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5.11.11

CHAPADA DO CORISCO, Raul Ney da Silva


De um lado o Parnaíba, o grande rio
Das graças, a correr, veloz indigente;
Do outro o Poti, num doce murmúrio
A soltar seu queixume atroz, pungente.

E Teresina, o berço meu macio,
Onde nasceu todo o meu sonho ardente,
Vejo agora através de um balbucio
De saudade que mata a alma dolente.

Ai... noites de luar... São Benedito!...
A igreja a branquejar sobre a colina,
O meu sonho de amor hoje proscrito!...

Noite que amei, ai! Sonhos de outra idade!...
Como que vos quero, minha Teresina,
No presídio sem fim desta saudade!


Raul Ney da Silva
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.) 
Teresina, 2006

3.11.11

VIR VER OU VIR, por Torquato Neto




a coroa do rio poti em teresina lá no piauí. areia palmeiras de babaçu e
céu e água e muito longe, depois, um caso de amor um casal uns e outros.
procuro para todos os lados - localizo e reconheço , meu chicote na mão e
os outros: a hora da novela o terror da vermelha
o problema sem solução a quadratura do círculo o demônio a águia o núme-
ro do mistério dos elementos os quintais a minha terra é a minha vida!
o faroesteiro da cidade verde
estás doido, então? (sousândrade)
ela me vê e corre, praça joão luís ferreira
esfaqueada num jardim
estudante encontrado morto

ando pelas ruas tudo de repente é novo para mim. a grama. o meu caso de
amor, que persigo, êsses meninos me matam na praça do liceu. conversa com
gilberto gil
e recomeço a
vir ver ou
aqui onde herondina faz o show
na estação da estrada de ferro teresina-são luís um dia de manhã
ali
onde etim é sangrado



TRISTERESINA



uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques
eis tudo. observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto
saio, uma vez feriado de morte e me salvei
o primeiro filme - todos cantam sua terra
também vou cantar a minha



VIAGEM/LINGUA/VIALINGUAGEM



um documento secreto
enquanto a feiticeira não me vê
e eu pareço um louco pela rua e um dia eu encontrei um cara muito legal
que eu me amarrei e nós ficamos muito amigos eu o via o dia inteiro e a
poucos conheci tão bem.

VER

e deu-se que um dia eu o matei, por merecimento.
sou um homem desesperado andando à margem do rio parnaíba.

BOIJARDIM DA NOITE

êste jardim é guardado pelo barão. um comercial da pitu, hommage, à sa-
úde de luiz otávio.
o médioc e o monstro. hospital getúlio vargas. morte no jardim. paulo josé, meu primo, estudante de comunicação em brasília, morre segurando bravamente seu rolling stone da semana

sol a pino e conceição.

VIR
correndo sol a pino pela avenida

T E R E S I N A

zona tórrida musa advir

uma ponta de filme - calças amarelas
quarto número seis sete cidades



Torquato Neto
em Gramma, nº 2
Teresina, 1972



22.10.13

Memória (Caminhos de Estrelas), de Menezes y Morais




Vênus incendiava teus cabelos naquela noite
em que caminhávamos refletidos nas águas
margens assassinadas do rio poti
e no mangal
eu viajei na constelação dos teus olhos
e te dizia
a vida vai além daquilo q a gente imagina
e a liberdade pode estar ali
na próxima esquina
e sobre os trilhos noturnos
convergendo olhares favelados
com a tua mão esquerda dentro da minha direita
sentimos o fogo estrelar daquela noite azul
no céu de teresina
e o vento soprou leve
sussurrando em tua boca
entre o rio e a cidade existe um caminho
onde o tempo cicatriza toda dor



Menezes y Morais
em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina/Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


11.2.12

RESISTENCIAL, Francisco Miguel de Moura


Teresina, oh Chapada do Corisco,
sofro de ver teu corpo de pobreza,
desfolhada no meio da luxúria,
quando a chuva desmancha-se na areia.

Sem serras e sem montes, te dominam
os demorosos vales dos meus rios
Parnaíba e Poti, líquidas mágoas -
- Piauí danado, sem correr.

Vizinho, o Maranhão é a nossa vista,
em verdes copas de palmeiras verdes.
Este consumo de calor - aqui.

Do cearense, irmão mais sertanejo,
sofrido em sol e seca e serra, houvemos
este exemplo feroz: de resistir.


Francisco Miguel de Moura
em 145 anos: Teresina cidade futuro
Teresina: FCMC, 1997

6.11.13

Duas perguntas para o Menezes y Morais, por Rodrigo M Leite




Rodrigo M Leite: O que foi o movimento "Viver Teresina" que aconteceu na década de 70 em Teresina, Piauí?

Menezes y Morais: O Movimento Viver Teresina foi uma tentativa de chamar atenção dos artistas em geral, especialmente dos poetas, para que incluíssem em sua produção a nossa amada "Cidade Verde" como musa ou referência. Uma tentativa de levantar a autoestima da cidade, como você faz no "A Musa Esquecida". Eu lancei a ideia e logo depois migrei do Estado, e, retornando em visita um ano depois, fiquei tão feliz, porque o poeta William Melo Soares dera continuidade à campanha, lançando um livro de poesia com a informação "da coleção Viver Teresina". E vi duas pichações em muros do centro da cidade "VIVER TERESINA". Achei o maior barato.


Rodrigo M Leite: Li aquela sua entrevista feita por Wilmar Silva, do portal Germinaliteratura. Nela você comenta que veio de Altos para Teresina e que por volta dos 18 anos a sua poesia "ganhou a dimensão do real". Então, com 18 anos em 1969/70, quais lugares você frequentava em Teresina? 

