2.4.16

DO TEMPO DO NÓS E ELIS, Ico Almendra


Sou do tempo do Nós e Elis
Com tanta música e pureza
Do tempo em que o Raízes ficava
Na antiga avenida Fortaleza
De quando para se aprender acordes
Se olhava para a mão esquerda do Geraldo
A cidade era realmente verde
Mas sempre teve o Blues do Edvaldo
De músicos tão raros
Como André Luiz e Zezinho Piau
Roraima, Boy e Jabuti
E outros tantos etc. e tal
Das gincanas do Colégio Andreas
Feitas perto do fim do ano
E das acirradas disputas
Contra o Colégio Diocesano
Quando o prédio mais alto que havia
Era o do Ministério da Fazenda
E as crianças ainda acreditavam
Que Cabeça de Cuia era mais que uma lenda
De quando a gente ainda conseguia
Andar pelos calçadões do centro
E todos os bares da cidade
Ficavam abertos noite adentro
Do tempo do Festival Setembro Rock
Em pleno Centro de Artesanato
Dos santos do Mestre Dezinho
Das obras de Mestre Nonato
Ainda me lembro que numa sala do Royal
Vi, pela primeira vez, Brigitte Bardot
Pois no outro cinema, o Rex
Só passava filme pornô
À tarde, no bar do Seu Cornélio
Que tinha o melhor pão de queijo
Vendo as meninas passarem
Sorrindo e mandando beijo
No Sorvetão ou no Elefantinho
Sorvete ruim não havia lá
Araticum e Bacurí
Sapoti ou Maracujá
Do tempo em que Luiz Correia
Só duas praia tinha então
E até a de Atalaia
A gente chamava de Amarração
A outra era do Coqueiro
Praia tranquila, de mais encanto
De bares com o Alô Brasil
E a casa do Gerson Castelo Branco
Se tem algo que permaneceu
Agora como era antes
Foi o calor do B-R-O Bró
E suas temperaturas escaldantes
Do Parnaíba à ladeira do Uruguai
Do Mocambinho ao Saci
A cidade ainda era pequena
Era fácil andar por aqui
Eu sei, se passaram os anos
Pois sou do tempo do Nós e Elis
Mas, com certeza, não me engano
Naquele tempo eu era feliz


Ico Almendra 
em 11 de outubro 2008
via Portal do Sertão | Fundação Nogueira Tapety

1.4.16

Netinho da Flauta (Documentário)



parte 1:





parte 2:






Netinho da Flauta
Produção executiva e narração: Moises Chaves
Produção: Nivalda Damasceno Ferreira
Edição e direção de imagens: Sergio Lima

DENTRO DA NOITE VADIA, William Melo Soares


                                     para Netinho da Flauta


nos pés o chão das estrelas
nos olhos o brilho da vida
uns paparicos em Carminha
fina flor da melodia

vem de longe
um som de flauta
dentro da noite vadia

livre feito um passarinho
um passageiro do bem
viajou ao som da flauta
rumo aos confins do além



William Melo Soares
em Nadança dos Peixes - Antologia Provisória
Teresina: Bienal, 2015





CLIMÉRIO, William Melo Soares




o tempo vai
tangendo amigos
pras lonjuras

leio um poema
angicalíssimo
de Climério

um rio morno
ribeirinha
minha infância

essa saudade
luz acesa
noite insone



William Melo Soares
em Nadança dos Peixes - Antologia Provisória
Teresina: Bienal, 2015

ENCONTRO DAS ÁGUAS, William Melo Soares




das ribanceiras
avisto as cores
te enfeitando
da aurora ao pôr do sol

rios fluindo
orlas douradas
do Poty ao litoral

navego em verso
e escuto a música alegre
das águas



William Melo Soares
em Nadança dos Peixes - Antologia Provisória
Teresina: Bienal, 2015

31.3.16

ESTUDO DO RIO, por Rubervam Du Nascimento



Saiu outra palavra
pra completar a lei
sobre a navegação
pelo rio seco
que exige do porto
a segurança dos produtos
transportados
ou chegados
nunca permanecidos

uma outra palavra
sobre a quantidade do produto
o peso
sobre a explicação dos problemas
de divisas
da força
da moeda
da destinação
em circuito fechado

a lei quase que ninguém conhece
mas existe
quando os navegantes
também são transportados

a palavra não faz menção alguma
ao corpo
nem à cabeça



Rubervam Du Nascimento
em O RIO - Antologia Poética
Edições Corisco, 1980


NO AUDITÓRIO DA DIFUSORA, Antônio Carlos Fernandes da Silva




…E aquela voz suave o auditório enchia
D'uma branda canção vinda de um peito brando...
E o microfone, é óbvio, pleno de ufania
Sorvendo tal voz plácida e após desfraldando-a.

