31.7.15

Cidade Descarnada – Resistência e memória dos antigos moradores de Teresina







Este documentário é uma homenagem aos antigos moradores do centro histórico de Teresina. Trata-se de um resgate da memória e um olhar sobre o íntimo dessas pessoas anônimas e de como elas observam, em sua lembrança o mundo exterior de uma Teresina que não existe mais. São memórias privadas, que nos introduz ainda que de maneira imperfeita nas ruas, nos clubes, praças, no comércio e o dia-a-dia teresinense. No balanço de suas lembranças, podemos nos alimentar de migalhas, microfragmentos de uma história que, de resto, seria apagada com o tempo, levada para a última morada. Suas vidas privadas são o cruzamento de ideias gerais que sobreviveram nos porões da memória e ao escapar do esquecimento individual, nos chega através desse documentário. Ele nos oferece um aperitivo composto de vários aspectos da vida individual e nos introduz na intimidade destas pessoas. Confidências, audácias, fantasias exalam das falas e nos aproximam do íntimo deles e nos oferecem a tentação de abolir as distâncias que nos separam irremediavelmente de um mundo que perdemos. Tendo como pano de fundo a "província", penetramos no cotidiano teresinense, onde inserem as suas anotações pessoais.



Roteiro, direção e imagens: Ricardo Arraes
Produção executiva: Mariana Antão
Edição de imagens: Paulo Rogério
Som: Ricardo Sousa
Animações: Vinícius Castro

TORSULA



conheci um poeta que foi ameaçado com uma camisa-de-força caso se recusasse a seguir a medicação do hospital. e olha que ele foi para o hospício porque queria descansar. a família encaminhou tudo e deixou a entender que, sempre, toda e qualquer medida só seria tomada com o seu (dele) consentimento. ele disse para a médica no corredor:
                                                                                    - ME DEIXE EM PAZ, SUA PORCA.
                                                                                    Ela havia dito antes, em tom de 
                                                                                    gozação: 
                                                                                   - é assim que você que ficar em paz? matando sua mãe aos poucos. quando é que você vai entender as coisas? você não acha que já fez demais nesse tempo em que passou fora? por que você não resolve seus problemas de sexo com estas menininhas de subúrbio? olha, meu filho, você se engana se pensa que eu não conheço marx. seus parentes me falaram de seus problemas com tóxico. você não acha que pega mal ser um maldito amparado pela família?
MORDAZ MORDAÇA SANGRIA



Durvalino Filho
Os caçadores de prosódias
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1994

30.7.15

CÂNTICO DOS PRANTOS




1 - da geografia dos rios


os rios conhecem a terra
musgos, relvas, pradarias.
ribanceirando os caminhos
ao encontro de outros rios.

...

desmatamentos, queimadas, esgotos
indústrias. roubo de areia
dos leitos para as caras moradias
canais de fezes, do mundo,
cercas, nada disso impede os rios




2 - o movimento dos peixes


os rios têm o seu povo
universos que se agitam
no milagre da existência
da vida de todo dia.

...

choram o verde que era verde
e hoje é seca, cinza, prantos.
choram os meninos travessos
que aplacam a ira dos rios.
choram os meninos e os bêbados
que morrem nas águas vadias,
nas águas da morte funda
da terra sem moradia.




3 - o tempo social dos rios


os rios choram seus mortos
nas enchentes e marés,
os rios cantam seus mortos
nas chuvas das cabeceiras.
lamento das lavadeiras
no barulho dos anzóis
nos esgotos que recebem
nas barragens que constroem.

...

é para os rios que convergem
as lavadeiras do Brasil.
assembléia de mães pobres
confluência da esperança.
com o sabão da miséria
i a grandeza cotidiana das mãos
ensaboam e enxagoam
a sujeira dessa vida.
vida de pobres e ricos
de dores y alegrias.

...

nesses tempos de miséria
os rios são o choro da terra.



__

Menezes y Morais
em O Rio (antologia)

RIO SECO





Lembro de quando naveguei este rio nos vapores de Palmeirais. Navios de ferro fundido que a queima de lenha (depois o diesel) movimentavam gigantescas pás laterais singrando as profundas e caudalosas águas do Parnaiba. Em camarotes ou redes nos convés viajantes acompanhavam as margens de canaranas, pescadores em pequenas canoas e, nos portos, as mulheres batiam roupa e secavam no quarador. Hoje o rio morre asfixiado em bancos de areia. A reserva hídrica da minha terra se esvai. A capital do Piauí se encostou no Rio porque ele era o caminho que levava ao litoral e ao fundo do sertão, no interior. Até hidroavião pousou nas suas águas. Hoje esquecido morre numa cidade que não cuida da sua história. Só a saudade pode atestar o que foi outrora um Parnaíba que agoniza no cais de uma cidade que não mais o quer.
Fotografia via blogue do Kenard Kruel

EU, A CIDADE E O RIO | Capítulo 1 (trecho), João Batista Dias Pinheiro


Em Teresina vendia-se tudo, até a própria balsa, cujo material era utilizado para muros de quintal. Os donos das balsas e eventuais passageiros regressavam, às vezes, em barco a vapor, ou senão, a pé ou a cavalo. Os mestres e contramestres, geralmente, regressavam a pé, por falta de condições financeiras para comprarem cavalos. Verdadeiros heróis. Recebiam em Teresina o pagamento de seus trabalhos, faziam pequenas compras para as necessidades da viagem, além de alguns presentes para a família e partiam de volta. Com o saco às costas, preso com alça nos ombros, um chapéu de palha e calçados de couro, atravessavam o Rio Parnaíba à altura de Timon e seguiam pelo Maranhão, procurando encurtar a enorme distancia. Conhecendo bem as trilhas, procuravam fazer uma linha reta em sua viagem de Teresina a Ribeiro Gonçalves, alimentando-se de qualquer jeito, especialmente com rapadura e farinha de mandioca e dormindo onde anoitecia. Após percorrer mais de quinhentos quilômetros, andando cerca de cinquenta quilômetros por dia, chegavam a Ribeiro Gonçalves após dez dias de marcha intensa.


João Batista Dias Pinheiro
em EU, A CIDADE E O RIO: À MEMÓRIA DE RIBEIRO GONÇALVES/PI
Teresina: Gráfica do Povo, 2013

29.7.15

CÃO SEM DONA




Alguém aí acaso achou os passos que perdi
Nas ruas escaldantes de Teresina?

Esse endereço anotado em letra trêmula
É de quem, de qual cidade, de que país?

O coração que ofegante segue os passos
Impunemente no meu peito inda é meu?

Ou desse uivo que se lança na direção da lua
Gritando em desespero o nome dela?



Climério Ferreira
em Piauinauta

28.7.15

PESCARIA ÀS SEIS DA TARDE NO BALÃO DA IGREJA DE SÃO BENEDITO, por Rubervam Du Nascimento



Um rio nos separa na pista de danças luzentes e procissões de veículos rio não de águas de carros. Na cidade de Teresina, tem um igreja cuja frente, fica voltada para uma avenida, que juntando-se com outras pequenas ruas no mesmo perímetro, vai dar no rio Parnaíba, - o maior rio da bacia hidrográfica da região Norte do Brasil, responsável pela separação geográfica entre os estados do Maranhão e do Piauí, e, o fundo, vai dar para outra artéria, considerada a mais elegante e luxuosa da nossa capital, - a Avenida Frei Serafim. Nesse ponto, - tanto pela frente como pelo fundo da igreja, - outrora, o "trottoir" (paqueração, pescaria) de proxenetas, gays, lésbicas, drag queens, travestis e principalmente prostitutas era intenso. A procissão de veículos motorizados era maior que a procissão de andores, mas dentro desses veículos estavam no volante - obviamente motoristas, - que não estavam ali para pescar luzes de holofotes de carro nem muito menos  pistas de rolamentos de veículos, eles estavam ali para pescar gente de rostos, carne, osso e espinha.



Rubervam Du Nascimento
em Guia Turístico Afro-cultural da Região Meio-Norte; Piauí e Maranhão
de Antônio Julio Lopes Caribé


26.7.15

O MENINO DA PACATUBA



Dos meninos consumidos no sol da Pacatuba ficaram lembranças. Dessas lembranças Paulo José Cunha constrói o seu universo poético. Delas e da evocação do País do Piauhy. Tudo na maneira de Geraldo Melo Mourão (o que glorificou o País dos Mourões) e Manoel de Barros (o que expôs a Gramática do Chão) e no mesmo plano elevado.

