pães de queijo que são consumidos ainda quentes.



Revista Veja 
Edição 2229 
Ano 44 - nº 32, em 10 de agosto de 2011

20.10.13

TERESINA DO MEU CALOR




Quis fazer uma ode ao calor
Ó amigos, por favor
não confundas
com ódio ao calor.

Ao nosso calor abrasador
acolhedor
que pelo BRO passou
e em janeiro penetrou.

Claro que nos faz insônia
que nos incomoda
que nos deixa acordados
noutro dia extenuados.

Calor que exige
mini-saia, mini-blusa
tudo miniminha
até mini-calcinha.

Calor que acaba camisa
bem debaixo do sovaco
calor que nos faz achar
Teresina um buraco.

Calor até onde existe
o tal ar refrigerado
vide, vide o aeroporto
que é melhor atestado.

Calor pra tudo que é lado
calor pra cima e pra baixo
E só nos clubes sociais
E que frescura eu acho.

Teresina, menina quente
incrementada, pra frente,
Teresina do meu amor
Teresina o meu calor.



Deusdeth Nunes
em Revista Cirandinha, nº 2 
Teresina: 1978

ROQUE MOREIRA




Ele era a cara da Rádio Pioneira. Cearense, com quase trinta anos no prefixo da emissora católica, resistiu a todas as mudanças de programação. "Seu gôsto na Berlinda e as mensagens para o interior" eram marcas registradas Roque Moreira. Falecido em 94, deixou muitas lembranças aos ouvintes. Eis algumas das mensagens:

"Atenção Andirobal dos Crentes, interior do Maranhão, este aviso é para dona Duó. Seu Mundico Rolo avisa que a canoa virou e o fumo molhou".

"Atenção, atenção, Olho Dágua das Cunhãs, interior do Maranhão, este aviso é para seu Dos Anjos. Dona Santinha manda avisar que a Maria Virgens fez exame e graças a Deus, não é nada daquilo que o povo anda falando".

"Atenção, atenção seu Zeca Domiciano conhecido como Zeca Doca Mole, sua mulher Luzia avisa que não fez o exame porque o doutor queria mexer lá dentro e ela disse que não gostava de saliência. Vai procurar uma doutora mulher".

"Atenção, atenção Oscar Rodrigues Pereira, seu Oscarzinho, do município de Parnarama, Maranhão. Sua mulher, Sinhá Joana avisa que você venha logo com aquele saco de couro porque ela recebeu o dinheiro da aposentadoria e comprou um bilhete premiado e tá com medo de ir  receber o dinheiro sozinha porque pode o povo roubar ela".

Favor quem ouvir este aviso retransmiti-lo ao destinatário.
em Rádio Calçada
Teresina: 1995

APARECEU UMA COCEIRA, por Deusdeth Nunes




Lá no Conjunto Saci
coça mulher e menino
coça lá e coça ali
e a coceira já chegou
lá no Parque Piauí

Tem uns que coçam a cabeça
tem outros que coçam o pé
A mulher coça o homem
o homem coça a mulher
a coceira foi andando
já chegou no Itararé

Meu compadre Chico Tripa
homem de educação
foi coçar dona Josefa
amigada com Borjão
que chegou e deu o flagra
no conjunto Redenção

A coceira anda muito
ninguém segue sua pista
ela gosta da Cohab
que é economia mista
já vi nego se coçando
no conjunto Bela Vista

A coceira está aí
a origem não se explica
ela dá em gente pobre
e também em gente rica
porque tem muito barão
se agarrando com curica.

Observação: Na década de 70 uma praga
de micose atacou a população do Saci



Deusdeth Nunes
em Rádio Calçada
Teresina: 1995


ABRAHÃO, O FILÓSOFO, por Deusdeth Nunes


Funcionando há mais de trinta anos naquela esquina da Rui Barbosa xis com o bar do finado João Arroz, o Abrahão é mais que uma lanchonete. É lá que centenas de estudantes e operários fazem a merenda mais barata e nutritiva da cidade com os famosos sucos feitos pelo próprio dono. Abóbora, manga, bacuri, cajá, abacate (fura rede  mamão, tudo feito com leite puro. Acompanha o suco uma banda de pão à gosto do cliente. Um verdadeiro empório, é um tem-tudo, muitas mercadorias muito antigas, a exemplo de cigarros que ele vende mais barato. Filósofo de balcão, os seus pensamentos vão do consumo de cigarro que ele vende mais condena em prosa, em verso e ao vivo. Quando o freguês vai comprar cigarro à retalho, ele dá um sermão: "Está provado que o cigarro faz mal à saúde e quem compra cigarro à retalho não tem condição financeira de sustentar o vício".

Sobre política, ele tira a forra sobre o IPTU que o castigou: "Vote nos candidatos a vereança de hoje que eles prometem tudo o que os passados prometeram. E certamente vão aprovar pelo voto, algo mais amargo que o IPTU aprovado pelos que estão aí".

Sempre atento ao movimento do balcão e principalmente da gaveta, escreve em cartolina e prega nas paredes internas: "Tem pressa em ser atendido? Adiante o dinheiro". "Sair sem comprar não dói. Comprar e não pagar dói muito. Pague antes".

Sua última conclusão filosófica diz: "É melhor ser roubado do que roubar. Por que? O roubado fica com uma graça a receber e o ladrão com uma dívida a pagar".