E ela – a cantora – estrela única que luzia
Nos céus daquele palco, sorria de quando
Em quando, ao tempo exato que meu peito hauria
A afeição em dois lábios sorrindo e cantando...

Porém, nunca os seus olhos co'os meus se encontraram
P'ra extirparem a ânsia daquele desejo...
E quando desabrochava a boca, bem lançava,

Seu olhar lindo, lindos flertes que tragaram...
… E enquanto aos outros riam, nem sabia que, em desejo,
No fundo do salão, indigno a contemplava...

                                         

Antônio Carlos Fernandes da Silva
Teresina, 19/03/67
em Pétalas Negras (1967)

A PRAÇA DO POETA, Wagner Vieira Castelo Branco




Fizeram a praça gigante
Para o poeta estar próximo a ti
Da Costa e Silva te exaltou o quanto pôde,
Pois não queria ver jamais o teu fim.

E hoje, namorados risonhos
Estremecem ao ouvir teu grunhir
Cupido lhes espalha um "sonho",
Mil beijos em tuas bordas se podem ouvir.

Palmeiras gigantes se espalham
Pela praça, o vento a chamar...
Simbolismo da Velha Chapada
Do corisco a te abraçar.

Os mais ricos encostam seus carros
Pra "gatinha" então conquistar...
Fizeram até a "Prainha",
Para o "peixe" sua isca fisgar!



Wagner Vieira Castelo Branco
em RIO MORTO, RIO VELHO, RIO TORTO
Teresina, Editora Junior LTDA, 1988

PORTAL DA CIDADE, Cineas Santos




Portal da cidade, a Praça Saraiva era o desaguadouro natural dos que chegavam a Teresina na década de 1960. Paus-de-arara, mistos, jardineiras despejavam passageiros empoeirados e sonolentos no meio da praça, enquanto os chapeados disputavam, no grito, a bagagem dos que tinham algo a transportar. Mocinhas ágeis e prestativas se prontificavam a levar o “chegante” à “pensão mais em conta”, nunca esquecendo de garantir ser o estabelecimento  “um ambiente totalmente familiar”. Quem vinha a negócio fretava carros de aluguel (jipe, rural-willys), mais pose que necessidade, já que as distâncias a percorrer eram pequenas. Os que necessitavam de cuidados médicos, quase sempre muito pobres, armavam redes sujas nos galhos das árvores em busca do refrigério da sombra. Os que vinham tentar a sorte – náufragos e deserdados – limitavam-se a zanzar a esmo como moscas tontas.

A praça era uma imensa feira livre onde se vendia quase tudo: de animais vivos a óleo de puraquê, “a farmácia que o freguês carrega no bolso”, garantiam os camelôs. Sem maior esforço, podiam-se encontrar ali especialistas nas mais diversas atividades: borracheiro, barbeiro, soldador, amolador de tesoura, cozinheiro, raizeiro, vidente e benzedor, sem contar a legião de marreteiros e descuidistas, prontos a engrupir os desavisados. Pedintes de todas as idades esparramavam-se no chão, recitando desgraças “de cortar coração”.

Numa manhã esplendente (2 maio de 1965), despejaram-me na Praça Saraiva. A poeira da estrada embaçava-me a visão e o medo latejava em cada milímetro do corpo. Por intuição, percebi o que me esperava: fome, indiferença, solidão. Uma cigana decrépita, cheirando a sarro de cachimbo, prontificou-se a ler-me a mão, mas uma das “agenciadoras de hóspedes” foi mais rápida e me arrastou para a Pensão Nova, na Paissandu. O cartão de visitas da pensãozinha era um inconfundível cheiro de urina que se fazia anunciar na calçada. Na portaria, um negro velho, com ar de mãe preta, fazia as honras da casa. Foi direto e conciso: “O pernoite, com direito a café da manhã, custa dois cruzeiros. Pagamento adiantado”. De posse do dinheiro, desmanchou-se em mesuras: “Se precisar de alguma coisa, é só chamar. Eu sou que nem téu-téu: não durmo nunca!” e piscou, malicioso…