Menezes y Morais: A minha poesia mudou por dois motivos: primeiro, mostrei grande parte para uma professora, ela disse que gostou muito e comentou: "Mas você, tão novo, tem tanta experiência...". Eu rasguei os poemas que ela elogiou, porque eram mentirosos, ficção, eu não tinha vivido nada daquilo, apenas imaginado. E depois, fui convidado para editar o Suplemento de Cultura do jornal O Dia: a experiência diária, cara a cara, com a realidade, consolidou a mudança: só escrevo sobre aquilo que eu vivo. Eu andava na cidade inteira, amava andar a pé (até hoje). Especialmente nos finais de semana. É claro que isto não era possível no horário de pico do sol. E nos finais de semana, era banho de rio e pescaria (de anzol ou linha de mão, pra pegar arraia), no Rio Poti, com amigos, família.



17.10.13

TERESINA DO MEU TEMPO (A PRATA DA CASA)




Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo - é bom que se saiba - parece não terem nada a dever aos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As "Horas de Arte", festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais - a prata da casa - em geral elementos próprios da sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 no amparo, ora à noite, no Teatro 4 de Setembro, ouviam-se solos instrumentais - piano, violino, flauta, bandolim, violão - números de canto e dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: "A tesoura", "As mãos", "A luz", "As estrelas". Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e finalmente perdida, sob o título "O elogio da lágrima". Talvez influenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícia, por constituir verdadeira raridade bibliográfica.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais "Clube Recreio Teresinense", "Os Amigos do palco", "Os Talianos" e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Teatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas "O bicho", "Frutos e Frutas", "O Coronel pagante" e "Jovita", todas de Jônatas batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os "Amantes da Cena Viva", grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama "Mariazinha", também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfiou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelava no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zila Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violonistas; Durcília Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam música tocado valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Radagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingo à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! a poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizades conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namorados que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda...Lourdinha...Maria Luísa...Maria... Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado: quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo: nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela jóia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no final da jornada, acabo de perder. Mas, com licença: o assunto é outro.

x
x  x

A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela a oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão influído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso "Teresina meu amor":


RONDÓ À AMADA AUSENTE

Não quero flor nem brilhante,
Quero carinhos de amante
Para o mais fino louvor
A quem já nasceu prendada
- A ti, minha namorada,
Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos,
Logo nos apaixonamos,
Tu - princesa, eu - trovador.
Atirei-me nos teus braços,
Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,
Não perdeu tempo em conquista,
Já nasceu triunfador.
- Formosa rosa trigueira,
Flor da raça brasileira,
Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,
E outro amante não tiveste
Com mais paixão e calor.
Em noites de serenatas
Dediquei-te mil oblatas,
Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,
Cantasse o céu, o universo,
Tinham meu mel, tua cor.
Vivi de ti impregnado,
- Garotão apaixonado,
Teresina meu amor...

Assim vivemos, querida,
A quadra melhor da vida
Que me deu Nosso Senhor.
Mas em busca de outros ares,
Perdi-me noutros lugares,
Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,
Envelheci de repente,
Do azar da sorte ao sabor.
Tu continuas menina,
Áurea estrela matutina,
Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,
És muito namoradeira,
De amantes possuis um ror
Sei de um, escritor de fama,
Que em belo livro te chama
“Teresina meu amor".

Vivo morrendo de ciúmes,
Da saudade subo aos cumes,
Desço aos socavãos da dor...
Mas não te esqueço um momento,
Vives no meu pensamento,
Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,
Mando-te um montão de beijos,
Pois te amo seja onde for.
- Minha cidade menina,
Minha linda Teresina,
Teresina meu amor!
em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

15.4.20

Entrevista com Elio Ferreira e Lisete Napoleão - Revista Amálgama #1




Publicado originalmente em amálgama #1, janeiro de 2002


Parte 1

Entrevistados por Hermes Coelho, Adriano Lobão Aragão e Sérgio Batista, numa manhã de sábado, diante de lentas águas do Rio Poti, o poeta Elio Ferreira e a professora Lisete Napoleão ponderaram sobre literatura piauiense, poesia, hip-hop, folclore, bumba-meu-boi e o que mais apareceu na conversa. Elio é professor de literatura na UESPI, pesquisador da cultura e resistência negra no Brasil e no mundo, autor do livro de poemas O Contra-lei, já em sua segunda edição, onde mistura do hip-hop à poesia marginal. Lisete é Pró-Reitora de Ensino na UESPI, professora de literatura piauiense e pesquisadora de nosso folclore. Escreveu os livros Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto, Zamba e Histórias que Ouvi. Entre um gole de água mineral para o Elio e uma cervejinha para Lisete, perdidos no bairro Santa Sofia, sob pés de “segura-ela” e mangas, deu-se o interrogatório.

(...)

Amálgama - Quais as características próprias da literatura piauiense?

Lisete - A característica que a gente vê, que a gente tem, no Piauí, é ter esse amor pelo Piauí. Porque são raros os escritores que deixam de falar. O Da Costa e Silva, sempre que falava, era telúrico mesmo. A marca maior deles, que eu vejo, é que sempre que eles usem temas universais, estão sempre voltados para o Piauí. Ao nosso Piauí ou à sua cidade natal.

Elio - Dentro do grande, do nacional, deve existir identidade. Eu sou do Piauí, mas eu sou do universo, eu sou cidadão do mundo. Então meu sentimento daqui vai partir também para o que eu tenho de universal e de humano, que existe em toda parte.

Lisete - Dentro da auto-estima impor respeito e espaço.

Elio - O Piauí não está isolado. Porque o mundo ocidental... muita coisa que se escreve aqui vem do ocidente. Chega aqui e se adapta a uma outra realidade com elementos complementares da arte e da mentalidade de um povo, de um lugar em que está se vivendo.

Lisete - Nós sabemos o quê? Que nós temos toda uma influência de Portugal, que foi de onde nós passamos muito tempo ligados. Portugal, por sua vez, tem toda sua influência de onde? Do resto da Europa, onde o Garrett [Almeida Garrett, poeta e dramaturgo português do romantismo] e todo o pessoal iam e retornavam à Portugal... o próprio Bocage [poeta português, árcade pré-romântico] deixou essa influência para nós, que por nossa vez, à medida em que fomos aprendendo a caminhar, nós fomos absorvendo essas características e compondo nossas músicas, nossas poesias, dentro da nossa realidade.

