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28.1.16

IMPRESSÕES DE VIAGEM, Edmar Oliveira


Uma amiga perguntou pelo Piauinauta, que não sai há quase um mês, e eu falei que estava enrolado com o lançamento do meu TERRA DO FOGO em Teresina e que tinha de ficar lá por uns dez dias. Ela então falou: “sei, você está de licença paternidade”. Acertou assim.

Cheguei para o “Sarau dos Amigos do Cineas” na Oficina da Palavra, onde o livro foi muito bem recebido. Passei toda a semana indo ao stand do Leonardo, que tem editado livros de escritores da terra (muito bem caprichados), autografando o TERRA DO FOGO, que por sinal esgotou o estoque de lançamento. Eu e Salgado Maranhão fizemos um bate-papo literário discutindo o meu livro e o dele (MAPA DA TRIBO) para uma plateia de cinquenta a sessenta pessoas às oito horas da manhã, o que me surpreendeu. Geraldo Borges estava lançando ESTAÇÃO TERESINA anunciado aqui no Piauinauta anterior.

Boas conversas com Paulo Tabatinga, Gisleno Feitosa, Rodrigo M Leite, Durvalino Couto, Feliciano Bezerra, Wellington Soares, Cineas Santos, Graça Vilhena, Paulo Vilhena, João Carvalho, Fonseca Neto, Alexandre Carvalho, Gilson Caland, Climério Ferreira e  Helô, Keula Araújo, Luana Miranda, Poeta Willian, a muito jovem e bonita escritora Fran Lima, Deusdeth Nunes e a turma do Conciliábulo, entre tantos outros que tive por bem encontrar. Fui entrevistado por várias emissoras de rádios que cobriam o evento, entre elas a de Marcos de Oliveira e a de Leide Sousa. E ainda deu tempo gravar um depoimento sobre o cinema marginal dos anos 70 para Patrícia Kelly e Morgana, que fazem um documentário como monografia do curso de história e jornalismo. As meninas são brilhantes. E eu estou tão velho que virei pesquisa. Mas é bom ser reconhecido.

Tinha tudo pra ficar contente. Mas não fiquei.

Me hospedei no Hotel Central, em frente ao Clube dos Diários, ao lado da Praça Pedro II e seu Teatro 4 de Setembro, complexo que foi outrora o centro pulsante e cultural da cidade. Após cinco dias fui para a casa do meu irmão Maioba angustiado pela solidão. A cidade entre os dois rios, que se estendia do encontro de suas águas no Poty Velho até a Vermelha (citada no filme genial do Torquato Neto) não existe mais. Foi definitivamente abandonada por seus habitantes que atravessaram o Rio Poty e ergueram uma cidade moderna na zona Leste. Mas que não tem nenhuma lembrança da minha cidade.

A minha cidade é uma cidade fantasma. Os poucos e pobres habitantes que ali ficaram não saem de noite nas suas ruas escuras com medo de assalto. Trancam-se em suas casas. Os de mais posses fazem cercas elétricas para protegerem a sua solidão. As ruas foram entregues ao drogados, aos desocupados que ocupam uma cidade sem lei e sem ordem. Em suas ruas desertas, mesmo ao meio dia, encontrei duas pessoas usando drogas. Não senti qualquer medo. Eram pessoas que eu conhecia da minha infância naquelas, outrora, ruas agitadas. Agora estavam os dois usando drogas numa cidade trancada com medo deles. Esquisito. Conversamos sem medo entre nós. Eu não me senti ameaçado por eles. Fiquei com pena de a cidade os terem tragado pela fumaça de um inexistente futuro.

Sem querer contrariar os meus anfitriões do Salão do Livro do Piauí (SALIPI), até entendo os seus motivos de o terem tirado da Praça Pedro II para que acontecesse este ano na Universidade Federal, que também fica na Zona Leste da nova cidade. Mas não concordo.

Desculpem, mas penso que a cultura abandonou também a cidade antiga. Não digo que ficou elitista porque a Universidade pública congrega estudantes de todas as classes. Mais ainda com o sistema de cotas. Mas acho que a cultura abandonou também a cidade antiga. É preciso que analisemos este fato mais devagar. Não vou fazer agora.

No livro que em Teresina fui lançar conto uma história triste que a cidade tinha esquecido. Os incêndios dos anos 1940. Acho que em breve um cronista vai contar essa história, também muito triste, do abandono da cidade antiga. A impressão que eu tive, e que me encheu de tristeza, é que ela não mais existe. E uma cidade sem passado é uma cidade sem futuro. 


em 15 de junho de 2014
em Piauinauta

6.9.14

OS DOIDOS DA MINHA MEMÓRIA, por Edmar Oliveira


Manel Avião, Manelão, avião, ão, ão. Vrummmmm. E lá se ia Manel conduzindo um avião imaginário na mão direita, que já, já, virava asa e, abrindo os braços em duas asas, Manel era o próprio avião, que encantava os meninos que viam o Manelão como cena de cinema que ele fazia o voar na imaginação. Manel voava de verdade. E a lenda se espalhava na cidade. Na Piçarra, diziam, invadiu uma casa e roubou um rádio. Na Palha de Arroz seduzia meninos e meninas, que as mães zelosas não deixavam chegar perto do avião. Podiam ser levadas pra longe e se perder na escuridão da noite. Manel contava histórias. Histórias de cinema que se passavam em Teresina. Não sei que fim levou. O avião, com certeza, lhe levou embora...

