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6.9.14

OS DOIDOS DA MINHA MEMÓRIA, por Edmar Oliveira


Manel Avião, Manelão, avião, ão, ão. Vrummmmm. E lá se ia Manel conduzindo um avião imaginário na mão direita, que já, já, virava asa e, abrindo os braços em duas asas, Manel era o próprio avião, que encantava os meninos que viam o Manelão como cena de cinema que ele fazia o voar na imaginação. Manel voava de verdade. E a lenda se espalhava na cidade. Na Piçarra, diziam, invadiu uma casa e roubou um rádio. Na Palha de Arroz seduzia meninos e meninas, que as mães zelosas não deixavam chegar perto do avião. Podiam ser levadas pra longe e se perder na escuridão da noite. Manel contava histórias. Histórias de cinema que se passavam em Teresina. Não sei que fim levou. O avião, com certeza, lhe levou embora...

Nicinha, pequenina, enfeitava-se de fantasias de carnaval durante todo o ano. Todo dia, toda aglomeração, discurso político, conversa de bêbados, papo de vagabundos, qualquer ajuntamento de gente fazia aparecer o pipoqueiro, o sorveteiro e Nicinha. E aí vinha ela. Numa elegância exagerada, maquiagem intensa, óculos de gatinha, fita colorida no cabelo, vestido de tafetá azul celeste. Qualquer que fosse o dia do ano Nicinha vestia a fantasia da terça gorda do Carnaval. Me encantava a sua presença. Era a marca de que o que estava acontecendo tinha importância. A porta do Teatro, o Bar Carnaúba, a Pedro II, o Café Avenida, eram lugares que só existiram pela presença de Nicinha. Me contaram que teve uma morte violenta com requintes de crueldade. E o criminoso nunca foi encontrado. Quem poderia fazer mal a um beija-flor tão bonito? Mas na minha infância tinha menino que engolia coração de beija-flor pra ficar guabes. Guabes, pra quem não conhece piauiês, é ficar com boa pontaria na baladeira. Baladeira, um piauiês tão bonito, é estilingue ou bodoque noutras pronúncias. E Nicinha e o beija-flor nunca fizeram mal a ninguém, mas morreram do mesmo jeito...

Bibelô era um bibelô. Genial quem inventou o apelido. Era um homem pequeno e delicado que se vestia de mulher, mas de forma tão fina, delicada, suave, diria mesmo harmoniosa. Não tinha o exagero de Nicinha. Era uma espécie de Carmem Miranda contida, pois que não tinha o exagerado da notável. Seus balangandãs, quinquilharias, indumentárias e adereços não agrediam aos olhos. Mais parecia um Matogrosso no início de carreira nos Secos & Molhados. Às vezes um turbante lhe tornava palestino. Uma maquiagem discreta fazia aparecer a Maria Bonita. Lembro da tristeza nos seus olhos. Aparecia e desaparecia nos portões, nas casas, nas mercearias. Pedia um café. Comentava alguma coisa e ia embora. Parecia não querer incomodar com sua presença. Mas assim mesmo tinha inimigos implacáveis que o perseguiam. Lembro de alguns de seus machucados provocados por agressões. Ele incomodava por ser diferente de tudo. Não era um travesti transformado pelas roupas femininas. Parecia um Rodolfo Valentino maquiado para entrar em cena. Não sei quando saiu de cena da cidade. Por certo com a discrição que o caracterizou...

E outros existiram. Mas estes marcaram minha existência de forma decisiva. É como se eles reafirmassem Teresina dentro de mim. E na cidade de minha infância, embora pequena, nunca encontrei os três no mesmo espaço. Cada um tinha seu pedaço de cidade para fazer sua aparição e performance. Só consigo reuni-los na memória: Bibelô dos olhos tristes, Nicinha com alegria estampada no corpo pequenino de beija-flor, Manelão voando no céu azul intenso das nuvens de algodão da cidade verde...





17.8.14

CINE SÃO LUÍS, Geraldo Borges


Estou em Teresina.

Toda vez que venho a Teresina hospedo-me no antigo cine São Luis, ou melhor, no velho  prédio onde funcionava o cinema São Luis na década de cinquenta. Hoje é apenas um hotel modesto próximo a Praça Pedro Segundo, e ao lado do Clube dos Diários. Mudaram a sua arquitetura funcional. No lugar amplo onde existia o auditório construíram quartos com suítes, onde existe também televisão. Mexeram em tudo por dentro. Demoliram a cabine onde o filme rodava e ia se projetar na tela para deleite dos fregueses, demoliram as bilheterias, expulsaram  os lanterninhas, os porteiros, de caras de poucos amigos, e os fiscais que conferiam as nossas carteiras de estudantes. Só conservaram mesmo a fachada, que ainda faz relembrar um pouco o cinema.

O Cine São Luis me faz recordar o meu tempo de menino. Agora quer estou sozinho na minha suíte pego – me a pensar nos velhos faroestes tocadas a ferro e fogo, com cavalgadas  e diligencias, e, às vezes, índios.

Nunca pensei que um dia o Cine São Luis se tornasse um hotel. O pior é que muitos prédios históricos foram abaixo para dar lugar a estacionamentos de carros.

Não dormi bem essa noite. Pois estava com medo de perder o avião, embora tivesse avisado ao recepcionista que me acordasse pelo telefone.

Durante a noite tive um sonho. Sonhei que estava em um castelo, servido por mordomos e criados. Mas a maioria dos hospedes do castelo eram fantasmas, velhos astros e estrelas de filmes em preto e branco da Paramount , da Columbia, da Metro. Eles falavam inglês. E eu tentava traduzir. Parece que estavam dizendo por que diabo o Cine São Luis tinha se transformado naquele castelo mal assobrado. Tudo estava diferente de seu tampo. As pessoas entravam no prédio sem comprar bilhete, sem fazer fila, sem comer pipoca, o prédio não tinha mais cartazes deles nas paredes. De repente no meio da conversa eu vi Marilyn Monroe arribar o  vestido. Vi namorado de mãos dada se beijando no escuro do cinema. No desfile desses fantasmas consegui ver em minha mente uma procissão de estrelas e astros que povoaram a minha imaginação aí pela década de cinqüenta, principalmente os que faziam papeis de mocinho e me fazia sair do cinema com os ombros levantados, e caminhando altivo.

Acordei com o toque do telefone. E tentei relembrar os detalhes do sonho. Com certeza esqueci a metade. Talvez tenha visto muitos filmes, remendado. Levantei. Esfreguei os olhos. Pisei meu sonâmbulo no assoalho. Acendi a luz. E pensei, seria maravilhoso se eu encontrasse Marilyn Monroe inteiramente nua no meu banheiro. Talvez eu não estivesse ainda acordado completamente. A Água fria me traria à realidade. Mudei de roupa. Arrumei a mala e desci. Não deu tempo de tomar café.

Pedi um táxi. Rumei para o aeroporto. Embarquei.

O avião alçou voo. E durante a viagem num esforço de memória e imaginação rebobinei, com direito a fitas quebradas, quase todos os filmes que eu vi no velho Cine são Luis do tempo de minha infância. E só assim comecei a entender porque escolho, para me hospedar, sempre que venho a minha cidade, o velho prédio onde funcionou o Cine São Luis.