Elio - Toda literatura dialoga com literaturas anteriores, como na própria vida existe esse elemento. O diálogo com conhecimentos anteriores. Hoje, a negritude não pode ficar descartada numa situação como essa. Portugal veio, mas tem-se de Portugal como se tem do índio, como temos do negro e de outros povos. E o momento da literatura autenticamente brasileira é quando a gente começa a perceber a dominação, a perceber que temos que pensar com a nossa própria cabeça, por nosso próprio mundo. Estabelecer que a realidade de Portugal veio até aqui, mas temos de Portugal como temos também da África, do índio. Então a gente tem que ver de outra maneira. Ver com os nossos próprios olhos, onde está a questão de identidade. E o que vai marcar a literatura brasileira hoje, a literatura do mundo, é pensar com o olhar do dominado. Então não se pode passar a vida inteira pensando como europeu. Se tem essa estrutura, a gente modifica isso. A gente fala outra coisa...

Lisete [interrompendo] - Ver o que eles têm e construir a nossa realidade.

Elio - É claro. No mundo e na literatura, as culturas dialogam com outras. Deve haver um mundo miscigenado.

Amálgama - A antropofagia na prática?

Elio [gesticulando muito] - A antropofagia da prática. O que é que eu tenho de negro? Eu tenho de negro isso. O que é que eu tenho de índio? Eu tenho de índio isso. O que é que eu tenho de europeu? Eu tenho de europeu isso. Então são as coisas que eu preciso viver nesse momento.

Lisete - O que nós, brasileiros, temos disso...

Elio - Agora eu, como negro, assumo hoje mais o quê? A questão da negritude. Porque essa é minha maior herança.

Lisete - Embora essa face gritante seja do negro, você não pode negar o que tem do índio e do branco.

Elio - Renegar o índio nunca! A minha ancestralidade também está no presente. Eu fiz um estudo da minha ancestralidade e descobri que a minha bisavó foi pega "a dente de cachorro", que era uma índia. Temos que resgatar esses nossos valores que foram apagados. Temos que resgatar isso para que tudo conviva em pé de igualdade. Essa relação de diálogo e respeito a todas as culturas e a todas as religiões. Isso é o que se busca. Por que falou-se em negritude e na cultura do índio? É para que sejam respeitadas num mesmo nível que o branco. O branco é branco, e é bonito. O negro é negro, e é bonito. O índio é bonito. A cultura do índio é tão importante quanto a cultura do europeu. O que a literatura brasileira faz nos últimos tempos? É buscar uma linguagem aproximada da que o povo fala, quebrar valores também. Não podemos passar o tempo todo discutindo os valores europeus. O que há de Piauí aqui? O que o pessoal do Piauí está escrevendo? A gente deve entender o Piauí, esse conceito, a partir do que se tem escrito. O cordel é uma marca forte no Piauí. E o que marca o Brasil nesse cordel é a oralidade do poema. O poema para ser gritado.

Lisete - Devemos nos arrancar desse marasmo, porque ele é analisado na Sorbonne e no exterior, mas nós conhecemos pouco e trabalhamos pouco o cordel. Até que a nossa Universidade Estadual começou a resgatar e tentar fazer um trabalho junto ao próprio Pedro Mendes Ribeiro, que todos os anos faz um encontro internacional de cordel aqui no Piauí.

Elio - O que precisamos resgatar é a nossa história. Resgatar a memória do Piauí. Essa questão da piauiensidade é importante. Temos que nos identificar para nos assumir como nós somos e conquistar um espaço também fora daqui. Porque o que acontece é isso aqui: nós somos a periferia. Assim como o negro é tido como periferia, assim como o índio é tido como periferia, essas culturas... E o Piauí em relação ao Brasil é periferia...

Lisete [protestando] - Ainda é periferia. Ainda...

Elio - Considera-se periferia. Estamos aqui num isolamento. O Piauí ainda é tido como o estado mais atrasado, mais pobre. Ainda é visto assim. Então voltar a nossa visão para nós mesmos é importante. O amor próprio, e amar aos outros, para começar a conquistar espaço fora. Agora tem-se que fazer alguma coisa aqui.

Lisete - Mas já estamos melhorando, já há um avanço. A preocupação está muito maior.

Elio - Mas tem que ter investimento! Investimento cultural! Pra quem faz literatura é muito pequeno.

Lisete - É pequeno, eu sei. Mas e quando não se tinha nada? E hoje já se tem.

Elio - Mas são pequenos.

Lisete - E quando não se tinha nada?

Elio - Sim. Mas não se está nesse ponto mais. Você vai, por exemplo, ao Ceará ver a quantidade que eles investem em literatura lá. Todo dia tem gente de fora pra falar de literatura lá. O que o Piauí não faz é isso.

Lisete - Mas nós estávamos falando de produção.

Elio - Mas o diálogo pra fora é válido, porque é preciso isso para levar a nossa literatura para outros lugares. Não devemos ficar ilhados aqui. Precisamos nos comunicar com outras literaturas.

Lisete - Nós precisamos conhecer é a nossa casa. Primeiro trabalhar a nossa casa, dentro. A partir desse momento é que nós podemos ir lá pra fora e abrir as nossas fronteiras. Mostrar que nós somos bons também.

Amálgama - Elio, os seus trabalhos sobre Torquato Neto e Mário Faustino foram publicados em jornais. Como você vê o espaço dado a esse tipo de trabalho nos jornais?

Lisete - Os jornais de grande circulação você sabe que têm que ter um retorno financeiro, e esse tipo de matéria não dá.

Elio - Mas o que é que falta para isso? Onde é que está o vazio? Por isso é que o vazio é grande. Naquela época, por exemplo, quando eu fui fazer as performances de poesia de rua, é porque não havia espaço, meu amigo! O poeta se sente sufocado, então precisa de um espaço, porque falta isso num jornal. O que se faz pra publicar hoje? Eles não publicam mais.