Nicinha, pequenina, enfeitava-se de fantasias de carnaval durante todo o ano. Todo dia, toda aglomeração, discurso político, conversa de bêbados, papo de vagabundos, qualquer ajuntamento de gente fazia aparecer o pipoqueiro, o sorveteiro e Nicinha. E aí vinha ela. Numa elegância exagerada, maquiagem intensa, óculos de gatinha, fita colorida no cabelo, vestido de tafetá azul celeste. Qualquer que fosse o dia do ano Nicinha vestia a fantasia da terça gorda do Carnaval. Me encantava a sua presença. Era a marca de que o que estava acontecendo tinha importância. A porta do Teatro, o Bar Carnaúba, a Pedro II, o Café Avenida, eram lugares que só existiram pela presença de Nicinha. Me contaram que teve uma morte violenta com requintes de crueldade. E o criminoso nunca foi encontrado. Quem poderia fazer mal a um beija-flor tão bonito? Mas na minha infância tinha menino que engolia coração de beija-flor pra ficar guabes. Guabes, pra quem não conhece piauiês, é ficar com boa pontaria na baladeira. Baladeira, um piauiês tão bonito, é estilingue ou bodoque noutras pronúncias. E Nicinha e o beija-flor nunca fizeram mal a ninguém, mas morreram do mesmo jeito...

Bibelô era um bibelô. Genial quem inventou o apelido. Era um homem pequeno e delicado que se vestia de mulher, mas de forma tão fina, delicada, suave, diria mesmo harmoniosa. Não tinha o exagero de Nicinha. Era uma espécie de Carmem Miranda contida, pois que não tinha o exagerado da notável. Seus balangandãs, quinquilharias, indumentárias e adereços não agrediam aos olhos. Mais parecia um Matogrosso no início de carreira nos Secos & Molhados. Às vezes um turbante lhe tornava palestino. Uma maquiagem discreta fazia aparecer a Maria Bonita. Lembro da tristeza nos seus olhos. Aparecia e desaparecia nos portões, nas casas, nas mercearias. Pedia um café. Comentava alguma coisa e ia embora. Parecia não querer incomodar com sua presença. Mas assim mesmo tinha inimigos implacáveis que o perseguiam. Lembro de alguns de seus machucados provocados por agressões. Ele incomodava por ser diferente de tudo. Não era um travesti transformado pelas roupas femininas. Parecia um Rodolfo Valentino maquiado para entrar em cena. Não sei quando saiu de cena da cidade. Por certo com a discrição que o caracterizou...

E outros existiram. Mas estes marcaram minha existência de forma decisiva. É como se eles reafirmassem Teresina dentro de mim. E na cidade de minha infância, embora pequena, nunca encontrei os três no mesmo espaço. Cada um tinha seu pedaço de cidade para fazer sua aparição e performance. Só consigo reuni-los na memória: Bibelô dos olhos tristes, Nicinha com alegria estampada no corpo pequenino de beija-flor, Manelão voando no céu azul intenso das nuvens de algodão da cidade verde...





7.12.11

CANTO EM TERESINÊS, Edmar Oliveira


das carnaúbas da minha terra
quase em disco de cera escutei
minha bandeira verdamarela
carnaubei palmeira bela
no porenquanto dos meus momentos
morrurubú de tantos ventos
gregoriei de água e vela
e aprofundei minha'alma nela
cidade em rio mergulharei
crispim do mar que nunca erra...


em Livreto do XXXIV Sarau Lítero-Musical Ágora
Teresina, agosto de 2010

14.10.11

MARIA TIJUBINA, Edmar Oliveira


Quando na madrugada de meninos boêmios a fome apertava, os filhos da zona norte só tinham uma direção: Maria Tijubina. Não era bem um restaurante. Uma venda num casebre que se equilibrava num barranco acima da linha do trem. Mas a quem Maria fazia deferência, podia examinar as panelas, nas trempes dos fogões, se a Mão-de-Vaca ou a Panelada, qual iguaria estava mais apetitosa. Eu era um destes fregueses, ainda menino, que Maria dava importância. E qual o meu orgulho de anunciar pra rapaziada que me acompanhava: hoje é dia da Panelada, tem um cheiro ótimo. – Maria, uma panelada e um arroz a mais. Este “arroz a mais” era a grande invenção da Maria. Com dinheiro muito curto nos bolsos a molecada desdobrava um prato feito pra dois ou três em um rango para quatro ou seis. Verdadeiro milagre da Maria na multiplicação da comida farta.

Maria Tijubina era antenada. Conhecia as turmas, os grupos, as encrencas e as fofocas de todos. E passava informação a (de) uns e outros, sentada na mesa do freguês, com seu paninho de espantar muriçocas, e que servia também pra limpar as mesas e pegar as panelas quentes. Na venda da Maria matava-se a fome e a sede de informação. Ali se sabia que a namorada de um tinha saído com outro. Que o respeitável político amancebara-se com aquela loura que uns e outros davam em cima. E, pior para a reputação de alguns, doutor Fulano, casado e pai de filhos, passou ali, numa dessas madrugadas, em companhia de suspeita sexualidade. Coisas simples da vida de província. E a gente perguntava pelos colegas e Maria respondia que este já passara ali torto e, com certeza, foi dormir; que aquele outro, certamente, ia chegar; que esse outro viajou pro sul.