10.4.14

AS VOLTAS DA PRAÇA PEDRO II, de Barros Pinho



praça pedro II
há quanto tempo não te vejo
só converso contigo
com os olhos na infância
em dúvida nos braços da adolescência
nos beijos rápidos da namorada fugidia
entre um e outro fícus benjamim
no tempo que se volta na busca
de outras voltas nunca
a derradeira no começo dos sonhos

praça pedro II guardo de ti
a leitura de muitos olhos atônitos
em tudo havia a inocência em flor
desejos dispersos no esperar
espera que nunca se confirma
até dizer que teresina vive
sempre dentro de mim



Barros Pinho
em Planisfério 2ªed.
Teresina: Corisco, 2001


6.4.14

TERESINA MENINA




teresina menina
és virgem de teus poetas
que tanto te penetram
te expõem a alma e o corpo
e sempre possuis um mistério a mais
para ser explorado?
hímen intacto
eterna paissandu das putas
eterna pedro segundo do quatro de setembro
corpo impenetrável
estigma imaculado de quem nasceu na miséria
                                e traz as marcas no corpo
rios arranhados no ventre
menina que encobre o sexo com a mão
com vergonha de ter sexo
mata virgem deflorada
menina encobrindo o sexo com a mão
descobrindo o próprio corpo
tão bela quanto qualquer outro canto
                                    sob o céu e o sol



Adriano Lobão Aragão
em Uns Poemas 
Teresina: FCMC, 1999

ENTRE BANCOS SORRI CAFÉ ART BAR, Renata Flávia


entre bancos sorri café art bar
as vontades da vista da praça
cheia de saudade do que não vimos.
entre postes
entre hippies
sorri meu mais novo amor
rodeado dos antigos
de restos e velhas construções
armações que o tempo preserva feito bibelôs
feito coração velho já amargo e frágil
com portas grandes e coisas sem valor.
entre bancos, pedras, rochedos velhos
sorrir meu novo amor.


Renata Flávia
enviado pela autora

5.4.14

CORAÇÕES DA TERRA, por Menezes y Morais




...

compadre salgado maranhão
destrói do teu cérebro essa ideia suicidade

q os trabalhadores te querem em luta
i a poesia te quer vivo
nesses tempos de anistia ampla
y corações restritos

...

nossos amigosão pessoas bonitas
na dimensão da fala dialética grito
o cineas vem de uma gleba seca com a
água de sua ternura
o william se fez poeta engajado pra
alegria da poesia
o eduardo não acredita no amanhã pra
desespero de mais um dia
todos lindos
todos livres na prisão do dia
nesses tempos de anistia ampla
y corações mesquinhos

o arnaldo albuqueque
o fernando s. costa
o albert piauí desenham os sóis dessas noites frias

armadas de fuzis e bombas de hidrogênio

(aquelas q matam os homens e
conservam intactas as propriedades do rei)
e o luiz bello afirma que precisamos
criar o ministério da paz
e o povo bebe tanta pinga e fuma
tanto medo só pra ter coragem
nesses tempos de anistia restrita
e corações gerais

a marleide
cabelos dourados baloiçando

ventos do céu

dessadjetivada democra-
                                cia mina dos olhos
                                  imperialistas

a beth rego
o rubervam du nascimento a profissão dos peixes
no tempo
o sussurro o grito o homem da rua
timon a voz do trovão
a ana miranda a rosinha lobo as cores
dos sonhos
o pólen do sol
o zémagão

viajamos na constelação de vênus e foi tão bonito
e até hoje nos amamos e acreditamos
na decadência final
de tudo a-kilo
e eu sou um sol e vou parir um crepúsculo

nesses tempos de anistiampla
y corações aflitos

o chico casto de camisaberta
na filosofia do tiro
a leila a homeopatia
memórias da ilha do fundão
postais do paraíso
a ednólia fontinele o bernardo silva
o arimatan a elnora o teotônio do sax
o zeferino alves neto a rosa o sales
herculano moraes o pds
o chico miguel de moura o universo das águas
o emerson araújo
a janete dias baseada na era
o candeia o varanda o fruta madura
as asas do rubens costa
a vida operária
a canção permanente
raimundo alves lima
o clebe montezuma o kenard kruel a
pedra do sal
o fred maia da gota serena brilhando tranquilo

o antônio nobre (da dilertec) resiste na sua
dignidade branca
e o contista pedro celestino
conhece a história dos incêndios das
casas de palha
terror burguês em teresina
o wilton santos da cerca de arame do diadema e
do caco de vidro
a comadre nazaré leite desaflitadeolhosaberto
acampomaior
o otacilomendes
amaria da Inglaterra
o sal o suor
o repente o oriente
a verdura da terra
e na
        praça pedro II
os jornais a televisão e as revistas
informam q o mundo vai mal
o erlich cordão o jamerson lemos a poética
da necessidade
o paulo moura o wellington careca o
joão evangelista
o preço da liberdade
a eline menezes
o geilbert chaudanne
pássaros
terra do sol
     conquistada
o ubirajara dias (biroca) o genésio
araújo (tlinta e tlês)
o júlio pança o leo

o diário do piauí foi um jornal apaixonado
o beto pirilampo a rosilândia a sulika
a cultura orgânica
oroque moreira e seu gosto na berlinda
o fabio ator
o fim do mundo início de tudo é cedo ainda
e a dora parente luta pela felicidade
geral trabalhada
a coragem pra suportar os ataques
epilépticos do sono
o élmar carvalho poeta da vila e da liberdade

o j. barros o feitosa costa o heyden cunha
o raimundunho da medicina
sonhacom as transformações da espécie
e vive pela materialização do sonho
e a gildes silveira fala da cidade
grávida de sol e de fome
e o poeta hardi filho acredita
                                              o amor
é o pão que faz o homem
e o joão batista e a sandra almeida o tarciso
                                                                  prado
                                 
                               o sol no zênite
a dor de ser feliz q nos consome
o domingos bezerra
a rosa rubra sorrisonhos
fiapos de canções regados a cerveja
praça da liberdade
enquanto o império fatal marcha lento
pro necrotério do hospital
getúlio vargas
nesses tempos de anistia restrita
y corações de neocid
...
o gérmen da vida a força latente a
corrente do meu coração
o fábio torres a laranja partida ao meio
o laurence o eneas o providência o
pierri baiano o pão de centeio
parcelle eugênio o victor martins o
paulo pelicano
o assis linhares e o feitosa lit a mareília
o coqueiro o caetano
o santana e silva o teatro de rua
antes do golpe de 64
o geraldo borges e a história em
quadrinhos
lida no bar do gelati
quando a avenidatinhamais serafins
o zé afonso a opressão a guerra dos cupins
o ocimar barbosa o josemar nerys
          filhos do povir
o celso teodósio patrício
o zé o zé de luna a marieta a zuita o nael
          as meninas mocinhas-em-flor
a socorro magalhães a nonata o jacinto
a socorro araújo
o ar o gesto o laço o fato concreto
sonhos d'esperança
a certeza de que só existe q não foi criado
..........
pássaros-paisagens e botboletas
brincam no azul de altos
o bairro piçarra o ginásio álvaro fereira
              o cabaré da maroca
o maestro luiz santos a neguinha o
marquinho a mary o zaquee
o primeiro e o segundo amor a política estudantil

a sinuca a ternura da "tia" maria
solar estrelado
onde a gente se reunia messes tempos
de anistia
y corações do amanhecer
o chico alberto
o o.g. rêgo de carvalho a estrela azul
no céu da tarde

o wellington mendes a joana o iago
o exemplo luminoso: a solidariedade

o padre pedro maione
o padre sandro
o padre costinha
o pão o ecangelho a encarnação do verbo

o preço da vida
sabor dovinho
um camponês deseja a terra e a chuva
explode em flôr
o merlong nogueira o fonseca a travessia
o wellington o dce livre o me autônomo

a fufpi sitiada
o antônio josé da livraria punaré
a guerra do jenipapo a chapada do corisco
as sete cidades
teresa cristina
o deusdeth nunes a "mãe" ana o
mingau dos astronautas
os pastéis da maria divina
e a cervejinha bem gelada da maria tijubina

sol a pique
luadentro
viver teresina

...



Menezes y Morais
Teresina 150 anos (fascículos do Jornal O DIA)
Teresina: 2002


1.12.13

T. REX CINE


para eliete e soraya


cinema paleolítico
fantasmático paralítico
quantos filmes você viu ?

veludo azul
bandido da luz vermelha
era uma vez na américa
amarelo manga
kill bill

tanto filme
onde é que já se viu ?

cine rex
da sua sacada
quanto desejo
quanto tesão e delírio
na praça pedro segundo

gerações de poetas, esses seres esquivos,
invocaram as tropas celestiais
e hordas de demônios
em caçadores da arca perdida*

sucessões de namorados, normalistas e funâmbulos
medindo bocas em big close ups
fusão de corpos mixando línguas
no escurinho do cine rex

cine cine cine rex
cinema dos meus fascínios
com quantos fotogramas
se escreve o roteiro da sua ruína
estrelado por poetas, cinemeiros, namorados
sitiado nessa praça
à espera do inexorável
fim.



*dos chatoboys da abá dobal
aos cavaleiros da triste figura de torquato neto
dos delinq?entes da imagem digital de douglas machado
à farra do verbo de durvalino, demetrios e kilito.
[the pi - nov 2004 / nov. 2008]




Chacal
em T. Rex Cine
Teresina: 2008

11.11.13

TÃO TERESINA, QUE DÓI, Cineas Santos

Ao poeta Paulo Machado

Era um tempo sem colheita / mas havia a crença:/ viver não doía tanto. Bem que poderia ter sido assim; não foi. Numa manhã de cristal, dessas que só acontecem em Teresina, fui literalmente despejado na Praça Saraiva. Era maio de 65. Nos bolsos, dezoito cruzeiros, uma carta de recomendação, que se revelaria inútil, e um endereço de um quase-parente que jamais procurei. Nos olhos, a poeira da estrada e o espanto diante do novo. No corpo inteiro, o medo latente.

De cara, três surpresas. A primeira, preocupante: a quantidade de carros trafegando nas ruas.. Carecia tomar tento pra não voltar para a aldeia convertido em notícia ruim. A segunda, estimulante: a abundância (taí a palavra adequada!) de mulheres por toda parte. De onde eu vinha, só se via algo parecido no dia da procissão do Padroeiro. A terceira, elucidativa: o Parnaíba. O risco inexpressivo dos manuais de geografia, na verdade, era uma veia aberta, generosa, encharcando de vida a terra, os bichos e a gente do Piauí.

Depois de zanzar por pensões ordinárias, atraquei na UPES (hoje, CCEP) onde já amontoavam outro náufragos. A casa poderia acomodar, com desconforto, dez pessoas. Éramos oitenta! Normalmente, faltava água e não havia um único banheiro, o que na verdade não fazia tanta falta, já que também não havia o que comer. "Deus só dá o frio..."

Desbravar a cidade era um desafio. Na P2, as mulheres, como animais em exposição, circulavam graciosamente. Os homens, mãos no bolso para disfarçar, conferiam, aferiam, faziam propostas. No coreto, a bandinha da PM atacava de dobrados e marchinas, "programa de velho". Na parte alta, recrutas bolinavam curicas. Na Paissandu, a noite nunca envelhecia. Estrela, Amambay, Fascinação: boleros, varizes, cerveja e gonorréia. Eh, Antônio Leiteiro!

No Clube dos Diários, a fina flor da burguesia embalava-se ao som do Barbosa Show Bossa em "tertúlias", onde havia um pouco de tudo: namoros, conchavos, negócios, jogatina. Como um cão de guarda, Marcelino conferia o pedigree de cada novo sócio e escorraçava os indesejáveis. E eu comendo com a testa.

No Carnaúba, homens e ratos disputavam o mesmo espaço, com ligeira vantagem para estes que, na condição de provadores, beliscavam tudo sem pagar nada. No Flutuante, meninos entanguidos e piabas elétricas disputavam migalhas, sob o olhar complacente das lavadeiras seminuas. 

Nos programas de calouros, Ruy - o primeiro cabeludo da cidade - fazia paródias geniais: "Garota de Timon nunca teve vez / Nem que seja bonita / Nem que fale inglês / Lá é tudo tinindo / E quem governa é o padre Delfino". Valdenir, com voz chorosa, cantava "Maria Helena", sempre "a pedidos". Nos saraus familiares, Silzinho e Assis Davys cantavam "Perfídia" com sotaque caribenho.

Nos embalos jovens, Brasinhas, Metralhas, Sambrasa arrepiavam. Luz e cor: calça boca de sino, bota calhambeque, rum com coca-cola, minisaia de napa, milk-shake. Nas mãos afoitas e nervosas, passeavam inicentes baseados. "Me segura que eu vou dar um troço!"

Nas emissoras de rádio, "o mundo em ondas sonoras". A. Tito Filho vertia cultura pelos poros; Ary Scherlock esbanjava glamour; Figueiredo fustigava os desafetos (todo mundo) com o seu Almanaquinho do Ar; Roque Moreira comandava o Seu Gosto na Berlinda; Mariquinha e Maricota estilavam veneno; Al Lebre enchia o saco de meio mundo com seu chocalho madrugador; Deoclécio Dantas e Carlos Augusto vergastavam políticos e delinquentes, e Dom Avelar, com sua autoridade de pastor, apacentava o rebanho com a "Oração por um dia feliz". Tudo tão Teresina!

No Theatro 4 de Setembro, rolava tudo: Maciste, Tarzã, ídios, caubóis, tapas e beijos. No carnaval, realizavam-se os concorridos bailes promovidos pela Prefeitura, com direito a tombos no piso inclinado. Na Semana Santa, a exibição da indefectível "Tragédia do Gólgota" encenada por Santana e Silva. Nas página de O Dia, Fabrício Arêa Leão escrevia crônicas laudatórias em aramaico, enquanto Dona Elvira atiçava a "fogueira das vaidades" dos novos-ricos. Eh, cidade amada!

No Lindolfo Monteiro, Gringo, Vilmar, Evandro e Sima agitavam a galera, enquanto Carlos Said desancava os "energúmenos" em linguagem tão pomposa, que muitos se sentiam lisonjeados. Mas o melhor mesmo era ofender a mãe do juiz, sabendo que ele estava ouvindo tudo. Te segura, Braz!

E tão envolvido estava, que nem me dei conta de que a cidade crescia, inchava; cercada de favelas, prenhe de cursinhos, panificadoras, motéis, templos evangélicos, casa lotéricas, carros importados, mendigos, telefones celulares e o escambau... E aqui estou eu, bestamente, amando essa pobre cidade transitória, como se fosse a mais importante do mundo. E é!


em As Despesas do Envelhecer 
Teresina: Corisco, 2001

PRAÇA PEDRO II, Cineas Santos


Umbigo do mundo
corações e pernas em descompasso
sonhos em ebulição...

Emoções no Rex
conchavos no Carnaúba
negócios no Acadêmico
sabores na Predileta

E os desejos represados
desaguavam na Paissandu
onde a noite não envelhecia.


em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

6.11.13

CAFÉ ART BAR, Rodrigo M Leite


da tarde que segue nervosa
homens surgem suados
carregados de preocupações
destinos a esmo
me vê uma antártica gelada
lá fora praça pedro segundo
a claridade destrói o asco
ferrugem que incendeia o portão velho
na entrada de um estacionamento
a urbe urge roncos trôpegos
a tarde é consumida dentro de um café


Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita
Teresina: 2013 (versão atualizada)

22.10.13

P2, por Rubervam Du Nascimento


Há uma praça
no centro da cidade

que fica acesa
quando engole a tarde

reparte seus fantasmas
com quem passa

namora em silêncio
os segredos do tempo

sobe no coreto
ouve a retreta

dorme no colo
em "P2" (livro sobre a Praça Pedro II)
Teresina: Livraria e Editora Corisco Ltda, 2001


21.10.13

SR. CORNÉLIO



Cornélio Evangelista da Costa, o Sr. Cornélio, que completa 90 anos no próximo dia 28 de agosto, disse que não tem saudades de tempos atrás. "Gosto da Zona Leste de Teresina pelos seus arranha-céus", afirma. Há quarenta anos, ele se instaurou no ponto mais badalado do centro da cidade, a esquina da Praça Pedro II com a Avenida Antonino Freire, a menor avenida do mundo, construída para homenagear o governador do estado entre 1910 e 1912. O cardápio ainda é o mesmo: pão de queijo e refrigerante. Ele mesmo cuida da lanchonete até hoje. É um observador do seu tempo e diz que até os costumes mudaram. "Uma coisa interessante, os homens circulavam o coreto da Praça Pedro II pela direita e as mulheres, pela esquerda, era assim que se paqueravam. Se você fosse deixar a moça na casa dela, era casamento feito", revela. Ex-vizinho de figuras ilustres como os governadores Helvídio Nunes e Leônidas Melo, ele relembra que a atual area nobre da cidade, a zona leste, era um local de veraneio, onde os comerciantes do centro mantinham sítios para passar o final de semana. "As pessoas mais ricas da cidade moravam na Avenida Antonino Freire e na Avenida Frei Serafim", lembra. Natural de São João dos Patos "MA", Sr. Cornélio ficou viúvo às vesperas de completar bodas de ouro. "Foi amor a primeira vista. Tenho três filhos, cinco netos e dois bisnetos", disse. Sr. Cornélio não tem planos de parar. Todos os dias, o forno da lanchonete Mary Lucy assa mais de cem pães de queijo que são consumidos ainda quentes.



Revista Veja 
Edição 2229 
Ano 44 - nº 32, em 10 de agosto de 2011

17.10.13

TERESINA DO MEU TEMPO (A PRATA DA CASA)




Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo - é bom que se saiba - parece não terem nada a dever aos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As "Horas de Arte", festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais - a prata da casa - em geral elementos próprios da sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 no amparo, ora à noite, no Teatro 4 de Setembro, ouviam-se solos instrumentais - piano, violino, flauta, bandolim, violão - números de canto e dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: "A tesoura", "As mãos", "A luz", "As estrelas". Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e finalmente perdida, sob o título "O elogio da lágrima". Talvez influenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícia, por constituir verdadeira raridade bibliográfica.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais "Clube Recreio Teresinense", "Os Amigos do palco", "Os Talianos" e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Teatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas "O bicho", "Frutos e Frutas", "O Coronel pagante" e "Jovita", todas de Jônatas batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os "Amantes da Cena Viva", grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama "Mariazinha", também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfiou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelava no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zila Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violonistas; Durcília Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam música tocado valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Radagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingo à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! a poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizades conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namorados que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda...Lourdinha...Maria Luísa...Maria... Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado: quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo: nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela jóia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no final da jornada, acabo de perder. Mas, com licença: o assunto é outro.

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x  x

A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela a oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão influído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso "Teresina meu amor":


RONDÓ À AMADA AUSENTE

Não quero flor nem brilhante,
Quero carinhos de amante
Para o mais fino louvor
A quem já nasceu prendada
- A ti, minha namorada,
Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos,
Logo nos apaixonamos,
Tu - princesa, eu - trovador.
Atirei-me nos teus braços,
Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,
Não perdeu tempo em conquista,
Já nasceu triunfador.
- Formosa rosa trigueira,
Flor da raça brasileira,
Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,
E outro amante não tiveste
Com mais paixão e calor.
Em noites de serenatas
Dediquei-te mil oblatas,
Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,
Cantasse o céu, o universo,
Tinham meu mel, tua cor.
Vivi de ti impregnado,
- Garotão apaixonado,
Teresina meu amor...

Assim vivemos, querida,
A quadra melhor da vida
Que me deu Nosso Senhor.
Mas em busca de outros ares,
Perdi-me noutros lugares,
Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,
Envelheci de repente,
Do azar da sorte ao sabor.
Tu continuas menina,
Áurea estrela matutina,
Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,
És muito namoradeira,
De amantes possuis um ror
Sei de um, escritor de fama,
Que em belo livro te chama
“Teresina meu amor".

Vivo morrendo de ciúmes,
Da saudade subo aos cumes,
Desço aos socavãos da dor...
Mas não te esqueço um momento,
Vives no meu pensamento,
Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,
Mando-te um montão de beijos,
Pois te amo seja onde for.
- Minha cidade menina,
Minha linda Teresina,
Teresina meu amor!
em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

1.2.12

PRAÇA PEDRO SEGUNDO NOS TEMPOS DA LAMBADA


pernas à vista
pessoas indo e vindo, engraxates, cervejas
uma gatinha vendendo charme
meninos, amendoins e esmolas
olhos injetados
mãos amarelas vendem cigarros e bombons
uma turma de canas da civil
"lambada: botando fogo na noite"
em cartaz no cine rex
senhora com mais de quarenta vende espetinho à brasa
gordura fumacificada impregnando tudo
uma morena de seios lindíssimos
quatro mãos num diálogo de trejeitos
gays ao lado da banca de revistas
um bêbado diz que é o tal, que faz e acontece, e enche o saco
olhares de todos para todos os lados:
troca de projéteis silenciosos
fui atingido à altura do peito, mas já estou recuperado
um rapaz encabulado que tropeça
batedores de carteira relaxam na hora do descanso
(a hora do descanso é sagrada!)
doido varrido dorme na calçada do Teatro
sonha?
música em volume acima do suportável por uma vitrola rouca
caldo de cana
lambada para dar nos nervos de qualquer mortal razoável
paralisado um homem olha as formas da mulher que passa
gritos, assobios, acenos e copos contra a garrafa:
a disputa da atenção do garçom que, impassível, demora
o colega que tirou a tramela da língua após o terceiro copo
conversa animada
comentários diversos
um poste metálico no meio da praça:
herança inexplicável de um relógio digital que não vingou
especulações em torno do passado da praça
um casal que se beija
homem andando com toda pressa
trombadinhas perto da fonte
observação visual, táctil, gustativa e olfativa
observados patéticos
sons que muito lembram um inferninho
o próprio inferno
mãos que se tocam
palmadas nas costas:
demonstração de carinho ou virilidade?
impressos devorados por taciturnos leitores de prateleira
o bar do cuspe, à distância
uma turma de canas fardados
a galeria do Teatro, no local onde existia o bar Carnaúba?
anotação em papéis
convite para a inauguração de um bar
alguns vão ao Clube dos Diários
jornal das oito, seu Marcelino e A. Tito jogando conversa, Flávio na bandeja,
gente rara
um homem cuspindo a todo instante
motoqueiro sem noção do ridículo sobe a praça com sua máquina
e continua acelerando:
indisfarçável vocação para dono do mundo
a colega que só agora noto ser uma gata
conversa sobre o tempo e outras amenidades
convite para uma festa engajada e nas decências
colegiais de procedência indeterminada
lebres em pele de lobas
uma mulher com embrulhos
garota sensual usa saia curta estampada
picolés, pipocas e sorvetes
roupas coladas ao corpo
lua anunciando para breve encher-se de claridade arrasadora
o garçom que cobra a despesa além da conta
debates, negociações e acordos
pagamento em cheque
hora de levantar âncora
vamos em frente, a todo pano,
desbravar outras praias:
a noite é uma seda!


Manoel Ciríaco
em 145 anos: Teresina cidade futuro 
Teresina: FCMC, 1997

24.1.12

PRAÇA PEDRO II




Praça Pedro II, outrora Aquidabã. Não entendi a mudança do nome, que era mais sonoro, romântico e original para o local. Historicamente, não há como se justificar, pois o Imperador jamais pusera os pés no Piauí, nem mesmo os olhos. Tampouco a sua consorte, a quem deram o nome da capital. Falta de imaginação ou puxa-saquismo. Resquício da bajulação reinante no Império.

Foi ali que vi o maior ajuntamento de gente na cidade. Aconteceu no show com vários cantores famosos do Rio, patrocinado pela Vigorelli. Se tudo do Rio de Janeiro já exercia fascínio, aquele espetáculo com os melhores intérpretes da música popular, como Nélson Gonçalves, Orlando Silva, Ângela Maria e Adelaide Chiozzo, dentre outros - só vistos no cinema - era algo encantador, deslumbrante. Arrebatador de público. Ainda mais gratuitamente. Naquela noite, ninguém permaneceu na porta da rua, fugindo do calor e das muriçocas.

Desde cedo, a praça foi recebendo gente. De todos os quadrantes. O palco armado na sua parte superior. À hora marcada para o início do show, a massa presente. As figueiras lotadas de espectadores que não deixaram espaço, nem permitiam que outros subissem, o que me irritava, porque, não encontrando uma posição que me desse visibilidade, ainda não podia subir numa. A molecada não deixava e até me cuspia. Foi quando, providencialmente, apareceu o Cacique que, já acomodado num galho e vendo meu desespero, me chamou e me ajudou a trepar na que estava, embora sob os protestos dos ocupantes. Esse meu companheiro da Quinta Velha, de índio só possuía o apelido. Tipo magricelo, alto, uma barriga que não tinha mais tamanho, calmo, falava pouco e gozava da fama de valente, mas nunca o vi brigando. Dificilmente tomava partido nas discussões e, quando consultado, opinava com ar professoral, sentindo-se importante. E sua opinião era acatada, valia. Por ser o mais velho do grupo, os novos acreditavam nele, tanto que, havendo jogo fora, era levado para atuar como consultor, protetor. Gostava dessa deferência. Mas, aos poucos, ele foi ficando esquisito e sumindo do nosso meio. Falava menos ainda. Passou a se fechar em si, não saindo de casa. Chegou ao ponto de que nem a cara punha na janela. Diziam que adoecera da cabeça porque se masturbava muito

Da figueira, eu avistava nitidamente os artistas, até os detalhes de seus trajes, apesar do desconforto. Mas não importava. Melhor do que ficar no meio da multidão, fuçando lugar feito tatu e levando empurrões. O inconveniente era não poder me mexer, daí me doíam as costas, porém a beleza do espetáculo compensava o sacrifício, tirando-me o pensamento da dor. E eis Adelaide  Chiozzo, em cena, cantando e tocando acordeão. Babaquice geral. Seu jeitinho manhoso. Cabelos médios e lisos. Conquistou a multidão. Naquele momento, então, ouvi um estalo no galho em que estava montado. Foi tão rápido que não tive tempo de pular. O mesmo despencou trazendo a cambada em cima de mim. Caí zonzo. Formou-se um pequeno tumulto, com gente correndo, pensando que fosse briga. No chão, ainda, fui pisado e acreditei que ia ser massacrado. Dei sorte. Consegui levantar-me, meio aéreo e fui mancando para casa, com alguns arranhões no corpo, sem mais querer saber do show.

Aquele recorde de gente superou de longe o público dos comícios. Até no que compareceu Adhemar de Barros, disputando, pela segunda vez, a Presidência da República, com o Marechal Lott e Jânio Quadros. Adhemar, no seu jeitão de alemão e com sotaque paulista, passou o tempo todo expedindo ofensas pessoais contra Jânio, chamando-o inclusive, de maricas. Nada de coisa séria na sua fala, mas o povo vibrava com os xingamentos. No entanto, Jânio, empunhando a bandeira da UDN, ganhou em disparada. Uma loucura de votos para sete meses depois abortar, sem dor, o cargo, pondo a nação confusa com uma batata quente nas mãos. Aliás, Jânio foi a maior e a pior piada deste País. E piada chula, cheirando a álcool.

Sempre foi a praça favorita para os grandes eventos, dadas a sua amplitude e centralização. Ela era dividida em dois planos. No superior, com iluminação fraca, ficava o coreto, onde a banda da Polícia Militar executava chorosos dobrados, cujo quartel central localizava-se defronte. Era a parte preferida por soldados e empregadas domésticas, que namoravam nos bancos semiescondidos pelos canteiros de plantas.

Só dava curicas naquele pedaço, como diziam as moças de família, referindo-se às empregadas domésticas. Na parte inferior havia os tanques, enfeitados por garças e algas marinhas. E o desfile em roda.

Moças de um lado, andando em círculo, e os rapazes do outro, em sentido contrário. Ou então eles ficavam parados, paquerando as meninas que passavam, geralmente, em dupla, de risinhos, cochichos e lançando olhares convidativos. Para alguns, a parte de cima era melhor, tinha futuro, porque o namoro começava na hora e já avançado - sem inibição e preconceito.



José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

15.12.11

RUA PAISSANDU, José Ribamar Garcia


Esta rua nasce no Parnaíba, para variar. E acaba na Pedro II. Mas o seu ponto forte, seu pique, o que a tornou famigerada, procurada, cobiçada, se situava nas primeiras quadras e se estendia pelas transversais próximas: A zona do meretrício. O prolongamento dos fins de programa. A continuação das farras iniciadas no Clube dos Diários, no Jockey Club. Ali, a noite era toda sorriso. A ansiedade, a curiosidade da primeira vez do iniciante. A cachaça dos habituados. o lenitivo do tédio dos inconformados. O refúgio dos inibidos, introvertidos. A satisfação das taras, manias, neuroses. A demanda geral do prazer, da variação, do diferente. O descarrego dos espermas retidos de jovens namorados. A eterna dor de cotovelo das mal-amadas. A preocupação das mães. O consumo de antibióticos contra a gonorréia, a sífilis, para gáudio da Botica do Povo, que esvaziava seu estoque e faturava. E o Jaime Gordo, olhando sobre os óculos de aros finos, acertava de cheio no diagnóstico, enquanto o Manoelzinho, semiperneta, com as mãos hábeis, furava bundas com suas agulhas, cuidadosamente desinfetadas. A perdição ou salvação. A ressurreição, afinal.

Os cabarés de fachadas iluminadas. As casas com calçadas altas e as mulheres sentadas à porta. Os becos de casinhas de um só cômodo Os bares, os botecos. Os salões de sinuca e o taco batendo a noite toda. A bola rolava macia sobre o pano verde. A quatro caçapa, a cinco em sinuca e um cara anotando os pontos no quadro-negro dependurado na parede. Vendedores ambulantes com barracas de comida - sarapatel, panelada. Ébrios caindo pelas paredes incomodando o sono dos mendigos. mulheres vagando tentavam salvar a noite. Pois cobra que não anda não engole sapo. Também não leva porrada. Alguns viadinhos saltitavam, solitários, segregados. Macho que se prezasse não transava com pederasta. Nem batia em mulher. E, contrastando com essa decadência humana, estavam o Estrela, o Danúbio com suas mulheres novas, limpas, selecionadas. Algumas de outras capitais. Menina-moça, escondia a idade nas pinturas, disfarçando os comissários de menores, mais preocupados em participar do que em reprimir. Garota de 13 anos fazendo carreira, sem corpo ainda de mulher, mas peitinhos despontados, já com pelos, desinibidas, mas sem jeito de fazer. À meia-luz no salão. A orquestra sobre o estrado num canto. As mesas dispostas em círculo e o espaço vazio no meio para a dança. Bolero, samba-canção, rumba, fox, tango, baião. A variedade para gostos diversos. Só não dançava quem não queria. Muitos aprenderam a dançar naquelas pistas, descontraídos, porque podiam errar os passos que ninguém ia reparar. A cerveja a preço dobrado da praça. Escolhia-se a mulher, com ela se bebia, dançava e depois o amor, sem pressa, no quarto, instalado nos fundos, que mal cabia a cama, a penteadeira, o guarda-roupas de solteiro. E a indefectível bacia com água, sob a cama, para lavar o membro do parceiro após o ato. O preço do amor dependia da mulher, pois, quando ela simpatizava com o sujeito nem cobrava, ou deixava o valor a seu critério. Ainda suplicava que passasse a noite com ela. A maioria era ingênua. Sonhava com o dia em que surgisse alguém para lhe tirar daquela vida. Algumas davam sorte e viravam amantes de velhos endinheirados, que lhes montavam casa, davam-lhe apoio e segurança. Essas mudavam, radicalmente, de comportamento, só devotando a fidelidade ao seu homem. As histórias se pareciam. Origem humilde. Namoro. Defloramento. Expulsão de casa. Ou família numerosa. Miséria. Fome. A fuga para sobreviver na cidade grande. Sem conhecimento e nada sabendo fazer, convergiam para aquela vida, sem alternativa.    

No Estrela, ocorreu a desmoralização do Cecéu, boêmio inveterado, vivendo às expensas do pai e tido como bom de briga, já tendo enfrentado no braço, uma guarnição da Polícia Militar. Nada lhe acontecia, devido ao prestígio político paterno. Boa pinta, cabeleira cheia, com topete caindo sobre a testa. Andava impecavelmente, vestido de linho, todo engomado. Achava-se belo, irresistível e querido pelas mulheres. No entanto, levou uma surra feia de uma rapariga porque cismou de colocar no seu traseiro. A mulher virou bicho. E lhe meteu a tranca da porta nas costas e ainda saiu espinafrando-o pelo salão, dizendo que ela podia ser tudo, menos galinha. Que devia ser respeitada. Foi um vexame. O Cecéu saiu contorcendo-se, envergonhado mais pela rejeição e humilhação pública do que pela paulada. O acontecimento se espalhou. E ele passou a ser chamado de Cecéu Corococó.

Fazia ponto no Danúbio o poeta Valdomiro. Figura magrinha, baixinha, de aparência frágil. Adorava ser chamado de poeta. Fazia versos para as mulheres; mas cada vez que compunha um poema, gozava nas calças, sujando-se todo. Tornou-se conhecido como o poeta do gozo fácil. Parecia não se importar com essa situação. E permanecia o tempo todo sentado a uma mesa, bebericando sua cachaça pura.

Não se falava ainda em tóxico. Nem mesmo no meio da malandragem, que se satisfazia com o álcool ou com o lança-perfume no carnaval. Aliás, no corso, os carros mais animados e bonitos eram os das putas. Fretavam dois caminhões e de divertiam atirando pó de arroz no público. Quando elas passavam, os homens viravam as caras, com receio de serem reconhecidos. Havia até uma senha usada por elas: lá vem o carro das primas. Coisa mais ou menos assim.

Até mesmo as brigas - um tanto frequentes - eram na base do punho, quando muito na faca. Não se usava arma de fogo. Pairava em tudo certo romantismo. Ainda uma pureza e respeito ao humano.


José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

20.11.11

O ENGRAXATE SILVA, José Pereira Bezerra


Manhã calorenta e ensolarada de dezembro. Silva, engraxate como tantos outros, sentado no banquinho em frente a cadeira de trabalho, na Praça Pedro II, observa detidamente os pés dos transeuntes. Não ligam, passam apressados, indiferentes. O semblante pálido e marcado de Silva está carregado de preocupação e revolta. A incerta espera de clientes fá-lo perder-se em pensamentos inúteis, mas inevitáveis. A manhã já vai alta. Dez horas. E ele ainda não conseguiu o dinheiro da boia. Mediativo, vê os dois filhos magros, pálidos e barrigudos. "Quero cumê, mãe, quero cumê, pai tô cum fome". A certeza da briga da mulher o atordoa. "Tu anda é dando dinheiro pra rapariga". Exasperado, baixa a cabeça, cerra as pálpebras num lamento mudo, angustioso. Não sabe mais a quem implorar, em quem ter fé. Até a macumba o desiludiu. Silva deduz em sua mente turva e frágil que nasceu pra sofrer. Uma passividade quase mórbida o invade, tirando-lhe a esperança de um dia melhorar de vida. Muitos desfilam sob o olhar sensível da miséria. Não sabem? Uns com mãos vazias, outros com braços cheios de embrulhos. "Presente de natal". Silva, vestindo a mesma roupa desbotada e rota todo dia, permanece sentado, olhando os pés de cada dia. Reconhece que sua roupa está imprestável, porém se conforma, contrito. "Não mudo tão cedo, não tenho com quê". De chofre, lembra-se do diálogo que teve com a mulher:

- "Mulher, queria que um de nossos filhos fosse doutor?"
- "Mas como, homem, se não pode nem estudar?"
- "Sei que falta material, roupa e outras coisas, mas..."
- "Além do mais, são burro, custa aprender".
- "Talvez seja a boia, é fraca demais..."
- "Por que tu fica aí alimentando ilusão?"
- "Sei lá, a vida é tão dura. Não custa sonhar".
- "Besta, vai trabalhar!"
       
Antes de ir para casa, num lampejo de sorte, Silva consegue dois clientes. O último é um velho pequeno-burguês conhecido. Com a boca murcha, desdentada, murmura a cantilena de costume:

- Faça um abatimento que sou freguês.
- Sim senhor, patrão.
- Bem caprichado!
- Hum, hum! "Miserável".