Amálgama - O que as agremiações e academias estão fazendo nesse sentido?

Lisete - A Academia de Letras do Vale do Longá tem um espaço no jornal O Dia, onde você tem espaço pra publicar. A UBE também tem um espaço...

Amálgama - Não existe um exagerado elitismo dentro dessas academias?

Elio - Toda academia é elitista.

Lisete - Até porque há limitações no número de cadeiras.

Elio - Essa questão no Brasil hoje é uma questão de amizade. É claro que todo grupo gira em torno de interesses, ou pelo menos de visões parecidas, estéticas e ideológicas, mesmo que surjam divergências dentro do grupo. Mas a academia parece algo mais fechado ainda. Há um padrão, você tem que ser “assim” pra ter uma vaga: “esse aqui não cabe aqui porque foge dos nossos padrões”. Quando é um movimento, há mais abertura. E tem a política no meio ainda, valores morais, econômicos, políticos, que sempre influenciam na academia.


Parte 2

Elio Ferreira, por Sérgio Batista

Lisete Napoleão, por Sérgio Batista

Amálgama - Elio, como foi o episódio no qual você ficou nu durante uma apresentação em Campina Grande?

Elio - Em Campina Grande foi o seguinte...

Lisete [interrompendo, risos]- Não estava no script...

Elio - Não estava. Não havia nada premeditado. Mas é a questão do contra-lei, né? Era aquela coisa de criar um clima que dissesse da nossa angústia da época. Então a coisa foi acontecendo...

Amálgama - Foi no dia do massacre no Carandiru?

Elio - Foi no dia do massacre no Carandiru! Eu tinha visto na televisão e eu disse: que país é esse? Em que mundo nós estamos vivendo? Eu passei a viver toda a circunstância da poesia. Aquela relação de fazer o contra-lei e você incorporava não apenas o poema como um indivíduo que a poesia te fazia aquilo.

Lisete - Tu fizestes isso em sã consciência? Não tinha tomado nada?

Elio - Não, não... Isso aí é à parte... [risos]

Lisete - É muita coragem... [risos]

Elio - Mas quando você pinta a cara, você não é mais você. Parece que baixa um fogo assim, em cima de você. Dos seus ancestrais, sabe? Quando o poeta fala, ele fala por muitas vozes, não é só por ele não. É muita gente falando através dele.

Amálgama - Mas lá na hora, como foi?

Elio - Na hora, foi o seguinte, eu disse: “que país é esse onde acontece esse tipo de coisa?” E eu comecei a declamar: “eu não sou o presidente, eu não sou o governador...” aí começaram a aparecer as imagens do Brasil, um bocado de sacanagem, de miséria, de violência...

Lisete - Mas essa alucinação era real?

Elio - Era o que eu estava falando na poesia. Era uma coisa real. E eu me perguntava: “que país é esse?” Aí desci as calças e peguei no saco e mostrei pro pessoal. “Que país escroto é esse?” Aí as meninas gritavam: “professor!!!” e botavam a mão no rosto, assim, mas ficavam vendo tudo com os olhos entre os dedos... [risos]

Lisete - Viram a coisa preta, Elio! [risos]

Elio - Mas não é que você faça a coisa pra chocar. É uma coisa que acontece... A coisa foi crescendo...

Lisete - O meu questionamento é esse.

Amálgama - O que a Lisete quer saber é se você estava drogado.

Elio - Em primeiro lugar, quando eu vou para as minhas performances, eu não bebo.

Lisete - Mas, Elio, veja bem. Era um público enorme. Qual era o público?

Elio - Tinha umas cinco mil pessoas, não tinha não? Tinha não. Era o Encontro Nacional de Letras...

Amálgama - O ENEL de 1992, em Campina Grande.

Elio - Em São Paulo, na USP, também aconteceu outro lance assim, parecido. O que agredia não era só tirar a roupa. Era também o texto. Na Paraíba, quando eu ia pra praça, o pessoal começava a gritar: “eu vou comer a tua mãe, eu vou comer o teu pai...” [cantando, trecho do poema Canibal, do livro O Contra-Lei]

Amálgama - Então a poesia embriaga?

Elio - Embriaga. A poesia te envolve. Porque a poesia do contra-lei não é só o texto poético. Há a incorporação de um personagem. Viver a poesia na dimensão em que escrevo.

Lisete - Mas lá [em Campina Grande] estava o professor Elio...

Elio [interrompendo]- Não! Professor não! Professor é na sala de aula. Eu sou o poeta!

Lisete - Mas você estava representando a universidade...

Elio [interrompendo]- Não! Eu sou o poeta. O Elio é o professor lá na sala de aula. Se eu saí de lá, eu sou mais eu, eu tô rua, eu sou outra entidade.

Lisete - Se você estivesse representando a universidade, deveria ter tido a postura de professor.

Elio - Mas eu sou é o poeta. A entidade é outra coisa. O cara é administrador de empresas, ou é empresário, mas faz uma peça de teatro. Lá no palco, ele é o ator ou é o empresário? Eu tô em casa, eu estou com minha família, eu sou um pai de família. Mas se eu tô na rua falando poesia eu sou o poeta. Eu não sou mais pai de família.

Lisete - Mas se eu for a um seminário representando a Universidade Estadual do Piauí, ali eu sou a representante da universidade, eu sou a professora Lisete.

Elio - Enquanto estiver em sala de aula!

Lisete - Não. Enquanto eu estiver ali, inclusive sendo financiada com passagem paga, com estada paga pela universidade.

Elio - Mas o dinheiro não é da universidade, o dinheiro é do povo, é do Brasil...

Lisete - Mas se eu for para um teatro...

Elio [interrompendo]- Mas o meu trabalho como professor é na sala de aula.

Lisete - Você estava nu na conferência como professor ou como escritor?