A Panelada e a Mão-de-Vaca da Maria eram as iguarias das noites no Mafuá. Um mercado que virou bairro. Um bairro que virou conto. Assaí Campelo, figura que se confunde com a própria Teresina, morador do Mafuá, e vizinho do mercado, a pessoa mais importante da zona norte de Teresina, levou Caetano Veloso e Gilberto Gil e uns e outros artistas que visitaram Teresina pra comer panelada na Maria. Eles nem sabem do quê a comida é feita, mas Maria mostrou a tijubina pro Gil e pro Luiz Melodia...


13.4.23

O GÊNIO INDOMÁVEL DA CHAPADA DO CORISCO, por Edmar Oliveira










Arnaldo Albuquerque foi um multiartista irrequieto da geração teresinense dos inesquecíveis anos 70 do século passado. Na primeira história em quadrinhos do Piauí, o fabuloso álbum Humor Sangrento, experimenta vários traços em histórias que destruíam mitos locais, como se procurasse um estilo que merecesse sua assinatura (e são todos surpreendentemente extraordinários). Na capa do álbum, num autorretrato, ele fuzila os super-heróis americanos dos gibis de que era colecionador. Também é dele as primeiras charges políticas que adornavam editoriais e colunas de opinião na imprensa local.

Irrequieto, sua vida se confunde com a sua arte. Numa moto, desafiava a velocidade, os padrões da cidade careta, enfrentando os fantasmas dos seus desenhos, como se fosse um Dom Quixote a perseguir moinhos das convenções mafrenses em que não cabia. Um acidente lhe deixou paralisado numa cama por vários meses. E foi nessa parada forçada que construiu um artefato para fotografar esboços e delineações que resultou no primeiro desenho animado da província: Carcará, recuperado e restaurado por alunos da UFPI, recentemente.

Um fotógrafo talentoso saltou para a câmera super-8 e responde por quase todos os filmes de cinema daquela geração, incluindo o Terror da Vermelha. Também os primeiros filmes de cinema da chapada. Um pioneiro designer – antes do nome identificar o artista – acertou no logotipo de vários suplementos culturais em jornais locais e responde pela fantástica capa do jornal O GRAMMA, que nomeou a nossa geração.

Uma vez, o que chamamos hoje de multimídia, mas que não era nomeado à época, fez o busto de cada um de nós em gesso e colocou em locais estratégicos da cidade verde com um porrete e um cartaz: quebre! De longe filmava a reação dos passantes. Uns riam, outros coçavam a cabeça e outros quebravam mesmo. Não se sabe por onde andam esses registros.

No primeiro espetáculo musical em casa de show no Piauí, UDIGRUDE na Churrascaria Beira Rio, Arnaldo fez um maravilhoso cenário para o espetáculo.

Muito mais teria a contar. Mas vejo entrelágrimas aquela figura polêmica, provocadora, que chocava com suas frases cortantes e desconcertantes, “que só tem mamãe, pelanca” cantando o estribilho da música de Caetano. Uma saudade me invade, dele e da época em que pintamos e bordamos na Teresina de então.

Arnaldo foi fotógrafo, chargista, quadrinista, desenhista, cinegrafista, cineasta, coreografo, ficcionista, poeta e pintor.

O mais talentoso de nossa geração muito produziu, mas depois destruiu a obra enquanto destruía a própria existência. Pouco se tem dele ainda. Aquele talento irrequieto merece que nos ocupemos em reunir o que de seu gênio está perdido por aí. É preciso reconstituir sua obra para fazer lembrar o artista que tentou que nos esquecêssemos dele.

Nesse momento ele faria 70 anos, quando se comemora 50 anos da geração GRAMMA no capim mafrense. A Chapada do Corisco deve procurar esse relâmpago artístico que brilhou no azul do céu num raio inesquecível.



Edmar Oliveira, psiquiatra, aprendiz de escritor, membro da Geração Gramma, amigo, parceiro e admirador do maior talento que conheceu em terras mafrenses.
Texto escrito para uma exposição no aniversário de Arnaldo, mas que não houve.
Publicado no blogue do autor, em 26/07/2022.



23.10.18

DE POETA E LOUCO..., por Edmar Oliveira



"Leve um homem e um boi ao matadouro. 
O que berrar mais na hora do perigo é o homem, 
nem que seja o boi" 
(Torquato Neto)


Somos contemporâneos e conterrâneos meio atravessados. Cheguei a Teresina quando ele já tinha ido embora e a nossa diferença de idade era enorme na meninice. Quando o conheci, a Tropicália já tinha sido feita, eu já conhecia todas as músicas que ele colocou letras, ele já tinha voltado do exílio no exterior, suas colunas nos jornais – algumas lidas por mim – já tinham chegado ao fim. No nosso encontro eu tinha 19 anos e ele 26, já perto de morrer aos 28. Portanto conheci o Torquato maduro. Por isso só consigo pensar nele como muito mais velho que eu. Foram encontros demorados e intensos, onde fizemos jornais, cinema e conversamos em demasia. Eu ouvia muito, mas também falava no atrevimento dos jovens. Só muito depois soube que ele tinha escrito, àquela época, ao Hélio Oiticica dizendo que conhecera uns meninos incríveis no Piauí – referindo-se à turma do Gramma, jornal pra burro, que só fizemos dois números mimeografados e deu no que falar até hoje. E a gente sabia que estava diante de uma pessoa importante para o futuro, quando a Teresina, que hoje o cultua, ainda não gostava dele.