À noite, enfurnado num quartinho escuro e quente, sob o fogo cerrado das muriçocas, eu nem suspeitava que aquela ruazinha de aspecto sórdido fosse o caminho mais curto entre o Clube dos Diários e o prazer. Estrela, Fascinação, Amambay… Proxenetas, cafetinas, prostitutas, tangos, rumbas, boleros, perfume barato, bebida “batizada”, estrias camufladas, boêmios, bêbados, pedintes. A dois quarteirões da pensãozinha ordinária, diluíam-se todas as fronteiras. A Paissandu era o único espaço democrático da cidade: bem-nascidos e bundas-sujas dividiam, equitativamente, generosas rações de sífilis…

Aos poucos, a cidade mostrava suas múltiplas faces. Em meio às agruras, alguns encantos: o Parnaíba, o verde, as mulheres. Eu vinha de uma terra sem rios e sem lembranças de rios. Ver tanta água fluindo rumo ao desconhecido me pareceu um desperdício. O verde dos quintais me enchia os olhos: “um oásis sem deserto”. Quanto às mulheres… por elas, fiquei e não me arrependo. Com o tempo, a cidade foi-se adonando de mim, até me fazer esquecer que um dia morei em outro lugar. Teresina me basta.



Cineas Santos
Crônica de abertura de TERESINA PARA AMADORES
Livro ainda no prelo

30.3.16

RIO QUE DESÁGUA NO CORAÇÃO, Nelson Nunes




Rio, vida que corre lânguida
e incansavelmente banha a terra
e a alma do povo que te chama Parnaíba
Rio, de onde nasces e por onde vens
avolumando-te, cavando no chão o teu leito
vens, também, cravando na terra o nosso destino

Eu, minúscula embarcação, quando te navego hoje
e no afago de tuas águas serenas e calmas
sinto as mãos do velho Monge cansado de perdoar
vou, pouco a pouco, perdendo a esperança
a fé, que nas pedras teu limo ajudou a cultivar,
de que os homens te deixarão envelhecer em paz.



Nelson Nunes
em O RIO – Antologia Poética
Edições Corisco, 1980

25.2.16

PROFECIA DE FEIRA, Luís Augusto Cassas




tens essência e proeminência
pra seres capital da Grécia
uma acrópole em cascalhos
um coliseu em frangalhos
uns péricles convergentes
uns sócrates detergentes
grandes quebradores de pratos
uma esfinge com esparadrapo
guerra entre caixas de som
olimpíadas no pantheon
umas cabeças coroadas
umas verdades acaloradas

reza e confia: um dia menina
serás uma grande Teresina



Luís Augusto Cassas
em EM NOME DO FILHO - Advento de Aquário
Rio de Janeiro: Imago, 2003

19.2.16

CAUIM (1978) - Ednardo






01 - C'lareou - Ednardo - 00:00
02 - Amor de Estalo - Ednardo/ Brandão - 07:03
04 - Duas Velas - Ednardo/Brandão - 09:50
05 - Rendados - Ednardo/Tânia Araújo - 11:53
06 - Rasguei o Teu Retrato - Cândido das Neves, o Índio - 15:55
07 - Cauim - Ednardo - 18:50
08 - Bloco do Susto - Ednardo - 24:06
09 - É Cara de Pau - Ednardo/Brandão - 26:20
10 - Terezina 40 Graus - Ednardo - 28:48
11 - Canção dos Vagalumes - Ednardo - 31:13



[...]



Terezina 40 Graus | Ednardo 


Troca que troca que troca
Lembranças
Contra corrente do rio,
Vai vapor
Que também sem ti
Posso navegar
E cada instante de rio
Me afasta
De cada saudade do mar
De cá, dá saudade do mar



[...]