Deusdeth Nunes
em Rádio Calçada
Teresina: 1995

Deusdeth Nunes - síntese biográfica





Deusdeth Nunes, mais conhecido como Garrincha, nasceu em Aracaty - CE. Bancário, político, jornalista, escritor, humorista. Algumas publicações: Gente e humor; Peladas e peladeiros (2010); Teresina, seus amores (2007).

19.10.13

A LOUCA DA INFÂNCIA




O vestido rasgado, o corpo sujo, o rosto deformado por corte e pancadas, as mãos calosas cravadas nos cabelos desgrenhados na constante caça aos piolhos: Ratazana nas ruas da infância. Quando ela passava, catando restos de comida dos lixos, os meninos a cercávamos e, atirando pedras na louca, gritávamos:

- Ratazana!, tira!, tira!

Ratazana levantava a veste surrada, um sexo cabeludíssimo surgia, os meninos em cio vibrávamos, os paus latejando entre as pernas.

Zezinho perguntava: pé-de-pau? O coro respondia: tamarindo. Era a senha. Então André, o filho do bancário, ia a casa, trazia uma lata de doce. Chamariz infalível. Ratazana, morta de fome, não pestanejava, seguia André, ou melhor, o doce. Pouco depois, achávamo-nos sob o pé-de-tamarindo.

Começava a algazarra. Cada um queria ir primeiro. A maior briga. Todo mundo seco. Mas André botava moral, o doce é meu, dizia, arrogante, quem come ela primeiro sou eu. Ratazana, os olhos grudados na lata de doce, deitava-se, abria mecanicamente a pernas, André a cobria, depois outro, e outro, e outro...

No fim, Ratazana, exausta, arrasada, curvava-se sobre a lala de doce, comia avidamente. Depois, o estômago feliz, paspalhava-se a olhar pra gente com uns olhinhos tão meigos, com um sorriso tão cativante, que eu voltava pra casa com uma dor no peito, um ódio de mim, dos homens, do mundo.

Um dia chegou-nos a notícia: Ratazana morrera. Atropelamento. Nunca vi a molecada tão triste. Onde despejar o esperma acumulado? Tinha a masturbação, tinha o Morro do Querosene... mas não eram a mesma coisa.

Continuamos a frequentar o tamarineiro. Como um ritual em homenagem à mendiga, cavávamos buracos debaixo da árvore, metíamos o pau dentro, gozávamos, e fornicávamos, fornicávamos...

Hoje, passado tanto tempo, lembro-me de tudo com extrema nitidez. E me revolto ante essa minha primeira lição de miséria.



Airton Sampaio
em Painel de sombras 
Teresina: Edições Piçarra, 1980

JOANA




Josué esmaga a Frei Serafim. Num certo trecho observa um aglomerado de jovens bebendo - calças de fundo folgados, carrões, cocotas. Relembra o seu tempo de rapaz - roupas de segunda mão, subempregos, fome. Odeio esses filhinhos-de-papai, sangue-sugas. Quantos crimes praticados sob o efeito das drogas!

Josué procura limpar a vista, olha para o alto. O céu ainda azul de Teresina evoca-lhe Joana. Cabelos negros a escorrerem, longos, sobre os ombros sensuais, os olhos azuis a contrastarem com a tez morena do rosto delicado, portador de um nariz afilado, uma boca pequena, um queixo redondo.

Joana não resistiu. O corpo moreno, de pernas roliças, entrou num carango "enfezado". O riquinho deitou e rolou com a menina nas areias do Poty - eu me caso com você. Depois, satisfeita a tara, os olhos esbugalhados - então você pensou em casamento, gatinha? Logo comigo? A putinha sabe de quem sou filho? Ah, chorando? Será por causa do cabaço? Pra que pobre com cabaço, gatinha? Hahaaaaaa...

Aí "garotão" caminhou para Joana, o canivete de ouro em punho. Joana gritou, berrou, urrou, o medo no rosto lindo, o sangue escorrendo como o rio.

Numa banda de jornais Josué vê uma manchete garrafal: ASSASSINARAM JOVEM NA CALADA DA NOITE...

- Já indeterminaram o sujeito... Cumpriram o primeiro passo da estratégia da impunidade. O próximo passou: arranjar um bode expiatório. Quem sabe eu?

A noiva assassinada - ninguém acreditaria no testemunho do rio - sente vontade de esbofetar aqueles ricos todos, um a um, mas de que adiantaria, as coisas mudariam? Resolve parar de pensar -  a certeza de Joana enterrada - e sai caminhando na avenida, as mãos fora dos bolsos.

Um automóvel, alto-falante em cima, passa anunciando um rivengo.



em Painel de sombras 
Teresina: Edições Piçarra, 1980

AMOSTRAGEM




Uma cana, disse. O garçom, magríssimo, foi ao balcão e voltou num átimo, trazendo a bebida. Como tão as coisas, disse ele, tentando puxar conversa, o bar hoje até que não tá fraco. Em resposta monossilabei algo que se confundiu com um psiu vindo lá do fundo. Uma mulher de vermelho berrante, sozinha, chamava o garçom, psiu. Os meus olhos seguiram o olhar trejeitoso do homenzinho.

Conheço-o. Trata-se de um pobre coitado, funcionário público que, para manter em nível de sobrevivência os oito filhos, a mulher e a sogra, trabalha noite inteira no bar de seu Matos.

E a mulher de encarnado que Cipriano atende agora? Florisbela. As pernas carnudas - cruzadas em desleixo, o vestido muito puxado deixando propositadamente um naco de coxa de fora, os seios redondos arfando, o rosto pintadíssimo: Florisbela, prostituta famosa.