Eu já estava na faculdade de medicina quando o conheci e quis o destino que, quando vim  morar no Rio, fosse trabalhar e dirigir o hospício em que ele foi internado, tentando transformá-lo no Instituto Nise da Silveira. Depois, quando estava no Ministério da Saúde, me ocupei do fechamento do Meduna, hospício piauiense, onde ele também esteve internado. Portanto, cruza-mo-nos outras vezes, mesmo depois dele morto.

Por conta desse nosso destino, perguntam-me sempre sobre a loucura do poeta triste. Nessa homenagem, a Revestrés também pergunta – na voz do povo – sobre o poeta e a loucura. Na faculdade de medicina eu estava inclinado a fazer saúde pública, local de refúgio de “subversivos” nos anos de chumbo. Foi Torquato quem me chamou atenção para o campo psi, quando me aconselhou a prestar tenência de que a psique humana talvez fosse tão infinita quanto o infinito cósmico. Por ele ouço falar de arquétipos que só entenderia muito mais tarde, quando conheci Nise da Silveira.

Na saúde mental me dediquei à Reforma Psiquiátrica, combatendo os perversos manicômios e as rotulações psiquiátricas para justificar a internação dos que estavam à margem da sociedade. E é desse lugar que dou a minha opinião.

Torquato tinha uma intolerância ao álcool, o que não acontecia ao uso de maconha ou outras drogas. Com o álcool, além da intolerância, tendia também a um consumo excessivo e o pacato e manso cidadão às vezes exaltava-se além da conta. Nada que justificasse uma “dependência química” tão a gosto do saber psiquiátrico de então. No Engenho de Dentro foi internado duas vezes. Da primeira foi submetido a tratamento com drogas psicotrópicas de efeitos tão devastadores ou maiores do que a droga que alegavam combater. Não aguentou a barra e fugiu. Evadiu-se, no jargão psiquiátrico. 
Retornou por ter encontrado Oswaldo dos Santos (psiquiatra reformista de então, não tão conhecido, mas da importância histórica de Nise da Silveira) num bar do Leblon. Osvaldo lhe recomenda uma internação na Comunidade Terapêutica que criara então no Engenho de Dentro. Mesmo hospício, mas outra prática. E nessa comunidade mais liberal não deixa de travar um embate intelectual sobre a loucura com Osvaldo dos Santos, como está descrito em “Diários de Engenho de Dentro” – parte integrante dos “Últimos Dias de Paupéria” (sua única obra póstuma que foi autorizada): “o Dr Oswaldo não pode fugir, nem fingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremos a nossa primeira entrevista”.

Mesmo numa experiência inovadora, como a Comunidade de Oswaldo dos Santos, Torquato percebia, com bastante lucidez, as contradições, a segregação psiquiátrica e a que classe esse saber sequestrava: “Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais – de qualquer maneira esperamos a ‘cura’ no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se ‘regenerem’, etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista (...) Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima (...) Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba. Pode me dar um cigarro? Eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte?”

Poderíamos chamá-lo de um “observador participativo” no jargão das pesquisas sociológicas de hoje, mas o homem estava internado no matadouro das liberdades, junto com os marginais sociais. Sérgio Sampaio o homenageou numa canção que compreendia a experiência vivenciada pelo poeta: ”Tive internado ontem / Na cabine 103 / Do hospício do Engenho de Dentro / Só comigo tinham dez”. Uma canção miúda, mas com um significado intenso e muito real da experiência de Torquato: “a minha cama já virou leito” retrata a contradição da psiquiatria em transformar uma vivência humana em doença, como discursaria Foucault sobre a transformação da loucura em doença mental pela medicina; “saí do palco e fui pra plateia / saí da sala fui pro porão”, a transformação do artista na geleia geral brasileira onde alguém tem de exercer o papel de medula e osso, na frase bem sucedida de Décio Pignatari e que Torquato emprestou a vida no cumprimento da sentença.  

No Sanatório Meduna, em Teresina, acompanhei a sua internação. Foi voluntária, para escrever e pousar para fotos da revista Nave Louca, que teve um número único. Foi interessante ver a sua relação com os internos. A sua relação deliberada com a loucura. Ele praticamente administrava um batalhão de pacientes para carregarem mesas, cadeiras, máquina de escrever e seus objetos pessoais de uma sombra a outra melhor, onde conversava animadamente, escrevia e se preparava para as fotos.
Na internação que testemunhei, apenas vi uma deliberada vivência com a loucura. Uma atração fatal de um sujeito que tem na sua vida a maior obra daqueles anos infelizes. Essas impressões eu guardo de quando ainda não era um profissional da área.

Hoje, estou convencido que muitos foram internos de manicômios sem um diagnóstico condizente. Os sobrantes, os párias, homossexuais,  mulheres traídas, herdeiros indesejados, discordantes do regime. Principalmente os pretos, pardos e pobres como observou Lima Barreto. Quem se debruçar um pouco na história da psiquiatria vai perceber isso.

