19.2.16

CAUIM (1978) - Ednardo






01 - C'lareou - Ednardo - 00:00
02 - Amor de Estalo - Ednardo/ Brandão - 07:03
04 - Duas Velas - Ednardo/Brandão - 09:50
05 - Rendados - Ednardo/Tânia Araújo - 11:53
06 - Rasguei o Teu Retrato - Cândido das Neves, o Índio - 15:55
07 - Cauim - Ednardo - 18:50
08 - Bloco do Susto - Ednardo - 24:06
09 - É Cara de Pau - Ednardo/Brandão - 26:20
10 - Terezina 40 Graus - Ednardo - 28:48
11 - Canção dos Vagalumes - Ednardo - 31:13



[...]



Terezina 40 Graus | Ednardo 


Troca que troca que troca
Lembranças
Contra corrente do rio,
Vai vapor
Que também sem ti
Posso navegar
E cada instante de rio
Me afasta
De cada saudade do mar
De cá, dá saudade do mar



[...]



Disco: CAUIM
Gravadora: WEA / Warner
Lançamento: 1978 (LP- BR 36.074) - 2001 (CD Warner Music)
Direção Artística - Marcos Mazola
Produzido por Guti Carvalho
Técnicos de Gravação - Carlos Duttweller / Vitor
Estúdio de Gravação - Transamérica - Rio de Janeiro
Mixagem - Guti Carvalho / Carlos Duttweller / Ednardo
Assistente de Produção - Gastão
Auxiliares de Estúdio - Franco / Cláudio
Capa e Desenhos - Brandão
Foto da Capa - Mario Luiz Thompson
Foto da Contra Capa - Francisco Régis
Arte Final - Ruth Freihof 
Arranjos - Ednardo / Pepeu Gomes / Wilson Cirino
Violões - Ednardo / Pepeu Gomes / Wilson Cirino
Violão Sétimo - Waldir (Novos Baianos)
Guitarra Acústica - Pepeu Gomes (Novos Baianos)
Bateria - Jorginho (Novos Baianos)
Contra Baixo - Luiz Carlos Tolentino - Ife
Baixo Tuba - Teles
Percussões - Sérgio Boré / Jorge José

18.2.16

RUMO NORTE (1979) - Irene Portela






01 - De São Luiz a Terezina - João Do Vale & Helena Gonzaga - 0:00
02 - Sanharó - João Do Vale & Luis Guimarães - 3:16 
03 - Sabiá - João Do Vale, Luis De França & José Cândido - 5:33 
04 - Nécio Costa - João Do Vale - 7:20
05 - Passarinho - João Do Vale & José Lunguinho - 10:23
06 - Fogo No Paraná - João Do Vale & Helena Gonzaga - 13:33
07 - Lua Peixe - Irene Portela - 17:14 
08 - Até Quando - Irene Portela - 19:18
09 - Dia De Festa - Irene Portela - 21:31
10 - Alcântara - Irene Portela - 23:46
11 - Folha Verde - Ricardo Gouveia & Irene Portela - 25:13
12 - Na Hera Dos Muros - Irene Portela & R. Parreira - 28:09
13 - Guerreiro - Irene Portela - 31:12 



[...]



DE SÃO LUIZ A TEREZINA | Irene Portela 
Composição de João do Vale & Helena Gonzaga 


Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai que dor no coração

E a trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Bom dia Caxias
Terra morena de Gonçalves Dias
Dona Sinhá avisa pra seu Dá
Que eu tô muito vexado
Dessa vez não vou ficar

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Boa tarde Codó, do folclore e do catimbó
Gostei de ver as cabroxas de bom trato
Vendendo aos passageiros
"De comer" mostrando o prato

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Alô Coroatá
Os cearenses acabam de chegar
Meus irmãos, uma safra bem feliz
Vocês vão para Pedreiras
Que eu vou pra São Luís

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai que dor no coração

E o trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa



[...]