Uma das funções da poesia é desencantar lembranças, sujeita, no entanto, ao risco de tornar-se apenas uma prosaica enumeração. PJC cumpre esta função, evitando este risco. O seu mundo poético surge da poesia intrínseca das lembranças, realçada pelo poder que as palavras adquirem no contexto. As palavras vivificam as imagens e as pessoas: atrás da igreja das Dores o grotão por onde corriam as águas do inverno, a suave ladeira da Estrada Nova por onde se chegava à Pacatuba, onde hoje deve vagar o espírito irreverente de Vitinho, que ali frequentou a aula de D. Maria Patu.

A tia Maria, a branca de fala mansa (para nós era a comadre Maria), o seu Raimundo Luço (primeiro cliente de um advogado que mais tarde reconheceu não ter os defeitos necessários para vencer na profissão e se bandeou para a categoria dos poetas). PJC saca da memória um verso de Quasimodo (“la dura um vento che ricordo aceso”); na Pacatuba havia no máximo a brisa de maio que empinava os papagaios de papel.

O menino da Pacatuba, a infância restituída, volta, das areias do tempo, nas cercas de melão-de-são-caetano, na figueira ao lado da casa de seu Pombo, no terreno baldio da esquina do quarteirão, nas tijubinas, nas mangas verdes, comidas com sal, às escondidas, enquanto o Parnaíba, o rio grande dos tapuias, no fundo das ribanceiras, rola o seu dia perene.



H. Dobal
Prefácio do livro O perfume de Resedá, de Paulo José Cunha
Teresina: Oficina da Palavra, 2009

20.7.15

A PONTE (O RIO) ENTRE AS CIDADES




Rio de duas cidades
dividido entre tristezas
uma ponte assim as une
não de aço, de pobrezas



Álvaro Pacheco
Teresina, maio de 1965
em MARGEM RIO MUNDO
Artenova: Rio de Janeiro, 1965

DOMINGO DO RIO




O rio technicolor
aos domingos (todos os domingos
de sol na Coroa).

Moças vermelho
coxas branquinhas
homens cinzentos
meninos azuis.

Depois da missa, purificada,
a cidade descia para o rio
e docemente sonhava com o pecado
nas areias de veludo da Coroa.

E um domingo, no fundo da canoa,
perdida, entre a verde canarana,
o menino viu o sexo conjugado
(o rio, o domingo, o espanto).



Álvaro Pacheco
Teresina, maio de 1965
em MARGEM RIO MUNDO
Artenova: Rio de Janeiro, 1965

O ADRO DE SÃO BENEDITO, de Barros Pinho



oh como eu queria
guardar o vento
que circulava
no adro da igreja
de são benedito
em teresina
onde nele talvez
tenha escrito o poema
de amor mais puro do ofício
só o poeta tem essas coisas
de se esconder nas palavras



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


O RETRATO NAS PAREDES, de Barros Pinho



As casas como as pessoas
guardam cicatrizes
expostas no rosto do tempo.

Às casas sempre voltamos
nelas a vida anda por trás do que passou
existem na existência indo embora.

As casas onde morei para viver
na afoitosa e lúdica adolescência
abrem rugas na face branca das paredes.

De dentro delas saltam sonhos
que não querem envelhecer
e o menino açoitando o vento nas curvas do rio
que se arrasta na carne azul da paixão.



Barros Pinho
via Jornal de Poesia


SANTO ANTÔNIO NOME DE RUA, de Barros Pinho



a rua santo antônio
tinha mesmo
vocação poética
não é que lhe deram
o nome de olavo bilac

num alto perto
de uma faveira
morava o poeta
mário bento
meu professor
de decassílabo

mais abaixo
quem morava
era a madrinha dodó

na quitanda
rezando
e vendendo
cigarro selma

em frente
num casarão
uma lourinha
burguesa
tocava acordeon

no quarteirão
seguinte
meu pai me fez
proprietário
de uma garapeira
onde apenas ganhei
duas namoradas

rua santo antônio
do menino
metendo os pés
em tuas águas
do adolescente
que te fez revelações
rua santo antônio
de teresina
das mangueiras
das carambolas
e dos quintais



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


BALADA DE TERESINA – A CIDADE VERDE, de Barros Pinho



recordo
a adolescência
nas árvores
de minha cidade

no circo
das areias
que ainda
circula
em meu juízo

no cais
onde aprendi
a história
da pureza

no riscos
das gatas
espreitando
em cada esquina
da rua paissandu

na rua
pedro II
onde rodei
com a primeira
namorada

no vaga-lume
ferindo
o otimismo
no escuro
do cine-rex

nos bons
comícios da udn
naquele tempo
mulher de muito
respeito

nos bichos
oficiais
pássaros
camelôs
do mercado velho

nas íntimas
novenas
de são raimundo
na piçarra

na vulgaridade
eletrônica
da mensagem
de um alguém
para um certo alguém
que está ausente

nos meus gritos
ecoando
a céu aberto

olha a laranja
olha a bananeira

olha a saudade



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


BALADA DO RIO PARNAÍBA, de Barros Pinho



não conhecia
o mar
o rio de minha
cidade era meu oceano

no cais
na rampa
laranjas
prostitutas
a granel

o vento
entra
pelas narinas
com peixe
creolina
e cashmere bouquet

lá em cima
a máquina
pilando arroz

a banca
de gelado
tábuas
de pirulito

em baixo
barcas
barcaças
navegando

lavadeiras
abertas
ao sol

lanchas
vapores
fumegando

fiscal
de renda
paletó
e gravata
cuidando
das coisas
do estado

canoas
canoeiros
só passando

noites
vivendo
de aventuras

suicídio
na senda
do ciúme

do outro lado
timon
antiga flores

águas
tranquilas
correm
sob a ponte



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


2.6.15

TERESINA: NA PRAÇA PEDRO II




Foi em 1974. À tardinha, tínhamos passado por alguns lugares bem conhecidos de Teresina. O tempo, porém, passou rápido como o tênue fio que separa a vida da morte. Quando demos fé, já era tarde da noite. Nossa conversa, em pé, encostados à mureta da parte mais alta da Pça Pedro II da velha Teresina cansada de guerra, naquela divisão social e preconceituosa que separava, por uma rua, as duas partes da praça, uma a das meninas de nível social mais alto ou bem alto, e a outra, em que estávamos, que dava para o antigo Quartel de Polícia, lugar das meninas pobres, das então chamadas curicas.

Evandro e eu estávamos ali, olhando para uma praça quase vazia, que parecia abandonada por seus frequentadores. Mas, esse vazio pouca diferença fazia para o dois jovens irmãos, eu, um ano mais velho que ele, recém-chegado do Rio depois de dez anos sem ver meus pais. 

Como de costume, nossas conversas se voltavam para o futuro e para um futuro muito colado às coisas da cultura, de livros, de sonhos e projetos que pretendíamos concretizar com o passar do tempo. Me dizia o mano Evandro: “Chico, a gente tem que fazer alguma coisa sólida no campo literário. Isso é coisa séria, exige muita leitura, preparo, lutas, combates e principalmente estudos. É preciso produzir, irmão! Porém, tem que ser alguma coisa que valha a pena, que tenha valor, que perdure e deixe marcas".

Naquela época eu já começara a escrever pra jornais de Teresina e, no Rio, mal acabara de me graduar em Letras. Evandro tinha já manifestado inclinação para a poesia. Fizera poemas que eu não conhecia. Já estava formado em Direito e era recém-casado. Já tinha passado pela militância universitária. Fora preso, durante alguns meses, pela Ditadura Militar. 

Essas lembranças que alinhavo agora vêm a propósito da notícia pesarosa que hoje me chegou de um telefonema de minha irmã, a Maria Cândida, me transmitindo aquilo que jamais esperaria saber tão prematuramente, a de que Evandro faleceu nesta madrugada num hospital de Fortaleza, para onde há alguns meses foi se tratar de uma doença que dele exigia um transplante. Operaram-no. Resistiu à cirurgia. Estava bem, me informara minha irmã. Contudo, três meses depois, não sei ao certo, passou mal e veio a falecer ao sessenta e cinco anos. Seu corpo será trasladado de avião para Teresina, onde vai ser velado e sepultado. É o terceiro irmão que perco nesta vida. Estou arrasado por dentro, mesmo tendo que confessar que, tempos atrás, depois da morte de papai, guardara alguma mágoa dele por razões que hoje já não significam muito ou nada mesmo. O sangue fala mais alto. 

Na realidade, nunca brigamos de verdade. Nas vezes que estive com ele, quando ia a Teresina, sempre nos tratamos bem. Ele tinha um temperamento alegre, não dava mesmo para ter raiava dele. No ano passado, quando fui lançar meu livro As ideias no tempo, na Academia Piauiense de Letras, ele lá comparecera no auditório da APL. Me ouviu expor sobre meu livro e comprou um exemplar que lhe autografei. Eu estava com o meu filho mais velho, o Neto. À noite, do mesmo dia do lançamento, levou-nos ele no seu carro a um passeio por Teresina. Fomos a um Shopping, tomamos sorvete. Conversamos e rimos muito da vida e dos homens. Evandro era espirituoso, inteligente, culto, lido, escrevia bem e era contundente. Não lhe faltava uma boa dose de sarcasmo contra mediocridades. Tinha boa leitura no campo sociológico e argumentava com muito vigor intelectual. Grande admirador da alta literatura universal. Seu espírito de autocrítica talvez o tenha refreado a produzir mais literatura, no conto e na poesia. Leu também o que era bom e tinha projetos de escrever mais ficção. Tinha especial talento para o jornalismo. Uma vez, fundara uma revista, que durou pouco tempo.

O que nele mais ressaltaria, neste momento de dor, era a sua veia crítica, o seu sarcasmo, como se rabelaisianamente quisesse rir das nulidades e de si mesmo. Naquele último encontro que tive com ele, antes de descermos do carro meu filho e eu, estava selado pelo destino o meu convívio na vida com ele, o qual se dava no geral sempre em horas tão breves e fugidias, mas cheias de risadas, de relatos engraçados sobre homens, fatos, situações familiares num tom de voz que lhe era inconfundível, sobretudo porque costurado pela ironia dos que vivem a vida pelo instante que passa. 

Nos meus arquivos guardo dele uma carta de 1990, um recorte de jornal de Teresina com um poema dele juvenil à maneira de Augusto dos Anjos (1884-1914) e uma crônica/conto autobiográfico em que o personagem principal é a figura de papai num momento difícil da vida do grande jornalista. 

O melhor período que passei com ele foi na infância e início da adolescência. Evandro adorava que lhe contasse narrativas de livros que eu tinha lido. Naquela época de ouro e de inocência éramos muito amigos, nos amamos e era um prazer estar com ele. Um outro momento de grande emoção foi aquele em que lhe pude ajudar de alguma forma. Foi quando ele, tendo feito vestibular para Direito, não passou na primeira tentativa. Me dissera chateado que na prova de inglês havia se dado mal. Aqui do Rio - já vão tantos anos! -, preocupado com a situação dele, corri à Embaixada Americana. Conversei com o Departamento Cultural e pedi ajuda a uma gentil pessoa que me atendeu. Eu procurava material para o ensino do inglês. A assessora me veio então com um pequeno e atualizado livrinho para o ensino do inglês e destinado a brasileiros. Contente fiquei e remeti logo pro Evandro o volume. Na segunda tentativa, ele fora aprovado para o curso de Direito. Numa outra ida minha a Teresina, me confidenciou que já lia regularmente o inglês e me agradecera pelo envio daquele livrinho.

Se um profundo descompasso temporal houve, até agora, entre ele e mim no que concerne a uma intimidade maior e a um estreitamento mais radical de nossa amizade e de nosso afeto, e isso tem sido comum entre meus familiares irmãos, irmãs e parentes próximos, talvez tenha, em grande parte, sido devido ao meu afastamento por  tantos anos, com poucas idas ao Piauí, ou porque talvez isso seja apenas uma questão de temperamento mesmo entre os familiares. No entanto, ainda quero acreditar que, no fundo, há respeito e bem-querer nesta numerosa família. Creio ainda na amizade e amor que correm no sangue comum.

No verbete do utilíssimo Dicionário biográfico de autores piauienses de todos os tempos, de Adrião Neto, constam estas informações bibliográficas sobre meu irmão:

SILVA, Evandro Setúbal da Cunha e. n. 14-04-1947 – Amarante (PI). Contista e cronista. Formado em Direito. Fiscal do Ministério do Trabalho. Bibliografia: Ensaios Políticos (1981) e Relações de Empregos (1984). Participou: Coletânea Poética (1987) e Antologia Poética de Cidades Brasileiras (1988).



Cunha e Silva Filho
em Portal Entretextos

3.2.15

HINO DE TERESINA


Risonha entre dois rios que te abraçam,
Rebrilhas sob o sol do Equador;
És terra promissora, onde se lançam
Sementes de um porvir pleno de amor.

Do verde exuberante que te veste,
Ao sol que doura a pele à tua gente,
refulges, cristalina, em chão agreste;
Lírio orvalhado, resplandente.

"Verde que te quero verde!"
Verde que te quero glória,
Ver-te que te quero altiva,
Como um grito de vitória!

O nome de rainha, altivo e nobre,
Realça a faceirice nordestina
Na graça jovial que te recobre,
Teresa, eternizada TERESINA!

Cidade generosa- a tez morena,
Um povo honrado, alegre, acolhedor;
A vida no teu seio é mais amena,
Na doce calidez do teu amor

"Verde que te quero verde!"
Verde que te quero glória,
Ver-te que te quero altiva,
Como um grito de vitória!

Teresina, eterno raio de sol
Manhãs de claro azul no céu de anil;
És fruto do labor da gente simples,
Humilde, entre os humildes do Brasil!

"Verde que te quero verde!"
Verde que te quero glória,
Ver-te que te quero altiva,
Como um grito de vitória!


Cineas Santos
Letra do Hino de Teresina/PI 
Conforme Lei n° 2.408 de 14.07.95, 
Que “Institui o concurso para escolha do Hino Municipal de Teresina”


18.11.14

a paz do pântano, por Paulo Machado



Nas ruas da minha cidade há lições?
           (É preciso aprendê-las)

Desfazer o enigma da Rua Grande,
Onde os revolucionários depredaram o bonde
E apagaram os gestos dos ditadores,
Numa rubra manhã de outubro.


(A malha da história sendo tecida pelas mãos operárias)


Lembrar o fantasma de um coronel loquaz
que acrescia cores às suas façanhas
e vadiava pela Rua da Estrela,
atravessando paredes,
sumindo na cinzentura da tarde.


Os paralelepípedos da Rua da Glória
tinham a densidade do sono nas tardes de verão.


Insisto:
aprender as lições que há nas ruas da minha cidade.
Na Rua Bela, era proibido amar.
(Há tempos proíbem as lições de liberdade, no meu País.)


Na Rua dos Negros, francesas faziam amor
com os filhos dos coronéis.


Na Rua Paissandu, havia sol nos corações dos amantes.


O tempo não apagou o que falavam os operários
da Companhia de Fiação, nos dias de cinza da ditadura Vargas.

Diziam coisas reais
aprendidas no galope das máquinas
e no silêncio das horas, nas noites insones.


O imperialismo saia do Cine Olympia
para as mesas do Bar Carvalho;
a Casa Inglesa penhorava a vida dos camponeses.


Não importa que o presente me apunhale.
Desafio o ódio
dos que desconhecem como é difícil penetrar
no âmago das verdade proibidas
e acreditar nos homens.


Caminho solitariamente pelas ruas da minha cidade
e guardo-me para desvendar seus segredos.
Como é difícil compreender
os mistérios de uma cidade,
mesmo que seja uma pequena cidade
situada na zona tórrida,
no nordeste do Brasil.


A Avenida Frei Serafim divide a cidade em duas fatias de medo.


Aos domingos a cidade está deserta e dócil
ao carinho da procura.

Parece que seus habitantes partiram
e nada deles restou.


A cidade, desabitada, treme de gozo
aos afagos dos estranhos,
mas nunca se entrega inteiramente.


Impossível dizer quantas faces tem a cidade.


A constância do azul, no céu da cidade,
ensina que é preciso renascer das cinzas da noite,
porque a vida é um contínuo amanhecer.


A cidade e as tragédias familiares,
as muitas dores abafadas,
as vergonhas que as famílias guardam
no fundo das gavetas.


Minha cidade já viu morrer
muitos homens e silenciou.
E este silêncio ensina
que não basta ver a morte de homem
para aprender que a vida
se escreve com a melhor letra.


As ruas da minha cidade ensinam lições de solidão?


Conheço minha cidade,
como conheço o meu corpo.

Meu corpo propõe insurreições
e persiste, insubmisso, entrincheirado
nas ruas da cidade ensolarada.


A cada dia que passa,
a cidade torna-se difícil.

Os que a amamos,
Sentimos sua renúncia.


Enfurecida, a cidade é uma loba no cio.


Escapo à armadinha do tempo:
aprendi a árdua lição
de que as palavras são potros bravos.


Aprendi a inventar amanhãs,
moldando o futuro
com minhas angústias de homem.

Aprendi que sou um náufrago em mim mesmo
e já não procuro meu avesso
nos fracassos acumulados.


O presente insiste em me apunhalar.
Vejo minha cidade:
ancoradouro de fúrias invisíveis,
e seus horizontes repetidos.



Paulo Machado
em "a paz do pântano"
Oficina de Arte: Teresina, 1982


6.9.14

OS DOIDOS DA MINHA MEMÓRIA, por Edmar Oliveira


Manel Avião, Manelão, avião, ão, ão. Vrummmmm. E lá se ia Manel conduzindo um avião imaginário na mão direita, que já, já, virava asa e, abrindo os braços em duas asas, Manel era o próprio avião, que encantava os meninos que viam o Manelão como cena de cinema que ele fazia o voar na imaginação. Manel voava de verdade. E a lenda se espalhava na cidade. Na Piçarra, diziam, invadiu uma casa e roubou um rádio. Na Palha de Arroz seduzia meninos e meninas, que as mães zelosas não deixavam chegar perto do avião. Podiam ser levadas pra longe e se perder na escuridão da noite. Manel contava histórias. Histórias de cinema que se passavam em Teresina. Não sei que fim levou. O avião, com certeza, lhe levou embora...

Nicinha, pequenina, enfeitava-se de fantasias de carnaval durante todo o ano. Todo dia, toda aglomeração, discurso político, conversa de bêbados, papo de vagabundos, qualquer ajuntamento de gente fazia aparecer o pipoqueiro, o sorveteiro e Nicinha. E aí vinha ela. Numa elegância exagerada, maquiagem intensa, óculos de gatinha, fita colorida no cabelo, vestido de tafetá azul celeste. Qualquer que fosse o dia do ano Nicinha vestia a fantasia da terça gorda do Carnaval. Me encantava a sua presença. Era a marca de que o que estava acontecendo tinha importância. A porta do Teatro, o Bar Carnaúba, a Pedro II, o Café Avenida, eram lugares que só existiram pela presença de Nicinha. Me contaram que teve uma morte violenta com requintes de crueldade. E o criminoso nunca foi encontrado. Quem poderia fazer mal a um beija-flor tão bonito? Mas na minha infância tinha menino que engolia coração de beija-flor pra ficar guabes. Guabes, pra quem não conhece piauiês, é ficar com boa pontaria na baladeira. Baladeira, um piauiês tão bonito, é estilingue ou bodoque noutras pronúncias. E Nicinha e o beija-flor nunca fizeram mal a ninguém, mas morreram do mesmo jeito...

Bibelô era um bibelô. Genial quem inventou o apelido. Era um homem pequeno e delicado que se vestia de mulher, mas de forma tão fina, delicada, suave, diria mesmo harmoniosa. Não tinha o exagero de Nicinha. Era uma espécie de Carmem Miranda contida, pois que não tinha o exagerado da notável. Seus balangandãs, quinquilharias, indumentárias e adereços não agrediam aos olhos. Mais parecia um Matogrosso no início de carreira nos Secos & Molhados. Às vezes um turbante lhe tornava palestino. Uma maquiagem discreta fazia aparecer a Maria Bonita. Lembro da tristeza nos seus olhos. Aparecia e desaparecia nos portões, nas casas, nas mercearias. Pedia um café. Comentava alguma coisa e ia embora. Parecia não querer incomodar com sua presença. Mas assim mesmo tinha inimigos implacáveis que o perseguiam. Lembro de alguns de seus machucados provocados por agressões. Ele incomodava por ser diferente de tudo. Não era um travesti transformado pelas roupas femininas. Parecia um Rodolfo Valentino maquiado para entrar em cena. Não sei quando saiu de cena da cidade. Por certo com a discrição que o caracterizou...

E outros existiram. Mas estes marcaram minha existência de forma decisiva. É como se eles reafirmassem Teresina dentro de mim. E na cidade de minha infância, embora pequena, nunca encontrei os três no mesmo espaço. Cada um tinha seu pedaço de cidade para fazer sua aparição e performance. Só consigo reuni-los na memória: Bibelô dos olhos tristes, Nicinha com alegria estampada no corpo pequenino de beija-flor, Manelão voando no céu azul intenso das nuvens de algodão da cidade verde...





MEU NÓS & ELIS, Chico Castro


O belo texto da Patrícia se refere a um período posterior aos primórdios do Nós & Elis. Porque, diz ela, a sua inserção nas noites do bar se deu quando o mesmo se encontrava sob a administração da família Fonteles, vale dizer, da médica Nazaré Fonteles, suas irmãs e irmãos.

Em 1989 (ano em que se deu o show da Patrícia que ainda era Melo), eu morava no Rio de Janeiro e recebi a visita do cantor Terra Francisco, à época namorado da Nazaré. O Terra foi à Cidade Maravilhosa gravar o seu primeiro LP, ao qual dei uma modesta contribuição.

Como sou (bem) mais velho do que a Patrícia, tive a sorte de conhecer o bar desde o começo. Só pra se ter uma ideia, no dia 25 de abril de 1984, quando da votação das diretas, eu e mais uma pá de gente, estivemos lá torcendo. Além de frequentador assíduo era também um dos últimos a sair; ficava tomando as eternas saideiras como o dono, meu amigo Elias do Prado Júnior, de saudosa memória.

Vi muita gente famosa de hoje dando os seus primeiros passos na música popular brasileira feita no Piauí. E também ouvi muitas estórias e fui testemunha de muitos fatos que a minha prudência de cinquentão (fiz 56 anos dia 10.12.2009) não me permite mais revelar em público.

O certo é que o Nós & Elis deixou um lastro de glória e de vitória para a cultura piauiense. Lá, eu e muitos poetas fizemos vários happenings, madrugada adentro. Aliás as mulheres mais bonitas de Teresina estavam bem ao alcance de nossas cobiças libidinosas. A comida era boa e farta. No começo, o Elias dava uma prato a mais para quem pedia um jantar. Pagava religiosamente os músicos, um dos primeiros, se não o primeiro, a fazer tal prática uma questão pessoal.

Era no tempo em que a zona leste não tinha os espigões de hoje. Nem a violência. Saíamos para acender nossos baseados bem na pracinha que ficava ao lado do bar. Muitas vezes vim a pé para casa, só pelo prazer de andar pelas ruas desertas de Teresina, sem medo algum, ou pelo simples motivo de desejar acender mais um, antes do merecido sono. Ou por ter gasto todo o dinheiro com as eternas saideiras em companhia do Elias.

É isso. O Nós & Elis marcou um tempo que nenhum esquecimento pode apagar.


Chico Castro
em "No Nós & Elis: A Gente Era Feliz – e sabia"
Teresina: Gráfica Halley, 2010
Organizado por Joca Oeiras

2.9.14

THERESINA, Geraldo Borges


Theresina. Chapada do Corisco. Por enquanto um passeio por tuas ruínas, cortes trilhos vias férreas trem na linha uma parada na estação esplanada um encontro em uma antiga esquina velhos tempos assombração para-raios trovões poty velho cadeia velha catanã cabeça de cuia morro do querozene morro do urubu morro da jurubeba cajueiro barrocão pacatuba memorare matadouro maria sapatão maria xerém manuel avião ou manelão cinema poeira jaime doido nicinha pedro cabeção geraldo come gente bibelô não se pode porca do dente de ouro braguinha vermelha do laurindo piçarra casa amarela rua paissandu quitadinha clube dos diários footing na praça pedro segundo gelado no mercado velho na banca de seu paulirio rosa do banco rio parnaíba casa dos sete tabacos estrada do gado cruzeiro seu caçula sua garapeira padeiro de madrugada leiteiro com seu leite batizado burro jumento caroça galinha caipira beiju de tapioca água de pote em caneco de alumínio areado mata-mosquito com bandeira amarela na porta campo de aviação feira de amostra ilhota catarina matinha mafuá maria tijubina palmerinha estrela glória beco do alberoni maria da inglaterra vapor gaiola fiação baixa da égua palha de arroz tabuleta alto da moderação capelinha de palha lucaia ônibus da macaúba tá na boca gregório pirajá santa rosa pipira sabiá banana passada em quibane para secar zezé leão bar imperial teresina cajuina por enquanto tens outra arquitetura novas paisagens e outros personagens de teu nome tiraram o H que era mudo mas me fez cantar.


Geraldo Borges
via Piauinauta

TERESINA


                                para Luis Romero


Procuro meu rosto
desgarrado em tuas vias;
caminho sob os oitis
da Praça da Bandeira
(que me não viram chegar
numa manhã de domingo)
com a solidão no calcanhar.

(Ali, ao sol de novembro
em que assinei sem saber
o preço da poesia).

Procuro de porta
em porta
(onde vendi sonho a crédito)
tuas ínfimas impressões
no intraduzível ontem.

Procuro por toda a parte,
no aroma dos quintais,
no desenredo das ruas,
nos espelhos desarmados,
essa íntima refulgência
com que forjaste meu caule.



Salgado Maranhão

O Parnaíba, Geraldo Borges


O rio Parnaíba é um rio torto
Que da voltas por dentro do mato
É um rio que está quase morto
Maltrapilho de tanto mal – trato.

O rio Parnaíba é um rio sujo
Com as mãos estendidas em suas margens
Foi se o tempo que tinha marujo
Para contar historias de torna viagens.

O rio Parnaíba está se arrastando
Esfarrapado pela beira do cais
Não aguenta o peso das pontes de concreto

O rio Parnaíba está adornando
Água esvaindo pelos seus beirais
E o seu leito vai ficar deserto.


Geraldo Borges
via Piauinauta

Teresina, Graça Vilhena


sobre a ponte do Poti
a cidade vê de frente
seu retrato vertical

para trás ficaram praças
meninos de bicicletas
feiras, danças e cinemas
que ensinavam a namorar

para muito além da ponte
em um canto do futuro
os meninos que hoje crescem
também guardarão no peito
sua cidade esquecida
que dançou em outro tempo
com sua saia estaiada
sobre o rio que secou


Graça Vilhena

1.9.14

LEMBRANÇAS DO CINE ROYAL, Reinaldo Coutinho


No início dos anos 1960 o teresinense não convivia com nenhuma casa de cinema de qualidade. Havia o velho Cine-Teatro 4 de Setembro, o vizinho Cine Rex e o Cine São Raimundo, o “Cine Poeira” no Bairro Piçarra, que não ofereciam nenhum conforto aos seus frequentadores. Eram quentes, mal cuidados, poltronas desconfortáveis e exibiam geralmente filmes antigos. Claro que marcaram gerações de jovens e adolescentes, que pouco se preocupavam com o conforto, antes preferindo a emoção das películas. O importante era a tensão ante os perigos na película, os infindáveis comentários. Parte de nossa adolescência tinha como foco de lazer estes dois cinemas. Na falta de assentos chegamos a sentar no assoalho ou deitar na parte dianteira das cadeiras. E tome bombom Pipper (chamávamos píper).

Ninguém esquece os emocionantes bang-bangs, zorros ou seriados, e quando a fita cortava ou queimava a sessão era interrompida para os reparos do operador de câmera de projeção, o que gerava vaias e os tradicionais gritos de “ladrão”. Feito o reparo tudo terminava em festa com a vitória do “mocinho” contra o “bandido” ou com a chegada da “cavalaria”.

No início daquela década as senhoritas e senhoras de nossa sociedade raramente frequentavam aqueles cinemas, desprovidos do mínimo conforto e asseio. Nossos cinemas já tiveram dias melhores décadas antes. Tudo mudou com a constituição da moderna empresa Cinemas e Hotéis Royal Ltda, desde 01/02/1967, no cruzamento da Rua Coelho de Rodrigues com Treze de Maio. Moldada no exemplo da então invejável estrutura da rede nacional Grupo Luiz Severiano Ribeiro, (hoje Kinoplex, ainda com 215 salas), o Cine Royal inovou com modernidade e conforto. Apareceu o lanterninha, a sessão contínua e o ar condicionado, elementos desconhecidos dos decadentes cinemas teresinenses.

BILHETERIA DO ANTIGO CINE ROYAL

O conforto assombrava o aficionado teresinense, acostumado a ir ao Cinema de trajes simples. Agora o próprio ambiente impunha vestimentas mais adequadas, calçados ao invés de chinelos, comportamento à altura, etc. Os ingressos também eram mais caros. E o ar condicionado? Nada mais do calorzão que os rangentes ventiladores dos outros cinemas não conseguiam amenizar. Chegou após o início da exibição? Não tem problema: a sessão contínua permitia o usuário ficar na sala as sessões que quisesse. Geralmente estas exibições eram: 15 às 17 horas; 17 às 19; 19 às 21 horas, com pequenos intervalos entre as sessões.

Na esquina chanfrada do moderno edifício ficava a bilheteria. Logo após, na Rua Coelho Rodrigues, a porta de saída. Um pouco mais adiante, sempre na dita Rua, a porta envidraçada de entrada, que acessava a um saguão de espera, onde havia a bomboniére, bebedouro com água gelada, paredes espelhadas, poltronas, cartazes de películas, etc. Um luxo para aqueles anos 1960. Dali se adentrava sala de exibição a qualquer momento. Se fosse durante uma exibição, no escurinho do cinema, lá estava o lanterninha para orientar o frequentador.

 IMAGEM DO CRUZAMENTO DAS RUAS TREZE DE MAIO COM COELHO RODRIGUES
VEMOS = A BILHETERIA (1) E A PORTA DE SAÍDA (2) DO CINE ROYAL
IMAGEM DE AUTORIA DESCONHECIDA

Um pouco mais abaixo da entrada, sempre na Rua Coelho Rodrigues, ficava a vitrine com os cartazes dos filmes vindouros. As poltronas eram confortáveis e as películas, bem mais modernas e atualizadas, nunca cortando como acontecia nos velhos cinemas.

Durante os curtos intervalos entre uma sessão e outra havia as chamadas “paqueras”. Com a imposição dos costumes da época, a timidez de um flerte era vencida com o auxílio da conhecida Socorro, a “Muda”, personagem de frequência habitual no Cine Royal, que levava recados ou bilhetes de rapazes para moças e vice-versa. Os recados ela transmitia através de gestos. Era realmente uma figura folclórica em Teresina, presente em muitos tipos de eventos.

SOCORRO, A MUDA
PERSONAGEM FREQUENTE NO CINE ROYAL
FOTO = DEUSDETH NUNES

Assisti se não o primeiro, creio que o segundo filme exibido naquele cinema: “O Senhor da Guerra” (The War Lord, EUA, 1965), drama épico com o grande astro yankee Charlton Heston (1923-2008).

A última sessão não tenho certeza: deve ter sido em 1984. Ou foi um “água com açúcar” brasileiro com a atriz Bianca Byinton (n.1966), talvez “Garota Dourada’ (1984) ou o maior clássico do pornô americano, “Ana a Obcecada” (Anna Obsseded, 1977) com as então estonteantes Constance Money (nascida Susan Jensen, n. 1956) e Annette Haven (n.1954). Mas como frisei, não posso afirmar com exatidão.

Veio a concorrência com a televisão, os problemas internos da empresa e um dia, menos de duas décadas após sua inauguração cerraram-se em definitivo as portas do Cinema, deixando uma enorme nostalgia e uma imensa lacuna que só voltou a ser parcialmente preenchida na era dos cines dos Shoppings. Os tempos já eram outros...

Salgado Maranhão - síntese biográfica




Salgado Maranhão (José Salgado Santos) 13/11/1953. Além de poeta e letrista, é jornalista. Nasceu no povoado de Cana Brava das Moças, na cidade de Caxias, interior do Maranhão, onde morou trabalhando na roça. Aos 15 anos, mudou-se com os irmãos e a mãe para Teresina, onde foi alfabetizado. Escreveu artigos sobre música para um jornal local e conheceu Torquato Neto, que o incentivou a vir para o Rio de Janeiro, o que fez em 1972. Torquato Neto também sugeriu que criasse um pseudônimo, pois, segundo ele, o nome José Salgado Santos parecia nome de arquivista e não de poeta. Salgado estudou Comunicação na Pontifícia Universidade Católica e trabalhou como terapeuta corporal, professor de Tai Chi Chuan e mestre em Shiatsu. A partir de 1976 colaborou em várias publicações com artigos e poemas, como a revista "Música do Planeta Terra". Músicas gravadas por Paulinho da Viola, Ney Mato Grosso, Zizi Possi, Elba Ramalho, entre outros. É verbete do Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira. Tem poemas traduzidos para o inglês, holandês, francês, alemão e espanhol. Organizou, com Sergio Natureza e Moacyr Félix, o livro "Ebulição da escrivatura - Treze poetas impossíveis" (Ed. Civilização Brasileira, 1978 RJ). Outros: "Aboio ou Saga do Nordestino em busca da Terra Prometida" (cordel, 1984), "Punhos de serpente" (1989), "Palávora" (1995), "O Beijo da Fera" (1996, Prêmio "Ribeiro Couto" da União Brasileira de Escritores), "Mural de Ventos" (1998, reunião de poemas novos e dos três livros anteriores, Prêmio Jabuti), e "Sol sanguíneo" (2002). Em 2011, na categoria Poesia, vence a premiação anual da Academia Brasileira de Letras. Fotografia: Maurício Pokemon via Revestrés.

31.8.14

DOIS RIOS




há em minha terra dois rios
silenciosos

um
estendido em verde tapete de aguapé
onde não mais trafegam canoas
apenas diminutas criaturas buscando seu pasto

outro
árido tapete árabe
onde todos caminham acima de sua face



Adriano Lobão Aragão
em As cinzas as palavras
Teresina: dEsEnrEdoS 2014

SÃO JOSÉ




estes que talvez aqui não mais se encontram abrigados
em respectivos jazigos que dos herdeiros herdaram
nesta terra se revestem de lembrança e esquecimento

sob a sombra de antigas árvores silêncio tardio
sob o passo lento de transeuntes e de abandonados
gatos leves passos sob céu chuva e nuvem se resguardam

apenas o ponto e o porto em que seus corpos decompostos
inertes se reencontram dispersos nesta mesma terra
semente perene como a noite que lhes protege

sob a sombra destes túmulos nas linhas desta lápide
talvez aqui se revestem de esquecimento e lembrança



Adriano Lobão Aragão
em As cinzas as palavras
Teresina: dEsEnrEdoS 2014

17.8.14

FANTASMAS DO VELHO BALNEÁRIO DOS DIÁRIOS




Fantasmas, fantasias oníricas de viciados em drogas, inumeráveis pichações e imundície velam o antigo casarão de dois pavimentos, abandonado na Praça Ocílio Lago, onde funcionava o Balneário do Clube dos Diários, no Jóquei. Só os despojados, como o idealista, advogado, escritor e jornalista, Kenard Kruel, topariam a proeza de resgatar o prestígio do vetusto patrimônio, transformando-o em centro de manifestações artísticas.  E o show já começou. Exige apoio de autoridades e amantes das artes. Kenard iniciou a limpeza, atende compromissos no local, organiza arquivos da Fundação Nacional de Humor. O médico José Aírton juntou quatrocentos amigos, festejou seu aniversário ali, conseguindo 12 mil reais para a instituição. Construtoras prometem reformas.

A Fundação Nacional de Humor projeta, para breve, show e escola de humor na praça, museu de arte contemporânea, além de festivais de cartuns, caricaturas, quadrinhos.

A geração atual pouco ou nada sabe sobre aquele bucólico prédio e sua praça, urbanizada há algum tempo. A tarefa inicial de Kenard Kruel já espantou boa parte das miragens e lucubrações.

Entre as décadas de 1950 e começo de 60, o Bairro do Jóquei praticamente não existia. Imensa floresta cobria quase toda a Zona Leste de Teresina. Só a velha ponte de madeira, onde, hoje, se ergue a Ponte Wall Ferraz, servia de passagem sobre o Poti. Construiu-se outra ponte, a Juscelino Kubistchek, de concreto, na segunda metade dos anos 50, ligando a Avenida Frei Serafim à Zona Leste. Coronel Miranda, proprietário do jornal O Dia, juntou grupo de notáveis amigos, fundaram o chique Jóquei Clube, com manhãs dominicais lotadas de banhistas, além das corridas de cavalos e tertúlias semanais. Endinheirados adquiriam lotes enormes e arborizados, construíam modernas residências, desfrutavam a noturna temperatura serrana.

O Jóquei Clube atraiu expressivos associados do Clube dos Diários. Em resposta, líderes diaristas, comandados por Moisés Cadah, doutor João França, Edgar Nogueira, general Gaioso, Durvalino Couto, João Carneiro e Camilo Santos Hidd, fundaram o Balneário Clube dos Diários, que se estendia da atual Praça Ocílio Lago à Avenida N. S. de Fátima, onde se ergue um supermercado. Duas piscinas e bar ocupavam o segundo pavimento do prédio. Aos domingos, música ao vivo. Filhos de sócios iam do centro da cidade, de ônibus, lotavam o balneário a partir das 9 da manhã de domingo, até 2 da tarde. Certa manhãzinha, ainda escura, Hermínio Conde, neto de Antonino Freire, governador no início do século XX, dirigiu-se ao Balneário ainda deserto. Num salto do trampolim, faleceu.  Meu cunhado Marcos Hidd, filho de Camilo Santos, parece delirar, recordando um tempo, quando Teresina começava a se esbaldar nos recentes balneários, Jóquei, Diários, logo mais o Iate Clube. Ainda se curtiam deliciosas manhãs, nas praias alvíssimas e límpidas águas do Poti e Parnaíba.   

A Fundação Nacional de Humor tenta resgatar alguns sonhos que se perderam com o crescimento e modernização de Teresina. Se não cuidar, fantasmas e fantasias oníricas cuidarão do lixo.



José Maria Vasconcelos
via blogue do poeta Elmar Carvalho
em 16/08/14

CANTO DO RIO




Chore não
Um rio não morre à toa
Corre na terra e não voa
Rio não é avião
É só um leito assentado
eternamente pousado
entre as agruras do chão

o rio é um berço da infância
onde se banha a lembrança
do nosso corpo molhado
O rio é uma estrada d'água
onde lavamos a mágoa
de um sonho não consumado

Falo do Parnaíba
rio que já faz tempo
vai morrendo pouco a pouco
vai pouco a pouco morrendo

Falo do Parnaíba
que deságua no meu peito
cheio de peixes graúdos
e de Torquatos pequenos

Seus coloridos vapores
as beiras cheias de cores
as margens dos meus amores
e dos mergulhos serenos

Falo de um rio bonito
que existiu noutro tempo
E hoje persiste mito
pela poesia do vento



em MAIS UNS: Coletivo de Poetas
Brasília: 1997

CINE SÃO LUÍS, Geraldo Borges


Estou em Teresina.

Toda vez que venho a Teresina hospedo-me no antigo cine São Luis, ou melhor, no velho  prédio onde funcionava o cinema São Luis na década de cinquenta. Hoje é apenas um hotel modesto próximo a Praça Pedro Segundo, e ao lado do Clube dos Diários. Mudaram a sua arquitetura funcional. No lugar amplo onde existia o auditório construíram quartos com suítes, onde existe também televisão. Mexeram em tudo por dentro. Demoliram a cabine onde o filme rodava e ia se projetar na tela para deleite dos fregueses, demoliram as bilheterias, expulsaram  os lanterninhas, os porteiros, de caras de poucos amigos, e os fiscais que conferiam as nossas carteiras de estudantes. Só conservaram mesmo a fachada, que ainda faz relembrar um pouco o cinema.

O Cine São Luis me faz recordar o meu tempo de menino. Agora quer estou sozinho na minha suíte pego – me a pensar nos velhos faroestes tocadas a ferro e fogo, com cavalgadas  e diligencias, e, às vezes, índios.

Nunca pensei que um dia o Cine São Luis se tornasse um hotel. O pior é que muitos prédios históricos foram abaixo para dar lugar a estacionamentos de carros.

Não dormi bem essa noite. Pois estava com medo de perder o avião, embora tivesse avisado ao recepcionista que me acordasse pelo telefone.

Durante a noite tive um sonho. Sonhei que estava em um castelo, servido por mordomos e criados. Mas a maioria dos hospedes do castelo eram fantasmas, velhos astros e estrelas de filmes em preto e branco da Paramount , da Columbia, da Metro. Eles falavam inglês. E eu tentava traduzir. Parece que estavam dizendo por que diabo o Cine São Luis tinha se transformado naquele castelo mal assobrado. Tudo estava diferente de seu tampo. As pessoas entravam no prédio sem comprar bilhete, sem fazer fila, sem comer pipoca, o prédio não tinha mais cartazes deles nas paredes. De repente no meio da conversa eu vi Marilyn Monroe arribar o  vestido. Vi namorado de mãos dada se beijando no escuro do cinema. No desfile desses fantasmas consegui ver em minha mente uma procissão de estrelas e astros que povoaram a minha imaginação aí pela década de cinqüenta, principalmente os que faziam papeis de mocinho e me fazia sair do cinema com os ombros levantados, e caminhando altivo.

Acordei com o toque do telefone. E tentei relembrar os detalhes do sonho. Com certeza esqueci a metade. Talvez tenha visto muitos filmes, remendado. Levantei. Esfreguei os olhos. Pisei meu sonâmbulo no assoalho. Acendi a luz. E pensei, seria maravilhoso se eu encontrasse Marilyn Monroe inteiramente nua no meu banheiro. Talvez eu não estivesse ainda acordado completamente. A Água fria me traria à realidade. Mudei de roupa. Arrumei a mala e desci. Não deu tempo de tomar café.

Pedi um táxi. Rumei para o aeroporto. Embarquei.

O avião alçou voo. E durante a viagem num esforço de memória e imaginação rebobinei, com direito a fitas quebradas, quase todos os filmes que eu vi no velho Cine são Luis do tempo de minha infância. E só assim comecei a entender porque escolho, para me hospedar, sempre que venho a minha cidade, o velho prédio onde funcionou o Cine São Luis.

Arnaldo Albuquerque - Um Humor Sangrento



Documentário de curta metragem sobre um dos mais importantes nomes da cultura marginal piauiense da década de 1970. Realizado para o curso de graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Piauí - UFPI, em março de 2014.

Direção: Francisco Monteiro Júnior, Nícolas Barbosa e Gustavo Rodrollí
Roteiro: Fernanda Grazielly

16.8.14

PRÉDIOS INTEIROS SE ERGUEM NO CÉU DA TUA BOCA II ou segunda visão, Renata Flávia


uma cidade se cria
na poça de lama da avenida
a velocidade dos meus sonhos a atravessam
parte no meio o retrato da cidade diluída
pingos de amor deslizam na minha cara
milhões de pássaros povoam meu céu de boca
multidões dentro dos meus olhos fechados
te sou construída
te sou partida
te sou língua
lambi a cidade partida.


Renata Fláviaenviado pela autora (lustredecarne.zip.net)

PRÉDIOS INTEIROS DE ERGUE NO CÉU DA TUA BOCA I, Renata Flávia


cada verso deflagrado
escorre avenida, esgotos
todo personagem que escolho
respinga delírio, asfalto
monstros disfarçados
paradas de ônibus
bêbados ensaiando passos malabarizados.
poças de neon brilham no asfalto preto
cidade refletida respinga
na cara, língua desliza
lama, desejo
beijo a cidade, deliciada
atropelada pelas chuvas de janeiro.


Renata Flávia
enviado pela autora

PRAÇA DA COSTA E SILVA, Renata Flávia


de olho no Parnaíba,
o poeta se eterniza
numa sedutora
escuridão de orgias.


Renata Flávia
enviado pela autora

PRAÇA SARAIVA




praça dos loucos por deus ou sexo
dos infames, dos clérigos
praça saraiva decaída
mantém viva almas estudantis que burlam aula
almas amáveis que namoram em jaulas
guardada entre grades impostas
entre grades que insulta
te agride, te repulsa
praça saraiva dos loucos por deus
ou sexo



Renata Flávia
enviado pela autora

11.8.14

O oleiro, Graça Vilhena


um dia viu
no fundo da fornalha
que sua vida secara
entre os potes


em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

16.4.14

NATAL EM TERESINA, Gregório de Moraes


Amo esta gente. A terra, seus destinos...
Os mangueirais, o Mafuá contente
Amo este sol que nasce de repente
Glebas que cantam tão sagrados hinos

Natal no povo. Repicar de sinos
As sombras deslizando lentamente
Luzes no altar, no coração da gente
Cantos de amor, cheios de fé, divinos!

Natal de minha terra para o mundo
Um coração repleto de venturas
Dizendo: Deus, no vento, nas alturas.

É o simbolismo deste amor fecundo
Que se revela até nos arvoredos
Como entre nós no entrelaçar de dedos.


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

14.4.14

chuva® em teresina [ modo de usar ] ou [ o produto pra tomar ]




pesquisas confirmam que chuva® se apresenta na forma de pequenos caroços d’água que demoram que só... pra cair por aqui (ou virar um toró). haveria múltiplas aplicações para chuva® – porém existe o problema d’ela quase nunca aparecer, não podendo, assim, ser aplicada. sob esse céu-sol que sua nossa cidade, chuva® é um raro chiado, mas, quando chuvisca, bochicha e remexe a linguagem: pau d’água, pancada, ou procela varada, só com muita reza braba. seu joaquim, raimundim e seu vizim pedem um pouco de chuva® – acuda! mas veio foi um sereno e piorou o momento (repara o veneno): farelo d’água com sol de rachar faz é abafar; esquenta tudo e, mais ainda, a moleira que azucrina. estudos recentes atestam que chuva® é um cochicho – chiado baixinho, na boca do povo, talvez um boato que some de novo, um conceito empenado, bololô esculhambado, relaboque de desejos inventados: quem quer que chova está dentro de casa e não lavou roupa; quem não quer chuva® tem alguma mordomia ou resolve algo na rua. e, dependendo do que a pessoa está fazendo, ela muda o pensamento. neste entretanto de labacé e confusão, não há contraindicação: alguns fazem mandinga; outros passam os queixo, em teresina, dirdobrando – se não tem chuva® ou mar, vamos prum bar. ou vamos pra uma rede – uma rede social – de armador virtual brutal e total: no facebook compartilha-se a vontade por chuva®, até ciberprometendo pagar uma promessa, contudo, pós-moderna porque, o santo, depois a gente acerta; ou toda teresina trova no twitter toneladas da hashtag #chuvathe – entrando para o trending topics da tiração de "onda". e quem faz roça clama chuva® pra tentar matar a saudade da fartura. diz-se, apenas por aqui, na capital do piauí, chuva® tem o princípio ativo mais charmoso disponível – o de antever o incrível, o sublime intransferível – olhar pro céu, esperançoso, e o poema de um verso só dizer: tá bonito pra chover.



Thiago E
em Revista Piauí Terra Querida  
Agosto de 2012

Thiago E - síntese biográfica





Thiago E nasceu em Teresina, PI (1986). É poeta de testes, músico, layoutman. Autor de Cabeça de Sol em Cima do Trem (livro e disco). Integra a banda Validuaté, com a qual lançou os álbuns Pelos Pátios Partidos em Festa, Alegria Girar, Este Lado Para Cima e Validuaté ao vivo – DVD e CD. Graduou-se em Letras na UFPI. É editor da revista Acrobata.

11.4.14

RIO PARNAÍBA




O rio Parnaíba segue. A corrente de água vai rápida. A poluição da cidade se faz sentida em plásticos. Mulheres levam e lavam roupas, meninos nus e meninas peladas correm pela beira do rio, eles riem. Adolescentes tecem olhares para adolescentes. Na ponta da beira do rio, surge dona Rita.
 