Mas a pergunta que sempre me fazem é se Torquato não era “pelo menos” um depressivo. Sempre respondo que éramos uma geração depressiva. Os anos de chumbo pareciam nos sufocar em demasia e, naquela época, não víamos a luz no fim do túnel. E um suicídio pode mesclar uma depressão com uma determinação existencial filosófica e não necessariamente ser atribuída apenas a um mísero diagnóstico.


Como disse antes, conheci o Torquato maduro, que apesar da pouca idade tinha participado de um movimento decisivo e diluidor (em sua concepção) da música popular brasileira e dos costumes nas artes em geral; esteve com outros artistas na linha de frente na passeata dos cem mil e ficou exilado em Londres e Paris; teve uma coluna de opinião (sobre tudo palpitava) em um dos maiores jornais do país; experimentou cinema e as multilinguagens da poesia; viveu os limites da condição humana (em suas letras o “vou pra não voltar” é uma constante). Como não querer experimentar os limites da loucura repetindo voluntariamente Antonin Artaud de quem era leitor?

Torquato quis viver a contradição entre o fascínio e o horror que a loucura desperta na nossa alma, porque só ao ser humano ela é possível. Como mais uma faceta do seu estar no mundo, onde suas ações se confundem com a obra. Porque o seu comportamento frente a uma sociedade opressora, castradora e violenta dos anos de chumbo foram gerados para “desafinar o coro dos contentes”. Manso calmo e cordato, não era necessário o álcool para o pacato cidadão desagradar um consenso que achasse burro (então não botemos a culpa na droga e sim no homem). Não aguentava a burguesia idiotizada e de bem com o regime, mas também não suportava a “caretice” da esquerda – para usar um termo da época – e seu reacionarismo cultural (no que teve toda a razão que o futuro lhe reconheceu).

Depressivo, esquizofrênico (como já lhe chamou alguém), dependente químico, bipolar não são rótulos diagnósticos da psiquiatria nos quais se possam enquadrar o poeta triste. Depressivo se é quando se vive em uma sociedade sem futuro; somos vistos como esquizofrênicos quando não nos enquadramos em uma sociedade doente; a droga nos faz experimentar uma outra sensação quando o real não nos basta; bipolar quando temos que animar a moçada e chorar no ombro amigo.

Quem captou um possível diagnóstico cultural de Torquato foi Paulo Roberto Pires na organização fenomenal de Torquatália. Dois volumes de uma bipolaridade incrível. “Geleia Geral” – o apanhado da miscelânea jogada para fora na imprensa, na poesia, nas artes & manhas em alegria geral. “Do lado de dentro” – o poeta triste, reclamando no ombro dos amigos o que lamentava dos acontecimentos que o entristeciam.

Loucura? Como a de todo poeta e louco que habitam o humano. Em Torquato Neto rompendo o limite com que estamos acostumados. Mas não chamemos o que nos é estranho de loucura. Ou a loucura é um dos inumeráveis estados do ser, como queria Artaud e foi compreendida na percepção de Nise da Silveira.



Edmar Oliveira (Psiquiatra, militante da Luta Antimanicomial, escritor. Autor de “Ouvindo Vozes” (Vieira & Lent, Rio 2009) e “von Meduna” (Oficina da Palavra, Teresina, 2011) sobre a prática em Saúde Mental; e dos romances “Terra do Fogo” (Vieira & Lent, Rio, 2013) e “Sitiado” (Chiado Editora, Lisboa, 2017). Texto publicado originalmente na revista REVESTRÉS, número 33, novembro/17, dedicada a Torquato Neto.


23.11.15

ARNALDO ALBUQUERQUE [2]


O sujeito era tão intenso que uma crônica ou duas não dão conta da sua peregrinação num destino que carregava cravado no umbigo. Sua história nos quadrinhos e no desenho animado deixou herdeiros que reconhecem a filiação e uma tese de mestrado faz uma análise do seu lado marginal à marginalidade.

Fizemos um jornal na década de 1970, que circulou apenas duas vezes, mas nomeou uma geração: “Gramma”. E as duas capas eram dele. A do número um, aqui reproduzida, é uma obra prima. No nome Gramma detalhes podem ser acompanhados com uma lupa de cenas proibidas na nudez com erotismo digno de um Wolinski. Entre às cenas de sexo, o coração de Jesus pende do meio do primeiro M com a inscrição blasfêmica “o coração de Jesus era de pedra” e na última perna desse primeiro M a própria face do Cristo contrasta com o inferno que queima a lascívia do outro M. Mas no conjunto das letras o mal parece vencer o bem da religião. As outras letras parecem vencer o M do Cristo, mas é nele que se pode ler “a maior curtição”. O desenho central parece um autorretrato que arranca o coração do peito num rasgo tão grande que expõe as vísceras abdominais de forma chocante. Singelas flores emolduram o quadro.


Essa capa faz prescindir o conteúdo do jornal na temporalidade. É o que fica. É a transgressão que nos representa, toda uma geração, num desenho dele. Na mesma época era fundado o Charlie Hebdo na França, e aqui na terra “O Pasquim” já era reconhecido por dialogar com a contracultura. Era no desenho do Arnaldo que nós gritávamos, no estado mais atrasado da federação brasileira, que o sertão entrava no cenário da contracultura.