Elio - Eu estava como professor e como convidado, poeta, a falar poesia! Eu estava na pauta como poeta, pra falar poesia. Eu não tirei a roupa na sala de aula. Eu tirei num espaço propício pra fazer arte!

Amálgama - A agressividade de sua poesia nasce de uma frustração social?

Elio - O que eu falo não sou eu que falo. Talvez o que as pessoas gostariam de dizer, ou o que as pessoas dizem. Para os meus poemas, eu tiro muito o que as pessoas dizem na rua. Eu sou negro, venho de uma classe social pobre, no nordeste, no Piauí, Floriano. O que você escreve é tua vida. Machado de Assis dizia que o menino é pai do homem. Eu convivi em oficina de ferreiro. Minha família era toda Ferreira, meus tios, minha mãe era flandeira, meu pai ferreiro, e eu cresci naquele som do metal e do palavrão, que quando você tá puto com alguma coisa você xinga. Então procurei alguma coisa que dissesse da angústia e do sofrimento do povo, da realidade que eu vivia. Uma maneira mais forte de tocar as pessoas.

Amálgama - E como está sua poesia hoje?

Elio - Minha poesia hoje não está mais dentro daquele tom. É um momento que você cria uma espécie de ser que você incorpora. Você escreveu aquela fase, você esgotou aquilo ali. É uma coisa de momento.

Lisete - Eu acho que houve um amadurecimento. Acho o Elio mais maduro, mais consciente.

Elio - Eu preciso dizer de uma maneira que marque o meu tempo. Uma coisa que veja o mundo com a linguagem das pessoas da minha época. Do meio em que eu convivo. Eu vivo num momento difícil em que as pessoas estão buscando se situar no mundo, num lugar ao sol, e o mundo tem que ser pra todo mundo. Por que essa grande visão na miséria total, sem acesso a escola para uns, e outros com tanto? Então o contra-lei era isso. Porque a lei estava muito errada! [bem enfático] E ainda está muito errada. E eu vivi numa estrutura que eu conhecia muito tudo isso. Eu trabalhei em repartição pública, eu nunca fui só professor, porque não dava pra comprar meus livros. Eu fui educado numa família em que meu pai era ferreiro, mas se comprava livro e tinha biblioteca em casa. Minha mãe ensinava a ler, também era professora, por isso lá em casa era cheio de gente. O "poemartelos" fala disso, e é muito de memória, porque eu pegava também muito o mito do povo. Houve um crime muito hediondo na minha cidade. O cara matou outro e pinicou todinho. O que eu sei dessa história é que aparecia o demônio na casa dessas pessoas e o cara que fez esse crime era casado com uma tia minha, e sofreu muito por isso. No "poemartelos" eu falo dessa coisa. Muito som, muito martelo. Imitar o som do ferro. Eu criei uma poesia sonora pra ser falada imitando o som do ferro.

Lisete - Hoje você usa muito o estilo do Rap, não é?

Elio - O Rap foi um momento do Contra-lei. Quando eu escrevi "O Contra-lei", não tinha nenhum contato com o Rap. Comecei a ter no final de 94. Aí o pessoal do Rap, do Hip-Hop, viu meu livro e dizia: “Professor, vamos cantar isso aí ”.

Amálgama - Então, na verdade, a inclusão do Hip-Hop ao Contra-lei foi posterior ao livro?

Elio - Foi posterior. Depois eu publiquei a segunda edição já com esse contexto. Mas eu acho que já tinha alguma coisa de Rap no ouvido, por causa da poesia pra ser falada, porque quando você escreve, além das coisas do passado, tudo que há de presente no som você coloca no seu texto. Eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira. Era sempre assim, ouvindo vários tipos de música.

Amálgama - Mas foi o Rap que incorporou isso de maneira bem característica para sua poesia.

Elio - Exato.

Amálgama - Então como você vê a essa situação de respeitar uma MPB que torce o nariz para o Rap?

Elio - Eu não sei por quê. Pois o Hip-Hop é um ritmo, um ritmo negro, dos negros que viviam nos guetos dos Estados Unidos, na periferia, e Rap quer dizer o quê? Poema em ritmo. Poema pra ser cantado.

Lisete - Mas eu acho que há essa marginalização porque eles levam geralmente à anarquia, à droga, à...

Elio - O Rap não tem nada disso! O Rap é o contrário. O Hip-Hop...

Lisete - Mas as gangues e as confusões que tem no Rio de Janeiro...

Elio - Aquilo é o funk. É outra história.

Lisete - Mas há uma mistura, pois inclusive é muito parecido.

Elio - Junta-se o Rap ao Hip-Hop. O Hip-Hop é um movimento educativo. É a visão de educar. "Faça a Coisa Certa", lembra do [filme de] Spike Lee? Está diretamente ligado a isso, a educar. Tirar o sujeito da pior. Mas é claro que existe o Rap gangster, também. Não vou dizer que só há bons. Mas a força toda do Hip-Hop é tirar o cara da lama.

Lisete - Mas o próprio Hip-Hop tem também as gangues.

Elio - Não. Não tem não. O Hip-Hop é o seguinte: são pessoas educadas, gente da periferia, meninos que estudaram a história do negro, a condição de...

Lisete - Inclusive o Gabriel O Pensador faz isso...

Elio - Mas o Gabriel O Pensador não é do Hip-Hop. Ele faz Rap, mas não é do Hip-Hop, do movimento. Hip-Hop é um movimento que, em primeiro lugar, é música para divertir, para conscientizar, para educar, para contar a sua história, do momento, da periferia. Os Racionais mostram o cara quando entra no tráfico, mas também quando se dá mal no final. É instrutivo. É a consciência ideológica. Estudar a questão do negro, a questão social da miséria. Evitar entrar no mundo do álcool, da droga, porque aquilo vai te levar para um caminho que pode ser sem volta. Mas o Rap também pode se aproximar pra dialogar com as gangues, porque a gangue é apenas um fator social.