Dona Rita tem 29 anos e mora na beira do rio Parnaíba. Ela tem cabelos lisos negros, olhos grandes arredondados, pernas grossas, canelas finas e raspadas, coxas douradas, rosto de inocência. Usa sandália de couro e tem cintura fina esculpida. Ela mora com o marido e dois filhos e é bem cuidadosa com a beleza.
De noite os vizinhos se chocam com o amor que vem do seu quarto. Por esse motivo, ela lava a roupa afastada das outras mulheres. E pelo fato de atrair todos os olhares de admiração e desejo, ela atrai inveja. Pro bem ou pro mal, prefere ficar distante das outras lavadeiras. Já insistiu em estar junto, mas elas a ignoram e a olham com desprezo.

Com um pouco de fome, vai Rita trabalhando como dona de casa, fazendo comida (quando tem), cuidando dos filhos, da limpeza da casa, ajudando o marido a catar lixo na rua, ajudando o marido a aguentar a realidade fadada da vida, contanto historinhas de fadas e duendes de outro mundo para os seus filhos, com o peso do olho dos outros nas costas, com o peso do olho dos outros na bunda, nas coxas, vai Rita com o peso das roupas na cabeça, com calos na mão, com a boca carnuda, com a vida torta como a sua assinatura. Lá vai lavar as roupas na beira do rio, mulher de fibra, mãe assídua, com jornada tripla. Multiplicada a outros fatores e motores presentes nela.

Além de viver abaixo da linha da pobreza, Rita, com a saia acima do joelho, até o meio de suas coxas, agacha-se e esfrega uma roupa noutra. “Lavar, lavar, lavar, pra cuidar da casa, da família...” – cantam as outras lavadeiras, longe de Rita. O sol brilha, uma brisa assovia a música. Hoje é quarta-feira. Hoje é dia de Rita. O rio segue e segue belo. Muito mato ao redor e, ao longe, o som das outras lavadeiras cantando. Um som estranho no meio do rio. “Oxe, diacho, o que foi isso?”. Rita pensa, espreita e volta ao seu ofício. As lavadeiras cantam, lavam. A brisa canta, uma sensação de paz domina o lugar, um passarinho passa voando, parecia fugir, mas voava lindamente. Uma flor desabrocha, bem ao lado de Rita, ela não percebe esse fato. Está distraída, concentrada, pensativa (pensando em coisas que eu nunca saberei), linda, com fome, cansada, preocupada com os filhos e com as criancinhas, que viu ontem na TV, morrendo de fome em algum país africano. Coxas douradas molhadas com a água do rio, muito sabão de coco, muita vontade de cortar o cabelo, vontade de estudar, vontade de viver. É Rita levando, lavando, sendo lavada...

Em frente à Rita, uma sombra se forma debaixo d’água. Quando ela percebe, e vai de olho na sombra, um homem branco e nu sai do rio com os braços abertos. Rita, assustada, tenta virar-se e correr, mas ele está perto demais e a puxa pelos pés. Ela cai e bate a cabeça no chão. Debatendo-se, gritando, tenta levantar-se. O agressor, todo molhado, babando e com olhos vermelhos, agarra os cabelos e bate duas vezes o rosto dela no chão. Ela sangra e grita. O homem nu bate pela terceira vez a sua cabeça. Ela já não grita mais, chora. Ele a puxa pelo cabelo da nuca, puxa a vítima para dentro d’água. Antes de desaparecerem no rio, ela grita novamente, uma das lavadeiras ouve seus gritos e entoa o canto das outras lavadeiras para que o som fique mais alto. Rita afunda na água e desaparece. No rio Parnaíba, bolas de respiração flutuam e somem. Rita segue, o rio segue, a vida segue, e é levada, lavada, esquecida. 

TERESINA




São entranhas as suas bocas
Mas não estranho seus muros.

Por dentro da minha casa
Planejo um futuro para ti
THE.

Por que é Teresina e não Teresinha?
Dou-me melhor com as mulheres
Que com as cidades.



José Augusto Sampaio
Desigual, 2012

JOSÉ AUGUSTO SAMPAIO - síntese biográfica


“A literatura é a minha salvação pessoal
e liberação dos meus demônios."


José Augusto Couto Sampaio Neto nasceu em 28 de outubro de 1983, na cidade de Alagoinhas, interior da Bahia, onde viveu até os sete anos de idade. Depois, mudou-se com a família para Juazeiro da Bahia, divisa com o Estado de Pernambuco, ao lado da cidade de Petrolina. Ambas as cidades banhadas pelo Rio São Francisco. Aos 18 anos, mudou-se para Salvador, Bahia, junto à família novamente. Cursou Publicidade e Propaganda na Universidade Católica de Salvador. Casou-se aos 24 anos e mudou-se para Teresina, Piauí, onde reside e trabalha como publicitário, produtor e escritor.

Publicou em 2010 os livros “O outro lado do olho”, de poesia (para ler clique aqui) e “Imagine alguém te olhando do escuro”, de contos curtos (para ler clique aqui). Em 2011, publicou “Narrativas do horror cotidiano”, livro com três contos longos (para ler clique aqui). Em 2012, no Salipi (Salão do livro o Piauí), publicou “Desigual”, segundo livro de poemas (para ler clique aqui). Em 2013 publicou “afetos, abismos & engenharias”, terceiro livro de contos (para ler alguns dos contos clique aqui) e O Livro das Iluminações de Tassiano Simões, sob o pseudônimo Tassiano (para ler clique aqui). [+] informações: facebook / blogspot.

10.4.14

AS VOLTAS DA PRAÇA PEDRO II, de Barros Pinho



praça pedro II
há quanto tempo não te vejo
só converso contigo
com os olhos na infância
em dúvida nos braços da adolescência
nos beijos rápidos da namorada fugidia
entre um e outro fícus benjamim
no tempo que se volta na busca
de outras voltas nunca
a derradeira no começo dos sonhos

praça pedro II guardo de ti
a leitura de muitos olhos atônitos
em tudo havia a inocência em flor
desejos dispersos no esperar
espera que nunca se confirma
até dizer que teresina vive
sempre dentro de mim



Barros Pinho
em Planisfério 2ªed.
Teresina: Corisco, 2001


9.4.14

Barros Pinho - síntese biográfica




José Maria de Barros Pinho (Teresina, 25 de maio de 1939 / 2012). Poeta, contista, político (Prefeito de Fortaleza/CE entre 1985 e 1986). Principais obras: Natal de barro lunar e quatro figuras no céu (1960), Planisfério (1969), Circo Encantado (1975), Natal do castelo azul (1984 ) e Carta do Pássaro (2004). A Viúva do Vestido Verde, publicado pela Record, foi cotado para o prêmio Jabuti de Literatura. Carta do Pássaro, reconstitui sua infância no engenho de seu avô, às margens do Rio Parnaíba, no Piauí. Membro da Academia Cearense de Letras.

8.4.14

DOPADO NO CORAÇÃO MERCADO




são os peixes das casas mortas, sem curvas
                                                          e sem virgindade
eles não têm receitas paras os comprimidos,
eles não têm doutores que curem nuvens.

eu disse a truffaut o que queria
e ele olhou como se tudo que pedi
fosse pouco para um dia.

não morro de nada
converso com os invisíveis e eles me agradam
são ternos e isósceles
escapam e pedem misérias
ficam na beirada e vazam
ouvem as parees e dizem:
tenho um quarto sem nada.
e digo:
tenho desenhos no tornozelo.

passamos os muros e as extensões
existe o que se espalha na rua
as pessoas recebem os passes e os acordes
se assustam com a poesia em caixas de remédio.



Demetrios Galvão
em Insólito 
Fortaleza: Editora Corsário, 2011

CIDADES RABISCADAS REMIX VOL. 1




a decomposição atroz e as vertigens.

fechar as janelas diante do simulacro e
se derramar pelos diversos andares da cidade
pelo hipertexto de suas entranhas
de suas tripas magnéticas
de sua fauna nervosa
de sua flora deserta em seu rizoma de concreto.

a decomposição atroz e as vertigens.

ruas lineares x o acaso dos dados na diáspora do sólido
o lado de dentro e o de fora de uma cartografia
buscar uma fenda para se esconder
no paradoxo luz / sombra
digerir o desejo das estátuas na dilatação ao sol
uma eternidade de enigmas adormecidos.

a decomposição atroz e as vertigens.



Demetrios Galvão
em Insólito 
Fortaleza: Editora Corsário, 2011