Disco: CAUIM
Gravadora: WEA / Warner
Lançamento: 1978 (LP- BR 36.074) - 2001 (CD Warner Music)
Direção Artística - Marcos Mazola
Produzido por Guti Carvalho
Técnicos de Gravação - Carlos Duttweller / Vitor
Estúdio de Gravação - Transamérica - Rio de Janeiro
Mixagem - Guti Carvalho / Carlos Duttweller / Ednardo
Assistente de Produção - Gastão
Auxiliares de Estúdio - Franco / Cláudio
Capa e Desenhos - Brandão
Foto da Capa - Mario Luiz Thompson
Foto da Contra Capa - Francisco Régis
Arte Final - Ruth Freihof 
Arranjos - Ednardo / Pepeu Gomes / Wilson Cirino
Violões - Ednardo / Pepeu Gomes / Wilson Cirino
Violão Sétimo - Waldir (Novos Baianos)
Guitarra Acústica - Pepeu Gomes (Novos Baianos)
Bateria - Jorginho (Novos Baianos)
Contra Baixo - Luiz Carlos Tolentino - Ife
Baixo Tuba - Teles
Percussões - Sérgio Boré / Jorge José

18.2.16

RUMO NORTE (1979) - Irene Portela






01 - De São Luiz a Terezina - João Do Vale & Helena Gonzaga - 0:00
02 - Sanharó - João Do Vale & Luis Guimarães - 3:16 
03 - Sabiá - João Do Vale, Luis De França & José Cândido - 5:33 
04 - Nécio Costa - João Do Vale - 7:20
05 - Passarinho - João Do Vale & José Lunguinho - 10:23
06 - Fogo No Paraná - João Do Vale & Helena Gonzaga - 13:33
07 - Lua Peixe - Irene Portela - 17:14 
08 - Até Quando - Irene Portela - 19:18
09 - Dia De Festa - Irene Portela - 21:31
10 - Alcântara - Irene Portela - 23:46
11 - Folha Verde - Ricardo Gouveia & Irene Portela - 25:13
12 - Na Hera Dos Muros - Irene Portela & R. Parreira - 28:09
13 - Guerreiro - Irene Portela - 31:12 



[...]



DE SÃO LUIZ A TEREZINA | Irene Portela 
Composição de João do Vale & Helena Gonzaga 


Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai que dor no coração

E a trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Bom dia Caxias
Terra morena de Gonçalves Dias
Dona Sinhá avisa pra seu Dá
Que eu tô muito vexado
Dessa vez não vou ficar

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Boa tarde Codó, do folclore e do catimbó
Gostei de ver as cabroxas de bom trato
Vendendo aos passageiros
"De comer" mostrando o prato

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Alô Coroatá
Os cearenses acabam de chegar
Meus irmãos, uma safra bem feliz
Vocês vão para Pedreiras
Que eu vou pra São Luís

O trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai que dor no coração

E o trem danou-se naquelas brenhas
Soltando brasa, comendo lenha
Comendo lenha e soltando brasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa

Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa
Tanto queima como atrasa



[...]



Depois de mais de dez anos de carreira, sem conseguir gravar, foi descoberta pelo produtor Marcus Vinícius, como compositora, intérprete e diretora musical do espetáculo "A missa do vaqueiro". Em 1979, lançou pelo selo Marcus Pereira seu primeiro disco, "Rumo norte", interpretando diversas composições de sua autoria, entre as quais "Lua peixe", "Dia de festa", "Guerreiro", além de diversas composições de João do Vale, como "De Teresina a São Luís (trem do Maranhão), em parceria com Luís Gonzaga, "Sabiá" e "Fogo no Paraná". Via Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira.

BALADA DOS MORTOS NA PAREDE ETC., por Menezes y Morais




teus mortos
estão nas paredes
nos álbuns
memórias
dramas

te espiamudos
denunciam calados
o crime q comeste

teus mortos
não perdoaram

eles vivem
todo dia
quando reparas
nos álbuns
           paredes
                       memórias
                                     dramas
é inútil tentar/remover os mortos/
dessas paragens
eles estão em ti

te acompanham
procriam na sala
quarto lembranças

convive com os mortos
é mais seguro do q conviver com os
vivos
a vida é túmulo em via



Menezes y Morais
em DIÁRIO DA TERRA (1984)



PÉS-DE-VENTO, Cinen de Sousa




Pelas quintas, quintais e passeios
ainda o benevolente
verde da cidade.
Carnaubeiras da Antonino Freire,
na Vila Poti, amendoeiras,
oitizeiros resistem pelas calçadas do centro
e alamedas.
O caneleiro secular! Algarobas, jatobás, figueiras.
Por que não dizer num alto-falante
que há mais que o verde
um roseiral, colibris e pôr-do-sol
entremeio
a esta Cidade-planeta
de risco aberto, um caso de amor e mil amantes
e esta cor do sol pelo firmamento
como pés-de-vento
que brota livre e engravida pessoas.