E ele continuou desenhando. Emplacou alguns cartuns n’O Pasquim. Fez ilustrações para livros de contos, como as que publicamos aqui. No traço a violência e o erotismo. Duas formas de protestos incontestes.


Mas foi agora, já depois de sua morte, que tomei conhecimento, pela internet, de um grande e futurista desenho. Um felizardo declara que ganhou o desenho do próprio Arnaldo em 1982. Em um cenário futurista, que lembra Metrópolis do Fritz Lang, prédios de Teresina e Timon (cidade fronteiriça do Maranhão) fazem um paredão às margens do Rio Parnaíba. O leito do rio secou e um fiapo de esgoto corre por baixo da Ponte Metálica (símbolo da cidade, quando ainda não tinha a ponte estaiada). Premonição do artista?


Depois silenciou. Parecia que a obra tinha ficado pronta. Só caminhava de casa para o botequim do meio do quarteirão. Tomava uma ou duas pingas. Bastavam. E o caleidoscópio do artista girava num mundo que ele não quis habitar por ter sempre se mantido à margem. Ele só saiu do nosso campo visual, mas continua à margem. Agora na terceira margem do rio, como no conto do Guimarães Rosa.

22.1.16

O TERROR DA VERMELHA, de Torquato Neto




Parte 1:




Parte 2:




Parte 3:





Direção: Torquato Neto
Filmado em Teresina-PI, em 1972
Câmera: Arnaldo, Albuquerque
Edição em Super 8: Carlos Galvão

Elenco: Edmar Oliveira, Conceição Galvão, Geraldo Cabeludo, Claudete Dias, Torquato Neto, Etim, Durvalino CoutoPaulo José Cunha, Herondina, Edmilson, Carlos Galvão, Xico Ferreira, Arnaldo Albuquerque e os pais de Torquato, Heli e Salomé.


(...)


É o caso de sua única produção como diretor, "O Terror da Vermelha'', que veio a ser exibida publicamente pela primeira vez em 2001, 28 anos após sua morte, na mostra "Marginalia 70 - O Experimentalismo no Super-8'', evento que fez parte do projeto "Anos 70; Trajetórias'' do Itaú Cultural sob a curadoria do professor Rubens Machado Jr. O valor desta exibição está no fato de que assim se resgata um documento de um período singular da recente produção cultural do país. Seu significado é muito maior do que o que emana da aura romântica desprendida de seu suicídio. O Terror da Vermelha é o registro incontestável da verve e do domínio por Torquato Neto dos fundamentos da linguagem cinematográfica, um de seus lados ocultos que ficou adormecido na virtualidade do seu mito marginal. Até então o que havia era apenas a referência ao filme em dois textos poéticos que constam da segunda edição dos Últimos Dias de Paupéria (p.339-346), no qual Torquato fixa uma espécie de roteiro que mais tarde servirá de base para a montagem feita por Carlos Galvão em 1973. Torquato nunca chegou a ver seu filme montado. A montagem que foi exibida na mostra em 2001 foi feita por Ana Maria Duarte, que foi casada com o poeta. Carlos Galvão também montou uma outra versão, com algumas cenas que não constam da montagem de Ana Maria Duarte e com uma trilha sonora diferente. O resultado é, em termos gerais, praticamente o mesmo, contudo na versão de Galvão as imagens onde aparecem as "palavras-cenário'' (VIR, VER, OU, AQUI e ALI) estão mais nítidas. Na primeira versão, montada dor Ana Maria Duarte e que foi exibida publicamente em 2001 a trilha sonora oscila de uma atmosfera tropicalista para o suspense que precede os confrontos nos filmes de western.

O Terror da Vermelha foi rodado em 1972, quando Torquato Neto voltou para Teresina a fim de se internar para uma desintoxicação. Neste ponto de sua trajetória todas as rupturas com os companheiros tropicalistas já tinham se dado e as crises eram constantes. Do convívio com um então grupo de estudantes que se articulava em torno do jornal Gramma, do qual participava Carlos Galvão, nasceu o elenco da única produção que teve Torquato Neto na direção.


"(...) fui a Teresina pelo início de
junho (sanatário (sic) meduna), entrei
em contato com os rapazes que
haviam feito o jornal gramma e
Partimos para um superoito de metragem média que resultou neste
O TERROR DA VERMELHA (ou qual outro nome escolherem).''
(TORQUATO NETO. Úlimos Dias de Paupéria, página 339)



Trecho do artigo "O Terror da Vermelha: estética da agressão e rigor formal de Torquato Neto no cinema" de Silvio Ricardo Demétrio, da Universidade de São Paulo



30.7.15

RIO SECO





Lembro de quando naveguei este rio nos vapores de Palmeirais. Navios de ferro fundido que a queima de lenha (depois o diesel) movimentavam gigantescas pás laterais singrando as profundas e caudalosas águas do Parnaiba. Em camarotes ou redes nos convés viajantes acompanhavam as margens de canaranas, pescadores em pequenas canoas e, nos portos, as mulheres batiam roupa e secavam no quarador. Hoje o rio morre asfixiado em bancos de areia. A reserva hídrica da minha terra se esvai. A capital do Piauí se encostou no Rio porque ele era o caminho que levava ao litoral e ao fundo do sertão, no interior. Até hidroavião pousou nas suas águas. Hoje esquecido morre numa cidade que não cuida da sua história. Só a saudade pode atestar o que foi outrora um Parnaíba que agoniza no cais de uma cidade que não mais o quer.
Fotografia via blogue do Kenard Kruel

