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8.2.13

POR QUÊ, PACATUBA?




Por que a Pacatuba
Agora São João
Deságua no Parnaíba
Molha a lembrança
Renasce no coração?



Climério Ferreira
em Artesanato Existencial
Teresina: Corisco/Sapiens, 1998

1.2.16

O SILÊNCIO DA "CARMINHA", Luiz Brandão





Agora a eterna e inseparável companheira está só, guardada na pequena e acolchoada caixinha que ele cuidava como o berço de uma criança. "Carminha” não pode entender a súbita separação e a ausência daqueles dedos ágeis que a tocavam elegantes e delicadamente. Também não tem mais a presença dos lábios que a sopravam, às vezes suave, às vezes freneticamente para produzir as mais diferentes e perfeitas notas, numa completa sintonia entre o animado e o inanimado.

“Carminha“ é o nome da flauta de Netinho, o talentoso músico de São João do Piauí que faleceu, prematuramente, na sexta-feira passada, 22 de março, mas cujo nome já está imortalizado em várias canções que compôs e nas que ajudou seus companheiros a compor.

Irrequieto, Netinho da Flauta não teve paciência para ficar nos bancos da universidade, o que talvez tenha sido uma percepção de que sua passagem por aqui não fosse longa. O primeiro instrumento foi-lhe dado pelo pai. Autodidata, em pouco tempo descobriu sua verdadeira vocação e se tornou conhecido no meio artístico por dominar, como poucos, os sons que saiam da sua “Carminha”.

E ele conseguiu demonstrar seu talento nos tempos do Grupo Candeia, do Grupo Varanda, em apresentações nos bares como “Nós e Elis”, no Theatro 4 de Setembro, em praças, em penitenciárias, nas casas do amigos e nos botecos..

A “roça” e o mar eram seus lugares prediletos. Além da música, a labuta com a terra e com os animais eram ocupações preferidas, até porque se considerava um verdadeiro representante do sertanejo, do homem do campo. E era verdade! Netinho se emocionava, tocava e cantava com alma as músicas que falavam coisas do sertão, do nordestino, embora fosse um defensor da ideia de que não existe música de um lugar só. Ele costumava dizer que “a música é universal, tanto faz do sertão do Piauí quanto do Japão. A diferença só está na qualidade”.

Elétrico, o DA Flauta facilmente conquistava a simpatia das pessoas com sua alegria e um jeito espontâneo de agir, criando expressões e palavras que rapidamente passavam a fazer parte da linguagem dos que conviviam com ele. Onde chegava não passava despercebido, retorcia o pescoço, amarrava o cabelo em rabo de cavalo e longo partia para a lorota. Quando se sentia sem espaço, “saia por riba do lajeiro”.

Netinho deixou muitos amigos e admiradores. Era um “cidadão do mundo” como ele mesmo fazia questão de dizer. “Minha casa é o meu chapéu”. Esse espírito aventureiro viajou o Brasil afora, fazendo shows e parcerias com músicos renomados como Xangai, Elomar, Vital Farias e muitos outros.

Apesar de seu enorme talento e da grande facilidade em se relacionar, Netinho da Flauta não passava muito tempo no mesmo lugar. Ao sentir que a situação não estava sob seu controle, avisava logo aos amigos “vou vazar”, ou então “meu irmão, vou decepar os testículos do miau, ou seja, vou capar o gato”. Aí pegava sua Carminha e sumia. Com ele não tinha “dois tempos’ e as dificuldades, essas “comia com coentro e acebolado”.

Tão apegado às mulheres, DA Flauta vivia mudando de lagartixa. Quando pensava na liberdade resolvia “a parada” rapidamente. Era admirador do “Vagal”, o malandro honesto, sujeito esperto. Para Netinho ninguém morria, “pegava o eterno”, o ônibus para o além. Certa vez lhe perguntaram se um amigo comum era diabético, pois passara mal numa festa. De pronto respondeu: “- Não, ele é diambético, fuma uma diamba danada".

Por essa maneira diferente de enfrentar o mundo e se relacionar com as pessoas, muitos “chegados” de Netinho ainda não conseguiram entender o momento que estão vivendo. Não se conformam com o silêncio da “Carminha”. Alguns não acreditam que aquele moço forte e corajoso tenha morrido tão repentinamente.

A esses amigos cabe apenas mandar um recado ao DA Flauta: todos nós achamos que você “pegou o eterno” muito cedo. Mas não há problema, porque qualquer dia “a gente se encontra pra uma outra folia”. Quieta!



Luiz Brandão
em DIÁRIO DO POVO
em 26 de março de 2002

20.3.20

Nós & Elis: A noite de Teresina no bar da esperança e da cultura, por Antonio César da Silva Pinheiro


RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de apresentar Teresina, a capital do Piauí, observando a leitura do livro No Nós & Elis a gente era feliz – e sabia. Livro que é um coletivo de autores, onde personagens do mundo cultural piauiense e nacional relembram bons e importantes momentos vividos num bar, contribuindo para a memória histórica de nosso povo. Palavras-chave: Teresina, bar, cultura, Nós & Elis, memória.

ABSTRACT: This paper aims to present Teresina, the capital of Piaui, noting the reading of the book We The People & The Elis was happy - and I knew. Book, which is a collective of authors, characters in the world where cultural and national Piauí recall good and bad times, contributing to the historical memory of our people. Words-Key: Teresina, bar, culture, Nós & Elis, memory.

Introdução

Em 2010, o artista plástico, pesquisador e blogueiro Joca Oeiras, paulistano, mas residente em Oeiras, organizou o livro No Nós & Elis a gente era feliz – e sabia, com textos e crônicas escritas por personagens bem conhecidos da cultura e política piauiense. Esses autores relembram momentos entre os anos 1984 e 1994, tempo em que funcionou, nas proximidades da Universidade Federal do Piauí, o Bar Nós & Elis, reduto de estudantes, amantes da cultura ou a gente que procurava na noite de Teresina um lugar para seus drinques noturnos.

Idealizado pelo ex-deputado Elias Prado Jr., parnaibano, falecido durante exercício do mandato, em 2002, prestes a fazer 50 anos, o bar foi inaugurado em 1984, na efervescência da discussão sobre o fim da ditadura militar e campanha pelas Diretas - Já. Elias, fervoroso militante do movimento estudantil universitário em Brasília, retornava à sua terra cheio de sonhos e idéias, uma delas sendo abrir um espaço cultural pra confraternização entre amigos e proporcionar algo diferente para a noite teresinense, na época muito carente de opções. O bar seria fundamental para o início das carreiras de vários artistas piauienses, entre eles João Cláudio Moreno, Roraima, Geraldo Brito, Edvaldo Nascimento, Patrícia Mellodi. Nas noites culturais, encontravam-se também jovens que discutiam os prováveis rumos políticos do país, entre eles o próprio Elias Prado Jr., Antonio José Medeiros, George Mendes e Wellington Dias, todos eles escrevendo suas memórias do bar neste livro.

Lendo essas memórias, observamos a transição que estava acontecendo no Brasil, e o Piauí contribuindo com a análise desse momento. Como diz o cineasta Eduardo Valente ao se referir ao filme Bar Esperança, o último que fecha, de Hugo Carvana, de 1983:

“Diante do desconhecido futuro, há apenas a certeza de que o tempo não está parando e que os melhores anos de sua juventude vão ficando para trás. É entre a melancolia dessa sensação e a euforia de um país que escapa das garras do regime militar que Bar Esperança se localiza, fazendo um retrato com a profundidade e a exatidão de poucos outros sobre uma época cheia de sentimentos contraditórios.”

O bar que veremos nesse livro analisado, é o bar onde se encontram os esperançosos e os melancólicos, discutindo paixões políticas e carnais, curtindo o som de artistas despontando e mudando o cenário da cidade.

A esperança equilibrista

O ano de 1984 marcou, na história brasileira, o momento onde o povo, cansado de uma ditadura que completava 20 anos, tomou as ruas do país pedindo o direito de votar para presidente. Teresina já manifestara sua vontade, numa manifestação em frente ao Palácio do Karnak, no dia 26 de junho de 1983, uma das primeiras manifestações do movimento.

“Naquele mesmo ano, em Teresina, políticos da esquerda aberta e clandestina, intelectuais de espírito libertário, a boemia culta, artistas, sindicalistas, jornalistas, professores e estudantes universitários corriam na contramão do regime moribundo, sendo subitamente presenteados com um lugar que lhes possibilitava a comunhão dos sonhos de independência, cultura irrestrita, vida plena e alegria: o Nós & Elis” (pág. 157)

Elias Prado Jr., que voltava ao Piauí depois de anos estudando em Brasília, abre esse bar, um ambiente multicultural, enfim um lugar onde se encontrar, beber, curtir, discutir. Num espaço pequeno, próximo à UFPI, nascia o Nós & Elis, nome dado em homenagem a Elis Regina, intérprete adorada pelo proprietário do bar, mas que também fazia referência a eles, eles os artistas que Elias desejava ver ali tendo suas carreiras lançadas. Música, teatro e poesia dividiam o palco, pequeno como pequeno era o bar. Embora pequeno, se comparado com os grandes espaços que temos hoje na capital, o bar tinha banheiro feminino e masculino separados, um ineditismo para a Teresina da época. Também inédito era o pagamento de cachê aos músicos, numa tentativa de dar condições aos artistas de seguirem suas carreiras e de criar uma cultura que a cidade não tinha.