Depois de mais de dez anos de carreira, sem conseguir gravar, foi descoberta pelo produtor Marcus Vinícius, como compositora, intérprete e diretora musical do espetáculo "A missa do vaqueiro". Em 1979, lançou pelo selo Marcus Pereira seu primeiro disco, "Rumo norte", interpretando diversas composições de sua autoria, entre as quais "Lua peixe", "Dia de festa", "Guerreiro", além de diversas composições de João do Vale, como "De Teresina a São Luís (trem do Maranhão), em parceria com Luís Gonzaga, "Sabiá" e "Fogo no Paraná". Via Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira.

BALADA DOS MORTOS NA PAREDE ETC., por Menezes y Morais




teus mortos
estão nas paredes
nos álbuns
memórias
dramas

te espiamudos
denunciam calados
o crime q comeste

teus mortos
não perdoaram

eles vivem
todo dia
quando reparas
nos álbuns
           paredes
                       memórias
                                     dramas
é inútil tentar/remover os mortos/
dessas paragens
eles estão em ti

te acompanham
procriam na sala
quarto lembranças

convive com os mortos
é mais seguro do q conviver com os
vivos
a vida é túmulo em via



Menezes y Morais
em DIÁRIO DA TERRA (1984)



PÉS-DE-VENTO, Cinen de Sousa




Pelas quintas, quintais e passeios
ainda o benevolente
verde da cidade.
Carnaubeiras da Antonino Freire,
na Vila Poti, amendoeiras,
oitizeiros resistem pelas calçadas do centro
e alamedas.
O caneleiro secular! Algarobas, jatobás, figueiras.
Por que não dizer num alto-falante
que há mais que o verde
um roseiral, colibris e pôr-do-sol
entremeio
a esta Cidade-planeta
de risco aberto, um caso de amor e mil amantes
e esta cor do sol pelo firmamento
como pés-de-vento
que brota livre e engravida pessoas.



Cinen de Sousa
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

17.2.16

NÓS E O ELIAS, Feliciano Bezerra




Eram os anos 80. Alguns arautos da sociometria dizem que foram os anos da década perdida. Bobagem, foram anos galantes; claro que havia algo de ressaca do desbunde dos anos 70, mas a cultura continuava a respirar, e em Teresina um de seus respiradouros mais interessantes era o bar Nós e Elis

Refúgio da arte e da cultura piauiense, lugar de exercício da imaginação, de consumo delicioso de farras estéticas, o Nós e Elis tinha algo aurático, não se repetia, não tinha reprodutibilidade (contrariando Walter Benjamin). Ir ao Nós e Elis era um ato natural e pleno de significação, sabíamos de antemão que valeria a pena sair de casa. Os shows, os recitais, as conversas, os papos cabeça dos intelectuais em transe, os pequenos torneios ideológicos, os diagnósticos políticos, os projetos culturais traçados ali entre copos e mentes, os encontros furtivos, os exercícios de fidelidade conjugal, tudo animava as noites etílicas, alegres e abertas. 

A abertura começava pela própria estrutura do bar. Arquitetonicamente ele se abria para a rua, não havia uma rígida divisão espacial entre o dentro e o fora. Outro item interessante de suas divisões é que entre o palco e as mesas havia um pequeno corredor, indo do balcão do bar até os banheiros, pelo qual funcionava uma espécie de passarela. Nessa travessia praticava-se, digamos, exercícios narcísicos, pois ninguém passava por ali sem ser notado; às vezes era desafiador, poderia atrapalhar o espetáculo, de tão próximo do palco. Os mais discretos e tímidos evitavam aquele caminho e saiam enroscando-se por entre as mesas até chegar aos banheiros. Os espalhafatosos e os distraídos faziam questão de usar a travessia, invariavelmente cumprimentavam quem estava no palco, posando de íntimo do artista e descolando um naco de exibição. Mas isso era feito com certa puerilidade, sem muitas implicações, o Nós e Elis dava permissões, era um espaço que realmente abrigava vários instintos. 

Toquei e cantei muitas vezes lá, não cheguei a ser um músico ‘residente’ como muitos colegas, orgulhosamente, o foram, mas experimentei o encanto, havia algo de diferente em tocar naquele bar, sempre me pareceu o palco principal da noite Teresinense. 