25.7.23

Perambulando pelos bares noite a dentro, por Geraldo Almeida Borges



Teresina é uma cidade repleta de bares e botecos por todos os lados e por todas as esquinas. O bar Café Avenida não ficava em nenhuma avenida, como reparou o poeta Edmar Oliveira. Hoje seu espaço não passa de um estacionamento do Luxor Hotel. Nos seus de tempos de glória era frequentado principalmente pelos sírio-libaneses, a comunidade árabe, no final da tarde, na saída do expediente comercial. Era como se o bar fosse uma extensão da casa deles, de tanto que ficavam à vontade. Ali, conversavam em seu idioma natal. Ninguém compreendia patavina do que estavam dizendo, provavelmente falavam de seus negócios.

Como tudo tem seu tempo, chegou a minha vez de começar a frequentar e conhecer os bares da cidade. Mas, antes de me sentar no bar Carnaúba e começar a beber com os amigos, preciso falar de um bar muito mais antigo. Chamava-se bar Carvalho e ficava na praça Rio Branco. Ainda o alcancei. Foi lá que tomei a minha primeira cerveja na companhia de um tio. E fiz a minha iniciação etílica. 

Voltemos ao bar Carnaúba, que foi o primeiro com o qual me habituei. Ali, sentados, com os amigos, os cotovelos em cima da mesa, copos espumando de cerveja, servidos por uma garçonete bonita, sorridente, e que todo freguês desejava. Discutíamos sobre política e putaria. O bar ficava do lado do Theatro 4 de Setembro. Teve o destino de quase todos os bares, um dia desapareceu. Mas a gente sempre encontrava um bar de portas abertas, como um templo nos esperando.

Um dia encontrei um bar onde demorei mais tempo bebendo. Este parece que não ia se acabar tão cedo. Também se  acabou. Era o Gelate, que ficava na avenida Frei Serafim, defronte da casa de sobrado do poeta Durvalino Couto. Ali bebia a turma dos meninos que escreveram as edições do jornal Gramma, e que marcou profundamente a história cultural piauiense. O dono do bar era o Raimundo. O seu tira-gosto era delicioso. Mas só começava a servi-lo quando já estávamos na terceira cerveja. Ninguém sabia de que era feito. Estalava na boca como torresmo. Um dia ele nos revelou o segredo do tira-gosto. Falou para mim que era tripa de galinha torrada.

Andando de bar em bar, perambulando pelas ruas de Teresina e falando dos bares que não existem mais, podemos citar o bar Acadêmico, que ficava na praça Pedro Segundo, o bar do Setenta e um, que ficava na esquina do Fripisa, no chamado Alto da Moderação, onde funcionou o antigo Mercado Novo, o bar e livraria Punaré perto da praça João Luiz Ferreira, do professor e sociólogo Antônio José Medeiros. 

Quem bebe nunca se lembra de todos os bares e botecos por onde andou, embora tenha os seus preferidos. Bendito esquecimento. No momento me recordo do bar do Sebastião, perto do beco, na saída do beco. Era um boteco onde se tirava água do joelho em uma lata detrás de um biombo de madeira. Ali tomei muita cachaça com o meu primo Alberoni Lemos. Tinha os bares da Paissandu, dos cabarés. Toda casa de tolerância era um bar, onde, geralmente, se bebia na companhia de mulheres; também se acabaram. Tinha o bar da Maria Tijubina para o mais discretos. Para os mais escandalosos, era Maria Tabaco de Sola. Muitos artistas e intelectuais em visita a Teresina terminavam a noite por lá para comer panelada, ou mão de vaca, eram levados pelo Açaí Campelo. Ficava à margem da estada de ferro, no Mafuá. Alguém deu na veneta de fazer um curado para o Metrô, e lá se foi o bar da Maria.

Tinha o bar da Ria Ana, com suas mesas rústicas, na calçada, cobertas com toalhas quadriculadas; era o bar da moça Rita Maria, ou melhor, Ritinha. O bar do meu primo Humberto, no bairro Porenquanto, com suas cadeiras na calçada debaixo das sombras das mangueiras, onde o poeta Sid Abreu dava o ar de sua graça, bebendo dose de pinga e recitando poesia. Tenho certeza que me esqueci de muitos bares, onde me embriaguei. Lembrei, agora mesmo, foi bar do Tetéu, que ficava no coração da praça Saraiva. E funcionava a noite toda. Não posso me esquecer do bar do Santana. Este parece que ainda existe. Talvez seja um dos bares mais antigos de Teresina. Já mudou de lugar algumas vezes. Mas sempre levava os seus fregueses. Faltava falar no bar Nós e Elis. Pronto. Está falado. Já foi até objeto de um livro. A palavra para ele é saudade. Momento de curtição, existencialismo, e muitos encontros inesquecíveis. Ficamos sem o bar e perdemos uma grande estrela. mas não vamos perder os bares, embora eles desapareçam, da noite para o dia, outros os substituem, e até parecem os mesmos, com os seus garçons solícitos, nos enchendo os copos de cerveja com colarinho ou sem colarinho.



