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13.4.23

O GÊNIO INDOMÁVEL DA CHAPADA DO CORISCO, por Edmar Oliveira










Arnaldo Albuquerque foi um multiartista irrequieto da geração teresinense dos inesquecíveis anos 70 do século passado. Na primeira história em quadrinhos do Piauí, o fabuloso álbum Humor Sangrento, experimenta vários traços em histórias que destruíam mitos locais, como se procurasse um estilo que merecesse sua assinatura (e são todos surpreendentemente extraordinários). Na capa do álbum, num autorretrato, ele fuzila os super-heróis americanos dos gibis de que era colecionador. Também é dele as primeiras charges políticas que adornavam editoriais e colunas de opinião na imprensa local.

Irrequieto, sua vida se confunde com a sua arte. Numa moto, desafiava a velocidade, os padrões da cidade careta, enfrentando os fantasmas dos seus desenhos, como se fosse um Dom Quixote a perseguir moinhos das convenções mafrenses em que não cabia. Um acidente lhe deixou paralisado numa cama por vários meses. E foi nessa parada forçada que construiu um artefato para fotografar esboços e delineações que resultou no primeiro desenho animado da província: Carcará, recuperado e restaurado por alunos da UFPI, recentemente.

Um fotógrafo talentoso saltou para a câmera super-8 e responde por quase todos os filmes de cinema daquela geração, incluindo o Terror da Vermelha. Também os primeiros filmes de cinema da chapada. Um pioneiro designer – antes do nome identificar o artista – acertou no logotipo de vários suplementos culturais em jornais locais e responde pela fantástica capa do jornal O GRAMMA, que nomeou a nossa geração.

Uma vez, o que chamamos hoje de multimídia, mas que não era nomeado à época, fez o busto de cada um de nós em gesso e colocou em locais estratégicos da cidade verde com um porrete e um cartaz: quebre! De longe filmava a reação dos passantes. Uns riam, outros coçavam a cabeça e outros quebravam mesmo. Não se sabe por onde andam esses registros.

No primeiro espetáculo musical em casa de show no Piauí, UDIGRUDE na Churrascaria Beira Rio, Arnaldo fez um maravilhoso cenário para o espetáculo.

Muito mais teria a contar. Mas vejo entrelágrimas aquela figura polêmica, provocadora, que chocava com suas frases cortantes e desconcertantes, “que só tem mamãe, pelanca” cantando o estribilho da música de Caetano. Uma saudade me invade, dele e da época em que pintamos e bordamos na Teresina de então.

Arnaldo foi fotógrafo, chargista, quadrinista, desenhista, cinegrafista, cineasta, coreografo, ficcionista, poeta e pintor.

O mais talentoso de nossa geração muito produziu, mas depois destruiu a obra enquanto destruía a própria existência. Pouco se tem dele ainda. Aquele talento irrequieto merece que nos ocupemos em reunir o que de seu gênio está perdido por aí. É preciso reconstituir sua obra para fazer lembrar o artista que tentou que nos esquecêssemos dele.

Nesse momento ele faria 70 anos, quando se comemora 50 anos da geração GRAMMA no capim mafrense. A Chapada do Corisco deve procurar esse relâmpago artístico que brilhou no azul do céu num raio inesquecível.



Edmar Oliveira, psiquiatra, aprendiz de escritor, membro da Geração Gramma, amigo, parceiro e admirador do maior talento que conheceu em terras mafrenses.
Texto escrito para uma exposição no aniversário de Arnaldo, mas que não houve.
Publicado no blogue do autor, em 26/07/2022.



23.11.15

ARNALDO ALBUQUERQUE [2]


O sujeito era tão intenso que uma crônica ou duas não dão conta da sua peregrinação num destino que carregava cravado no umbigo. Sua história nos quadrinhos e no desenho animado deixou herdeiros que reconhecem a filiação e uma tese de mestrado faz uma análise do seu lado marginal à marginalidade.

Fizemos um jornal na década de 1970, que circulou apenas duas vezes, mas nomeou uma geração: “Gramma”. E as duas capas eram dele. A do número um, aqui reproduzida, é uma obra prima. No nome Gramma detalhes podem ser acompanhados com uma lupa de cenas proibidas na nudez com erotismo digno de um Wolinski. Entre às cenas de sexo, o coração de Jesus pende do meio do primeiro M com a inscrição blasfêmica “o coração de Jesus era de pedra” e na última perna desse primeiro M a própria face do Cristo contrasta com o inferno que queima a lascívia do outro M. Mas no conjunto das letras o mal parece vencer o bem da religião. As outras letras parecem vencer o M do Cristo, mas é nele que se pode ler “a maior curtição”. O desenho central parece um autorretrato que arranca o coração do peito num rasgo tão grande que expõe as vísceras abdominais de forma chocante. Singelas flores emolduram o quadro.


Essa capa faz prescindir o conteúdo do jornal na temporalidade. É o que fica. É a transgressão que nos representa, toda uma geração, num desenho dele. Na mesma época era fundado o Charlie Hebdo na França, e aqui na terra “O Pasquim” já era reconhecido por dialogar com a contracultura. Era no desenho do Arnaldo que nós gritávamos, no estado mais atrasado da federação brasileira, que o sertão entrava no cenário da contracultura.


E ele continuou desenhando. Emplacou alguns cartuns n’O Pasquim. Fez ilustrações para livros de contos, como as que publicamos aqui. No traço a violência e o erotismo. Duas formas de protestos incontestes.


Mas foi agora, já depois de sua morte, que tomei conhecimento, pela internet, de um grande e futurista desenho. Um felizardo declara que ganhou o desenho do próprio Arnaldo em 1982. Em um cenário futurista, que lembra Metrópolis do Fritz Lang, prédios de Teresina e Timon (cidade fronteiriça do Maranhão) fazem um paredão às margens do Rio Parnaíba. O leito do rio secou e um fiapo de esgoto corre por baixo da Ponte Metálica (símbolo da cidade, quando ainda não tinha a ponte estaiada). Premonição do artista?


Depois silenciou. Parecia que a obra tinha ficado pronta. Só caminhava de casa para o botequim do meio do quarteirão. Tomava uma ou duas pingas. Bastavam. E o caleidoscópio do artista girava num mundo que ele não quis habitar por ter sempre se mantido à margem. Ele só saiu do nosso campo visual, mas continua à margem. Agora na terceira margem do rio, como no conto do Guimarães Rosa.