O Elias era um misto de dono de bar e agitador cultural, a forma como ele concebeu o Nós e Elis refletia sua cabeça de homem de esquerda (à época a nomenclatura ainda se sustentava), que acreditava no binômio cultura e política e no incremento desses dois campos. Elis Prado Jr. era político e ao mesmo tempo um rigoroso amante das artes. Suas inarredáveis exigências em nome da qualidade eram desafiadoras, porém gratificantes, pois só ali, nós artistas, poderíamos experimentar e ousar. Ele checava pessoalmente o set list de quem fosse cantar e ia cortando qualquer concessão a canções gastronômicas, qualquer sucesso fácil e ocasional ou pérolas do cancioneiro romântico ligeiro. E um detalhe, avisava-nos: “não aceite pedidos, toque seu repertório”. Era rígido e doce, circulava entre as mesas, com uma taça de conhaque na mão, conversando com todos, sempre entusiasmado com alguma ideia. Eventualmente subia ao palco pra dizer poemas, um lírico inveterado. 

Era admirável a energia e a determinação do Elias, ilustro com o seguinte episódio que me aconteceu: certa noite de sexta-feira eu estava em casa, por volta das dez horas, já encerrando minhas atividades noturnas e preparando-me para dormir quando bateram à porta. Era o Elias, e antes mesmo de eu me desfazer da surpresa ele deu boa noite e foi direto: “Fifi, estou sem ninguém pra tocar hoje à noite, vai ter que ser você, vim buscá-lo, pagarei cachê dobrado e ao terminar venho lhe deixar em casa”. Era incrível, e minha casa, no Monte Castelo, não era tão perto assim. Bem, diante do imperativo convite, só me restava obedecer, peguei o violão e fui. Toquei, foi uma ótima noite, recebi o cachê (dobrado) e fui devolvido a minha casa. Este era o Elias, naquela noite, por alguma razão o músico escalado faltou e como o Nós e Elis não podia ficar sem atração o Elias dava um jeito.   

O Nós e Elis era a urgência da expressão, o Elias era a urgência da ação, tão urgentes que foram embora muito rápidos. Saudades. 



Feliciano Bezerra (Fifi)
em Nós & Elis: A gente era feliz - e sabia
Organizado por Joca Oeiras

RIO SECO, Clóvis Moura




         Cemitério de peixes enterrados
no areal ardente e transparente,
pedras que furam os pés dos caminhantes
marcaram a transferência dos sedentos.

         Pedaços de memórias marulhantes
ainda chegam à noite nos seus ecos
e roteiros de barcos são fantasmas
na memória de luas macilentas.

         Há no sol que caustica as suas curvas
um sádico desdém por suas margens
que hoje se fundem ao leito que líquido.

         As carcaças de tíbias e caveiras
de bois marcam a distância do mistério
e o suor é sua linfa derradeira.



Clóvis Moura
em Flauta de Argila (1992)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

TERESINA | GENTE BOA, A. Tito Filho




DONDON, repórter, redator, tipógrafo, revisor, diretor, impressor, vendedor, proprietário do jornal "O Denunciante", noticioso, crítico, censor de costumes, espinafrador de políticos e administradores. Um dia os poderosos do momento consideraram louco o jornalista e vingativamente o puseram no hospício. Quando saiu, pensou-se que recuaria nas censuras e espinafrações. Desassombrado, reapareceu mais valente, sem que lhe faltasse o esclarecimento identificador do parafuso frouxo: "O dono deste órgão esteve recolhido ao asilo dos doidos, onde passou dez dias, seis por conta do governo e quatro por sua própria conta". Exerceu ainda o oficio de vendedor de feixes de capim em lombo de jumento. Três animais ensinados. De acordo com a voz de comando de Dondon, os jegues seguiam pela direita, pela esquerda ou efetuavam alto. Dava gosto ver o comandante pelas ruas, calças sungadas até os joelhos, alpargatas vistosas, camisa de manga arregaçada, oferecendo capim aos burros de Teresina.

MARIA SAPATÃO, negra gorduchona, beiços grandes, dentes alvos, peitões caídos, pernas fortes, barriguda e bunduda pezões nos sapatões famosos, enfeitava-se de um dilúvio de voltas baratas no pescoço, boa dúzia de pulseiras nos braços roliços, anéis pelos dedos das mãos, até no polegar. Era o toque de nobreza idiota passeando as ruas.

