31.7.15

Cidade Descarnada – Resistência e memória dos antigos moradores de Teresina







Este documentário é uma homenagem aos antigos moradores do centro histórico de Teresina. Trata-se de um resgate da memória e um olhar sobre o íntimo dessas pessoas anônimas e de como elas observam, em sua lembrança o mundo exterior de uma Teresina que não existe mais. São memórias privadas, que nos introduz ainda que de maneira imperfeita nas ruas, nos clubes, praças, no comércio e o dia-a-dia teresinense. No balanço de suas lembranças, podemos nos alimentar de migalhas, microfragmentos de uma história que, de resto, seria apagada com o tempo, levada para a última morada. Suas vidas privadas são o cruzamento de ideias gerais que sobreviveram nos porões da memória e ao escapar do esquecimento individual, nos chega através desse documentário. Ele nos oferece um aperitivo composto de vários aspectos da vida individual e nos introduz na intimidade destas pessoas. Confidências, audácias, fantasias exalam das falas e nos aproximam do íntimo deles e nos oferecem a tentação de abolir as distâncias que nos separam irremediavelmente de um mundo que perdemos. Tendo como pano de fundo a "província", penetramos no cotidiano teresinense, onde inserem as suas anotações pessoais.



Roteiro, direção e imagens: Ricardo Arraes
Produção executiva: Mariana Antão
Edição de imagens: Paulo Rogério
Som: Ricardo Sousa
Animações: Vinícius Castro

TORSULA



conheci um poeta que foi ameaçado com uma camisa-de-força caso se recusasse a seguir a medicação do hospital. e olha que ele foi para o hospício porque queria descansar. a família encaminhou tudo e deixou a entender que, sempre, toda e qualquer medida só seria tomada com o seu (dele) consentimento. ele disse para a médica no corredor:
                                                                                    - ME DEIXE EM PAZ, SUA PORCA.
                                                                                    Ela havia dito antes, em tom de 
                                                                                    gozação: 
                                                                                   - é assim que você que ficar em paz? matando sua mãe aos poucos. quando é que você vai entender as coisas? você não acha que já fez demais nesse tempo em que passou fora? por que você não resolve seus problemas de sexo com estas menininhas de subúrbio? olha, meu filho, você se engana se pensa que eu não conheço marx. seus parentes me falaram de seus problemas com tóxico. você não acha que pega mal ser um maldito amparado pela família?
MORDAZ MORDAÇA SANGRIA



Durvalino Filho
Os caçadores de prosódias
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1994

30.7.15

CÂNTICO DOS PRANTOS




1 - da geografia dos rios


os rios conhecem a terra
musgos, relvas, pradarias.
ribanceirando os caminhos
ao encontro de outros rios.

...

desmatamentos, queimadas, esgotos
indústrias. roubo de areia
dos leitos para as caras moradias
canais de fezes, do mundo,
cercas, nada disso impede os rios




2 - o movimento dos peixes


os rios têm o seu povo
universos que se agitam
no milagre da existência
da vida de todo dia.

...

choram o verde que era verde
e hoje é seca, cinza, prantos.
choram os meninos travessos
que aplacam a ira dos rios.
choram os meninos e os bêbados
que morrem nas águas vadias,
nas águas da morte funda
da terra sem moradia.




3 - o tempo social dos rios


os rios choram seus mortos
nas enchentes e marés,
os rios cantam seus mortos
nas chuvas das cabeceiras.
lamento das lavadeiras
no barulho dos anzóis
nos esgotos que recebem
nas barragens que constroem.

...

é para os rios que convergem
as lavadeiras do Brasil.
assembléia de mães pobres
confluência da esperança.
com o sabão da miséria
i a grandeza cotidiana das mãos
ensaboam e enxagoam
a sujeira dessa vida.
vida de pobres e ricos
de dores y alegrias.

...

nesses tempos de miséria
os rios são o choro da terra.



__

Menezes y Morais
em O Rio (antologia)

RIO SECO





Lembro de quando naveguei este rio nos vapores de Palmeirais. Navios de ferro fundido que a queima de lenha (depois o diesel) movimentavam gigantescas pás laterais singrando as profundas e caudalosas águas do Parnaiba. Em camarotes ou redes nos convés viajantes acompanhavam as margens de canaranas, pescadores em pequenas canoas e, nos portos, as mulheres batiam roupa e secavam no quarador. Hoje o rio morre asfixiado em bancos de areia. A reserva hídrica da minha terra se esvai. A capital do Piauí se encostou no Rio porque ele era o caminho que levava ao litoral e ao fundo do sertão, no interior. Até hidroavião pousou nas suas águas. Hoje esquecido morre numa cidade que não cuida da sua história. Só a saudade pode atestar o que foi outrora um Parnaíba que agoniza no cais de uma cidade que não mais o quer.
Fotografia via blogue do Kenard Kruel