O Nós & Elis transformou, de forma radical, a cultura teresinense no que diz respeito à música. Porque, até então, não havia a tradição da música ao vivo. O Elias, colocando, pela primeira vez na cidade, melhor ainda, pagando cachê, começa no Nós & Elis a profissionalização de músicos com trabalhos autorais e/ou intérpretes de um repertório de alta qualidade musical”. (pág. 22)

Elias Prado Jr. não era uma figura das mais fáceis. Gritava com quem quisesse “bagunçar” no seu bar. Numa briga com um cliente por causa de suas convicções políticas, resolveu fechar o bar. Elias era militante (depois deputado estadual) do PDT, grande admirador de Leonel Brizola e fazia política o tempo todo, conversando de mesa em mesa, discutindo e polemizando e não aceitaria alguém xingar seu adorado líder, em plena campanha presidencial de 1989. Discussão sim, mas com elegância. Jornais e artistas pediam a reabertura do espaço cultural, mas, homem de temperamento forte, não aceitava voltar atrás à palavra dada. Resolveu passar o bar para outras mãos, das irmãs Fonteles (Rita, Nazaré e Zezé), também de Parnaíba, estas permanecendo até 1991. Essa fase do bar também foi de enorme sucesso, permanecendo o objetivo para o qual foi criado. Com as irmãs Fonteles, o bar ganhou um produtor artístico, Moisés Chaves que cita o Nós & Elis como “um lugar pra ser lembrado, como coisas que havia e não existem mais, como foi o Beco do Prazer, a Feirinha da Praça Saraiva, o Vôlei Bar, o “quebra-bunda” do Teatro 4 de Setembro...”.

Por fim, em 1992, ganha nova administração, que não é mencionada no livro, talvez por lembrar a triste decadência que tomou lugar da fase áurea. O Nós & Elis não resistiu e acabou de forma melancólica, atraindo uma multidão de jovens que só queria saber do axé baiano no volume máximo. Quando fechou as portas, Teresina estava sendo dominada por uma onda barulhenta de músicas nacionais enlatadas. O lugar tanto fazia para os novos frequentadores. O que tinha sido bom acabou-se sem nenhuma despedida.

Subo nesse palco...

Uma das funções do historiador, segundo Peter Burke é “ser um ‘lembrador’, um guardião da Memória dos acontecimentos públicos, postos por escrito em benefício dos seus atores, para lhes dar fama, e também para benefício da posteridade que poderá, assim, aprender com o seu exemplo”.
Lembrar aqueles momentos no Nós & Elis é, para muitos, lembrar momentos decisivos de sua vida, apresentando pela primeira vez para um público suas criações. E qual a importância disso para a história da cidade? Ora, estamos nos referindo à sua história cultural, e sua conexão com os fatos históricos que aconteciam naquele período. Para a capital corriam todos os aspirantes a uma carreira, onde lá já se encontravam muitos. A juventude universitária, composta por estudantes de diversas cidades do interior do Piauí e de sua capital compunham suas canções, escreviam suas poesias, criavam sua peças. O palco do bar foi o lugar onde puderam expor suas obras, como diz o humorista João Cláudio Moreno:

“Pois é, por aqui em Teresina, houve um lugar assim, onde vivi horas memoráveis de minha vida e onde fiz meu primeiro show, em dezembro de 1989” (pág. 68)

João Cláudio Moreno viveu noites memoráveis, como diz, e discutiu política, militante comunista que já era na época e fez suas apresentações e viu muitos amigos se apresentarem, num clima festivo, onde não raras vezes se juntavam em grandes jams. Alguns frequentadores criavam coragem e pediam o palco para se apresentarem, dando as famosas canjas. As jams são as reuniões de vários artistas num mesmo palco, homenageando alguém com uma canção, e as canjas, amadores que resolveram subir ao palco, em boa parte das vezes, incentivados pelos amigos.

“Lembro do dia em que saí com alguns amigos e fomos até lá tomar uma cerveja e ouvir boa música. (...) Escolada e conhecida dos karaoquês do Jockey, fui convidada a dar uma canja. – Vai lá, Patrícia! Vai lá! Disse a mesa em coro. E eu fui. Um tanto tímida e me sentindo deslocada, pois meu mundo não era o artístico, era o das famílias ‘caretas’ e tradicionais de Teresina frequentadoras da Igreja de Fátima, do Padre Tony. Mas aquele lugar era diferente do resto, transpirava um universo distante que eu mal podia imaginar que seria o meu pra sempre.” (pág. 121)

Num lugar onde toda essa gente descolada se encontrava, o ambiente era muito liberal e democrático. O som rolava mesmo quando não tinha artista se apresentando, principalmente a MPB, e a MPB que tratava de temas políticos, a música de protesto de Chico Buarque, João Bosco, Gonzaguinha, Elis Regina. Na Teresina, mesmo contemporânea, não chegavam discos com muita facilidade, então lá os frequentadores também discutiam sobre as novidades do mundo musical e trocavam suas fitas, discos de vinil, enfim.

A poesia também tinha seu espaço, e era muito respeitada, inclusive tendo um dia, a Quarta Poética, reservado para declamações, às vezes tímidas, às vezes ousadas. Elias Prado Jr., inclusive, chegava a colocar pra fora gente que não respeitava os poetas. O artista foi muito respeitado naquele bar.

O bar é o lugar onde se mantém o contato social ou se afoga num copo de bebida, mas o bar em que o principal lugar é o palco, e um palco onde se apresentaram alguns dos principais nomes de nossa cultura piauiense é um bar diferenciado. O país mudava, o rock nacional explodia. Nesse ambiente, nos conta Edvaldo Nascimento:

“(...) o clima era de abertura política; a volta dos exilados, o fim a da censura e começando o rock’n roll dos anos oitenta com Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Lulu Santos e por aí vai... Nessa praia foi que eu construí um repertório específico para aquele espaço, no meio dos RPMs da vida. Eu colocava as minhas canções que, às vezes, eram confundidas com as outras bandas nacionais que faziam sucesso nas FMs. E com isso, agradava bastante!!!” (pág. 37)

Amanhã vai ser outro dia

O clima de abertura política e a expectativa que tomava de conta de corações e mentes de uma geração encontrou em Teresina um ambiente favorável. No dia 26 de junho de 1983, em frente ao Palácio do Karnak, sede do governo estadual ocorreu grande manifestação pelas Diretas-Já. Em Teresina, os grupos de estudantes, professores, políticos de esquerda e sindicalistas organizavam-se tanto pela campanha, como se organizavam para disputarem eleições, agora que os partidos poderiam ser formados, deixando para trás o bipartidarismo Arena/MDB. Em 1982, o PT já disputara as eleições para o governo do Estado, obtendo pequeno desempenho.

Havia, então, uma emergência em discutir o próximo passo, agora que poderiam levantar temas proibidos por duas décadas e debatidos em círculos clandestinos. Sindicatos, associações, centros acadêmicos e bancos de praça. Todo lugar poderia ser utilizado para o debate das idéias. E o debate era acirrado, pois várias denominações partidárias surgiram ou saíram da clandestinidade. Seus defensores, portanto, ávidos pelo debate, desejavam conseguir mais apoiadores de suas bandeiras, formar grupos cada vez maiores e com condições de chegar ao poder e implantar seus projetos.

No Nós & Elis, bar de propriedade de um adepto do confronto ideológico, militante do PDT, encontrava-se todo esse grupo de militantes e simpatizantes de partidos e movimentos sociais. Em alguns momentos, o bar era uma extensão dos embates ideológicos das salas de aula da UFPI. Discussões políticas eram travadas entre membros do PT, PCdoB e PDT, entre outros, conforme relembra Wellington Dias:

“Um bar. Uma casa de shows. Um refúgio para a juventude de então que fazia da noite diária da capital um brinde á libertação que se prenunciava sem qualquer sinal de dúvida. Felizmente, consta nos autos de minha militância sindical, universitária e partidária um sem-número de noitadas ali vividas, bebidas, discutidas e amadas. (...) A política estava no grito de todas as tribos que ali se incorporavam, na dança de um fogo cheio de aspirações. As faíscas eram comumente desprendidas do próprio cacique do Nós & Elis, o Elias Prado Jr. Polêmico defensor da abertura, o dono do bar alimentava constantes discussões entre os militantes do PCdoB e do jovem PT daquelas noitadas. Os engalfinhamentos envolviam calorosas discordâncias entre camaradas e companheiros que, nos dias de hoje, são convergentes em sua incessante manutenção da democracia que, enfim, nos acudiu.” (pág. 157, 160). 

Assim era o Nós & Elis. Arte e política convivendo entre boas doses e camaradagem.

Conclusão

A história de um bar entrecruzada com a história de uma cidade. Representando uma época e guardando na memória momentos festivos ou dolorosos, cheios de esperança ou vendo depois, ao longe no tempo, uma certa dose de desilusão, pelos planos elaborados e não cumpridos. Refeitos. Mas, ficou na memória de muitos que hoje são a elite cultural e política de um Estado. Bar pode não ter alma, mas tem aura. O que soprou naqueles tempos, naquele espaço, contribuiu para a formação de nosso Estado, culturalmente e politicamente.

REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. A História como Memória Social In: O mundo como teatro – Estudos de antropologia histórica. Lisboa. Difel. 1992;
OEIRAS, Joca (org.). No Nós & Elis a gente era feliz – e sabia. Teresina: Gráfica Halley, 2010;
OLIVEIRA, Dante de, LEONELLI, Domingos. Diretas Já! 15 meses que abalaram a ditadura. São Paulo: Record, 2004;
Site Bússola Escolar. Diretas – Já. Acessado em 05/01/2012 Disponível em <http://www.bussolaescolar.com.br/historia_do_brasil/diretas_ja.htm >
Site Fundação Nogueira Tapety. Acessado em 05/01/2012 Disponível em 
<http://www.fnt.org.br/noseelis.php >
Site Programadora Brasil. Bar Esperança, o último que fecha. Acessado em 05/01/2012. Disponível em < http://www.programadorabrasil.org.br/programa/156/ >
Publicado em OVERMUNDO

10.2.20

Música do Piauí Anos 160, por Geraldo Brito

Inicio dos anos sessenta na Distanteresina, como diria o poeta Torquato Neto. Uma cidade até então calma, com uma ou duas avenidas e poucos automóveis. Mesmo assim, no aspecto musical, poderíamos observar programas de calouros e, vez por outra, a presença de uma astro ou estrela de renome nacional, sempre acompanhados pelo Regional Q3, conjunto pertencente ao quadro de funcionários da Rádio Difusora de Teresina, a pioneira no campo radiofônico da capital, uma vez que a primeira emissora de rádio do Piauí foi a Rádio Educadora de Parnaíba.

Como toda emissora que se prezasse, naquela época a Difusora possuía seu conjunto regional. Entende-se por conjunto regional: o agrupamento instrumental de música popular composto por dois violões, cavaquinho, bandolim, pandeiro, flauta, que surgiu na segunda metade do século XIX, através do flautista carioca Joaquim Antonio Callado, e que foi desenvolvido por outros compositores, entre os quais Anacleto de Medeiros. Com a aparição do disco elétrico em 1927, e principalmente do rádio em 1935, começaram a surgir os grupos de acompanhamento para os ídolos de massa do Brasil – os cantores. 

Voltando ao nosso convívio, o regional da Difusora era composto por: Antonio Simplício (acordeon), Carlos Guedes (cavaquinho), Panfílio Abreu (violão), José Maria Doudment (violão de 7 cordas), Bruno do Carmo (bandolim/violão). Outros músicos como: José do Baião (sanfona) e Chico Sanfoneiro tiveram participações neste regional, que acompanhava cantores piauienses, como por exemplo: Totó Barbosa, João de Deus, Delmir Chaves, Clemílton Silva, Dagmar Pereira, Telva Neide, Francisco Guimarães, Damasceno, Helena Núbia, Walcir Moreira e eventualmente José Eduardo pereira e José Lopes dos Santos (flauta), que compunham a diretoria da emissora. No decorrer dos anos cinqüenta e sessenta, o Regional Q3 acompanhou também estrelas de renome nacional, como: Ângela Maria, Carlos Galhardo, Núbia Lafayette, Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto, Sivuca, dentre outros artistas internacionais como: Juanito Venâncio, Bievenido Granda e Roberto Lazama.

Era tempo da Voz de Ouro ABC, uma espécie de festival a nível nacional que selecionava os melhores cantores de cada Estado, havendo depois uma finalíssima para a escolha do melhor cantor brasileiro. Tivemos participação nesse concurso de alguns intérpretes como Dalmier Chaves. Em 1960, surgiu a Rádio Clube de Teresina, que não tinha um elenco de músicos definido, como a Rádio Difusora, mas que eventualmente apresentava os seus programas com calouros, como analisa o músico Edilson Freire, que na época participava dos regionais e atualmente é tecladista no esquema da noite.

Em 1962 surge outra emissora de rádio. Desta vez a Rádio Pioneira de Teresina, fundada pela arquidiocese e que contribuiu bastante no âmbito musical, contando em suas instalações com um auditório para apresentações de programas de calouros e shows com astros nacionais. A nova emissora foi inaugurada com o seu conjunto regional composto por: Edilson Freire (sanfona), Ludimar (violão), João dos Santos (pandeiro), Chico Rosa (bateria), Carlos Guedes (cavaquinho) e Sansão (saxofone). Esse regional acompanhava também artistas como: Núbia Lafayette, Orlando Dias, Carlos Alberto, Alcides Gerardi e Vanderléia (em início de carreira).

Entre os anos sessenta e sessenta e três, um trio quebrava a monotonia da cidade e mandava ver uns bolerões bem conhecidos da época. Era o Trio Yucatan, composto por: Walter Sampaio, Silzinho e Mundicão. O nome do trio era uma homenagem à cidade de Yucatan, localizada no México, e foi sugerido por Miriam Lopes. Os rapazes logo conquistaram a cidade e eram os preferidos em festinhas de residências, de colégios e em gravações em jingles na Rádio Pioneira. Segundo Silzinho, Almeida Filho era quem empresariava o trio.

Aos poucos, a cidade foi se tornando pequenas para os interesses do trio. Em 1963 eles partem com destino a Brasília e São Paulo, chegando a gravar seis compactos e fazendo muitas apresentações em programas de TV, como no de Alfredo Borba na TV Excelsior. O trio foi desfeito em 1968, quando Walter seguiu rumo ao México, Mundicão fica em Brasília e Silzinho retorna a Teresina.
Em 1963, período de sucesso do Trio Yucatan, houve um recheamento de canções genuinamente piauienses como as de Levi Moura, irmão de Mundicão. Integrante do trio. É de autoria de Levi Moura a bonita canção “Você não Meditou”, interpretada por Rosinha Lobo nos anos 70 e que nos anos 80 foi gravada pelo piauiense Cabral Rios. Levi Moura foi morar no Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1991, quando faleceu.

O ano de 1963 rendeu outro fruto musical, como o conjunto Os Milionários. Neste ano, a Polícia Militar do Piauí, que outrora tivera em seu quadro uma Jazz Band animando as tradicionais tertúlias do famoso Clube dos Diários, na pessoa do seu comandante coronel Torres de Melo, pede ao professor Luis Santos (pertencente ao quadro da Polícia) que crie um conjunto musical no sentido de realizar um elo entre o público interno e externo. O professor Luis Santos imediatamente agilizou a formação do conjunto que recebeu o nome de Os Milionários, numa justa homenagem ao compositor José Bispo. Os Milionários se tornou popular e o comandante, de tão grande entusiasmo, mandou trazer diretamente de Fortaleza a gravadora Orgacine, que, ao chegar, instalou-se nos estúdios da Rádio Pioneira. A gravação do LP teve prensagem na RCA Victor de São Paulo. Dentre as canções que compunham o LP estavam: “Baião da Saudade” e “Simplício e seu Clarinete”, (de Luis Santos); “Milionário” (José Bispo); “Linda” (Bruno do Carmo) e “Olha a Bossa” (Simplício). Esse histórico LP foi gravado em 1965 e Os Milionários era composto por: Simplício Cunha (saxofone e clarinete), Edilson Setúbal (piano solovox), Artur Pedreira (bateria), Lourival Marques (baixo), Bruno do Carmo (guitarra), Gabriel Oliveira (percussão) e João de Deus (cantor). Segundo as informações do professor Luis Santos, o conjunto atuou de 1963 a 1970.

Em 1964 um novo cantor conquista a cidade verde. Era Herbert Arcoverde, muito talentoso e de voz agradável de se ouvir. Ele animava os programas de calouros e participava do elenco da Prata da Casa que se apresentava antes de shows de alguns astros renomados. Nessa época, as rádios apresentavam programas em que os locutores perguntavam ao público se preferiam ouvir determinada canção ao vivo ou em gravação. Na voz de Herbert, se situava a preferência dos ouvintes.

De 1964 para 1965, surge outro trio para alegrar os teresinenses. Era o Trio Guarany, formado por Bimba (violão e voz), Chico (voz) e Jesus (voz). O Trio Guarany animava as festas, participava de programas e tinha uma atuação quase que constante nos realizados pela Rádio Clube.

Em 1965, chega a Teresina o baterista Barbosa (famoso por fazer verdadeiras acrobacias com as baquetas) e com ele o também famoso conjunto Barbosa Show Bossa, incendiando o salão do Clube dos Diários. Tinha a seguinte formação: Colombo (guitarra), Orion (sax), Estelita Nogueira (cantora), Ivan Bandeira (vibrafone), Zé (baixo) e o próprio Barbosa (bateria). O acordeonista Antonio Simplício também integrou o B.S.B.

No início de 1967, após alguns conflitos que normalmente ocorrem em grupos musicais, o B.S.B foi desfeito e para preencher o enorme vazio deixado por eles surgiu imediatamente outro conjunto chamado Sambrasa, composto por alguns músicos do extinto Barbosa e acrescido de outros que estavam vindo do Ceará. A primeira formação do Sambrasa foi com: Edmilson Morais (bateria), Zezinho Ferreira (baixo). Colombo (guitarra), Antonio Simplício (acordeon), Linhares (sax), Bossa (piston) e Vicente (cantor). O sucesso do Sambrasa foi o mesmo, culminando na gravação de um LP nos estúdios da Orgacine, em Fortaleza. O disco contou com a produção do empresário Aerton Cândido Fernandes, que também participava do LP com a composição “Turma do C2H60, título de um dos blocos famosos do carnaval teresinense dos anos 60. O LP do Sambrasa foi muito bem recebido pelo público local. As rádios executavam, a toda hora, diversas faixas do disco. Na época desta gravação, o conjunto já não mais contava com a presença do músico Antonio Simplício. Em meados de 1967, a cidade tornava-se ainda mais quente com a aparição de um conjunto tipicamente da jovem guarda. Surgia Os Brasinhas, provocando uma tremenda reviravolta por parte do público feminino. 

Os Brasinhas era constituído por jovens cabeludos, como mandava o figurino, e todos genuinamente piauienses. Compunha o conjunto, em sua primeira formação, os músicos: Ernesto (bateria), Chico (guitarra solo), Paulo Vasconcelos (guitarra base), Sidney (vocal) e Getúlio (baixo). Alguns meses depois, Os Brasinhas ganha a valiosa participação do guitarrista Assis Davis, um dos melhores músicos piauienses no que se refere à época da Jovem Guarda. Com a chegada de Assis, alguns meses depois, saem do conjunto Chico Vasconcelos e Ernesto, indo para a bateria o vocalista Sidney. 

Com esta formação Os Brasinhas conquistou, em pouquíssimo tempo, o público teresinense e de algumas cidades do interior por onde passava. O conjunto ainda contou com a participação do saxofonista Pantico, que permaneceu por vários anos. Paralelamente, surgiu Os Metralhas, resultante da saída de Ernesto e Chico Vasconcelos dos Brasinhas. Juntaram-se á Rubito (baixo), Mário Lúcio (guitarra base), Paulo Chaves (cantor). A estréia aconteceu em frente ao prédio onde funcionava a loja Útil-Lar. Neste dia, Fernando Chaves tocou guitarra solo, em lugar de Chico Vasconcelos. Após Os Brasinhas e Os Metralhas, foram surgindo, pouco a pouco, outros conjuntos como Os Lords, Os Tangarás, The Dandies, Os Fantasmas, The Sammers, Zé e Seus Quatros Azes.

Em 1967 mais um outro piauiense ganha destaque no cenário musical do país. Era Torquato Neto, um dos artífices do movimento Tropicália, juntamente com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Torquato Neto ainda hoje é destaque em jornais, como a Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e em especiais de TV, como o que foi mostrado pela TV Manchete, em 1992, com a direção do cineasta Ivan Cardoso. Em 1969, um garoto fluminense, Jonh Júnior, lançava um compacto simples com músicas já conhecidas do público, como “Tudo Passará”, de Nelson Ned. Aos poucos nossa discografia foi aumentando.

Walcyr Moreira, B. Assis e César Bianchi eram os nossos compositores do carnaval. Eles gravavam suas composições em fita de rolo e divulgavam através das emissoras de rádio. As músicas eram bastante executadas e todos ligavam pedindo para ouvi-las.

Em 1969 existiu também em Teresina o conjunto Golden Girls, formado exclusivamente por mulheres. Este conjunto teve vida curta, embora tenha conseguido se apresentar em vários locais, como no auditório da Rádio Clube, onde futuramente seria instalado o da TV Clube. Neste mesmo ano surgiu na capital o cantor mirim Jurandir Vieira, causando uma grande sensação nos programas de auditório.

(...)

Geraldo Brito, originalmente publicado nos Cadernos de Teresina, Ano VIII, nº 17, agosto de 1994, p. 54 – 57, p. 54. Digitado e postado por Paulo Ricardo Muniz Silva, em seu blogue, em março de 2019. 

27.7.23

CIDADE SAFÁRI, por João Henrique Vieira



a cidade é um safári
passeamos com medo das mordidas da estupidez
somos um aquário poluído pensando que é monet
transitamos assustados pela paisagem de armaduras
entre ferros luminosos carregamos nossos sonhos

a cidade é um safári e os bichos não estimam ninguém
a encenação é um vício do medo
circo tela pichada filme pirata humor previsível moda lunática
anjos atropelados pelas ruas
atropelados pelo bom dia sem dono
atropelados no meio do filme
anjos atropelados pela ternura dão risadas do amor
e a beleza é o filho que dorme

a cidade é um safári e nos salvamos bêbados num bar vagabundo
glamour maquiado medo sonho céu
os bichos são mais bonitos quando se amam
é bom o sono seguro de quem dorme com amor
os bichos são mais bonitos quando afastam as cortinas do medo e pintam a embriaguez da
revolução e se amam

estamos descalços e já começaram a guerra
ainda procuro uns versos que valham a pena e já começaram a guerra
a cidade é um safári
uma diversão assustada e cheia de bichos entre o amor a morte e o riso.



João Henrique Vieira
publicado na oitava edição da Revista Garupa

12.8.11

Praça Pedro Segundo, dos anos 30 à década de 90, Diva Maria Freire Figueiredo


A atual Praça Pedro II, que nasceu como Praça João Pessoa e foi rebatizada, sucessivamente, com os nomes de Independência e Aquidabã. Desde cedo demonstrou sua vocação para centro artístico e cultural, quando se instalou o Teatro Concórdia nas meias águas do prédio do Quartel de Polícia, em 1879. Essa tendência é confirmada pela construção do Theatro 4 de Setembro, em 1894; do Clube dos Diários, em 1927 e do Cine Rex, em 1939. Todas essas obras estão localizadas no perímetro da praça ou na sua vizinhança imediata.

Em 1936, um pouco antes do inicio da construção do Cine Rex, quando dominava entre as construções da época o estilo Art Déco, foi transformada por lei em Praça Pedro II, ao tempo em que sofre uma reforma para a implantação de um projeto paisagístico, cujas intervenções arquitetônicas e o mobiliário são representantes desse estilo, passando a se constituir na área principal de lazer da cidade. Entre os serviços previstos pelo projeto, destacam-se como identificadores da obra realizada: a construção de um coreto, da escadaria de acesso à parte alta, do revestimento dos pisos, do calçamento da rua diagonal, da balaustrada de proteção entre os dois níveis da praça, da fonte luminosa; a instalação de sistema de iluminação com distribuição de postes por toda a área e de cinquenta e seis bancos de concreto; a transferência e instalação da estátua do imperador, antes colocada na Praça João Luiz Ferreira; o plantio de 41 fícus.

Nova reforma sofrida no final da década de 50 introduz algumas novidades. A mais marcante, sem dúvida, e bastante documentada, consiste no pitoresco lado cortado por uma imitação de tronco caído, construído em concreto, que se transforma no cenário preferido dos fotógrafos para a confecção de retratos dos teresinenses. É provável que seja também dessa época uma representação de globo terrestre, construída em estrutura de metal, bastante referenciada por pessoas que vivenciaram os passeios na praça durante os anos 50 e 60. No entanto, essas intervenções preservam as principais características da praça até a década de 70, quando a última grande intervenção, de caráter renovador, descaracteriza totalmente a proposta paisagística anterior, inaugurada quatro décadas atrás, bem como os acréscimos introduzidos com o decorrer do tempo.

Em 30 de novembro de 1998, a execução de um novo projeto resgata esse seu antigo desenho e os elementos arquitetônicos mais significativos da década de 30. Assim, cumpre-se mais uma etapa do projeto de recuperação do Sítio Histórico da Praça Pedro II, iniciado um pouco antes, em 21 de novembro de 1996, com a obra de reestruturação do Clube dos Diários e de sua integração ao Theatro 4 de Setembro, reformado e inaugurado, por sua vez, em 26 de abril de 1999.

A realização desse conjunto de obras, realizada ora pelo Governo do Estado, ora pela Sociedade de Amigos do Theatro 4 de Setembro, com o apoio da Fundação Estadual de Cultura e do Desporto do Piauí – FUNDEC, é uma realidade. Ela se tornou possível graças ao financiamento direto do Ministério da Cultura, através de recursos do Tesouro, a recursos alocados pelo Governo do Estado, bem como ao patrocínio da Empresa Brasileira de Telecomunicação – EMBRATEL, através do programa de financiamento da cultura – MERCENATO – também do MINC.

Praça Pedro II, reconstruída, desempenha um papel especial no contexto urbano do centro de Teresina: o caráter exemplar na consecução do objetivo maior do projeto de revitalizar toda a sua vizinhança, destacando a vocação natural da área para o desenvolvimento de atividades ligadas às artes, ao lazer e ao turismo.


Diva Maria Freire Figueiredo
Arquiteta e diretor da 1ª SubRegional do IPHAN
P2: Teresina, 2001

31.8.10

O MERCADO CENTRAL DE TERESINA NA HISTÓRIA, Reinaldo Coutinho


Ele faz parte da própria vida da cidade de Teresina, ao lado de magníficas construções oitocentistas da Praça Marechal Deodoro ou Praça da Bandeira. Quem dentre os teresinenses nunca andou no entremeio das bancas e quiosques de verduras, carnes, ferragens, utensílios domésticos e artesanatos do Mercado Central de Teresina, também conhecido como Mercado Velho ou Mercado São José? Antes da eclosão dos supermercados por ali as famílias, geralmente carregando sacolas ou cestos de fibras, escolhiam criteriosamente as melhores frutas e verduras e as carnes mais frescas, sem esquecer a pechincha. A urbe teresinense já gravitou em torno dele, que continua sendo um ponto de referência histórico, cultural e alimentício da Cidade.

Os alicerces do Mercado Velho foram implantados com a própria edificação da cidade pelo Conselheiro José Antônio Saraiva (1823-1895) em 1852, no então ponto de gravitação urbana da Cidade, a atual Praça da Bandeira. O logradouro foi chamado inicialmente de Largo do Palácio em alusão ao Palácio Governamental aí localizado. Depois, passou a denominar-se de Praça da Constituição. Mais tarde, Praça Marechal Deodoro da Fonseca, denominação que permanece nos dias atuais (FUNDAC). Claro que no seu início o velho mercado era uma simples feira que rapidamente se transformou numa robusta edificação.


 IMAGEM DE 1910 DA PRAÇA DA CONSTITUIÇÃO. VEMOS O MERCADO CENTRAL (1), ANTIGA SEDE DO GOVERNO PROVINCIAL E HOJE MUSEU DO PIAUÍ (2), ANTIGO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E HOJE LUXOR HOTEL; IGREJA N.S. DO AMPARO AINDA SEM AS TORRES, CONSTRUÍDAS SOMENTE NOS ANOS 1950 (4). FOTO: G. MATOS, ACERVO DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO

UMA IMAGEM BASTANTE ANTIGA, DO INÍCIO DO SÉCULO XX DO MERCADO CENTRAL, 
OBSERVANDO-SE AS PORTENTOSAS E SIMÉTRICAS ARCADAS /  IMAGEM: FUNDAC


Segundo a FUNDAC, o Mercado apresenta com a tipologia organizacional de uma antiga feira, com um pátio central e corredores internos e externos, destinados a lojas e açougues. Com traços arquitetônicos imponentes marcados por seus arcos em sequência e paredes de grande espessura, característica da arquitetura românica, atualmente encontra-se descaracterizado e “mascarado” por elementos construtivos que o fazem passar despercebido.

Consta historicamente que o edifício foi construído pelo doador do terreno logo após a fundação da Cidade, Sr. Jacob Manoel de Almendra Junior (1796-1859), Tenente-Coronel Comandante do 1º Batalhão de Infantaria.

Segundo a FUNDAC, com o passar dos anos sofreu várias intervenções, desprovidas de preocupações estéticas em preservar o seu estilo arquitetônico original, estando assim bastante descaracterizado. Permanece, entretanto, como um grande centro de comercialização dos mais variados produtos oriundos do território piauiense e de outras regiões brasileiras.

A edificação compreende atualmente uma quadra inteira, em parte com dois pavimentos, e abriga ainda em seu entorno pela Rua João Cabral um oceano de barracas dos mais variados produtos, notadamente alimentícios. Tem sua frente voltada para a Rua Areolino de Abreu; os fundos para a Rua Lisandro Nogueira (ex Rua da Glória), o lado direito para a Rua Riachuelo e o lado esquerdo para a Rua João Cabral. Inúmeras construções nas quadras vizinhas do mercado também orbitam em função de sua atratividade histórica.

Em virtude do espaço físico, o Mercado Central não pode mais se expandir, contrastando com o desenvolvimento e crescimento da cidade. Em consequência, sua expansão vem sendo feita através de barracas que se espalham em torno do velho mercado e no prolongamento das ruas que lhe dão acesso (FUNDAC).

Houve uma série de ampliações e ainda construção de anexos, provocando descaracterizações arquitetônicas ao longo das décadas, e hoje o Mercado abriga, além das atividades usuais, lanchonetes, restaurantes, sapatarias, lojas de artesanato, farmácias, lojas de redes e confecções, além de incontáveis barracas dos mais variados produtos no entorno de sua quadra.


23.10.11

LEMBRANÇAS DE AMOR, Hardi Filho


Não são somente lembranças
de um imenso amor vivido,
é um desejo insopitável
de vê-lo reconstruído.

Passaram anos e ainda
lateja na minha fronte
a dor de ver-te sumindo
no pó do tempo horizonte...

Ah se eu pudesse trazer-te
de retorno ao meu caminho
para de novo enredar-me
nas rendas do teu carinho!

Novamente andar contigo
de mãos dadas (que eu adora!);
repetir nossos passeios
pela Praça Deodoro...

Eu preciso, meu amor,
novamente te esperar
naqueles pontos de encontro
desta cidade sem par.

Esperar e ansiar de novo,
quase a perder o juízo,
pela graça de teus olhos,
pelo teu belo sorriso...

E receber-te do jeito,
da forma de antigamente,
com aquele abraço louco,
com aquele beijo ardente!

Reviver os bons momentos
que ainda me tocam fundo,
te encontrar cedo da noite,
na Praça Pedro II.

Voltear naquela praça
cumprindo o geral esquema,
ou então bulinar teu corpo
no escurinho do cinema...

Eu preciso te esperar
como tantas vezes fiz,
ansioso por teus beijos,
lá na praça João Luís.

Subir contigo os degraus
da Igreja São Benedito;
chegar ao ceú, com as asas
daquele amor infinito!

Quantas vezes nos metemos
em façanhas aloucadas...
Lembras o nosso equilíbrio
no fio das madrugadas?...

Corações cheios de encanto,
mãos afoitas...lábios quentes...
Tu querendo...mas parando
os meus arroubos frementes.

Como lembro os teus carinhos
e a tua sinceridade
na aventura que vivemos
tão própria daquela idade!

No campo do sentimento
o tempo passa e não passa.
As marcas de um grande amor
não há nada que desfaça.

Quem tem passado bonito
vive um presente feliz.
Aquele tempo foi lindo!
esta saudade me diz.

Saudade que bem se ajusta
ao meu modo singular
de na vida esquecer penas
e só belezas lembrar.

Não podendo reviver
um tempo que foi tão bom,
me consola, amor, cantá-lo
em saudoso e alegre tom.

Mas eis que ocorre um milagre!
(Ninguém com isto se espante)
Neste momento ressurges
do tempo-nuvem distante...

Vens vestida de invisível
e aqui te fazes presente.
Só os meus olhos te vêem,
só meu coração te sente.


em Tempo Nuvem 
Teresina, 2004

1.12.15

A POÉTICA DO HOMEM E OUTROS BICHOS ESQUECIDOS, por Menezes y Morais




Os olhos do poeta Hindemburgo Dobal Teixeira (1927-2008) brilhavam repletos de ternura naquela tarde, na qual ele, Cineas Santos e o autor dessas virtuais traçadas linhas, saboreávamos um cafezinho em sua casa, em Teresina (PI). De férias na cidade, morando em Brasília, sabendo que H. Dobal fora acometido pela doença de Parkinson, pedi ao CS que me levasse até sua casa.

Poeta consagrado, premiado, servidor público aposentado, cidadão do mundo que morou em Teresina, Rio de Janeiro, Brasília, Londres e Berlim, HD parecia feliz naquela tarde. Creio que isto aconteceu em 1994. Dobal indagou se eu queria café com açúcar ou adoçante. Diante a minha negativa, observou, com um sorriso sincero nos lábios:

"Você tem razão, doçura só a da vida".

CONVERSAMOS amenidades, dias depois eu voltei a Brasília, sem entretanto esquecer aquela frase ecoando na memória, que bem pode ser um verso: "doçura só a da vida".

O que mostra que Dobal não sofria da doença chamada alienação política, essa gente costuma creditar a vida as mazelas sociais e históricas que infernizam a odisseia humana, esquecendo que o verdadeiro inimigo não atende pelo nome "vida", mas pela alcunha "poder", a forma de como o "Estado" é organizado.

A vida é inocente. Como dizia Sarte, "o inferno são os outros".

SE DOBAL tivesse resistido um pouco mais, talvez sua viagem definitiva fosse prorrogada por mais tempo, pelo milagre das células-tronco, a grande esperança da revolução na medicina neste surpreendente século XXI.

H DOBAL debruçou-se sobre a existência humana, falando no "homem e outros bichos esquecidos", diz num poema. Nada escapou do seu olhar poético e crítico. Da solidão humana povoando a tarde, à solidão dos homens anônimos encharcando o dia.

Flashes da vida, retratos do cotidiano - Rio-Teresina-Brasília-Londres-Berlim - o atento olhar dobalino observou mudanças na geografia física da cidade - Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina, Os Signos e as Siglas (Brasília) - e nas paisagens humanas, produzindo uma poética onde não faltam mergulhos objetivos e subjetivos na condição humana.

A OBRA de HD dá uma sacudida dialética na cabeça e no estômago do leitor. Poeta de paisagens, tempo, gentes, lugares, dos rebanhos do tempo, do homem ou da vida simplesmente, Dobal ainda encontrou uma folguinha para criticar a poesia rimada e metrificada.

Mesmo quando escreveu ficção (Um Homem Particular), condimentou poeticamente a sua prosa, as vezes é um poema quase inteiro, embora com o final frouxo, aguado, prosaico.

O olhar atento do poeta registra mudanças na rota do tempo, o que faz de HD um cronista do tempo. A "Província" de Dobal é o mundo, mais ou menos como a aldeia de Marshall McLuan é a aldeia global.

A GLOBALIZAÇÃO do capitalismo começou no período das grandes navegações, no mercantilismo, quando o colonizador europeu transformou as populações nativas (chamadas índios) e povos africanos em mercadoria, mão-de-obra escrava.

Tudo isso consta do ideário poético de H. Dobal: os índios piauienses que foram massacrados (Acoroazes, Pimenteiras, Gueguezes, Tapuyas), ganharam um poema épico (El Matador), onde nomina um dos chefe da chacina, o tenente-coronel João do Rêgo Castelo Branco (1776-1780).

FALTOU o pistoleiro de aluguel, o assassino por encomenda de índios e africanos, o bandeirante Domingos Jorge Velho, que é nome de rua no país inteiro e de colégios, inclusive em Teresina.

DJV chefiou a expedição militar da monarquia que assassinou Zumbi dos Palmares (?-1695). Por todas os crimes que cometeu, sempre bem remunerado, DJV é considerado um "herói" nacional. Até quando?


Dobal exaltou heróis da independência - anônimos (Memorial do Jenipapo, "o sonho anônimo dos que morreram pela liberdade") e resgatou o histórico poeta piauiense Leonardo de Carvalho Castelo Branco ou Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco, que foi preso no Piauí, Maranhão e Portugal.

Em tempo: a vida do poeta e inventor Leonardo também deveria ser estudada nas escolas do ensino médio do Piauí e do país.

Não temos sequer um retrato de Leonardo. Lembro de algumas conversas que eu tive, na década de 1980, com o publicitário, letrista (tem obras-primas com o cantor e compositor Edvaldo Nascimento) e poeta Durvalino Filho, nas quais me dizia, empolgado:

"Vamos forjar um retrato do Leonardo".

A GRANDEZA ética e estética da poesia de HD parte do micro para o macro, da solidão para a alegria (me divirto lendo Serra das Confusões), da vida para a destruição da morte: a Poesia vive.

Dobal deu-se ao luxo de achar alguns dias inuteis, por ser um repórter do tempo, cuja poesia fotográfica não poupa o mal caratismo popular ou elitista.

A poética dobalina é uma radiografia da existência social, iniciando pelo começo, da Província à contemplação da paisagem, registrando universais tipos humanos.

NEM A gente simples e humilde com seus flagrantes de virtude e desvirtude escapou de suas retinas. As qualidades estéticas de HD já foram exaltadas por poetas e estudiosos da literatura. Entre eles Manuel Bandeira, Odylon Costa, filho, Álvaro Pacheco, Fábio Lucas, Cristina Maria Miranda de S. P. Correia, M. Paulo Nunes (grande contemporâneo e companheiro de Dobal), Almeida Fischer, Cineas Santos (anjo da guarda de Dobal, na fase aguda da doença de Parkison) e a professora Maria G. Figueiredo dos Reis.

LEMBRO bem daquela tarde, Cineas com o olhar fixo no poeta, eu bebendo café puro e Dobal sorrindo com seu jeito piauiense universal de ser, com sua ternura e humildade diante o mistério, se emocionando com o dia bonito pra chover.

Por que Deus não nos deu o poder de congelarmos o tempo nas retinas da tarde?



via blogue de Kernard Kruel



21.2.12

CARNAVAL, CARNAVAL


Eu vejo as pernas de louça
Da moça que passa e não posso pegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

chico buarque


A bermuda de jeans e a camiseta verde. Calçou os tênis. Virou-se. Encarou o espelho. Penteou-se. Ouvia Don't let the dragon eat your mother, brother, de John MaLaughlin.
José entrou no quarto: - 'Tamos no carnaval, cara.
Ele: - Eu sei.
José: - Então?
Ele balançou o corpo. Uma Gibson 'The Les Paul' imaginária nas mãos ágeis.
José: - O problema é que não observamos as raí...
Ele: - Vamos.
Saem.

REINADO DE MOMO
PALÁCIO DA FOLIA

Edito Real

Sua majestade, Rei Zé Fortes, Primeiro e Único, no uso de suas intransponíveis e irrevogáveis transições legais


Decreta

Art. 1º - A partir de hoje reina a alegria e é revogada a tristeza.
Art. 2º - Os descontentes com o Reinado de Momo deverão ser confinados:
a) nas praias de Luis Correia ou Barra do Ceará;
b) em Sete Cidades; e
c) nas matas de Timon e adjacências.
Art. 3º - Nos clubes, todos devem pular, lépidos e fagueiros, juntos ou separados, porque a orientação do Rei é de que sem alegria não dá.
Art. 4º - Os condes e conselheiros do Reinado anterior considerem-se demitidos, pois no novo Reinado a bossa é nova.
Art. 5º - As coroas devem abdicar máscaras e soltar os enxovalhos, uma vez que no atual Reinado toda mulher é boa.
Art. 6º - Fica abolido o preconceito à transação gay; afinal, todos são iguais no carnaval e nem sempre o saracoteio dos quadris homologa a placa.
Art. 7º - Os que saírem nas ruas, pensando ficar fora do trino momino, deverão ser sequestrados e recolhidos ao Quartel General da Folia, na Avenida Frei Serafim, até a passagem do Trio Elétrico.
Art. 8º - Revogadas as disposições e indisposições em contrário, o presente Edito Real entra em vigor na data de sua publicação.

(Jornal O Dia, edição de 21/22 e 23 de fevereiro de 1982, pág. 7)


Aqui Pegou
18h15m

José, ele, a menina de óculos e o cara de bigode de arame.
Três copos. Quatro garrafas.
José: - Quem é homem não anda assim.
Ele: - Tudo é brincadeira.
Menina de óculos: - Li depoimento de um psicólogo que dizia o carnaval permitir ao indivíduo externar seus sentimentos reprimidos, o que somente é possível durante os três dias dessa festa orgíaca, pois nos outros dias a sociedade possui um papel castrador em face daquilo que ela entende por atitudes amorais.
Cara de bigode de arame: - É, quem é homem não se veste assim. Nem no carnaval.
Ele observou o revoar assustado dos pardais sobre as copas das árvores da Avenida Frei Serafim.
Rebuliço no passeio da Av. Frei Serafim.
Blocos de sujos, animados, vão e voltam, vão e voltam. Não se cansam nunca.
No alto, trinados de pardais.
Ele e José vêem um bloco: Unidos do Esculacho. Todos com túnicas.
Ele: - É o bloco dos artistas.
José: - Aquele cara ali é artista?
Ele: - É.
José: - Todos eles são artistas?
Ele: - Não. Tem alguns que são somente veados.

Uma garota, short de jeans e blusa com a legenda  University of California, encostada num Corcel II.
Um cara de calça preta e camiseta no ombro, depois de observá-la por algum tempo, aproximou-se.
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Ôi, Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Hein?
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Você é Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Você está enganado. Eu não sou Pussy.
César que não vem. O cara de calça preta e camiseta no ombro está bêbado. Cambaleia ao afastar-se da garota que chamara Pussy.

Numa cidade que se pretende civilizada, a polícia não acode aos desditosos habitantes martirizados por alguns engraçados sem espírito que levam horas inteiras espancando peles de zabumbas, quando as próprias é que deveriam ser escovadas, uma vez que a autoridade consente semelhantes exibições grotescas, inqualificáveis, dignas de zulus ou boçais.

(Revista Rua do Ouvidor, de 27/01/1900, citada por Chico Alencar no artigo Acabou o carnaval (mais faz muito tempo...), publicado em O Pasquim, edição de 25/02 a 03/03/1982, pág. 7).

Um corpo no chão. Ninguém dá atenção a ele.

Dançavam juntos, não dançavam? Por que, então, parou? Por que olhou-a diferente?
A moça: - O que houve?
O rapaz: - Não deveria estar com você.
A moça: - Por quê?
O rapaz: - Você sabe.
A moça: - O telefonema?
O rapaz: - É.
A moça: - Esquece, pô.

( - Fale
- Talvez você já tenha percebido.
Pausa.
- Eu gos...
- Alô? Você está me ouvindo?
- 'Tou, sim.
- Fale.
- Eu te a...
- Olha, você é um cara legal. Mas a...
- Continue.
Pausa.
- A minha cor, né?
- Pausa.
- A minha cor, né?
Afastara-se do orelhão. Sumira na noite.)

O moreno vestido como mulher e bucho forjado. Acompanhou-o à avenida o vizinho, sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito.
O branco vestido com bermuda super estampada e camiseta azul, sem mangas. Saiu no Puma.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado divertia-se, seguindo qualquer bloco.
O branco do Puma bebia no Coisa Fina; loura, sentada em suas coxas, vez em quando levava-lhe à boca um naco de carne.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado suado quando o dente começou a doer.
O branco do Puma balbuciou qualquer coisa no ouvido da loura. Saíram.
Bêbado com um litro de Mangueira na mão deu um trago de cachaça para o moreno vestido como mulher e bucho forjado.
O branco do Puma, com a loura, na pista da avenida, num e noutro bloco.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado viu o branco do Puma e disse para o sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Aquele filho da puta me tirou o emprego e não me pagou direito.
O branco do Puma espremia a loura, com força.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado, referindo-se ao branco do Puma: - Vou dar um pau nele.
- Sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Deixa pra lá, cumpade.
O branco do Puma continuava a espremer a loura.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado disse: - Vamos esquecer.
O branco do Puma pisou no pé do moreno vestido como mulher e bucho forjado.

Se as fantasias revelam, então o carnaval mostra um mundo invertido, onde o pobre pode "bancar" o rico; e os donos do poder podem buscar uma aproximação com o mundo dos homens, "bancando" pobres. Entrevistas com pobres que desfilaram de "reis" revelam esse êxtase carnavalesco, quando alguém pleno de anonimato social ganhou os aplausos, as atenções e os olhares de todos os segmentos sociais num desfile. Entrevistas com gente de classe média alta indica precisamente o oposto: aqui, há um prazer - como o de um arquiteto de sucesso - de "pisar de pé descalço o asfalto da Avenida". (...) Quer dizer, eu continuo achando admirável que uma sociedade no final do século XX ainda continue a celebrar suas relações sociais utilizando essa regra de inversão e, assim fazendo, possa permitir e legitimar um "troca de lugar", ainda que essa troca seja burocratizada, controlada pelo Estado, fugidia e tenha data marcada. Porque, apesar de tudo, é uma troca que permite vivenciar a justiça e a igualdade, a liberdade, a vitória e a esperança. Esses ingredientes centrais de qualquer transformação social concreta.

(Fragmentos do artigo Carnaval: o verdadeiro milagre brasileiro, de Roberto da Matta, publicado em O Pasquim, edição de 26/02 a 04/03/1981, pág. 5)

- É bicha.
- Não. É uma mulher.
- É bicha.
- Porra. É mesmo.
- Olha outra ali.

Primeiro uma chuvinha fina. Parara. Pouco depois, como da vez passada, espectadores à procura de abrigos. A maioria permaneceu na chuva.
- É incrível, ouvintes. Nem a chuva que desaba sobre o centro da Cidade Verde consegue afastar os espectadores da Frei Serafim. A chuva aumenta cada vez mais o entusiasmo do folião. Dá mais gosto de se ver um carnaval assim.
Locutor do Posto Nº 1, da Secom:
- Loucura. Toda esta chuva e o carnaval se torna ainda mais quente, mais movimentado. Não tenham dúvida: nesta festa explodem tradições milenares trazidas da terra de origem e abafadas durante o ano inteiro. É para esta festa, que é a maior do ano no Brasil, que o povo economiza o ano inteiro.
Ele e José tinham deixado numa mesa do Aqui Pegou a menina de óculos e o cara de bigode de arame. Caminhavam lentamente. José não parava de falar. Ele viu a garota de short jeans e blusa com a legenda University of California.
Ele: - Olá gracinha.
Garota de short e jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy.
Ele: - Hein?
Garota de short jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy. Me chamo Pussy.
Ele fez sinal para José.
Garota de short jeans e blusa com a legenda University os California: - Parece que ele se chateou.
Ele: - Um chato.

Locutor do Posto Nº2, da Secom:
- Atenção Laura Maria. Atenção Laura Maria. Sua mãe te espera aqui no Posto Nº 2. Compareça o mais breve possível.

Quem não conhece o carnaval não conhece o Brasil, e quem não gosta de carnaval não gosta da alma brasileira. O carnaval ainda é feito pelo povo, já que a participação popular espontânea é maior que qualquer interferência dirigida, venha ela do poder público, de empresas privadas ou de qualquer pessoa diretamente interessada na festa. Essa manifestação espontânea é tão poderosa que mesmo durante as ditaduras impostas ao Brasil - do Estado Novo ao período pós-64 - conseguiu ser mais forte que a repressão. O povo continua dançando e cantando, porque para o povo brasileiro cantar é tão importante quanto sobreviver. (...)
O morador do morro, quando encontra um vizinho no bar, não quer falar de suas desgraças. Prefere cantar sambas. Se tiver um pouquinho de sensibilidade, já faz um ritmo. Um pouco mais e improvisa em verso. Esse comportamento não morre com a ação de forças externas e garante a eterna sobrevivência do carnaval.

(Albino Pinheiro, fragmento de O carnaval é eterno, revista Veja, nº 703, pág. 90.)

José no bar.
Três garrafas vazias sobre a mesa. Pediu a quarta. Duas vezes levantara-se e fora ao banheiro. Fedorento.
Cerveja esquentando no copo.

Populares cercavam um corpo no passeio da Avenida Miguel Rosa, em frente à AFAL.
O assassino agiu rapidamente. O homem corria com dificuldade e Violeta, sóbrio, facilmente abateu-o.
Conjectura-se que tudo aconteceu por causa de uma puta chamada Margô.
Violeta, após matar o homem, tirou da bolsa uma gilete e começou a cortar-se, principalmente no antebraço esquerdo.
Desesperado, deixou a peruca cair.

As paredes desbotadas. Quase brancas. Cadeira na palha, bacia, jarra, penteadeira e cama.

Pussy virou-se. Encontrou-se diante de um homem que lhe sorria. Espantada, protegeu sua nudez. Levantou-se rapidamente. Vestiu-se. Abriu a porta. Saiu.
Na rua, duas senhoras, com terços e véus, caminhavam para a igreja.
O sol há muito fora parido.


1º Lugar do II Concurso de Contos JOÃO PINHEIRO,
Realizado em 1982



Manoel de Moura Filho
em Novos Contos Piauienses
Teresina: Fundação Cultural, 1983

22.11.15

Maria da Inglaterra - "Mulher Cabra-Macho"






Documentário média-metragem que resgata a história de vida da cantora e compositora piauiense Maria da Inglaterra, contada por suas próprias palavras e por entrevistados que fizeram parte de sua carreira. Maria da Inglaterra "Mulher Cabra-Macho" é o resultado do trabalho de conclusão de curso do jornalista piauiense Patrício Lima, pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), em novembro de 2012. O documentário teve a orientação da jornalista e professora mestre Luciana Chagas. As imagens, edição e pós produção ficam por conta de Pedro Júnior Mendes. Já as imagens de apoio são dos fotógrafos Moisés Saba e Maurício Pokémon. Entrevistados: João Claudio Moreno, Patrícia Mellodi, Júlio Medeiros, José Dantas, Lázaro do Piauí e Cineas Santos.


[...]


Personalidade popular e querida em todo o estado do Piauí, muito considerada por seu talento e sabedoria no modo de viver. Em 1975, foi descoberta por Ricardo Cravo Albin, quando, em viagem pelo Brasil através do PAC - Plano de Ação Cultural do Ministério da Educação e Cultura - berço da futura FUNARTE, com o projeto História da Música Popular Basileira "De Chiquinha Gonzaga a Paulinho da Viola". Na ocasião, o pesquisador, impressionado com sua postura, que evocava ares de nobreza, a apelidou de Maria da Inglaterra, dando-lhe assim o nome artístico com o qual ficou conhecida por todos. Sua música penetra, inclusive, nas regiões interiores próximas ao seu estado natal. Começou a cantar para o público aos 26 anos, tendo Luiz Gonzaga como ídolo. (Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira)

28.1.16

IMPRESSÕES DE VIAGEM, Edmar Oliveira


Uma amiga perguntou pelo Piauinauta, que não sai há quase um mês, e eu falei que estava enrolado com o lançamento do meu TERRA DO FOGO em Teresina e que tinha de ficar lá por uns dez dias. Ela então falou: “sei, você está de licença paternidade”. Acertou assim.