Cinen de Sousa
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

17.2.16

NÓS E O ELIAS, Feliciano Bezerra




Eram os anos 80. Alguns arautos da sociometria dizem que foram os anos da década perdida. Bobagem, foram anos galantes; claro que havia algo de ressaca do desbunde dos anos 70, mas a cultura continuava a respirar, e em Teresina um de seus respiradouros mais interessantes era o bar Nós e Elis

Refúgio da arte e da cultura piauiense, lugar de exercício da imaginação, de consumo delicioso de farras estéticas, o Nós e Elis tinha algo aurático, não se repetia, não tinha reprodutibilidade (contrariando Walter Benjamin). Ir ao Nós e Elis era um ato natural e pleno de significação, sabíamos de antemão que valeria a pena sair de casa. Os shows, os recitais, as conversas, os papos cabeça dos intelectuais em transe, os pequenos torneios ideológicos, os diagnósticos políticos, os projetos culturais traçados ali entre copos e mentes, os encontros furtivos, os exercícios de fidelidade conjugal, tudo animava as noites etílicas, alegres e abertas. 

A abertura começava pela própria estrutura do bar. Arquitetonicamente ele se abria para a rua, não havia uma rígida divisão espacial entre o dentro e o fora. Outro item interessante de suas divisões é que entre o palco e as mesas havia um pequeno corredor, indo do balcão do bar até os banheiros, pelo qual funcionava uma espécie de passarela. Nessa travessia praticava-se, digamos, exercícios narcísicos, pois ninguém passava por ali sem ser notado; às vezes era desafiador, poderia atrapalhar o espetáculo, de tão próximo do palco. Os mais discretos e tímidos evitavam aquele caminho e saiam enroscando-se por entre as mesas até chegar aos banheiros. Os espalhafatosos e os distraídos faziam questão de usar a travessia, invariavelmente cumprimentavam quem estava no palco, posando de íntimo do artista e descolando um naco de exibição. Mas isso era feito com certa puerilidade, sem muitas implicações, o Nós e Elis dava permissões, era um espaço que realmente abrigava vários instintos. 

Toquei e cantei muitas vezes lá, não cheguei a ser um músico ‘residente’ como muitos colegas, orgulhosamente, o foram, mas experimentei o encanto, havia algo de diferente em tocar naquele bar, sempre me pareceu o palco principal da noite Teresinense. 

O Elias era um misto de dono de bar e agitador cultural, a forma como ele concebeu o Nós e Elis refletia sua cabeça de homem de esquerda (à época a nomenclatura ainda se sustentava), que acreditava no binômio cultura e política e no incremento desses dois campos. Elis Prado Jr. era político e ao mesmo tempo um rigoroso amante das artes. Suas inarredáveis exigências em nome da qualidade eram desafiadoras, porém gratificantes, pois só ali, nós artistas, poderíamos experimentar e ousar. Ele checava pessoalmente o set list de quem fosse cantar e ia cortando qualquer concessão a canções gastronômicas, qualquer sucesso fácil e ocasional ou pérolas do cancioneiro romântico ligeiro. E um detalhe, avisava-nos: “não aceite pedidos, toque seu repertório”. Era rígido e doce, circulava entre as mesas, com uma taça de conhaque na mão, conversando com todos, sempre entusiasmado com alguma ideia. Eventualmente subia ao palco pra dizer poemas, um lírico inveterado. 

Era admirável a energia e a determinação do Elias, ilustro com o seguinte episódio que me aconteceu: certa noite de sexta-feira eu estava em casa, por volta das dez horas, já encerrando minhas atividades noturnas e preparando-me para dormir quando bateram à porta. Era o Elias, e antes mesmo de eu me desfazer da surpresa ele deu boa noite e foi direto: “Fifi, estou sem ninguém pra tocar hoje à noite, vai ter que ser você, vim buscá-lo, pagarei cachê dobrado e ao terminar venho lhe deixar em casa”. Era incrível, e minha casa, no Monte Castelo, não era tão perto assim. Bem, diante do imperativo convite, só me restava obedecer, peguei o violão e fui. Toquei, foi uma ótima noite, recebi o cachê (dobrado) e fui devolvido a minha casa. Este era o Elias, naquela noite, por alguma razão o músico escalado faltou e como o Nós e Elis não podia ficar sem atração o Elias dava um jeito.   