Amálgama - Não seria então a música que leva à criminalidade, ela só reflete...

Elio - Reflete a realidade. A condição de ser. Por que o sujeito está no crime? Porque não teve oportunidade, na periferia, para ele. É algo altamente político, algo revolucionário. É pra brincar, educar e pensar sempre. É a mesma situação o negro e o pobre. A visão é essa. Mas não se abre espaço na grande mídia para o Hip-Hop. Não se abre para Racionais, para Câmbio Negro, para Rio Radical Rap, que tem até um cara do [bairro de Teresina] Monte Castelo, que eu sempre converso com ele, o Yuri, no Rio de Janeiro. A polícia de Minas Gerais deu o maior cacete e quase mataram o cara, deixaram o cara jogado lá porque tinha um verso dele que dizia “Foda-se a polícia, foda-se a polícia”.

Amálgama - Lisete, e como anda a pesquisa folclórica?

Lisete - É um trabalho que estamos desenvolvendo desde um curso em Belo Horizonte, que foi Leitura e Produção de Texto. Naquela época eu viajava muito pelo interior, trabalhando pela UESPI.

Elio - Eu acredito que nossa base, nossa cultura está sempre no interior...

Lisete - E eu tenho difundido isso pra fora. Eu recebi agora em Lisboa um cavaquinho, que é um prêmio cultural de lá pelos trabalhos que faço. Eu confesso que além de ser uma defensora e uma pessoa que trabalha com a literatura piauiense, eu sou uma das pessoas que dá a vida e o sangue, qualquer coisa, para que a gente continue trabalhando a cultura de um modo geral. Eu não me preocupo se ela está elitizada ou não. Eu só me preocupo se ela chega ao povo. Que o povo, com isso, consiga fazer uma análise crítica. A nossa cultura é riquíssima e apaixonante. O meu trabalho me ajuda a descobrir isso cada vez mais.

Amálgama - Elio, a poesia já te ajudou a comer alguém? [risos]

Elio - Sacanagem. Minha mulher deve estar lendo isso. [risos] Mas eu só posso dizer que ela é apaixonante.





18.2.16

PÉS-DE-VENTO, Cinen de Sousa




Pelas quintas, quintais e passeios
ainda o benevolente
verde da cidade.
Carnaubeiras da Antonino Freire,
na Vila Poti, amendoeiras,
oitizeiros resistem pelas calçadas do centro
e alamedas.
O caneleiro secular! Algarobas, jatobás, figueiras.
Por que não dizer num alto-falante
que há mais que o verde
um roseiral, colibris e pôr-do-sol
entremeio
a esta Cidade-planeta
de risco aberto, um caso de amor e mil amantes
e esta cor do sol pelo firmamento
como pés-de-vento
que brota livre e engravida pessoas.



Cinen de Sousa
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

4.2.12

BARRINHA QUE JÁ SE FOI, João Ferry


Barrinha, minha Barrinha
Viraste Palha de Arroz!
A palha não era minha
O rio levou depois

O rio, assim como o vento,
Depressa doido ficou.
Não houve chuva a contento
E o rio também secou.

Quando houve chuvas a granel
O rio sem paciência,
Cumpriu seu triste papel,
Levou tudo sem demência!

Na Vermelha, do Laurindo
Tanta gente brincou lá,
Que a Vermelha foi caindo
Descendo pro Mafuá:

O Mafuá cresceu tanto,
Mas, fez tantas confusões,
Que se acabou por encanto,
Como os bons Três Corações

Buraco da Velha foi
Também zona de alegria
Mas, adeus Bumba-meu-boi
Busca-pés e cantorias

O querido barrocão
Que nos deu Doutor Boeiros
Sucumbiu-se, foi ao chão
Dando vida aos Cajueiros.

Minhas saudades, porém,
Confesso, não me dão trégua,
Quando na mente me vem
O sol da Baixa da Égua.

São Raimundo! São Raimundo!
Frautas, luar, sonho e farra,
Virou poeira no mundo
Trazendo após a Piçarra!

Poti Velho, Teso Duro!
Poções, Noivos, e o Pau-Dágua!
Vamos ver, se temos furo,
Sem ter choro, sem ter mágoa.

Catarina e São Joaquim
Matadouro e Pirajá
Passeios bons do Angelim
Já não existem por cá.

Já não tem rua do Amparo
Nem da Estrela, nem da Glória,
Tudo mudou sua história.
Ficou tudo ao desespero!

Tudo se foi - Retrocesso!
Com fonte rara e divina
Veio em seguida o progresso
Engalanar Teresina.

Pedro Silva! Hoje tudo
Tudo! Tudo é diferente!
Tudo é grande e não me iludo,
Só nós dois somos gente!

Até mesmo a Não-Se-Pode...
Também assim é demais!
A nossa alma não sacode,
Ai, nunca mais! Nunca mais!


João Ferry
em A GERAÇÃO PERDIDA

de M. Paulo Nunes
São Cristovão/RJ: Artenova

18.3.20

Totó Barbosa: Sítese biográfica, por Osnir Veríssimo


Totó Barbosa por Paulo Gutemberg

Antônio Barbosa de Miranda Totó nasceu no ano de 1919 na cidade de Teresina (PI), na mesma casa em que mora até hoje, filho de Raimundo Barbosa Miranda e Luíza Barbosa Miranda. Iniciou sua carreira profissional aos 16 anos. Começou como assistente no Foto Brasil e Foto Osael de onde se tornou conhecido por retratar Teresina em diversos aspectos sejam no lado social ou a evolução da cidade. Especializou-se em Fotografia de Estúdio e cobertura de Eventos Sociais da cidade. A primeira sede de seu estúdio ficava na antiga Rua da Glória e hoje, a sede própria se localiza na Rua Barroso, 165. Era uma figura muito popular em Teresina, quando músico foi violonista da rádio Difusora nos anos 50, e da rádio clube nos anos 60. Foi também representante do povo, como Vereador na Câmara Municipal, durante 14 anos, em épocas diferentes. Além da Arte fotográfica, dedicou-se à Música, tendo atuado como cantor nas Rádios: Difusora, Clube, Poti e Pioneira de Teresina. Notabilizou-se também como seresteiro em nossa capital. Constituiu família aqui, tendo se casado com Dona Raimunda Paixão Costa de Miranda, com a qual teve oito filhos (Luiza, Andréa, Anselmo, Sarita, Camila, Adelmo, Rebeca e Catarina). Em 2008, foi condecorado com o grau oficial da Ordem Estadual do Mérito Renascença, pelo governador Wellington Dias. Totó recebeu o reconhecimento de sua arte pela cidade de Teresina, através de homenagens prestadas durante o V Salão Municipal de Fotografia.

Osnir Veríssimo

2.11.11

TERRA QUERIDA, Mário Bento Gonçalves


Minha Terra Natal! Querida Terra,
De um povo bom, trabalhador e honrado!
É um trecho do Brasil, que um poema encerra,
De luar divino e céu todo estrelado.

De vale em vale, assim, de serra em serra,
Brilhando ao sol do Norte, ao sol dourado!
Bendita sejas tu na paz, na guerra,
A glória, no presente e no passado.

Bendita sejas tu, entre dois rios:
Parnaíba e Poti - sublime e pura,
Rica e feliz de carnaubais sombrios!

Bendita sejas tu, ó Teresina!
O amor, quanto mais longe, mais tortura,
Por que a saudade o coração domina...


Mário Bento Gonçalves
em Antologia de Poetas Piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

28.1.16

UM ESTRANHO EM TERESINA, Cunha e Silva Filho




Estive há pouco em Teresina e desta feita me achei um peixe realmente fora d’água, um estranho no ninho. Não que o desejasse, mas a culpa, leitor, é unicamente minha. Quem manda não a ter frequentado mais amiúde.

Da janela do hotel, lá fora, dava uma espiada para o que poderia ver que valesse a minha atenção ou curiosidade. Pois não é que procurei e achei. Era a visão de uma mulher, em plena tarde de um sol escaldante, caminhando, caminhando, caminhando, debaixo de uma sombrinha. Claro que não foi só aquela mulher que portava uma sombrinha para abrigar-se do sol abrasante. Não me lembro de outras vezes que andei por Teresina de reparar nesse costume local, aliás, bem justo e necessário, de usar uma sombrinha contra o rigor solar. Esse hábito me parece ser apenas feminino, já que não vira nenhum homem utilizando um guarda-sol.

Aqui no Rio de Janeiro, usar uma sombrinha ou guarda-chuva, em pleno calorão, não é comum como na “Cidade Verde”. Lá é hábito; aqui, é exceção, chega mesmo a ser constrangimento para quem dele faz uso com receio de se ver vítima de um gaiato qualquer perguntar-nos se está por acaso chovendo. O carioca sofre, mas não abre o guarda-sol. “Os cariocas somos pouco dados” aos guarda-chuvas, ou chapéu de sol ou muito menos a uma sombrinha, para nos intrometermos, sem sermos chamados, no labiríntico intertexto machadiano.

Das últimas vezes que fui a Teresina não me passava pela cabeça um persistente temor de violência. Não me queira por isso na conta dos paranoicos, dessas criaturas que, nas grandes cidades, passam a ter medo de tudo diante da disparada da violência dos últimos anos.

Confesso-lhe, leitor, porém, que, em Teresina, só andei mais em carro particular que, no meu caso, era do meu amigo, o ensaísta M. Paulo Nunes, de sorte que não me expus à sanha de algum pivete ou assaltante.

Num final de manhã, notei que, no hotel, não dispunha de papel para escrever, nem de caneta; a que trouxera comigo na viagem se perdeu não sei onde. Lá fui às ruas de Teresina. Algumas delas eu conhecia de priscas eras. Com o tempo, a gente perde um certo traquejo de andar por ruas de nossa cidade. Entretanto, o “eu” do presente era outro, e as ruas, à altura em que as podia identificar, não ficavam em trechos por mim palmilhados com assiduidade no passado.

Mesmo assim, criei coragem e, vendo o nome de uma rua e de outra, alguma, conhecida, outra, não, fui dar na bela Av. Frei Serafim, que divide dois lados de parte da cidade. Indaguei aqui, ali e, por fim, consegui encontrar uma papelaria. Comprei um caderninho escolar de poucas folhas e uma caneta azul. Lembrei-me, então, que teria que comprar um exemplar da edição daquele dia do jornal Meio-Norte. No hotel, depois do café, já havia passado uma vista no exemplar que me interessava, aquele no qual havia uma reportagem sobre mim a propósito de conferência que iria fazer na Academia Piauiense de Letras. A reportagem tinha sido feita no dia anterior por ocasião do lançamento, no Museu Odilon Nunes, de mais um número da excelente revista Presença, com apresentação de M. Paulo Nunes. Procurei o exemplar em mais de uma banca até que o encontrei. A reportagem exibindo foto minha, saíra bem escrita, mas continha um erro. A jornalista que me entrevistara omitira do meu nome literário, a palavra “Filho”. Sem querer, virei o nome de papai. Ainda bem que estava em boas mãos paternas e na mídia jornalística que ele tanto amava.

Voltando a Teresina, tópico principal desta crônica, pude observar outras coisas. Me convenci por completo  de que sou um estranho na cidade. Perdi mesmo o bonde da história de Teresina.