Cheguei para o “Sarau dos Amigos do Cineas” na Oficina da Palavra, onde o livro foi muito bem recebido. Passei toda a semana indo ao stand do Leonardo, que tem editado livros de escritores da terra (muito bem caprichados), autografando o TERRA DO FOGO, que por sinal esgotou o estoque de lançamento. Eu e Salgado Maranhão fizemos um bate-papo literário discutindo o meu livro e o dele (MAPA DA TRIBO) para uma plateia de cinquenta a sessenta pessoas às oito horas da manhã, o que me surpreendeu. Geraldo Borges estava lançando ESTAÇÃO TERESINA anunciado aqui no Piauinauta anterior.

Boas conversas com Paulo Tabatinga, Gisleno Feitosa, Rodrigo M Leite, Durvalino Couto, Feliciano Bezerra, Wellington Soares, Cineas Santos, Graça Vilhena, Paulo Vilhena, João Carvalho, Fonseca Neto, Alexandre Carvalho, Gilson Caland, Climério Ferreira e  Helô, Keula Araújo, Luana Miranda, Poeta Willian, a muito jovem e bonita escritora Fran Lima, Deusdeth Nunes e a turma do Conciliábulo, entre tantos outros que tive por bem encontrar. Fui entrevistado por várias emissoras de rádios que cobriam o evento, entre elas a de Marcos de Oliveira e a de Leide Sousa. E ainda deu tempo gravar um depoimento sobre o cinema marginal dos anos 70 para Patrícia Kelly e Morgana, que fazem um documentário como monografia do curso de história e jornalismo. As meninas são brilhantes. E eu estou tão velho que virei pesquisa. Mas é bom ser reconhecido.

Tinha tudo pra ficar contente. Mas não fiquei.

Me hospedei no Hotel Central, em frente ao Clube dos Diários, ao lado da Praça Pedro II e seu Teatro 4 de Setembro, complexo que foi outrora o centro pulsante e cultural da cidade. Após cinco dias fui para a casa do meu irmão Maioba angustiado pela solidão. A cidade entre os dois rios, que se estendia do encontro de suas águas no Poty Velho até a Vermelha (citada no filme genial do Torquato Neto) não existe mais. Foi definitivamente abandonada por seus habitantes que atravessaram o Rio Poty e ergueram uma cidade moderna na zona Leste. Mas que não tem nenhuma lembrança da minha cidade.

A minha cidade é uma cidade fantasma. Os poucos e pobres habitantes que ali ficaram não saem de noite nas suas ruas escuras com medo de assalto. Trancam-se em suas casas. Os de mais posses fazem cercas elétricas para protegerem a sua solidão. As ruas foram entregues ao drogados, aos desocupados que ocupam uma cidade sem lei e sem ordem. Em suas ruas desertas, mesmo ao meio dia, encontrei duas pessoas usando drogas. Não senti qualquer medo. Eram pessoas que eu conhecia da minha infância naquelas, outrora, ruas agitadas. Agora estavam os dois usando drogas numa cidade trancada com medo deles. Esquisito. Conversamos sem medo entre nós. Eu não me senti ameaçado por eles. Fiquei com pena de a cidade os terem tragado pela fumaça de um inexistente futuro.

Sem querer contrariar os meus anfitriões do Salão do Livro do Piauí (SALIPI), até entendo os seus motivos de o terem tirado da Praça Pedro II para que acontecesse este ano na Universidade Federal, que também fica na Zona Leste da nova cidade. Mas não concordo.

Desculpem, mas penso que a cultura abandonou também a cidade antiga. Não digo que ficou elitista porque a Universidade pública congrega estudantes de todas as classes. Mais ainda com o sistema de cotas. Mas acho que a cultura abandonou também a cidade antiga. É preciso que analisemos este fato mais devagar. Não vou fazer agora.

No livro que em Teresina fui lançar conto uma história triste que a cidade tinha esquecido. Os incêndios dos anos 1940. Acho que em breve um cronista vai contar essa história, também muito triste, do abandono da cidade antiga. A impressão que eu tive, e que me encheu de tristeza, é que ela não mais existe. E uma cidade sem passado é uma cidade sem futuro. 


em 15 de junho de 2014
em Piauinauta

3.11.11

VIR VER OU VIR, por Torquato Neto




a coroa do rio poti em teresina lá no piauí. areia palmeiras de babaçu e
céu e água e muito longe, depois, um caso de amor um casal uns e outros.
procuro para todos os lados - localizo e reconheço , meu chicote na mão e
os outros: a hora da novela o terror da vermelha
o problema sem solução a quadratura do círculo o demônio a águia o núme-
ro do mistério dos elementos os quintais a minha terra é a minha vida!
o faroesteiro da cidade verde
estás doido, então? (sousândrade)
ela me vê e corre, praça joão luís ferreira
esfaqueada num jardim
estudante encontrado morto

ando pelas ruas tudo de repente é novo para mim. a grama. o meu caso de
amor, que persigo, êsses meninos me matam na praça do liceu. conversa com
gilberto gil
e recomeço a
vir ver ou
aqui onde herondina faz o show
na estação da estrada de ferro teresina-são luís um dia de manhã
ali
onde etim é sangrado



TRISTERESINA



uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques
eis tudo. observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto
saio, uma vez feriado de morte e me salvei
o primeiro filme - todos cantam sua terra
também vou cantar a minha



VIAGEM/LINGUA/VIALINGUAGEM



um documento secreto
enquanto a feiticeira não me vê
e eu pareço um louco pela rua e um dia eu encontrei um cara muito legal
que eu me amarrei e nós ficamos muito amigos eu o via o dia inteiro e a
poucos conheci tão bem.

VER

e deu-se que um dia eu o matei, por merecimento.
sou um homem desesperado andando à margem do rio parnaíba.

BOIJARDIM DA NOITE

êste jardim é guardado pelo barão. um comercial da pitu, hommage, à sa-
úde de luiz otávio.
o médioc e o monstro. hospital getúlio vargas. morte no jardim. paulo josé, meu primo, estudante de comunicação em brasília, morre segurando bravamente seu rolling stone da semana

sol a pino e conceição.

VIR
correndo sol a pino pela avenida

T E R E S I N A

zona tórrida musa advir

uma ponta de filme - calças amarelas
quarto número seis sete cidades



Torquato Neto
em Gramma, nº 2
Teresina, 1972



16.1.16

O CLUBE DO VTS, de Gylberto Mariano




Numa piscadela, o Clube do VTS parece uma daquelas espeluncas de favelas onde se vende cachaça, com tira-gosto de frito de tripa e ovo com gema enegrecida pela ação prolongada da fervura da água. Apertado, com um rústico banco de marcenaria, não possui qualquer placa indicativa. Nem mesmo da Coca-Cola.

Quem tem a sorte de entrar no mais fechado clube de Teresina, vai descobrir que se trata de um lugar aconchegante, excelente para uma conversa descontraída. Não há televisão. Gravador, só para alguns e desde que a música seja genuinamente brasileira.

Diz-se clube para evitar a ação dos penetras. Na verdade, ali é uma confraria, onde só existem dois tipos de cervejas: a gelada, no ponto, e a quente, se algum maluco desejar.

O segredo do Sr. Vicente trindade dos Santos, nascido ali do outro lado do rio Parnaíba, em Timon, conhecido pelo singelo nome de VTS, é o atendimento, literalmente, personalizado, já que conhece as manias, desejos e defeitos de sua fiel clientela, mantida ao longo de quase trinta anos. Ele não tem nenhum empregado para servir os pra lá de cinquentões: São senhores boêmios, seresteiros, amantes da legítima música brasileira. A despeito disso, é difícil, quase impossível alguém do belo sexo aparecer por lá. Parece mais um clube do bolinha.

Além do tratamento “personalizado”, razão maior de seu sucesso, o Sr. VTS, a pedido, serve um peixe, chamado de dietético, sem similar no mundo. O segredo, bem é segredo mesmo. É uma delícia. Mesmo dispondo de um fogão de quatro bocas, ele nunca faz duas peixadas ao mesmo tempo. É na fila mesmo.

Lá tem presença marcada bons “gongozeiros”, acompanhados dos violões do Bruno e do Ludimar e, às vezes, do próprio Vicente. Com licença, vou citar alguns nomes: Irací, Sobrinho, Vitorino, o próprio Ludimar, que é repórter fotográfico. Há o que têm e sabem tudo – ou quasse – de música popular brasileira, pelo acervo que possuem (discos), como o advogado Gil, com mais de três mil títulos. 

Existem clientes metódicos, como o doutor Durwagner, famoso oculista da capital. Ele chega às 18:00 horas. Toma não mais que três Antarcticas e britanicamente, às 19:00 horas, retira-se com um polido boa noite.

É assim o VTS, que fica na Rua João Cabral, nº 30 – Sul.



Gylberto Mariano
em A SAIDEIRA: De bar em bar,
Teresina: julho de 1997