O copo de cachaça aterrissou na mesa dela. Um bêbado, na mesa em diagonal à minha, revolucionava o mundo, os olhos de tísico postos na lua, o bigodinho de pontas arrebitadas inflando-se para o companheiro mudo, sem feições.

À entrada rápida de um homem alto, esguio, mancando de perna direita, um senhor de cabelos grisalhos à minha esquerda sibilou, comunista!, e a esposa gorda - a papada quase a tocar os seios fartos - apoiou o escárnio, um sorriso balefe tremendo a cara. Um carvoeiro passou na rua, três jumentos carregados, o relho sobre o ombro. O mendigo Pocino também passou, bamboleando, babando, falando vida cachorra!

Três homens que bebiam no pé-do-balcão saíram abraçados, cantando desafinadamente uma música que contava uma história triste. Um negro entrou, camisa do Flamengo no corpo, sentou-se à mesa de Florisbela. Na mesa do centro duas jovens colaram as bocas num beijos de estremecer a sociedade.

Juntei as pontas do polegar e do médio, o estralo alcançou o ouvido apurado do garçom. Quanto devo? Tanto. Paguei, e saí.

Fora, envolvido pela madrugada em que aqueles seres se prolongavam - bêbados, mendigos, prostitutas, ladrões... - senti-me acometido por terrível angústia. Eu era um deles, era. Mas como escapar das ratoeiras, dos esgotos, dos lamaçais?

Toquei para casa. Lá a mulher me prepararia um ovo (ainda devia haver um), e eu, depois do sexo, me deitaria de papo pro ar e sonharia que nem o bêbado de bigodinho de pontas arrebitadas. De manhã o sol - que esquecia de retirar os seus raios da noite - acordaria Teresina, Teresina me acordaria, levanta homem!, e tudo voltaria ao que era.



Airton Sampaio
em Painel de sombras 
Teresina: Edições Piçarra, 1980

Airton Sampaio - síntese biográfica




Airton Sampaio de Araújo [ 1957 ] nasceu em Teresina - PI. Contista, professor universitário, crítico literário. Publicou Painel de sombra (Teresina, 1980, contos), Contos da Terra do Sol (Teresina, 1996, 2002), Sob um céu azul tigrino (Teresina, 2005, novela), Ocaso das tardes de domingo (Teresina, 2012, novela, e-book). Participou das coletâneas: Novos contos piauienses (Teresina, 1986), Crônicas de sempre (Teresina, 1987, contos), Concursos literários do Piauí: contos (Teresina, 2005) e Geração de 1970 no Piauí - contos antológicos (Teresina, 2005). Integra o Grupo Tarântula de Contistas.

18.10.13

DESPEDIDA


                                ao sertanejo Antônio Ribeiro


Teresina adeus, adeus!
Adeus rio Parnaíba!
Vô voltá pa minha terra,
Pu sertão das Carnaíba.

Já chegô premêra zagua,
Truvão fraco, chuva grossa,
É sina de com inverno,
Vô cuidar de minha roça.

Vô ispiá pus campo verde
Iscutá o gême dos tôro,
I cumê quaiada boa,
Isccurrida ou mermo in sôro.

Teresina adeus, adeus!
Pu sertão eu vô voltando...
Lá deixei uma caboca
Num ranchinho misperando...



fonte: Jornal O Dia, ano 11, nº 101 
Teresina: 4 janeiro de 1953

Hermes Vieira - síntese biográfica


Hermes Vieira, por Cazé - década de 80


Hermes Rodrigues Cardoso Vieira [ 1911 - 2000 ] nasceu na Fazenda Caiçara, Elesbão Veloso - PI. Poeta popular, cronista, romancista, indianista e folclorista. Tem publicado: Poemas Nordeste (1988); Piauí Sertão (1988), entre outros.

3 POSTAIS DE TERESINA




Postal I


Na Paissandu e adjacências bêbados passeiam
equilibrados sobre a corda bamba dos pés.
Velhas meretrizes sem freguesia
conversam e cospem na calçada.
Nas noites serenas de serenatas
as luzes mortiças dos postes
espiam de pálpebras cansadas
os amores camuflados clandestinos (in)decentes.
Os amores puros, sem rotas e rótulos.
A lua, velha safada, espreita a intimidade
das alcovas dos casais.



Postal II


No Morro do Querosene

- sem quero, sem querosene e sem gás -
a miséria mora em cada casa
sem água e se luz.
Um bolero ou tango
                          tange o tédio.
De repente, um tiro na noite.
Assassinato ou suicídio?
Último ato: cai o pano de silêncio
sobre o silêncio do morto.



Postal III

O Morro do Urubu
se muito foi terá sido
morro do urubu chumbado, morro do
urubu chagado, sifilítico e faminto.
O Morro do Urubu
hoje é Morro da Esperança.
Esperança de quem?
Daqueles que nada esperam
em sua ab / só / luta miséria.
Morro da Esperança????????
Morro dos bastardos da vida,
dos pobres, dos desvalidos.
Morro da morte matada,
morro da morte morrida,
morro da morte em vida:
Morro da (des) Esperança.



em Poemágico, A Nova Alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

CIDADE GRANDE




Dando (m)urros
no vazio
por causa da dor
              da doidice
da vida
da vivida mediocridade
entre ruas
       nuas sujas tristes
as ladras
   ladram como cães
e os cães
gemem como homens.
Na (c)idade
do lobo
o lobo-homem
é o lobisomem
           do homem.
Tudo é
ferro feio (en)ferrujado
ferindo feridas
já abertas.
Na cidade
na cilada
das suas ruas
surgem (g)ritos
lavados em sangue
lavrados a ferro e fogo.
Soltam berros
soltam (b)urros
prendem os b'rros
que incomodam.
Na cidade grande
onde não existe
pôr-de-sol
o homem gira e pira
sem (gira)sol.



em Poemágico, A Nova Alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

FLAGRANTES DE TERESINA




I


À meia-noite
percorria a praça.
A noite era silente e fria
e nenhuma estrela luzia...
O manto escuro tudo
envolvia e ninguém mais existia.
Apenas o olhar cego
do Conselheiro, ao longe,
indiferente, me via.