JAIME DOIDO, dos mais acatados birutas da cidade. Famoso cabo de eleições da antiga União Democrática Nacional, a famosa ODN como a apelidava a chacota dos adversários. Não gostava de dinheiro muito. Dinheiro só de pouquinho. Dinheiro muito fica dono da gente - filosofava da forma de bom lelé da cuca.

AVIÃO, dos citados, o único que ainda não se foi desta para melhor vida. Risonho. Põe caixa enorme de papelão na cabeça e sai a enchê-la de quanta besteira arrecada pelas calçadas. Aprecia encontros noturnos com perus em quinta de casa alheia. Quando o procuravam, devolve a ave que morre na véspera. Vive a imitar velhos filmes e seriados de aviação:

- Onnnn... onnnn... onnnn... onnnnn - acompanhando os roncos fanhosos de movimentos ondeados da mão direita espalmada, como se estivesse em reproduzir as piruetas de heróis cinematográficos à procura dos homens maus.

E avião faz de mocinho, indicador apontando, firme, como revólver de balas sem conta. e ele:

- Morreu, bandido covarde... tá... tá... tá... tá...

Representações nas vias públicas. De graça.



via Jornal O DIA
em 20 de agosto de 1989

MENINO DE RUA, V. de Araújo




Em flagrante denúncia,
aquela criança sem teto,
sem nome, sem pai...
com saltos mortais
escreve sua história,
enquanto banha despida
nas águas poluídas
das fontes luminosas.



V. de Araújo
em POESIA TERESINENSE HOJE
Teresina: FCMC, 1988

15.2.16

DESDE SEMPRE, Elias Paz e Silva


no cotidiano da cidade
o dia eterno se inaugura
alegre rumorejar de flores


Elias Paz e Silva
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

3.2.16

PESADELO ATROZ, Nogueira Tapety




Mal sabe ela que todo esse desregramento
é o véu sob o qual minha tortura oculto,
Pois quem vive como eu de tormento em tormento,
Necessita viver de tumulto em tumulto...

O que eu busco ao bordel, é a paz do esquecimento,
Mas na noite do vício em as mágoas sepulto,
Como um raio a luzir, de momento a momento,
Fere-me o pensamento o clarão do seu vulto.

Foi o vício o recurso extremo, o último apelo,
Que lancei, torturado, ao rumores do mundo,
Para me libertar deste amargo desvelo.

E quanto mais me excedo e em rumores me afundo,
Mais se arraiga em minh'alma este atroz pesadelo,
Este afeto infeliz cada vez mais profundo.


                               Teresina, 1915



Nogueira Tapety
em Arte e Tormento (1990)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

"Lucidamente", Chico Castro




Lucidamente
te encontrei Help pela cidade
foi a maior felicidade
a maior camaradavagabundagem.

Sua avemente
você me deixou
show
show
muito louco
louco
louco.

Anda menina ama
deixa o fio teu riso passar
passarinhar passarinhar passarinhar.

Suavemente
luciacidamente
eu voo.



Chico Castro
em O Livro da Carona 
Teresina: Edição do autor, 1994

PONTE WALL FERRAZ, Guardia




Vou pela medida da velocidade
Onde rola pedra de dureza grave
Onde a gravidade puxa pro abraço
Vou pelo caminho em que tudo move
Onde o vento sopra um calor de lava
Onde a morte quer desvirginar a alma

Vou surfando trem na hipervia
Nessa guia sigo viagem
Vou surfando trem na hipervia
Tempo adentro peço passagem



(...)



Canção do segundo LP da Guardia. Gravado entre 2014 e 2015 por Jan Pablo e Cavalcante Veras na Canis Vulgaris Records. Produzido por Jan Pablo e Cavalcante Veras. Mixado e Masterizado na Canis Vulgaris Records por Jan Pablo.



Guardia / Imperfei (2015)
Jan Pablo e Cavalcante Veras
Canis Vulgaris Records

2.2.16

II OS DIAS, H. Dobal




Sobre as águas de um rio onde vareiros
silenciaram suas mágoas.
Sobre outro rio cantado
por lavadeiras,
e o riozinho proclamado
pelos buritizeiros,
sobre os brejos sem nome
onde os riachos começam,
sobre todas as águas
o espírito perene.