EU, A CIDADE E O RIO | Capítulo 1 (trecho), João Batista Dias Pinheiro


Em Teresina vendia-se tudo, até a própria balsa, cujo material era utilizado para muros de quintal. Os donos das balsas e eventuais passageiros regressavam, às vezes, em barco a vapor, ou senão, a pé ou a cavalo. Os mestres e contramestres, geralmente, regressavam a pé, por falta de condições financeiras para comprarem cavalos. Verdadeiros heróis. Recebiam em Teresina o pagamento de seus trabalhos, faziam pequenas compras para as necessidades da viagem, além de alguns presentes para a família e partiam de volta. Com o saco às costas, preso com alça nos ombros, um chapéu de palha e calçados de couro, atravessavam o Rio Parnaíba à altura de Timon e seguiam pelo Maranhão, procurando encurtar a enorme distancia. Conhecendo bem as trilhas, procuravam fazer uma linha reta em sua viagem de Teresina a Ribeiro Gonçalves, alimentando-se de qualquer jeito, especialmente com rapadura e farinha de mandioca e dormindo onde anoitecia. Após percorrer mais de quinhentos quilômetros, andando cerca de cinquenta quilômetros por dia, chegavam a Ribeiro Gonçalves após dez dias de marcha intensa.


João Batista Dias Pinheiro
em EU, A CIDADE E O RIO: À MEMÓRIA DE RIBEIRO GONÇALVES/PI
Teresina: Gráfica do Povo, 2013

29.7.15

CÃO SEM DONA




Alguém aí acaso achou os passos que perdi
Nas ruas escaldantes de Teresina?

Esse endereço anotado em letra trêmula
É de quem, de qual cidade, de que país?

O coração que ofegante segue os passos
Impunemente no meu peito inda é meu?

Ou desse uivo que se lança na direção da lua
Gritando em desespero o nome dela?



Climério Ferreira
em Piauinauta

28.7.15

PESCARIA ÀS SEIS DA TARDE NO BALÃO DA IGREJA DE SÃO BENEDITO, por Rubervam Du Nascimento



Um rio nos separa na pista de danças luzentes e procissões de veículos rio não de águas de carros. Na cidade de Teresina, tem um igreja cuja frente, fica voltada para uma avenida, que juntando-se com outras pequenas ruas no mesmo perímetro, vai dar no rio Parnaíba, - o maior rio da bacia hidrográfica da região Norte do Brasil, responsável pela separação geográfica entre os estados do Maranhão e do Piauí, e, o fundo, vai dar para outra artéria, considerada a mais elegante e luxuosa da nossa capital, - a Avenida Frei Serafim. Nesse ponto, - tanto pela frente como pelo fundo da igreja, - outrora, o "trottoir" (paqueração, pescaria) de proxenetas, gays, lésbicas, drag queens, travestis e principalmente prostitutas era intenso. A procissão de veículos motorizados era maior que a procissão de andores, mas dentro desses veículos estavam no volante - obviamente motoristas, - que não estavam ali para pescar luzes de holofotes de carro nem muito menos  pistas de rolamentos de veículos, eles estavam ali para pescar gente de rostos, carne, osso e espinha.



Rubervam Du Nascimento
em Guia Turístico Afro-cultural da Região Meio-Norte; Piauí e Maranhão
de Antônio Julio Lopes Caribé


26.7.15

O MENINO DA PACATUBA



Dos meninos consumidos no sol da Pacatuba ficaram lembranças. Dessas lembranças Paulo José Cunha constrói o seu universo poético. Delas e da evocação do País do Piauhy. Tudo na maneira de Geraldo Melo Mourão (o que glorificou o País dos Mourões) e Manoel de Barros (o que expôs a Gramática do Chão) e no mesmo plano elevado.

Uma das funções da poesia é desencantar lembranças, sujeita, no entanto, ao risco de tornar-se apenas uma prosaica enumeração. PJC cumpre esta função, evitando este risco. O seu mundo poético surge da poesia intrínseca das lembranças, realçada pelo poder que as palavras adquirem no contexto. As palavras vivificam as imagens e as pessoas: atrás da igreja das Dores o grotão por onde corriam as águas do inverno, a suave ladeira da Estrada Nova por onde se chegava à Pacatuba, onde hoje deve vagar o espírito irreverente de Vitinho, que ali frequentou a aula de D. Maria Patu.

A tia Maria, a branca de fala mansa (para nós era a comadre Maria), o seu Raimundo Luço (primeiro cliente de um advogado que mais tarde reconheceu não ter os defeitos necessários para vencer na profissão e se bandeou para a categoria dos poetas). PJC saca da memória um verso de Quasimodo (“la dura um vento che ricordo aceso”); na Pacatuba havia no máximo a brisa de maio que empinava os papagaios de papel.