O Nós e Elis era a urgência da expressão, o Elias era a urgência da ação, tão urgentes que foram embora muito rápidos. Saudades. 



Feliciano Bezerra (Fifi)
em Nós & Elis: A gente era feliz - e sabia
Organizado por Joca Oeiras

RIO SECO, Clóvis Moura




         Cemitério de peixes enterrados
no areal ardente e transparente,
pedras que furam os pés dos caminhantes
marcaram a transferência dos sedentos.

         Pedaços de memórias marulhantes
ainda chegam à noite nos seus ecos
e roteiros de barcos são fantasmas
na memória de luas macilentas.

         Há no sol que caustica as suas curvas
um sádico desdém por suas margens
que hoje se fundem ao leito que líquido.

         As carcaças de tíbias e caveiras
de bois marcam a distância do mistério
e o suor é sua linfa derradeira.



Clóvis Moura
em Flauta de Argila (1992)
apud A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995

TERESINA | GENTE BOA, A. Tito Filho




DONDON, repórter, redator, tipógrafo, revisor, diretor, impressor, vendedor, proprietário do jornal "O Denunciante", noticioso, crítico, censor de costumes, espinafrador de políticos e administradores. Um dia os poderosos do momento consideraram louco o jornalista e vingativamente o puseram no hospício. Quando saiu, pensou-se que recuaria nas censuras e espinafrações. Desassombrado, reapareceu mais valente, sem que lhe faltasse o esclarecimento identificador do parafuso frouxo: "O dono deste órgão esteve recolhido ao asilo dos doidos, onde passou dez dias, seis por conta do governo e quatro por sua própria conta". Exerceu ainda o oficio de vendedor de feixes de capim em lombo de jumento. Três animais ensinados. De acordo com a voz de comando de Dondon, os jegues seguiam pela direita, pela esquerda ou efetuavam alto. Dava gosto ver o comandante pelas ruas, calças sungadas até os joelhos, alpargatas vistosas, camisa de manga arregaçada, oferecendo capim aos burros de Teresina.

MARIA SAPATÃO, negra gorduchona, beiços grandes, dentes alvos, peitões caídos, pernas fortes, barriguda e bunduda pezões nos sapatões famosos, enfeitava-se de um dilúvio de voltas baratas no pescoço, boa dúzia de pulseiras nos braços roliços, anéis pelos dedos das mãos, até no polegar. Era o toque de nobreza idiota passeando as ruas.

JAIME DOIDO, dos mais acatados birutas da cidade. Famoso cabo de eleições da antiga União Democrática Nacional, a famosa ODN como a apelidava a chacota dos adversários. Não gostava de dinheiro muito. Dinheiro só de pouquinho. Dinheiro muito fica dono da gente - filosofava da forma de bom lelé da cuca.

AVIÃO, dos citados, o único que ainda não se foi desta para melhor vida. Risonho. Põe caixa enorme de papelão na cabeça e sai a enchê-la de quanta besteira arrecada pelas calçadas. Aprecia encontros noturnos com perus em quinta de casa alheia. Quando o procuravam, devolve a ave que morre na véspera. Vive a imitar velhos filmes e seriados de aviação:

- Onnnn... onnnn... onnnn... onnnnn - acompanhando os roncos fanhosos de movimentos ondeados da mão direita espalmada, como se estivesse em reproduzir as piruetas de heróis cinematográficos à procura dos homens maus.

E avião faz de mocinho, indicador apontando, firme, como revólver de balas sem conta. e ele:

- Morreu, bandido covarde... tá... tá... tá... tá...

Representações nas vias públicas. De graça.



via Jornal O DIA
em 20 de agosto de 1989

MENINO DE RUA, V. de Araújo




Em flagrante denúncia,
aquela criança sem teto,
sem nome, sem pai...
com saltos mortais
escreve sua história,
enquanto banha despida
nas águas poluídas
das fontes luminosas.



V. de Araújo
em POESIA TERESINENSE HOJE
Teresina: FCMC, 1988

15.2.16

DESDE SEMPRE, Elias Paz e Silva


no cotidiano da cidade
o dia eterno se inaugura
alegre rumorejar de flores


Elias Paz e Silva
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão