6.12.11

TER-E-SINA, Francisco Miguel de Moura


Há Roma, Paris e Bagdá
com sonhos que não sei
com céus que me escaparam
pelos pés.
Você conheço de pele
de manha
de manhãs desfeitas
de sol e chuva meio a meio
de ponte anoitecer
de rua e rio e rima.
Só você com seus ares
de mulher que ensina
a vida, o ventre
e o tonel.
Teresina conheço de antros
de antes
Bagdá é um sonho
não vou lá.
Meu sonho em que sonho
de acordo
é você.


Francisco Miguel de Moura
em Presença da literatura piauiense
Organizado por Luiz Romero Lima
Teresina: 2003

4.12.11

A RUA, por Torquato Neto




Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba

De uma rua de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas

Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
Rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua

Ê São João ê Pacatuba
Ê rua do Barrocão
Ê Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão
De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão

Ê minha rua meu povo
Ê gente que mal nasceu
Das Dores que morreu cedo
Luzia que se perdeu
Macapreto Zê Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu
Ê Pacatuba
Meu tempo de brincar
Já foi-se embora
Ê Parnaíba
Passando pela rua
Até agora
Agora por aqui estou
Com vontade
E eu volto pra matar
Esta saudade
Ê São João, é, Pacatuba
Ê rua do Barrocão.



Torquato Neto
em Torquatália, do lado de dentro
Paulo Roberto Pires (org.)
Rio de Janeiro: Rocco, 2004



3.12.11

TERESINA, Paulo José Cunha


Há quem te queira apenas Capital,
Cheia de prédios, moderna, vertical.
Mas te queremos também horizontal,
cidade calma, arejada, tradicional.

Há quem te queira só central,
nervosa, agitada - comercial.
Mas nós te amamos também periferia,
de gente pobre, alegre, simples: natural.

Falar mal do teu calor é puro engano
dos que não conhecem teu calor humano
Os que só veem em ti o moderno e o novo
não percebem que a cidade é o povo
e que és mais que cidade - és a síntese
de um Estado que olha pro futuro
sem jamais esquecer seu passado.

Claro que te queremos grande, moderna, progressista,
mas te queremos eternamente ingênua e pura,
amiga, sentimental, sempre menina,
ternura antiga, flor mimosa - Teresina.


Paulo José Cunha
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

2.12.11

FERRÉ, José Pereira Bezerra


Duas horas da madrugada dum domingo. No Morro do Querosene a movimentação diminui: as portas dos quartos das Putas, fecham-se e não mais se abrem, mas ainda ouve-se sons de copos que se confundem com gritos histéricos e exaltações de bêbados. Defronte a um cabaré, Ferré, homem alto e magro, trabalhador braçal, cambaleia ao ritmo do peso do próprio corpo. No dia anterior, da construção rumou aos botecos - encher a cara de cachaça - deixando a mulher e os quatro filhos dormindo sem jantar. Quando chegasse em casa tinha certeza da briga que a mulher devia estar aprontando, a exemplo de ocasiões anteriores "e com muita razão". Maria não se conformava com a atitude irresponsável do marido, e não raro trocavam tapas e pontapés sob os olhares lacrimosos das crianças amedrontadas. Ferré, não obstante a embriaguez tolher-lhe o cérebro, quer dormir com a família. Já está sem dinheiro, e a vontade é traída pela fraqueza do corpo. Rodopia, não sai do lugar. A cabeça doí-lhe e um mal-estar no estômago aflora. Acerca-se da calçada quase de quatro, senta-se com dificuldade. Minutos após está estirado em decúbito dorsal, dormitando, com as pernas afastadas em da outra, a camisa aberta, suada e suja de vômito. Adormece. Ao amanhecer, acorda atordoado com o sol ferindo-lhe os olhos. Moroso, senta-se e se põe a pensar na sua condição de pobre, bêbado e de pessoa. Não vê diferença. Senta-se envergonhado e num assomo de emoção, chora convulsiva e covardemente. Sai cambaleante, arrasado. Não deslumbra outras formas de desabafar o desespero, a não ser bebendo cachaça e/ou brigando com a mulher. E ainda existem pessoas que acham a situação de Ferré e sua família muito normal e até necessária. No caminho muitos vêem-no e dizem prosa: "a cachaça te mata", "a cachaça ainda mata o diabo". Ferré não responde, segue em frente, mas um palavrão contido às pressas escapa numa cusparada liguenta, (...). Baixa a cabeça, cerra as pálpebras e evita o pior, humilhado.


José Pereira Bezerra
em O Sono da Madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976

1.12.11

O CABEÇA DE CUIA, João Ferry


Com o sol a pino, um dia, no Poti,
Um pescador voltou da pescaria;
Vinha fulo, porque no seu pari;
Um peixinho sequer, nele caía.

Alegre a velha mãe o aguardava
Com o almoço frugal que de costume,
Para o filho querido preparava,
Quando vinha feliz com seu cardume.

Neste dia, zangado, o belo moço,
Tratou mal a velhinha e aos palavrões,
Recusou-se aceitar seu almoço,
Uma ossada gostosa de pirões.

Em vão a velha mãe bondosamente,
Com mimos, com carinho e com amor,
Procurou acalmar o imprudente,
Que tomando um osso, um "corredor"...

Bateu na velha mãe, em louca fúria,
Esmurrou-lhe a cabeça veneranda
E cobrindo-a de apodos e de injúria,
Mostrou sua alma vil, negra e execranda.

Com a dor, a velhinha atordoada,
No terreiro de casa ajoelhou,
Filho ingrato, cruel desnaturado,
E mil pragas do céu invocou...

Filho maldito, o rio há de tragar-te,
E entre todas as suas agonias,
De monstro que tu és, para salvar-te
Haverás de engolir 7 Marias...

E o filho como um louco caiu n'água
No lugar "Poti Velho" e ali sumiu-se,
E a velhinha chorando a sua mágoa,
Ao sol quente, de dores, sucumbiu-se.

E é voz corrente que o Poti gemendo,
Quando a cheia do rio em fúria desce,
O "Cabeça de Cuia", um monstro horrendo,
Nas águas a boiar sempre aparece.

E ao que consta, até hoje, o imprudente,
Não conseguiu tragar uma só Maria...
E há de viver assim eternamente,
Um fantasma de dor e agonia.


João Ferry
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)  
Teresina, 2006

29.11.11

O OURO DE TERESINA, Claufe Rodrigues


A primeira vez que estive em Teresina
Vi que seu destino não é ser uma Constantinopla
Com seus exércitos de Nova Roma destruindo os vizinhos
Cidade-Máquina, Cidade-Monstro, Cidade-Moeda, só morte e poder.

Teresina também não seria uma Alexandria
Capital cultural intelectual e artística do mundo helênico
Com as imponências da corte a impor-lhe a sorte.
Tampouco Teresina se compara às potências industriais do norte.

Não,
Teresina é feita de chão, de gente, de águas, de barro, de árvores, de nuvens,
Até mesmo dos mosquitos que atacam na beira do rio no fim da tarde.
Teresina tem um Tê de Tetê
Um rê de Regina
Um si de sina
Um na de nadar não para o mar, mas para a fonte.
Ali encontra seu horizonte,
Sua mina de ouro, seu tesouro:
A poesia.


Claufe Rodrigues 
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

28.11.11

TERESINA, Cristino Couto Castelo Branco


Terra feliz e boa onde nasci chorando,
Onde vi o sol, os céus, as árvores, o mundo...
Onde vi o grande amor em mim desabrochando,
Amor do bem, da luz, do mistério profundo...

Terra feliz e boa onde de quando em quando
Rebrilha no zênite o espírito fecundo
Dos talentos de escol, que surgem quase em bando
Nesta zona de sol, que muito quero, a fundo.

Teresina gentil de ruas alinhadas,
Tens n'alma a placidez das loiras madrugadas,
A beleza, a frescura e o riso das mulheres.

És o trecho melhor da pátria brasileira,
Chapada de trovões, que serás a primeira
Habitação de Deus, dos homens, se o quiseres!


Cristino Couto Castelo Branco
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

27.11.11

IMAGENS SOLTAS, José Ribamar Garcia


O pneu saltitando no paralelepípedo. O menino sem camisa, de calção e descalço, empurrava-o com um pedaço de tábua.
     
O céu girando, girando. A bicicleta substitui o pneu que, por sua vez, sucedeu o velocípede. A Gulliver vermelha, cuidada, brilhava com duas flâmulas do Fluminense dependuradas no guidom. Entrava na Rua Firmino Pires, dobrava à esquerda, na Estrela, caía à direita, na Rui Barbosa, depois à esquerda, na Lizandro Nogueira e, finalmente, na Coelho Neto. A estrela, em alto relevo, na fachada da casa do Monsenhor Chaves. O borracheiro que várias vezes remendara a câmara de ar da bicicleta.
     
O céu girando, girando. A ponte do Mafuá. A linha do trem sobre a qual se colocavam cacos de vidro para que o trem os transformasse em pó, a fim de ser utilizado, como cerol, na linha do papagaio. O Augusto Ferro, reduto dos boêmios suburbanos.

O Cemitério São José guardando lembranças, saudades. Dia de Finados, aquela romaria toda. Os vendedores gritando:

- Olha as velas Três Coroas!

- Olha as flores!

O matadouro, onde se adquiriam, à tarde, fígado, língua, coração, miúdos fresquinhos. O boi sendo arrastado por dois ou três homens, a entrar no salão, ensanguentado. O animal urrava, relutava, esperneava, pressentindo o fim. Com sacrifício, ele era amarrado ao mourão. A faca curta, fina e afiada entrava-lhe na nuca. E a queda brusca. Mais outro a adentrar e a cena se repetia.

O Poti Velho escondido, abandonado, sempre preterido, desde os tempos do Conselheiro Saraiva. Ali a gente caçava passarinho e preá. A mania do Milton Rodrigues de comprar canários, fuçando a periferia da cidade na sua motocicleta barulhenta, que o motor custava a pegar, ora pela bateria, ora por defeito mesmo.

A usina elétrica na beira do rio, fornecedora de água e luz, que funcionava na base da lenha. E as caldeiras queimando madeira, trazida em caminhões das matas maranhenses, já bem devastadas.

A Socopo do outro lado do Poti. Estância mineral com o clube social enfiando no mato. A cidade já marchava para aquelas bandas.

O céu girando, girando. A pescaria debaixo da ponte. A brisa soprava e a canoa deslizava, vagarosamente, sobre as águas do Parnaíba, puxando a rede ou o arrastão. o peixe era assado e devorado ali mesmo, na coroa do lado maranhense, enquanto se ouvia o baque das mangas, caindo no mangueiral que se estendia ao longo do rio.


em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

26.11.11

NOSSO RIO, Hardi Filho


O rio corre calmo e permanece
em nós úmida música, lembrança.
O nosso rio ao sol, ao luar, parece,
às vezes, lerdo, à proporção que avança.

O lixo posto em suas margens desce,
escorre e em grande parte se remansa,
pára em bolsões de ciscos e apodrece
à vista da social intemperança.

Assoreado, o nosso rio empanca
aqui e ali, e quase andando, manca,
e raso e lento obriga-se a desvios.

Apesar disso os peixes, água arriba
e abaixo, abundam no meu Parnaíba,
que é o mais lindo e o melhor dos rios!


Hardi Filho
em Tempo Nuvem 
Teresina, 2004

23.11.11

UM ÍNDIO, Paulo Tabatinga


Um índio perdido
Na Frei Serafim
De óculos ray ban
E de calça jeans

Um índio tapuia
Quem sabe, Poti
Um índio perdido
Na margem da margem
Da Frei Serafim


20.11.11

O ENGRAXATE SILVA, José Pereira Bezerra


Manhã calorenta e ensolarada de dezembro. Silva, engraxate como tantos outros, sentado no banquinho em frente a cadeira de trabalho, na Praça Pedro II, observa detidamente os pés dos transeuntes. Não ligam, passam apressados, indiferentes. O semblante pálido e marcado de Silva está carregado de preocupação e revolta. A incerta espera de clientes fá-lo perder-se em pensamentos inúteis, mas inevitáveis. A manhã já vai alta. Dez horas. E ele ainda não conseguiu o dinheiro da boia. Mediativo, vê os dois filhos magros, pálidos e barrigudos. "Quero cumê, mãe, quero cumê, pai tô cum fome". A certeza da briga da mulher o atordoa. "Tu anda é dando dinheiro pra rapariga". Exasperado, baixa a cabeça, cerra as pálpebras num lamento mudo, angustioso. Não sabe mais a quem implorar, em quem ter fé. Até a macumba o desiludiu. Silva deduz em sua mente turva e frágil que nasceu pra sofrer. Uma passividade quase mórbida o invade, tirando-lhe a esperança de um dia melhorar de vida. Muitos desfilam sob o olhar sensível da miséria. Não sabem? Uns com mãos vazias, outros com braços cheios de embrulhos. "Presente de natal". Silva, vestindo a mesma roupa desbotada e rota todo dia, permanece sentado, olhando os pés de cada dia. Reconhece que sua roupa está imprestável, porém se conforma, contrito. "Não mudo tão cedo, não tenho com quê". De chofre, lembra-se do diálogo que teve com a mulher:

- "Mulher, queria que um de nossos filhos fosse doutor?"
- "Mas como, homem, se não pode nem estudar?"
- "Sei que falta material, roupa e outras coisas, mas..."
- "Além do mais, são burro, custa aprender".
- "Talvez seja a boia, é fraca demais..."
- "Por que tu fica aí alimentando ilusão?"
- "Sei lá, a vida é tão dura. Não custa sonhar".
- "Besta, vai trabalhar!"
       
Antes de ir para casa, num lampejo de sorte, Silva consegue dois clientes. O último é um velho pequeno-burguês conhecido. Com a boca murcha, desdentada, murmura a cantilena de costume:

- Faça um abatimento que sou freguês.
- Sim senhor, patrão.
- Bem caprichado!
- Hum, hum! "Miserável".

Meio dia. Aliviado, Silva monta na velha bicicleta preta e sai deslizando no asfalto. O calor, o suor e a fome fazem-no um sub-homem, vivendo uma subvida crônica, absurda. Os músculos contraem-se entorpecidos. Imagens varrem-lhe o cérebro numa intensidade cega, envolvente. Ato instintivo, range os dentes, o suor fere-lhe os olhos, sente-se fazer parte da própria bicicleta. O trânsito é intenso. Para os cidadãos contribuintes, Silva é apenas um ciclista irreverente atrapalhando os veículos. Para o poeta: "o símbolo do sofrimento humano brigando com o asfalto".


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976

18.11.11

A CIDADE DO POETA, Paulo Veras


Era uma vez um poeta que construiu uma cidade toda de poemas. As ruas foram traçadas em versos livres. Eram largas e cheias de sombra. As casas foram feitas de sonetos, enfileiradas quatro a quatro, três a três. Todas muito bonitas. A igreja erguera-se numa longa ode. Os edifícios, ele os construiu com alexandrinos, majestosos, imponentes. Por fim, tomou um rondó e fez para si uma casinha muito acolhedora no alto do Parnaso.


Paulo Veras
em Poemágico, a nova alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

15.11.11

TERESINA, Mônica Montone


Teresina é uma menina vestida de céu
Que guarda nuvens nos seus olhos de água

É um fio de horizonte que se desprendeu dos cabelos do sol
É um sorriso manso, manchado de cajuína
É a vontade dos pés descalços
De desmaiar sobre o asfalto em chamas

Teresina é uma dama vistosa
Repleta de coroas e anéis
É uma tina de barro lambuzada de paçoca
A coceira de muriçoca
O riso largo dos que nasceram perto d'água

Teresina é o vaso queimado no fundo do quintal
O cheiro de palavra lavada no varal das sestas
É a fresta onde o acaso se traduz

Teresina não é rua, nem rio
Não é esquina, nem casa
Não é um cata-vento, nem peixe
Não é um cão sarnento ou cadela vira-lata

Teresina é uma menina de saia rodada
Que gira gentileza
E desperta para o crescimento

É uma cidade menina
Que brinca nas tranças do tempo


Mônica Montone
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

13.11.11

VIVER EM TERESINA, Marleide Lins

ao poeta Paulo Machado

Férias de galos
bem-te-vis e pardais acordam a cidade
- mais um dia de trabalho -

Fim da jornada
ao assédio da artificial claridade
o sol se esvai com as buzinas dos carros

Frase da noite velada
- (há um poema que rói o tédio) -
e o único grilo é a labuta da rima

mesmo pobre
viver em Teresina
é sina nobre


Marleide Lins
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

12.11.11

O CAMINHO DE ANA, José Pereira Bezerra



Ana, morena, sem pudor, rosto pálido, lábios queimados, horizonte perdido. Vive uma subvida humilhante e desregrada arrastando dois filhos órfãos e pálidos: o protótipo de milhões de homens subnutridos e marginalizados. O sonho cor-de-rosa acabou ao cair na vida de prostituta. Antes, há anos, era tudo muito simples. Vivia com a família numa favela. Não perdia uma novela, não tinha outro divertimento. A cada dia envolviam-na valores burgueses que nada tinham a ver com a condição de vida que levava. Inconscientemente, Ana queria seguir uma vida romanceada e atriz de novela. Não era tudo tão romântico e lindo? A cegueira obscurecia o real horizonte na sua mente fraca, tirando-lhe toda perspectiva de cura. As festas do bairro se sucediam e ela perdia-se nos embalos frenéticos de todo fim-de-semana. Ir à escola era uma diversão a mais, Ana não levava a sério. O capítulo das novelas e o namorado da esquina tomavam-lhe todo o pensamento. Irresistíveis. E assim Ana matava o tempo que a consumia inexoravelmente num ambiente poluído de fraquezas. Um trágico dia - sábado à noite - Ana esperava o ônibus numa parada, quando passou um boy dirigindo um carro e cinicamente ofereceu-se pra levá-la. Resistiu por minutos, vacilante, porém algo mais forte empurrou-a ao veículo do boy desconhecido. "É tão normal, ora bolas, até em novelas das sete se vê isso". Tentava convencer-se da atitude que acabava de tomar. No dia seguinte, quando voltou a si, Ana, morena, simpática, fornida e despudorada, estava caída num terreno baldio da periferia, muito longe de casa. Atordoada, deu uma vistoria no vestido amarelo e vislumbrou manchas de sangue. Após recobrar totalmente os sentidos, e para o seu ódio inútil, achava-se estuprada, com o corpo azunhado e cheio de manchas roxas. Não se lembrava de nada. Arrependida, Ana chorou desesperada e convulsivamente, contraindo o rosto com as mãos. Não queria acreditar. Na sua nova condição de objeto, sentia-se perdida. Ao chegar em casa, os pais sentindo-se ofendidos, puseram-na pra rua. Foi assim que Ana, virgem morena e fornida, tornou-se puta. O sangue virgem de Ana havia maculado o olhar pudico dos homens. Agora a madame de cabaré da Paissandu tinha uma puta boa e simpática para explorar por qualquer vintém. Ana, com o passar do tempo, tornou-se produto barato (seguindo a lei da oferta e da procura) mas de alto custo pra sua própria existência. O caminho era falso, e Ana ainda continua seguindo uma vida errante de fim previsível e trágico. E os órfãos?


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976
Desenho de Evando Vieira, originalmente publicado no livro

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

9.11.11

TERESINA, João Ferry


Do meu bom Piauí, a linda Teresina,
Tem foros de princesa e tem condões de fada.
Cidade nova e moça em forma de menina,
Botão que desabrocha aos beijos da alvorada.

De tanto admirá-la a minha sorte ou sina,
De zelos possuída ardente e apaixonada,
Supõe que o seu conjunto é uma mulher divina,
E em vez de uma cidade, é a minha namorada.

E disto convencido, os sonhos cor-de -rosa,
Dão força ao pensamento e aos loucos devaneios,
Que fazem da minhalma a imagem mais ditosa.

E lembra o Parnaíba, o rio de águas mansas,
Que a cidade verde, em frêmitos e anseios,
Sofralda a fímbria em flor das minhas esperanças.


João Ferry
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)  
Teresina, 2006

8.11.11

João Ferry - síntese biográfica, por Assis Brasil


"A poesia de João Ferry tem duas fases. A do parnasianismo 
multiforme e a da compreensão e assimilação dos novos rumos 
da poesia, procurando libertar-se dos processos matemáticos 
da métrica e da forma". Herculano Moraes


Nasceu João Francisco Ferry em Valença do Piauí, no dia 16 de abril de 1895, onde estudou as primeiras letras com seu pai, o professor José Francisco Ferreira da Silva, no Colégio São José. Com apenas instrução primária, João Ferry parte logo para o trabalho no comércio aos 12 anos de idade. Com a experiência no setor, em breve seria guarda-livros em importantes firmas comerciais piauienses, como a Agência de Rossbach Brasil Companhy, Joaquim Luz & Cia. e Ney Ferraz & Cia., de Teresina.

Enquanto prepara seu livro de versos, Princípios, que será publicado, de parceria com Luís da Paixão Oliveira, em 1914, João Ferry faz uma proveitosa incursão pelo interior de seu Estado, tendo trabalhado em Paraíso (hoje Miguel Leão), Pimenteira, São Pedro do Piauí (como vereador) e nos últimos dias de vida na prefeitura de São Miguel do Tapuio.

Interessando-se também pelo teatro e pelo jornalismo, fundou em sua cidade natal O Lépido, jornal de crítica literária, sendo um dos lançadores do jornal Cidade de Floriano, considerado por Fenelon Castelo Branco um dos melhores da imprensa nacional. Por outro lado, João Ferry teve o seu momento de glória no teatro, quando suas peças era encenadas em todo o Estado e representam de fato os primórdios do gênero no Piauí.

Poesia simples, sem rebuscamentos das escolas em voga, embora a paga do tributo da rima, João Ferry desenvolve também uma espécie de ironia diante dos problemas dos problemas da existência, com a compreensão dos simples e dos ingênuos que tanto marcaram a poesia popular de Hermes Vieira, Hermínio Castelo Brando e mesmo Ovídio Saraiva. Gostava de juntar prosa e versos nos seus livros, com é o caso de Em busca de luz, de 1922, que traz a comédia Quem tudo quer tudo perde, já encenada em quase todos os municípios do Estado do Piauí.

Patrono da Cadeira 38 da Academia Piauiense de Letras e membro da Associação Profissional dos Jornalistas e do Cenáculo Piauiense de Letras, João Ferry morreu em Teresina no dia 22 de setembro de 1962.



em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


7.11.11

TERESINA, Yolanda Bugija de Souza Brito


És linda, cativante e hospitaleira,
Tens a aparência mesmo de rainha
Que até chego a dizer, cidade minha,
Que és o mimo da terra brasileira.

Tua lua é tão linda, oh! Terra minha,
Porquanto igual jamais vi tão fagueira,
E para mim será sempre a primeira,
Porque da fidalguia tens a linha

Os teus filhos se orgulham com razão
De te terem por berço - é natural -
Pois de nenhum magoaste o coração.

Teu rio que é o eterno inspirador
Dos poetas desta terra tropical,
Guarda em seu leito encanto sedutor.


Yolanda Bugija de Souza Brito
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

6.11.11

O PRISIONEIRO DA LIBERDADE, José Pereira Bezerra

"A gratidão é uma forma sutil de desforra;
o beneficiado recobra a sua superioridade
no esforço de ser grato".

João Davidson

Um homem moreno, forte, aparentando quarenta anos... Diziam ser louco... Estava deitado no cais e contemplava as águas do velho Parnaíba que corriam silenciosas.

Desde quando deixara a família, há muitos anos atrás, por querer recobrar a liberdade - admitia ele quando falavam no assunto - sempre dormira no cais e gostava de lá. Era como sua própria casa... A paz que o cimento frio, o céu azul cheio de estrelas, as águas mansas do rio refletindo as luzes dos postes, lhe proporcionavam era realmente confortadora.

Conhecia todas as mulheres que faziam e vendiam comida no mercado velho. Elas, não raro, davam-lhe prato-feito sem nada em troca. Gostavam, sim, gostavam demais dele; ajudava-lhes carregar as compras, fazia compras, dava recados... Era de inteira confiança e muito útil - diziam elas, umas às outras, abanando o fogareiro com uma grande panela em cima; a comida fervia... É verdade também que de vez em quando ele dormia com uma delas.

Ele gostava de passear pelas ruas de Teresina, sentar-se perto das fontes luminosas. Fontes luminosas. Não, não gostava de andar perto delas... Nunca mais se esqueceria do que aconteceu com ele numa tarde calorenta de outubro... Estava suado, com muito calor... Dera uma vontade de lavar o rosto e molhar a cabeça... Estava longe do rio... Caíra na besteira de utilizar a água da fonte luminosa, pra que!? Levou um grande choque elétrico... Quase morreu... Nunca mais se esqueceria disso... Ficaria como exemplo... Fontes luminosas eram como a mulher do diabo, bonita de verdade, mas matava... Concluiu ele perdido em pensamentos.

Sofria de insônia e às vezes passava a noite toda acordado. Aquela noite era uma delas; de vez em quando olhava para uns cestos de tabocas, dispostos em pilha ao seu lado... Às vezes falava sozinho, como quem dialogasse com o rio que ele conhecia melhor que ninguém... Não, não tenho medo do Cabeça de Cuia falava de si para si, como para dar prova de sua coragem - pois já o vi várias vezes... É verdade que o brilho da cuia preta me fez ficar meio arrepiado... Mas foi só a primeira vez... Depois me acostumei... Dizem que ele só se desencanta quando levar sete virgens... Não sou mulher, não tenho medo.

Nesse instante chegou no cais uma mulher correndo. Mulher nova, lábios pintados de vermelho, cabelos compridos, trajando um vestido semilongo vermelho, com um longo corte em cada lado que dava para ver boa parte das coxas pareceu que ela nem sentiu a presença dele, ou talvez pensasse que estivese dormindo... Não estava... Talvez tivesse vindo do cabaré da Paissandu, e fosse tomar banho, está fazendo mesmo muito calor - pensou.

A mulher começou a despir-se descontraidamente com movimentos rápidos e bruscos... Num segundo estava só de calcinha amarela... Tinha os seios ainda bem duros... Veio-lhe uma vontade de agarrá-la, mas se conteve... Já era muito vê-la banhar nua em sua frente e naquela hora... A mulher ficou instantes na beira do rio, pensando e... Tbungo n'água. Ele continuou deitado no cais mas a observava atentamente, tentando ver melhor seu corpo nu e molhado, cintilante pelo reflexo da luz... Porém, minutos depois, ele notou que a mulher não sabia nadar, porque se debatia desordenadamente contra as águas barrentas do rio, como estivesse afogando-se, mas sem dá um grito sequer... Ele levantou-se imediatamente... Pulou n'água do jeito que estava, vestido de calça e camisa e foi de encontro à mulher, que subia e descia... Com gestos rápidos e firmes, agarrou-a por trás e rapidamente guindou-a até o cais. Ela permaneceu calada; já havia bebido uns goles d'água. Ele fitou-lhe o corpo nu... E como levado por um desejo forte aproximou-se dela e começou apalpar-lhe o corpo... Ela não dizia nada, naturalmente gostava - pensou.

- Por que você entrou no rio, se não sabia nadar?

- Queria morrer... Esta vida é um inferno... Madame surrou-me, ameaçou-me, expulsou-me do cabaré... pensava que eu queria o homem dela... ele era quem vinha atrás de mim... Disse chorando baixinho, aos soluços.

- Não chore... não faça isso mais, não - disse puxando-a contra si - o mundo é grande, e sempre existe um lugar pra quem quer viver...

Fizeram amor ali mesmo. Parou de chorar e naquela madrugada não pensou mais em suicídio.


José Pereira Bezerra
em O prisioneiro da liberdade
Teresina, 1978(?)