O menino da Pacatuba, a infância restituída, volta, das areias do tempo, nas cercas de melão-de-são-caetano, na figueira ao lado da casa de seu Pombo, no terreno baldio da esquina do quarteirão, nas tijubinas, nas mangas verdes, comidas com sal, às escondidas, enquanto o Parnaíba, o rio grande dos tapuias, no fundo das ribanceiras, rola o seu dia perene.



H. Dobal
Prefácio do livro O perfume de Resedá, de Paulo José Cunha
Teresina: Oficina da Palavra, 2009

20.7.15

A PONTE (O RIO) ENTRE AS CIDADES




Rio de duas cidades
dividido entre tristezas
uma ponte assim as une
não de aço, de pobrezas



Álvaro Pacheco
Teresina, maio de 1965
em MARGEM RIO MUNDO
Artenova: Rio de Janeiro, 1965

DOMINGO DO RIO




O rio technicolor
aos domingos (todos os domingos
de sol na Coroa).

Moças vermelho
coxas branquinhas
homens cinzentos
meninos azuis.

Depois da missa, purificada,
a cidade descia para o rio
e docemente sonhava com o pecado
nas areias de veludo da Coroa.

E um domingo, no fundo da canoa,
perdida, entre a verde canarana,
o menino viu o sexo conjugado
(o rio, o domingo, o espanto).



Álvaro Pacheco
Teresina, maio de 1965
em MARGEM RIO MUNDO
Artenova: Rio de Janeiro, 1965

O ADRO DE SÃO BENEDITO, de Barros Pinho



oh como eu queria
guardar o vento
que circulava
no adro da igreja
de são benedito
em teresina
onde nele talvez
tenha escrito o poema
de amor mais puro do ofício
só o poeta tem essas coisas
de se esconder nas palavras



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


O RETRATO NAS PAREDES, de Barros Pinho



As casas como as pessoas
guardam cicatrizes
expostas no rosto do tempo.

Às casas sempre voltamos
nelas a vida anda por trás do que passou
existem na existência indo embora.

As casas onde morei para viver
na afoitosa e lúdica adolescência
abrem rugas na face branca das paredes.

De dentro delas saltam sonhos
que não querem envelhecer
e o menino açoitando o vento nas curvas do rio
que se arrasta na carne azul da paixão.



Barros Pinho
via Jornal de Poesia


SANTO ANTÔNIO NOME DE RUA, de Barros Pinho



a rua santo antônio
tinha mesmo
vocação poética
não é que lhe deram
o nome de olavo bilac

num alto perto
de uma faveira
morava o poeta
mário bento
meu professor
de decassílabo

mais abaixo
quem morava
era a madrinha dodó

na quitanda
rezando
e vendendo
cigarro selma

em frente
num casarão
uma lourinha
burguesa
tocava acordeon

no quarteirão
seguinte
meu pai me fez
proprietário
de uma garapeira
onde apenas ganhei
duas namoradas

rua santo antônio
do menino
metendo os pés
em tuas águas
do adolescente
que te fez revelações
rua santo antônio
de teresina
das mangueiras
das carambolas
e dos quintais



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


BALADA DE TERESINA – A CIDADE VERDE, de Barros Pinho



recordo
a adolescência
nas árvores
de minha cidade

no circo
das areias
que ainda
circula
em meu juízo

no cais
onde aprendi
a história
da pureza

no riscos
das gatas
espreitando
em cada esquina
da rua paissandu

na rua
pedro II
onde rodei
com a primeira
namorada

no vaga-lume
ferindo
o otimismo
no escuro
do cine-rex

nos bons
comícios da udn
naquele tempo
mulher de muito
respeito

nos bichos
oficiais
pássaros
camelôs
do mercado velho

nas íntimas
novenas
de são raimundo
na piçarra

na vulgaridade
eletrônica
da mensagem
de um alguém
para um certo alguém
que está ausente

nos meus gritos
ecoando
a céu aberto

olha a laranja
olha a bananeira

olha a saudade



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


BALADA DO RIO PARNAÍBA, de Barros Pinho



não conhecia
o mar
o rio de minha
cidade era meu oceano

no cais
na rampa
laranjas
prostitutas
a granel

o vento
entra
pelas narinas
com peixe
creolina
e cashmere bouquet

lá em cima
a máquina
pilando arroz

a banca
de gelado
tábuas
de pirulito

em baixo
barcas
barcaças
navegando

lavadeiras
abertas
ao sol

lanchas
vapores
fumegando

fiscal
de renda
paletó
e gravata
cuidando
das coisas
do estado

canoas
canoeiros
só passando

noites
vivendo
de aventuras

suicídio
na senda
do ciúme

do outro lado
timon
antiga flores

águas
tranquilas
correm
sob a ponte



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001