II


Em criança
a carranca do Barão
em seu assombro me fascinava.
Seu bigode recurvo espetava o ar
a ceifar a brisa como às nuvens
e ao céu o alfange lunar.
Um besouro inoportuno
bolinou o bigode do Barão
e o bigode de bronze
imperceptivelmente se moveu.



em Poemágico, A Nova Alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

Elmar Carvalho - síntese biográfica




José Elmar de Mélo Carvalho09/04/56 ] nasceu em Campo Maior – PI. Poeta, cronista, contista e crítico literário. Juiz de Direito. Bacharel em Direito e em Administração de Empresas. Presidiu o Diretório Acadêmico “3 de Março”, a União Brasileira de Escritores do Piauí e o Conselho Editorial da Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Foi membro do Conselho Editorial da Universidade Federal do Piauí. Bibliografia: “A rosa dos ventos gerais”, “Cromos de Campo Maior”, “Noturno de Oeiras” e “Sete Cidades – roteiro de um passeio poético e sentimental”, entre outros. Participou de várias coletâneas e antologias.

17.10.13

INTRODUÇÃO




Esta cidade ardente, poucos homens a trazem na lembrança ou no coração. É uma cidade simples, tranquila. Aqui não há becos nem ladeiras, mistérios nem tradições. Cem anos não deixam acumular muita cousa na vida de uma cidade que já nasceu velha e que sempre teve o ar de uma aldeia grande, como notou um viajante ilustre e mal-humorado. Um ar que se transforma aos poucos com o correr do tempo e esta transformação indecisa mais o progresso ajudam a descaracterizar a cidade. Tem suas diferenças, é claro. O clima, as condições geográficas, a vida, as árvores. Outro viajante ilustre, porque gostasse de adjetivos ou porque realmente o impressionaram tantas copas verdes sobre os telhados desbotados, chamou-a Cidade Verde. Os naturais gostaram, o nome ficou. Hoje não existe mais aquele imenso arvoredo a que se referiam os cronistas do tempo, mas ainda se pode dizer que é uma cidade velada pelas árvores. Mangueiras e oitizeiros dão a sua sombra como frágil proteção contra o sol. O sol é muito claro, como se estivesse sempre em desespero, há excesso de luz nesta cidade. As cores se afirmam definitivamente, mas há predominância de tons claros. As casa claras e baixas, as roupas claras, os dias límpidos. Raros dias cinzentos e as chuvas, embora não sejam raras, chegam a ser uma distração. A marcha das estações é quase imperceptível. O tempo das chuvas e o estio. Em maio chegam brisas do Atlântico e dão à cidade um leve toque de primavera. Nesta época as madrugadas deixam um neblina tênue, que marca o fim do inverno. Depois é a soalheira. Meses mais tarde nuvens se formam ao nascente e começam as chuvas outra vez. Então alguns contemplativos descobrem que há bandos de aves voltando do Maranhão, cruzando o rio para o Piauí. São os patos e marrecas que voltam para as lagoas distantes. Assim se vai o tempo e a vida. O ritmo da vida é muito calmo. Os dias passam serenamente vazios, os rios descem o seu caminho, as nuvens seguem o seu curso, grandes cúmulos brancos na pura duração do azul. Os cafés se enchem de homens, os homens estão cheios de pó e de retórica, discutem política, negócio, amor e a vida dos outros. Há praças para os namorados, a quem a polícia não permite muitas expansões, cinemas, a missa dos domingos, os bailes, a cerveja e em qualquer lugar há sempre a música de um alto-falante. A cidade é aberta, sem segredos, acolhedora. Tem um ar de família que vem do fato de que quase toda gente tem relações ou se conhece. O que dá origem a uma intimidade deliciosa, como a daqueles dois que conversam em um dos cafés mais movimentados da cidade. Dizia um: "Ele é cretino, convencido, besta". Veio o garçom, bota a bandeja na mesa e entra naturalmente na conversa: "Quem é?" O que estava contando também responde naturalmente: "O Dr. F...".
em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

APONTAMENTOS PARA UM POEMA DO RIO POTY




Mais na lembrança do que na paisagem
desce no seu caminho vagaroso um rio pobre.
Lento fluir de águas quase mortas.
Rio Poty
rio sem história
rio sem memória.

Um sinal de beleza nesse rio é uma cousa exterior a ele
e está confinado em palavras - o Porto do Noivos. Porque a
beleza não está propriamente no porto, mas nessa
denominação com tudo o que ela sugere de lirismo.

Algo fantástico nesse rio mal nutrido, meio devorado pelo 
sol: as arraias enterradas na lama que, há muitas águas
passadas, assombravam os moleques da manhã.
Como um pássaro mudo o rio humilde vai passando pelos
espaços do seu silêncio.
Rio Poty
rio sem surpresa
rio sem memória.



H. Dobal
em Obra Completa - I (poesia)
Teresina: Corisco, 1997

OS CABARÉS



Rua Paissandu via Bernardo Sá Filho


O lado cabaré merece uma referência que corresponda à sua importância, que esteja de acordo com o seu papel de destaque, com íntimas ligações e reflexos na vida da cidade. Aqui se pratica intensamente esta espécie de amor e o número de profissionais que existe, não só nos cabarés, mas também fazendo esse jogo do amor é grande. Um sociólogo apresentaria o fato como  índice de pobreza da cidade. Os cabarés ou pensões de mulheres, que têm menos o aspecto de bordéis, no mau sentido, do que de night-clubs ou dancings, ficam localizados em zonas determinadas e são mesmo chamados a "zona". Quase sempre tomam o nome das proprietárias: Raimundinha Leite, Maria Aguiar, Zezé, e são constituídos de restaurante, botequim, mesas ao ar livre, e o salão de danças, que é, às vezes, decorado com pinturas, obra de artistas simples e inspirados em motivos ainda mais simples: paisagens mansas. Têm orquestras próprias ou eletrolas com alto-falantes e as músicas, quaisquer que sejam, sofrem no ambiente a transformação de uma vaga nostalgia. Têm ainda uma cousa que lhes diminui a brutalidade ou a mesquinhez: não é claramente um comércio. Para o sucesso faz-se preciso certa dose de corte e de galanteio.

Um velho piauiense, que atingiu alta posição em um os poderes da República e que há anos não vinha a seu Estado, perguntava a seu sobrinho como era a vida noturna de Teresina. O rapaz, profundo conhecedor, com a experiência de muitas noites de rondas pelos lugares mais secretos, se excedia em detalhes. O figurão não continha o entusiasmo: "Nem em Paris, meu filho! Assim nem em Paris!". Talvez no seu entusiasmo estivesse muita saudade da terra e da mocidade, talvez estivesse sendo sincero, porque, na cidade, participam do seu sentimento quase todos os solteiros e muitos casados. Foi em um cabaré que dois jovens políticos festejaram, estrondosamente, as suas candidaturas a importantes cargos da administração pública. Entretanto não há necessidade de motivos: mesmo sem eles as comemorações se sucedem, as farras se realizam, os cabarés vivem cheios e constituem na vida da cidade talvez o maior centro de atração. As mulheres, com aquele ar inconfundível que as distingue imediatamente, são discutidas, tornam-se conhecidas e algumas chegam quase a se envolver em uma aura de lenda, como a Rosa Banco, que dava uns famosos bailes verdes em que todos os participantes se vestiam desta cor. Figuras que toda a cidade conhece e comenta, uma parte só conhece as referências, este material humano é de todos os tipos, se divide em escalas para todos os gostos ou possibilidades e, naturalmente, sofre a inconstância e as dificuldades próprias do seu gênero de vida. Há duas zonas principais: a da Rua Paissandu e adjacências, próximas ao Parnaíba, mais antiga, afada e numerosa, e a da Piçarra que tem a preferência de certo número de frequentadores, e onde se destaca a Casa Amarela.

em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

ROTEIRO SENTIMENTAL E PITORESCO DE TERESINA




É uma cidade, sem dúvida. Tem um comércio muito barulhento e uma indústria muito modesta. Tem lugar para os mortos: dois cemitérios, o da Vermelha onde são enterrados os indigentes, mas não somente eles, e o de S. José com muros brancos e portões de ferro. São cemitérios brasileiros sem o lirismo e a estética dos americanos. Tem as associações: religiosas, profissionais, filantrópicas, culturais, que também nesta cidade os homens são gregários: A Academias de Letras, a Ordem dos Advogados, o Rotary Clube, a Maçonaria. Tem o seu tédio aos domingos e os lugares onde se pode enganá-lo: a Socopo, projeto de uma cidade jardim a alguns instantes de Teresina, na estrada de União, com uma piscina de águas sulfurosas e outras instalações que transformaram em balneário o antigo centro de seu Juvêncio. Os que gostam do campo podem dar um passeio a Buenos Aires, um posto do Ministério da Agricultura, que fornece verduras e frutas à cidade e onde um tostão ainda é dinheiro: com ele podem ser comprados cinco maxixes.

E como é preciso chegar a uma conclusão há o recurso de citar Camus, por intermédio de Sartre: “Um processo cômodo de se conhecer uma cidade é procurar como se trabalha nela, como se ama, como se morre”. Talvez seja esta a verdade: só diretamente é que se pode apreender a vida íntima e real de uma cidade. Compreender as suas cousas. Saber que aquela casa da Rua Bela com uma frase na platibanda: “Homenagem ao lugar em que nasceu Luiz José de Souza”, representa apenas uma singela homenagem do dono da casa ao local em que nasceu o dono da casa. O dono, de bigodões, que é conhecido pelo nome mais modesto de Luiz Cabelo Duro, é relojoeiro de profissão, mas não conserta relógios de pulso porque é contra esta “moda idiota”. Nos seus vagares se apaixona pela astronomia e prepara o dossiê da cidade contando que terríveis segredos só a posteridade saberá um dia. Enquanto isto a cidade vive: a política picha os muros e solta foguetes. O espocar dos foguetes e ronqueiras marca todas as ocasiões festivas. As faíscas são derrotadas pelos pára-raios e o próprio calor pode ser combatido: as redes facilitam a vida. Desde que os armadores estejam na altura e na distância ideais, que lhes determina Huguinho, o maior conhecedor: a sua altura mais quatro dedos e quatro passadas suas mais um pé. Depois disso tudo estará bem. O carnaval é fraco. Também o futebol. A luz elétrica é boa, a água é melhor. O céu é imenso para os aviões e os urubus e nele um barbeiro da Rua Grande já viu o disco voador. A cidade completa cem anos. Já apareceu em um baião formoso e na Melodia Moura, de Mario de Andrade, Laura, que foi empregada na farmácia de D. Lili, falava de Teresina. O boi “Riso do Amor” dança em junho. Na última noite do ano dançam o réveillon no Clube dos Diários. Os dias se sucedem com o mesmo sol, as noites acompanham a lua. A vida é calma.

em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

HERANÇA


à artista plástica norma couto


na senador pacheco 1193 há um poema
onde os primos, em volta da mesa, guardam suas ânsias
diante das pastilhas de hortelã.

e o avô na sala de espera
sonha com o voo dos pássaros
buscando as canaranas.

(às vezes de sobrecenho, fala da guerra de 14,
da gripe espanhola)

o tio já não tosse dentro da noite
arranhando um estranho silêncio
no fim do corredor
que muito se assemelha
ao gesto acanhado dos meninos
com suas canecas, à espera das cabras.

no verão, da mesma forma que no poema,
não há lodo no muro
e as lagartixas passeiam ao sol.

da nudez das pedras e do vermelho
arrebenta um verso
cicatriz esquecida.

(nesse poema o difícil
é não ser trágico)
no quintal, a erva cidreira cresce
por entre as rachaduras da lajes,
sussurrando boatos de revoltas.
na sala de jantar, o perigo do naufrágio
nas tradições de há séculos.

há um poema que rói o tédio,
na senador pacheco, 1193.



Paulo Machado
em "ta pronto seu lobo?"
Edições Corisco: Teresina, 2002 (2ª edição)

H. Dobal - síntese biográfica




Hindemburgo Dobal Teixeira (17/10/1927 – 22/05/2008) nasceu em Teresina – PI. Poeta, cronista e professor. Formado em Direito. Foi um dos fundadores do Movimento Meridiano. Bibliografia de H. Dobal: O Tempo Consequente (1966), O Dia Sem Presságios (1970, Prêmio Jorge de Lima), A Viagem Imperfeita ( (1973), A Província Deserta (1974), A Serra das Confusões (1978, editada por Cineas Ssntos, com ilustrações geniais de Albert Piauí, saiu originalmente em A Província Deserta), A Cidade Substituída (1978), El Matador (1980, em forma de folheto, com xilogravura de Fernando Costa, editado por CS, saiu originalmente em O Dia Sem Presságios), Os Signos e as Siglas (1986, ilustrada por AP e editado por CS), Uma Antologia Provisória (1988), Cantiga de Folha (1989), Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina (1992), Ephemera (1995), Grandeza e Glória nos Letreiros de Teresina (1997), Lírica (2000), Um Homem Particular (contos, 1987, ilustrado por AP), Gleba dos Ausentes - Uma Antologia Provisória (2002). Entre as antologias que tem a poesia de H. Dobal incluída, Desde Planalto Central - Poetas de Brasília (2008, organizada e apresentada por Salomão Sousa).

TERESINA DO MEU TEMPO (A PRATA DA CASA)




Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo - é bom que se saiba - parece não terem nada a dever aos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As "Horas de Arte", festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais - a prata da casa - em geral elementos próprios da sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 no amparo, ora à noite, no Teatro 4 de Setembro, ouviam-se solos instrumentais - piano, violino, flauta, bandolim, violão - números de canto e dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: "A tesoura", "As mãos", "A luz", "As estrelas". Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e finalmente perdida, sob o título "O elogio da lágrima". Talvez influenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícia, por constituir verdadeira raridade bibliográfica.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais "Clube Recreio Teresinense", "Os Amigos do palco", "Os Talianos" e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Teatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas "O bicho", "Frutos e Frutas", "O Coronel pagante" e "Jovita", todas de Jônatas batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os "Amantes da Cena Viva", grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama "Mariazinha", também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfiou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelava no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zila Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violonistas; Durcília Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam música tocado valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Radagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingo à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! a poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizades conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namorados que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda...Lourdinha...Maria Luísa...Maria... Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado: quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo: nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela jóia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no final da jornada, acabo de perder. Mas, com licença: o assunto é outro.

x
x  x

A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela a oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão influído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso "Teresina meu amor":


RONDÓ À AMADA AUSENTE

Não quero flor nem brilhante,
Quero carinhos de amante
Para o mais fino louvor
A quem já nasceu prendada
- A ti, minha namorada,
Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos,
Logo nos apaixonamos,
Tu - princesa, eu - trovador.
Atirei-me nos teus braços,
Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,
Não perdeu tempo em conquista,
Já nasceu triunfador.
- Formosa rosa trigueira,
Flor da raça brasileira,
Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,
E outro amante não tiveste
Com mais paixão e calor.
Em noites de serenatas
Dediquei-te mil oblatas,
Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,
Cantasse o céu, o universo,
Tinham meu mel, tua cor.
Vivi de ti impregnado,
- Garotão apaixonado,
Teresina meu amor...

Assim vivemos, querida,
A quadra melhor da vida
Que me deu Nosso Senhor.
Mas em busca de outros ares,
Perdi-me noutros lugares,
Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,
Envelheci de repente,
Do azar da sorte ao sabor.
Tu continuas menina,
Áurea estrela matutina,
Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,
És muito namoradeira,
De amantes possuis um ror
Sei de um, escritor de fama,
Que em belo livro te chama
“Teresina meu amor".

Vivo morrendo de ciúmes,
Da saudade subo aos cumes,
Desço aos socavãos da dor...
Mas não te esqueço um momento,
Vives no meu pensamento,
Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,
Mando-te um montão de beijos,
Pois te amo seja onde for.
- Minha cidade menina,
Minha linda Teresina,
Teresina meu amor!
em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Café Avenida I, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Quando deixei Teresina, em abril de 1951, ainda havia dois bares muito concorridos na Praça Rio Branco - o Bar Carvalho e o Café Avenida.

O Bar Carvalho era também restaurante e sua cozinha obedecia ao comando de um espanhol gordo de nome Gumercindo. Nunca esqueci o sabor de alguns de seus pratos. E já que aqui se fala de música, lembro o famoso filé à Carlos Gomes, para mim sem igual até hoje. E a farofa de ovos de que só em falar sinto a boca cheia d'água? De ovos mesmo e não apenas de ovo. À noite fazia também sucesso o substancioso chocolate com gema de ovo batida, servido numa xícara enorme - um verdadeiro jantar.

Apesar dessas delícias, o ponto de reunião ideal para o grupo de amigos e intelectuais que me incluía, notadamente na década de 40, era o Café Avenida, onde só bebíamos o tradicional cafezinho.

Ficava ao lado da igreja de Nossa Senhora do Amparo, sempre lotada aos domingos pela manhã, na missa das 9.

Vale registrar que, durante muitos anos, a missa das 9, no Amparo, constituiu ponto alto na vida social da cidade. Lá estavam senhoras e moças nos seus melhores trajes e homens de terno e gravata, apesar do calor de 40 à sombra nos meses terminados em "bro". O coro, do qual fazia parte com meu violino nos dias de festa, oferecia músicas e cantos agradáveis, acompanhando os atos litúrgicos. Muitas vezes lá nos encontrávamos, Martins Napoleão e eu. Por isso Celso Pinheiro troçava, dizendo que éramos do partido da negra velha...

Fotografia publicada no livro "Ulisses, entre o amor e a morte"
de O. G. Rêgo de Carvalho

Terminada a missa, não resistíamos a uma parada no Avenida, não só para aguardar a "hora do almoço", na expressão local, como especialmente para o descontraído e divertido papo na roda já formada por Celso Pinheiro, Martins Vieira, Álvaro Ferreira, Ribamar Ramos e outros, entre os quais, embora menos assíduos, os Professores Pedro Torres e Cláudio Ferreira, ambos egressos do Seminário, e o serventuário da Justiça, mais tarde desembargador, Manuel Belisário dos Santos.

Estabelecimento de sírios, o Café Avenida congregava também, invariavelmente, os principais representantes da colônia árabe que tão bem se adaptou à vida e aos costumes da terra, emprestando a ela o valioso concurso do seu trabalho, da sua experiência e do seu sonho de vitória no comércio, na indústria e outras atividades lucrativas; integrando-se enfim na segunda e bela pátria que os acolhera sem discriminação e com carinho e onde seus filhos, pela constituição de novas famílias, com o tempo se tornaram parte ativa da comunidade, brilhando muitos deles nas profissões liberais, na política, no magistério e até na administração pública.

Azar Chaib, Elias João Tajra, Miguel e Elias Caddah, Tomás Tajra, Elias Hidd, Miguel Sady, e Saba, Said, Adad, Mualem, Kalume - eis alguns de seus nomes. Sérgio Tajra, o patriarca da colônia, creio que à época já se havia transferido para São Paulo, onde passou a morar depois do falecimento da esposa, Dona Adélia.

Sentavam-se em área separada, ao fundo do bar, aí formavam o que eles chamavam de "roda" e onde durante horas, nos momentos de folga, trocavam idéias sobre suas vidas e seus negócios. Um apenas se desgarrava às vezes do grupo dos patrícios - o simpático Wady, para vir à nossa mesa contar anedotas das quais só ele ria...

Anedotas e episódios de fino humorístico eram aliás constantes na nossa roda de amigos. De Celso Pinheiro, o grande poeta simbolista admirado e aplaudido em sua terra e fora dela, excelente conversador, e de Martins Vieira - para nós simplesmente o Júlio - espírito vivaz e brilhante, sempre de bom humor, sobretudo deles guardo muitos casos. E embora fugindo um pouco ao tema principal destas Notas, mas justificando-o com o fato de aí se discutirem tudo, inclusive música, aproveito a oportunidade para recordar algumas dessas passagens pitorescas, num preito de saudade aos queridos companheiros mortos.

Celso não gostava do presidente Getúlio Vargas. Responsabilizava-o pelas desventuras do filho, o jovem e inteligente Celso Pinheiro Filho, mais tarde advogado e prefeito de Teresina, cujas idéias e atividades políticas o levaram ao presídio na ilha de Fernando de Noronha.

Certa manhã, ao acercar-me do grupo, meio atrasado, Celso Pinheiro foi logo me dizendo:

- Poeta, você não quer ver o Getúlio trabalhar no cinema? Deve ir, você é um Getulista.

Estranhando a sugestão, indaguei se se tratava de algum documentário importante, com imagens de realizações do vigente Estado Novo. Respondeu que não; tratava-se de filme em que o Presidente figurava como principal personagem, como ator mesmo.

Mais intrigado ainda, apanhei o programa do dia, que o Cinema Olímpia, ali pertinho, fazia distribuir sobre as mesas do bar. O título do filme era "Um espertalhão de marca maior". E Celso garantia, convicto:

- Só pode ser o Getúlio!



em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988


Café Avenida II, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Em outra oportunidade comentava-se a compra, pelo Estado, da biblioteca de Mestre Higino Cunha - um punhado de livros velhos que o governo acabava de adquirir mais como pretexto para suavizar economicamente a velhice do extraordinário polígrafo e servidor, pelo próprio governo sempre explorado e mal pago. Celso Pinheiro aplaudia o ato governamental, revelando ao mesmo tempo que a sua biblioteca é que ninguém poderia comprar. Não haveria dinheiro que chegasse.

Todos ali sabíamos que o poeta não tinha biblioteca nenhuma. Uns poucos volumes, geralmente de poesia, e nada mais. Martins napoleão até o considerava um gênio, justificando sua opinião com o fato de que, sem estudar, sem viajar, lendo praticamente só livros de versos, Celso possuía um domínio de uma escrita admirável, na correção, na criatividade, no conceito e nas imagens, tanto na poesia como na prosa. Eis por que a história da valiosa biblioteca não soara muito bem. E um de nós, creio que o Júlio, quis saber que biblioteca era essa de que ninguém tinha notícia.

Celso respondeu como que declamando, meio fora da realidade:

- O céu azul e as estrelas...

Cláudio Ferreira, como seu colega Pedro Torres, ainda trazia a cabeça cheia de histórias do seu tempo de seminarista. Contou que durante um retiro, na sede episcopal, o Padre Áureo fora escolhido para ler o texto destinado à ceia, a longa mesa de refeições totalmente ocupada por sarcedotes de várias localidades e presidida pelo bispo, D. Severino Vieira de Melo. E tudo ia bem até que o leitor, tropeçando em determinada palavra, começou a gaguejar: "geme... geme... gemebunda...".

Um risinho maroto percorreu então toda a mesa, logo, porém, abafado ante a atitude sisuda de chefe da igreja. Mas terminada a ceia, quando este já se retirava, o Padre Uchoa, sempre brincalhão, passando por trás do Padre Áureo, que permanecia sentado, acariciou-lhe a carapinha dizendo:

- Desta vez ela gemeu, hein nêgo!

Apesar do estrondo das risadas, o bispo apressou o passo, fingindo não haver tomado conhecimento da brincadeira.



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988


Café Avenida III, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


No Café Avenida também fazia ponto, quase todo dia, o Padre Acilino Portela, virtuoso pároco da matriz do Amparo. Era aí que, bebendo repetidamente seu cafezinho, sempre na mesma xícara, ele tomava dinheiro dos comerciantes, industriais, fazendeiros e outras pessoas, conhecidas ou não, para obras de reconstrução da igreja, que encontrara caindo aos pedaços. Homem simples, de palavra singela, era, entretanto, estimado e respeitado por todo mundo. Sermões monótonos, repisados e entremeados de uma palavra cacoete, nem por isso suas missas eram menos concorridas. Pelo contrário: aos domingos, na missa das 9, a igreja se tornava pequena para comportar os que nela se comprimiam.

Num desses sermões, o vigário falava, com visível aborrecimento, de certa pessoa que fora levar a D. Severino informações malévolas sobre seu modo de vida. E contava que o bispo, de quem recebera chamado, lhe manifestara não achar correto que ele, Padre Acilino, passasse os dias sentados num botequim, de pernas cruzadas e fumando cigarro. Mas fora franco - contava - como é do seu feitio. Confirmara as informações, justificando que, perdida sua mãezinha e não sendo casado nem podendo pagar empregada, não tinha quem lhe fizesse café; e como fosse o café sua única bebida, depois do vinho da missa e da água do pote, via-se obrigado a tomá-lo no bar, sempre pago pelos amigos por não ter dinheiro. E quanto ao cigarro, que o senhor bispo aconselhava usar mais recatadamente, afirmara não ser homem de fazer escondido aquilo que pudesse ser feito em público. E como não julgasse pecado, continuaria a fumar na presença de todo mundo e não detrás da porta, mesmo porque o cigarro também lhe era dado por amigos. E mais: dissera que passava os dias no bar para arranjar dinheiro para as obras da igreja, porque a diocese nunca lhe dera um tostão, para isso ou para qualquer outra coisa. E com isso encerrou-se a entrevista.

Padre Acilino repisava seu cacoete num crescendo nervoso, realmente aborrecido:

- Mas justamente eu sei quem foi fuxicar para o senhor bispo. Eu sei o nome dessa pessoa que justamente devia era melhor cuidar da sua vida e deixar a dos outros em paz. É gente que aqui mesmo vive batendo no peito, sem fé nem espírito crisão, e o que devia fazer era justamente tratar de ter mais merecimento junto a Deus. Mas eu sei quem é essa pessoa.

E alterando mais a voz:
- Eu sei quem é. Estou quase dizendo o nome dela! Justamente estou até sentindo cócega na língua. Vou acabar dizendo o nome dessa pessoa!

Toda a igreja ria. Menos decerto a pessoa de quem falava e que ali devia estar tremendo e rezando para não ser revelada.

Deixado em paz, pelos detratores e pelo bispo, Padre Acilino pôde concluir as obras de restauração de sua igraja, deixando apenas para seu substituto, Monsenhor Joaquim Ferreira Chaves - ou simplesmente Padre Chaves, como gosta de ser chamado - a construção das altíssimas e esguias torres que hoje identificam de longe, nas vistas terrestres ou aéreas, a imponente matriz de Nossa Senhora do Amparo.



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988