A minha Teresina não é a de hoje. Ela ainda existe e se estende por todo o velho centro da urbe. Lá vejo, intactos, alguns pontos de referências; o Theatro 4 de Setembro, o Rex, a Praça Rio Branco (o relógio!), o prédio do Arquivo Público (ó tempos da infância!) da rua Coelho Rodrigues e que, hoje, comporta também o Conselho Estadual de Cultura, a Praça Pedro II, o Karnak, a Praça João Luis Ferreira, o antigo Prédio dos Comerciários (que, um dia, fora o mais alto edifício da cidade), a Praça do Liceu (ah, sim, Landri Sales!), o Liceu Piauiense, as igrejas de São Benedito, a minha preferida, a do Amparo, a das Dores, a Praça da Bandeira, muito modificada e maltratada, e principalmente as queridas e amorosas ruas da velha Teresina, nas quais tudo nelas me leva inexoravelmente ao passado. Ah, ia-me esquecendo, o velho rio Parnaíba, o Poti (agora com sua enchente e suas vítimas). Enfim, esse passado soterrado no tempo, me está, contudo, vivo e ora me leva à alegria, ora à melancolia. 

O que não se circunscreve a essas ruas, a esses prédios, a essas arquiteturas variadas alcançadas pela minha geração não parece fazer parte da minha memória. A Teresina nova, trepidante, dos arranha-céus não me atrai. Essa Teresina verticalizada se iguala às outras metrópoles, vira mesmice. Nada tem a ver comigo em Teresina.

Relendo os belíssimos poemas de Paulo MachadoPost card/57” e “Post card/77” extraídos do livro Tá pronto, seu lobo? e “Nas ruas da minha cidade há lições? (É preciso aprendê-las)", retirado do livro A paz no pântano (1982), que se encontram na antologia A poesia piauiense no Século XX, de Assis Brasil, vejo que a poesia de Paulo Machado, de alguma forma, me conforta e não me deixa esquecer essa Teresina. Os dois primeiros poemas citados se valorizam pela riqueza semântica resultante de sua arquitetura contrapontística em termos de realidades espaciais semelhantes aliadas a realidades temporais diversas. O terceiro poema, ainda inserido na categoria do tempo fluído, reforça o tom rememorativo de viés rebelde na transposição da realidade histórico-social. Poemas de grande impacto estético que, em mim, despertam, de certa forma, por coincidência ou não do fenômeno poético, quase a mesma sensação provocada por aquela maneira de descrição pulsante, vibrátil, vigorosa, do realismo inusitado de Cesário Verde (1855-1886), como seriam exemplos os versos abaixo do poema “Post card/57":


                                    No mercado central pretas carnudas
                                    Vendiam frito de tripa de porco
                                    Fígado picado e caninha.


Os novos bairros, avenidas, artérias, em suma, o espalhamento topográfico horizontal da cidade me espanta e ao mesmo tempo me dá a sensação de que estou em outro lugar, que nada tem mais a ver comigo, e com o meu espólio (triste espólio devorado pelo tempo!) de relembranças. Estas, por definitivo, vou encontrar num cruzamento qualquer da minha própria Teresina da memória.



Cunha e Silva Filho
via Portal Entretextos

15.4.16

ONDE UMA BARCA VEIO A POETA BUSCAR (A MANDADO), Luiz Filho de Oliveira




– psiu! – diz seo rio –  
vamos passear em mim
enquanto eu não vou... sim?

– sim – disse a mavioso convite (e mais disse!) –
vou embarcar assim sem a tal da catacrese – rio nativo
e navegar-te rio de muitos dito rio de minha terra
nossa! tanta terra! de tantos poetas & de gente tanta
que rio – rio – porque te-reverso uma margem apenas
emerso duma taba de imenso contentamento poti
como um piaga a desafiar-te-desafinar – rio grande

pois sei: és do filósofo antigo
o não-mesmo-rio-porque-passaste
e depois que a tua ira foi apascentada por Leonardo
– estando poeta-mentecontínua-revolucionário –
ficou mais fácil ir ter contigo ao teu catre alegorizado
mesmo agora em estado leito lento paciente porque
se canos & projetos já te-levaram as lavadeiras – rio dejeto
a largo canto canto o largo das águas em verso de monge velho

mas à margem de tuas melhores canetadas – rio verba
aquiagora levas a hidromassagem aos motéis urbanos (um caso)
onde secamente em programas as garotas falam falsas propagandas
beiravidando contra o rumo do mundo de Mundoca novamente    
e marginália mundana a cidade ainda te-reduz (o descaso)
de água e cais e caminho e mesa e banho
a esgoto latrina lixeira tema de campanhas
campanas pro dinheiro mesmo!

não mais Letes (esquece!)
nem Estiges nem Infernos  (estigmas do poético)
nestes versos te-quero música apenas: let’s play that!

e mais que o mar da costa – rio dádiva
vem e silva selvas de brisa vivas
e se o mar é longe e longo em linha
tu – rio – és doce e não amaro a toda a vida
linguagem para tudo quanto praias:
praio doce coroa & brotinhos

no averedado da verdade de teu chão – rio – caminho
e em filme grave gravo estas palavras em eco
lógico: não caço garças nem choro em coro
só aporto lado a lados: leito ladino (trino) se
margem a margens (imagens emergindo)
te-desavesso os versos líquidos – rio fio

todavia se a nado não cheguei a
nada de novo sob teu céu sobre as águas
liquido: aceito passear em ti nessa barca
por onde tropica o sol destas praças
(veio)

pronto, seo moço?

(rio)


(De Teresina a Timon, sôbolo rio Parnaíba, abarcando-o.)






Via Deleituras em 25 de novembro de 2009

18.1.16

SOL DE MINHA TERRA




Trago n'alma o sol de minha terra
a luz maior, claridade em mim
no som do Parnaíba que se encerra
o trilhar de um caminhar sem fim

carrego, imune, a força mais pura
a saudade do amor eternal
traçada nas glórias da loucura
do meu sonho alegre e jovial

trago, enfim, a lembrança das ruas
os quintais da infância e as luas
que no Poti vivem em transe

e sufoco as tormentas cruas
que fizeram as dores nuas
da dor de ti que me confrange.



Afonso Lima
Palmas/TO, julho de 2009
em A CIDADE EM CHAMAS: poema trágico de um crime impune
Teresina: Multiservice, 2010