Sobre o espírito das águas
que memoraram os dias,
sobre um rio perdido onde os bichos do mato
beberam o fim da tarde,
sobre um vale pastoral onde os rios pensam
sobre a música de vida
dos rios reduzidos a um nome
                                         PARNAÍBA
sobre os rios plenos,
os dias consumidos.



H. Dobal
em O DIA SEM PRESSÁGIOS
Rio de Janeiro: Editora Artenova Ltda. 1969

PASSEIO PELA CIDADE DO SOL, Raisa de Caldas Castelo Branco




Sentada no banco da Praça da Bandeira
o vento todo precipitado
moldava as palavras
derramadas sobre a folha do Caneleiro.
Estiquei os dedos até agarrar
a outra ponta do tempo, e
uma gota de orvalho respingou
no canto norte da cidade.
Dois rios se uniram alegremente.
E o espaço nu e tímido,
agora escorria entre linhas
um quente marrom-esverdeado.
Aceitamos o convite.

Sutilmente
nos traços suaves do Mestre -
agarrei o sol intenso aderido ao sorriso
da senhora do lenço macramé.
E a luz que se esvaía dos poros
fez a alegria pertencer
à nervura sinuosa da folha.
Da ponta sobre o papel.
Das flores na cerâmica azul.
Do boneco Crispim
sobre a estante de madeira cor de cajuína.

Entretanto,
foi de tanto pousar no olhar do povo acolhedor
que a vida tomou as palavras pra si,
E eu, sentada no banco da mesma praça,
vislumbrei o seu mergulho eterno,
ziguezagueante,
sob o céu de Teresina.



Raisa de Caldas Castelo Branco
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

1.2.16

O SILÊNCIO DA "CARMINHA", Luiz Brandão





Agora a eterna e inseparável companheira está só, guardada na pequena e acolchoada caixinha que ele cuidava como o berço de uma criança. "Carminha” não pode entender a súbita separação e a ausência daqueles dedos ágeis que a tocavam elegantes e delicadamente. Também não tem mais a presença dos lábios que a sopravam, às vezes suave, às vezes freneticamente para produzir as mais diferentes e perfeitas notas, numa completa sintonia entre o animado e o inanimado.

“Carminha“ é o nome da flauta de Netinho, o talentoso músico de São João do Piauí que faleceu, prematuramente, na sexta-feira passada, 22 de março, mas cujo nome já está imortalizado em várias canções que compôs e nas que ajudou seus companheiros a compor.

Irrequieto, Netinho da Flauta não teve paciência para ficar nos bancos da universidade, o que talvez tenha sido uma percepção de que sua passagem por aqui não fosse longa. O primeiro instrumento foi-lhe dado pelo pai. Autodidata, em pouco tempo descobriu sua verdadeira vocação e se tornou conhecido no meio artístico por dominar, como poucos, os sons que saiam da sua “Carminha”.

E ele conseguiu demonstrar seu talento nos tempos do Grupo Candeia, do Grupo Varanda, em apresentações nos bares como “Nós e Elis”, no Theatro 4 de Setembro, em praças, em penitenciárias, nas casas do amigos e nos botecos..

A “roça” e o mar eram seus lugares prediletos. Além da música, a labuta com a terra e com os animais eram ocupações preferidas, até porque se considerava um verdadeiro representante do sertanejo, do homem do campo. E era verdade! Netinho se emocionava, tocava e cantava com alma as músicas que falavam coisas do sertão, do nordestino, embora fosse um defensor da ideia de que não existe música de um lugar só. Ele costumava dizer que “a música é universal, tanto faz do sertão do Piauí quanto do Japão. A diferença só está na qualidade”.

Elétrico, o DA Flauta facilmente conquistava a simpatia das pessoas com sua alegria e um jeito espontâneo de agir, criando expressões e palavras que rapidamente passavam a fazer parte da linguagem dos que conviviam com ele. Onde chegava não passava despercebido, retorcia o pescoço, amarrava o cabelo em rabo de cavalo e longo partia para a lorota. Quando se sentia sem espaço, “saia por riba do lajeiro”.