Meio dia. Aliviado, Silva monta na velha bicicleta preta e sai deslizando no asfalto. O calor, o suor e a fome fazem-no um sub-homem, vivendo uma subvida crônica, absurda. Os músculos contraem-se entorpecidos. Imagens varrem-lhe o cérebro numa intensidade cega, envolvente. Ato instintivo, range os dentes, o suor fere-lhe os olhos, sente-se fazer parte da própria bicicleta. O trânsito é intenso. Para os cidadãos contribuintes, Silva é apenas um ciclista irreverente atrapalhando os veículos. Para o poeta: "o símbolo do sofrimento humano brigando com o asfalto".


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

1.11.11

TERESINA NO PASSADO, Guaipuan Vieira


No final de maio de 1996, retornei a Teresina, integrando a Comissão de Intercâmbio Cultural de Fortaleza, a convite da Academia de Letras Vale do Longá. Ficamos hospedados no Hotel São José, à margem direita do rio Parnaíba, no coração da Verde Capital. Além da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, estavam o diretor desta, o escritor Alberto Santiago Galeno e o poeta Paulo de Tarso. Alberto me pedira para levá-lo ao Mercado Central, pois desejava comprar um chapéu de vaqueiro feito no Piauí. Eram quinze horas de sábado. O silêncio pairava no centro, devido o final de semana. Mesmo sabendo que àquelas horas seria impossível encontrar o mercado aberto, tive que atender o pedido.

Alberto, que caminhava a passos lentos e, cambaleando, estava calado, mas observador. Paulo, que nos acompanhava, admirava os velhos casarões e o rio que solitário descia entrecortado pelas coroas, indagou a Alberto:

- Doutor, o senhor conhecia Teresina?

Ele, sem pensar, duas vezes respondeu:

 - De passagem. Guaipuan não nos conta a sua história.

A responsabilidade pesou-me nos ombros. Calado, como menino repreendido, não sabia por onde começar. As recordações refletiam à mente. Mas uma luz me surgiu dos anos 60. Tive que superar o desafio, e conjugar costumes, tradições e modos de vida de um povo que, embora embriagado pelo vício e prostituição, deixara página de sua história, vez por outra folheada por algum pesquisador.

 - Isso aqui foi a famosa Palha de Arroz. O nome vem das torrefações. Nesse meio funcionou o baixo meretrício, o Q.G. era o cabaré Barrinha, conhecido por “tabaco”, freqüentado pelos “porcos-d’água”, que eram os ajudantes das embarcações.

Paramos um pouco, sob a sombra de oitizeiros, direcionados para o sul, a uma distância de 200 metros. Articulando, mostrei-lhes onde funcionava a usina termelétrica, que fornecera energia para toda a cidade, até a década de 60, substituída por uma caldeira a diesel, vinda de Alagoas, não esquecendo seus ritmados apitos como de uma maria-fumaça, que até as 21 horas servia-nos de relógio, quando num toque de despedida saudava a noite, que paulatinamente ia em busca do novo dia. Nessa época, o rio Parnaíba era navegável. De longe também se ouvia o rugir dos vapores, lanchas e alvarengas vindos do sul do Estado, transportando mercadorias e passageiros, em direção ao Porto, que ficava limitando a Praça da Bandeira, por onde iremos passar.

Recomeçamos a caminhada. Ao cruzarmos a rua Paissandu, fizemos outra parada. Não poderia esquecer de citar que fora o núcleo dos tradicionais cabarés, como “Estrela”, “Fascinação”, “Imperatriz”, “Nove Horas”, “Gerusa”, “Raimundinha”, “Joana de Paiva”, entre outros. Subimos na rua em direção à Praça Pedro II. Na mente conduzia a surpresa que Alberto tanto esperava. Uma outra parada não fazia mal. Afinal, procurava descrever Teresina no passado, mostrando-lhes os pontos que serviram de concentrações desses personagens.

 - Onde estamos? Indagou-me.

 - Olhe, nessa casa comercial, “Rádio Ion”, foi o bar do Zé Cazuza. Às 12 horas de uma sexta-feira de 1948, o tenente Wanderley bebia aqui. Ao perceber a passagem de Zezé-Leão, o chamou. Depois de uma ligeira conversa, lembrou-lhe que em certa ocasião tinha-o prendido. Zezé, calmamente, embora entrecortado do insulto, perguntou-lhe se ia demorar no bar. Ele, ufano de autoridade, respondeu-lhe que sim. Zezé, enfatizou:

 - Voltarei logo.

Em questão de 20 minutos, o lúgubre estúpido, armado com um revólver 38, mudava o ritmo da cidade. A rádio Pioneira, que funcionava na rua Senador Teodoro Pacheco, aqui, próximo, em primeira mão, divulgou o acontecimento em reportagem exemplar de Carlos Said. No dia seguinte, as manchetes dos principais jornais: “ZEZÉ-LEÃO MATA TENENTE WANDERLEY E FOGE".

- Ah, foi assim! Sua fama chegou no Ceará, exclamou Alberto.

Paulo, aproveitando a deixa, nos contou que seu tio-avô, Cel. Domingos Gomes de Freitas, que residia em Tauá CE, tinha um criado que era o responsável pela compra de mantimentos (gêneros alimentícios) da Casa Grande. Segundo seu avô, certa ocasião, o criado, chegando de viagem, já na entrada do município, fez uma ligeira parada numa venda para beber uma pinga. Ao pagar a dose, foi surpreendido pois já estava paga. Ele então perguntou ao dono da venda o nome do desconhecido para agradecer. Esse, ouvindo, respondeu-lhe:

“José de Área Leão
A onça sussuarana
das matas do Piauí".
- E você quem é, caboclo?
Sem bater pestana, que nem um bom improvisador, informou-lhe:

“Eu sou um cachorro preto
da zona do cariri
acuador de onça sussuarana
das matas do Piauí”.
E até logo!!!

Zezé baixou a cabeça, bebeu outra pinga e exclamou: “muito bem!” Um dos seus seguranças indagou-lhe: “Pega o homem, coronel?!

-“Não. Cachorro que acua onça é respeitado".

Continuamos a caminhada. Logo estávamos na Praça Pedro II. Ali, para mim, foi um pesadelo. Não controlava as ideias, que se misturavam com as lembranças, dificultando concatenar o raciocínio, porque a Praça continuava sendo o cordão umbilical dos que edificaram a invejável história da terra.

De um lado, o Centro de Artesanato, guardando consigo lembranças do velho quartel da polícia militar. Do outro, o Cine Rex, solitário, que nem ancião, nem parecia que vencera os seus concorrentes: Cine Guarany, Olímpia, São Luís, Rio Branco, entre outros. Um cartaz lembrava Alfredo Ferreira que foi o fundador do cinema em Teresina, e o primeiro filme exibido, que era norte-americano e falado, tinha como título: “Doce como Mel.”

O Theatro 4 de Setembro, guardião da cultura, silencioso, trazia consigo recordações da luta ferrenha que travou para se desligar do cinema, para ser o que é: palco de espetáculos teatrais. Ao lado, a Galeria das Artes, num oculto quadro, descrevia o saudoso Bar Carnaúba, cercado de artistas e intelectuais. As horas corriam. Alberto, mergulhado no impressionismo, esquecia a compra do chapéu. Paulo não perdia nada da explanação. Anotava, na agenda, os subsídios para a história do município.

Guia turístico, contador de história ou causos. Sei lá quem eu era. Prosseguimos. Seus entusiasmos aumentavam. Embora quisesse parar a narração, não podia. Sempre algo chamava a atenção.

O silêncio recordava-me os tempos idos, quando menino, de calça curta, procurando remédio nas farmácias Santo Antônio, Lili e São Pedro, de Pedro Vasconcelos. Não encontrando, ia direto à farmácia “Coleta’, onde Jaime da ‘botica” fazia a manipulação de medicamentos. Naquele tempo era assim. Com essa reflexão sobre o passado, logo chegamos à Praça Rio Branco. Estava a esmo. Não parecia o logradouro de concentração de poetas populares, da ceguinha Maria Viana, no órgão, interpretando canções bregas; de aposentados driblando a velhice, tentando afeiçoar a nova geração. A brisa fria da tarde os enchia de indagações, estava num árduo ofício, não podia dissolver fatos do folclore teresinense.

-Nesse prédio da Caixa Econômica, funcionou o comércio do Carcamano, à noite tinha uma preta velha vendendo manuê; a fatia do bolo custava um tostão, e media um palmo. Tornou-se admirada pelo pessoal de vida noturna, através dos improvisos de propaganda:

“Chega gente, está na hora
Compre logo o manuê,
Compre mesmo, sem demora.
Manuê da preta velha
Tem segredo de essênça,
Inda mais com bom café
Muda até sua presença”.

Observa-se, de certa forma, que a cultura popular, destacando-se a poesia, nasce da necessidade de sobrevivência dessa gente. A não importância desses fatos contribui veementemente para o anonimato do autor, o que aconteceu com modinhas, adágios e alguns provérbios.

-Com certeza, enalteceu Alberto. Tive que ser breve nas citações, haja vista que algo mais nos aguardava. Estamos na Praça da Bandeira.

Recorda-me o pequeno zoológico, a feira dos pássaros e a do troca-troca. Nessa época chamava-a de bacia, por formar um círculo e ser de baixo relevo. Deu guarida a grandes circos, como Garcia, entre outros. Hoje, as grades que a cercam, nos reflete a ligeira impressão de que é prisioneira, e que nada tem de majestosa! Vê-se silente, concentra suas atenções no Teatro de Arena, palco dos acontecimentos culturais, de ação preservadora das tradições da terra.

Veja “Domingos Fonseca”, do alto, sussurra a poética sem jaça, em louvação aos poetas que versejam “sua poesia”, nos Festivais de Violeiros do Nordeste. Eram 17h30min, os pardais começavam a harmoniosa sinfonia sobre os frondosos oitizeiros, em contemplação a mais um dia que se findava. Apressamos os passos, cruzamos o Mercado Central, logo saímos no desativado Cais do rio Parnaíba. De retorno ao hotel, oportunidade em que falei sobre o Velho Monge, das extintas carrancas e dos banhos aos domingos nas piscosas águas, onde as coroas são atraentes praias, que desfilam preciosas sereias, musas inspiradoras que nos confortam a alma, principalmente quando se tem um bom anzol. Alberto, satisfeito, sorriu. Paulo ficou ansioso para conhecê-las. Seguimos para o hotel, contemplando o pôr do sol, rica beleza natural. Alguns minutos, como se fora beber água, os deixei à vontade. Próximo ao hotel, Alberto exclamou:

-Gostei bastante do passeio e da sua narração. Só me falta o chapéu!


Guaipuan Vieira

25.10.11

A MORTE NA PRAÇA, José Pereira Bezerra


Ilustração: Arnaldo Albuquerque

Domingo à tarde. Não passa das três. O sol intenso cobre parcialmente e incendeia a praça. Em frente ao Cine Rex um aglomerado de pessoas esperam ansiosos o início da sessão vespertina. Dum banco defronte, um homem moreno claro, barba grisalha por fazer emoldurando-lhe o rosto magro e pálido, contempla a movimentação. Faminto, fraco, é envolvido por uma indecisão que o abate. Não sabe se lê o jornal "O DIA", ou se fustigado pelo calor, observa indiferente o formigar de gente. A secura da garganta já denuncia a sede que o ameaça. Não tem dinheiro e a ideia de pedir a alguém o constrange. No dia anterior, por motivo de briga, passou a noite preso na Central de Polícia, e esse fato parece abatê-lo, apesar de não ser a primeira vez. Hoje, pela manhã, perambulou sem rumo nas ruas. Não teve coragem de por os pés em casa, "não tinha cara para isso". Cisma. O ar quente, abafado tira-lhe a paciência, mas não muda de lugar. "Ora porra". Um entorpecimento e suor frio invadem-lhe o corpo. A beira da náusea, o cérebro fraqueja. Range os dentes, procurando forças pra vencer a agonia. A imagem da mulher brigando e dos filhos chorando ferem-lhe a mente de relance. Os segundos passam, a pele perde a cor natural. A custo tenta soerguer a cabeça. Inútil. Tomba sem forças, escangotado. Semi inconsciente, imagens contraditórias e indesejáveis invadem-no. Dir-se-á que estar sendo fulminado por um edema fatal. O jornal foge-lhe as mãos, caindo em frente. Ora contrai o estômago, ora aperta o peito com as mãos crispadas. Num delírio torturante, até sons desconexos e vagos ferem-lhe os ouvidos. As pessoas continuam aglomeradas e ninguém percebe que está morrendo aos poucos. Ninguém socorre, nem vela existe nesse momento crítico de sua existência. Seus valores são colocados em dúvida diante da realidade. Agonizante, ouve gritos, vozes, de conhecidos e até dele mesmo, num alternar martelante e confuso.

- "Você não presta, sem-vergonha!"
- "Estás condenado à morte por ti, covarde, não assumiste a luta".
- "Meu filho, não lhe falei? Você perdeu grande oportunidade e não assumiu a verdadeira postura de homem..."
- "Sou covarde, bem o sei, e meu egoísmo burguês me queima no fogo de minha fraqueza".
- "O seu maior erro foi não ter conseguido enxergar nem sentir o efeito alienante da cegueira..."
- "Vai e te lamente, mas no fundo o erro é da consciência que a sociedade impôs na formação de tua personalidade..."
- "Não vês, idiota, que foste manipulado de forma tão primitiva...?"
- "Eu daria tudo pra viver outra vez. Com certeza não seria mais um pústula..."
- "É tarde!"

Quando o vêem caído, acercam-se do cadáver que acaba de dar o último espasmo. Cada pessoa que se aproxima do círculo, estica mais e mais o pescoço pra melhor presenciar a miséria em sua forma mais simples - a morte. Esboça expressão fácil digna duma das pinturas mais patéticas de Koskoschka: olhos esbugalhados, boca entreaberta mostrando os dentes amarelos e cariados, e um fio de barba descendo num canto da comissura dos lábios. "Ah, que terá acontecido com este homem de Deus?" Sussurra uma velhota gorda, rosário entrelaçado nos dedos, trêmula. Faz-se um pequeno tumulto. Todos querem dizer alguma coisa. Rompante, aproxima-se do cadáver um homem moreno e forte, olhos vermelhos. Recende a cachaça. Brada com voz dominadora:

- Vejam quem é!?

Ato contínuo, um suspense assalta os presentes, que, perplexos, entreolham-se interrogativos.

- É Chico Valete. Que Deus o tenha entre os seus. Já foi por bem dizer rico, possuiu muitas propriedades, mas no jogo perdeu tudo ansiando ficar mais rico. Todos olham-no, atentos. Faz-se um silêncio frio, tumular. E, fazendo um gesto forte de cabeça, gira o corpo, resoluto e sai cabisbaixo, exasperado, como se acabasse de ler a sentença de morte do miserável.


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976
Desenho de Arnaldo Albuquerque, originalmente publicado no livro