Netinho deixou muitos amigos e admiradores. Era um “cidadão do mundo” como ele mesmo fazia questão de dizer. “Minha casa é o meu chapéu”. Esse espírito aventureiro viajou o Brasil afora, fazendo shows e parcerias com músicos renomados como Xangai, Elomar, Vital Farias e muitos outros.

Apesar de seu enorme talento e da grande facilidade em se relacionar, Netinho da Flauta não passava muito tempo no mesmo lugar. Ao sentir que a situação não estava sob seu controle, avisava logo aos amigos “vou vazar”, ou então “meu irmão, vou decepar os testículos do miau, ou seja, vou capar o gato”. Aí pegava sua Carminha e sumia. Com ele não tinha “dois tempos’ e as dificuldades, essas “comia com coentro e acebolado”.

Tão apegado às mulheres, DA Flauta vivia mudando de lagartixa. Quando pensava na liberdade resolvia “a parada” rapidamente. Era admirador do “Vagal”, o malandro honesto, sujeito esperto. Para Netinho ninguém morria, “pegava o eterno”, o ônibus para o além. Certa vez lhe perguntaram se um amigo comum era diabético, pois passara mal numa festa. De pronto respondeu: “- Não, ele é diambético, fuma uma diamba danada".

Por essa maneira diferente de enfrentar o mundo e se relacionar com as pessoas, muitos “chegados” de Netinho ainda não conseguiram entender o momento que estão vivendo. Não se conformam com o silêncio da “Carminha”. Alguns não acreditam que aquele moço forte e corajoso tenha morrido tão repentinamente.

A esses amigos cabe apenas mandar um recado ao DA Flauta: todos nós achamos que você “pegou o eterno” muito cedo. Mas não há problema, porque qualquer dia “a gente se encontra pra uma outra folia”. Quieta!



Luiz Brandão
em DIÁRIO DO POVO
em 26 de março de 2002

ELIS... & NÓS, Cláudia Brandão




Elis, sozinha, já ocupava um lugar especial no meu coração, por sua voz espetacular e por sua capacidade única de dar vida às canções que interpretava. Aprendi a gostar dela com um dos meus irmãos mais velhos, o Iglesias. Quando,  à Elis, juntou-se o “nós”, no famoso bar da zona leste, meu encantamento foi imediato, não só pelo nome, mas pelo clima de descontração e intimidade com a música de qualidade, marca registrada da casa.

Ainda adolescente, começando a cursar Comunicação, passei a frequentar o lugar e a incorporar aquele espírito descontraído de papos sempre animados, sem pressa alguma, quando podíamos discutir desde as mais simples questões do cotidiano às teorias mais complexas sobre a formação do universo. O tema e a conclusão da conversa era o que menos interessavam. Bom mesmo era ficar ali, ganhando horas ao sabor do acaso, sem nenhum código preestabelecido ou formalidade de qualquer natureza.

Em pouco tempo, o Nós e Elis virou a “praça” dos tempos modernos. Lugar de encontro para quem queria ver novos e velhos amigos e saber o que estava acontecendo na cidade. Era como uma confraria, formada por pessoas que gostavam de arte, cultura e “causos”.

A proximidade física com o pequeno palco onde os artistas se apresentavam fazia com que nos sentíssemos parte do show. Dava até para interagir com os músicos, pedindo a canção da nossa preferência. Tudo atendido na maior cordialidade possível. Lembro do Geraldo Brito, do Netinho da Flauta, da Laurenice França, do Cruz Neto e de tantos outros artistas piauienses que batiam ponto assiduamente por lá.

O lugar era apertado, mas nem por isso desconfortável. Pelo contrário, fazia parte do charme do bar o número reduzido de cadeiras, porque assim circulávamos de um lado a outro, permitindo que todo mundo pudesse encontrar todo mundo. E, cada vez que esbarrávamos em algum conhecido, era motivo para um brinde, uma celebração especial.


Ao pé do balcão, sob a luz do luar, começaram grandes amizades, alguns namoros e, dizem, até casamentos. Também ali se perderam grandes amores. Mas todo bar que se preze precisa mesmo ser testemunha de histórias de amor, tristes ou alegres. E com o Nós e Elis não foi diferente. A mais triste de todas, porém, foi o anúncio do fim do bar. Perdíamos a nossa referência, nosso templo de lazer, ficando em nós apenas a saudade de um lugar em que a boa música embalava nossos encontros, sob o olhar silencioso da pimentinha Elis.



Cláudia Brandão
em "No Nós & Elis: A Gente Era Feliz – e sabia"
Teresina: Gráfica Halley, 2010
Organizado por Joca Oeiras

29.1.16

GARAPEIRA ESTUDANTINA, José Ribamar Garcia


                                                                     "Filomena cadê o meu / Filomena cadê o meu
                                                                     O meu beijo gostoso / Que você prometeu."


A letra dessa canção, tocada na amplificadora instalada em frente à Merenda, tinha esse refrão, que papai acompanhava num assovio quase inaudível. E, quando não havia freguês, ele ficava na porta da garapeira, com a mão esquerda apoiada no portal e o corpo um pouco inclinado, relaxado, apreciando o movimento da rua, que chamava de cinema. Dali observava também o filho, que se distraía no velocípede, circulando o quarteirão. Este velocípede fora um presente ao menino por ter tomado uma série de injeções sem fazer escândalo. Palavra sua era honrada, custasse o que custasse.

- Macho, mesmo, o meu filho!

A sabedoria: louvar as boas ações e rebater as más no momento exato, de forma que não ficasse na criança qualquer dúvida ou sentimento de injustiça.

A penúltima casa comercial a desaparecer naquele trecho da Rua Coelho Neto. Sobreviveu por duas décadas, o suficiente para marcar presença na vida da cidade. A Casa Carvalho na esquina, depois ela - Guarapeira Estudantina -, o Cine São José, outra garapeira, que não chegou a ser sua concorrente, tendo logo fechado as portas, e a farmácia Botica do Povo no fim da quadra. Do outro lado da rua, a Rádio Difusora, onde, aos domingos pela manhã, havia um programa de auditório com o animador Rodrigues, apresentando cantores, calouros e distribuindo prêmios. Uma espécie de Silvio Santos piauiense. A Merenda, misto de bar e lanchonete, vendia uns pastéis quentinhos, saborosos, e uma abacatada forte, gostosa. A amplificadora ficava à sua porta, no alto dum poste, repercutindo as músicas tocadas na vitrola (havia dezenas delas pela cidade). No Cine São José, o porteiro me deixava entrar de graça, mas não entendia nada do filme, devido à pouca idade. E não me aquietava, saía a todo instante para contar a papai o que via na tela. Em seu lugar surgiria o armazém, também São José.

O prédio era simples, comum, espaçoso, com duas portas de entrada. E o nome garapeira estudantina escrito à tinta na fachada. O balcão em forma de "L". Ao entrar, se via tudo: a prateleira tomando a parede de ponta a ponta, a engenhoca, montada sobre um tripé de ferro fixado ao chão, bem visível para que o freguês visse o caldo descer fresquinho das moendas, que um dia triturou o dedo indicador do proprietário, deixando-lhe a marca eterna.

- Quantos dedos eu tenho nesta mão (a direita)? - perguntava ao filho.

- Quatro e meio.

E ele ria, com aquele riso franco. Seguindo, um armário pequeno, onde se guardavam documentos e o revólver, Smith and Wesson, calibre 32. O depósito de pães, comprado na padaria da Praça do Liceu. Tudo limpo, asseado. Daí o sucesso com a freguesia, vasta, variada. A casa continuava para os fundo, com outros compartimentos, destinados ao armazenamento da cana-de-açúcar. Ao lado, o terreno vazio, usado para a guarda o bagaço e, também, para o plantio de mamoeiro. O frutos eram colhidos de vez, cortados nas extremidades e riscado em vertical para escoar o leite. Assim, amadureciam sem amargume. Amadurecidos, eram expostos, à venda, sobre o balcão. Outra fonte de receita, afora a do vinagre. Este preparado da cana estragada, após um processamento simples, mas demorado, que despendia dias e requeria paciência. 

A cana era entregue na porta, trazida por velhos caminhões. Nem sempre havia fornecimento regular deste produto. Em alguns meses do ano, escasseava, chegando a faltar. Era um tormento, pois, sem ele, não tinha como trabalhar. E, para evitar a a paralisação, papai corria o interior, em longas e exaustivas viagens, a fim de comprar diretamente do produtor, que, nessas circunstâncias, cobrava acima do normal. O custo saía mais caro ainda por causa do frete. Enquanto isso, para não se parar, vendia-se refresco de abacaxi ou de coco. Mesmo assim, a demanda diminuía porque o pessoal preferia mesmo era o caldo de cana. Gelado, natural (sem gelo) ou misturado, ingerido com pão, massa grossa ou fina. Era um lanche barato, nutritivo. Diziam, inclusive, que servia para aumentar o leite materno de quem amamentava, assim como para se certificar da cura da blenorragia, pois, se após um copo de garapa não descesse mais o líquido, era porque se estava definitivamente curado. Se isso tinha base científica ou não, é outro assunto. A crença havia.

O seu dia começava cedo. Abriam-se as portas às seis da manhã, antes já se tendo apanhado os pães na padaria. O empregado chegava às sete, indo buscar o gelo na fábrica da beira do rio de propriedade do Sr. Joaquim Nelson. Trazia duas barras, que eram serradas em pedaços colocados num recipiente que os conservava por todo o expediente, encerrado às nove da noite, quando se lavava a casa. A cana, antes de ser moída, era raspada.

Sábado era o dia das esmolas. E aparecia pedinte de todos os cantos. Formavam até fila que dobrava a esquina da Casa Carvalho. Cada um ganhava uma caneca cheia de garapa e um pão. A maioria já conhecida. Dentre eles, estava sempre o "Doutor", mais débil mental que mendigo. Tinha mania de ler anúncios, o que fazia de maneira engraçada, soletrando pausadamente cada sílaba.

Pedia-se para que lesse, e ele não se fazia de rogado. Olhava os cartazes pregados nas paredes e caprichava: "bri-lhan-ti-na Glos-to-ra, Bi-o-tô-ni-co Fon-tou-ra". Pobre "Doutor", tão manso, tão inofensivo, tão idiota. 

Na verdade, o fim da Garapeira Estudantina começou com a doença de papai. Bastou que este adoecesse para que ela entrasse em decadência. A freguesia foi sumindo aos poucos. E o novo proprietário, ignorando os segredos do negócio, não pôde evitar a sua queda. O fechamento de suas portas foi, sem dúvida, o final de uma época naquele trecho da cidade.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

ESTIGMAS, Carvalho Neto




devolva
meus sapatos rotos
que já não tenho estradas sem fim.

devolva o ciclo dos ventos
onde jovens valsavam suas esperanças
e risos
ao sabor das águas e dos mitos
flores de beira rio.

devolva as escrituras
não as do mar morto
as gravadas na cerâmica
bela e frágil
do poti velho.

devolva o princípio mágico
o verbo, o poema.



Carvalho Neto
em REVISTA PRESENÇA
Ano XXI, número 35, Teresina, 2006

EVOCAÇÕES, Lucídio Freitas


I


Como é bom recordar... Lembrando, a gente
Como num sonho de ouro se ilumina.
Recordação é fonte, alta e divina,
De onde brota o consolo do presente...

Recordar... reviver o que a neblina
Do tempo encheu de névoas, de repente...
Voltar atrás, rever, serenamente,
A alma e a cinza de um bem que não termina...

Como é bom recordar! Prolonga a vida
Vivendo os dias mortos, revivendo
Nas sombras outra sombra ainda querida...

Recordo. O pensamento esvoaça, a esmo.
Recordo, e recordando é que eu vou tendo
A infinita consciência de mim mesmo...



Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

28.1.16

CARTÃO POSTAL 80, Chico Castro




Espirrei:
Lixo da mais pura aspirina.
Sou:
De papel passado em cartório,
que tal?

Um homem urbanizado
entre prédios, luzes e avenidas
carros-galos
som sobre som sobre sonho
ufa:
não me ouço mais
nem gritando comigo mesmo.



Chico Castro
em O Livro da Carona 
Teresina: Edição do autor, 1994