Geraldo Almeida Borges
em Província Submersa - Crônicas Teresinenses (século XX) 
Personagens, mitos e monumentos
Editora Caetés: Rio de Janeiro, 2011.


20.10.12

TRESIDELAS, Durvalino Filho

a Edmar Oliveira

THERESYNA
THE SUN
THE MOON
TYMON


Durvalino Filho
Os caçadores de prosódias
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1994

11.4.16

"As Feras" ou "David Vai Guiar" (1972)








(...) fiz um filme que hoje é mais conhecido como Davi Vai Guiar ou Davi a Guiar, que no começo eu chamava de As Feras porque resolvi filmar tudo quanto era de maluco na cidade (na época havia uma gíria, “fera”, para designar se o cara ou a garota eram malucos) e criei um personagem chamado Inspetor Pereira, que era um policial perseguindo essa galera, esses cabeludos, essa rapaziada. Era um filme muito engraçado. (...) Eu quis fazer um filme em que eu filmava todos os malucos, todos os doidões de Teresina da década de 1970. Então eu filmei os meus amigos, filmei o grande bar da época que era o Gelatti – que ficava aqui na Frei Serafim – filmei o subúrbio, filmei gente fumando maconha, filmei meus amigos hippies, filmei os cabeludos, as meninas de minissaia, as namoradas, as namoradas dos meus amigos, usando como pontuação do filme um pensamento bem característico que era um inspetor de polícia perseguindo essa galera. O Inspetor Pereira era, digamos, o fio condutor da narrativa. Isso foi legal porque as projeções se tornavam um festival de gargalhadas, as pessoas se reconhecendo e havendo até mesmo uma torcida a favor dos malucos!

Durvalino Couto Filho em entrevista concedida a Jaislan Honório Monteiro 
Revista dEsEnrEdoS
Ano IV - número 15 - Teresina - Piauí - 2012



[...]



David Vai Guiar representa um clássico exemplo dessa flanância investigativa pela cidade. Trocadilho com o nome do principal protagonista —David Aguiar—, o título remete às intenções centrais do filme: utilizar as noções de guia e contra-guia para, a partir de um deslocamento sobre a cidade de Teresina, ir dando visibilidade e afrontando aos instrumentos panópticos de controle do espaço urbano, como os sinais de trânsito. A cidade que emerge na tela, composta por um cenário bucólico que revela pacatos bate-papos de final de tarde nas calçadas, é repentinamente submetida a uma vertigem expressa por motocicletas e automóveis que deslizam por suas ruas em alta velocidade. Ao som ao mesmo tempo agressivo e melancólico da banda de rock Pink Floyd o protagonista sorri quase furiosamente, enquanto, cabelo ao vento e a pretexto de guiar sua motocicleta, arrasta os olhares na contramão. O argumento do filme se concentra em um esforço para ler os signos da cidade com base em uma afronta aos regulamentos. Urubus, por exemplo, são apropriados como instrumento de uma estética minoritária, problematizadora da própria noção de belo. O destaque, entretanto, em David Vai Guiar, tanto quanto em O Terror da Vermelha, é dado às tabuletas de trânsito, as quais são consumidas sempre no sentido da negação.

Edwar de Alencar Castelo Branco
em Táticas caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis pela cidade.



[...]



Produção: Arnaldo Albuquerque e Durvalino Couto Filho
Câmera: Arnaldo Albuquerque, Durvalino Couto Filho e Edmar Oliveira
Roteiro e direção: Durvalino Couto Filho

21.8.16

Teresina anivessariou: 164 anos

Teresina, por Dino Alves

Quando eu nasci Teresina ainda ia fazer 100 anos no ano seguinte. Palmeirais, meu berço, nem tinha dez anos que deixara de ser Belém. Sou filho de cidades novas. Quase contemporâneas. E nesta semana Teresina aniversariou em dezesseis. Cidade menina. Parece um passarinho que troca de penas ainda pela primeira vez. 

Conheci cidades na Europa que conservam suas ruas e algumas construções de muito antes dos portugueses chegarem por aqui. Mas Teresina está abandonado o traçado geométrico que o jovem Saraiva imaginou, antes de virar Conselheiro do Império. Oeiras, mesmo abandonada para dar lugar à nova capital resiste no seu casario colonial centenário. Teresina queimou suas casas de palhas antes de fazer 100 anos. E vai chegar ao segundo século absolutamente irreconhecível no seu passado. Tem jovens que nasceram na cidade nova que nunca puseram os pés na cidade velha.

Inexorável, Teresina atravessou o rio Poty para o leste e esqueceu a cidade velha. A festejada ponte estaiada funciona como um portal moderno que nos faz adentrar na cidade nova, o que para mim – que a deixei há quarenta anos – não faz qualquer sentido. Sou contemporâneo da ponte metálica que nos separava de Timon, da Avenida – que nem precisava chamar de Serafim –, da Igreja das Dores, da Amparo, da São Benedito, da Pedro II, do Clube dos Diários, da Rio Branco, da Estação, do Marquês, da Vermelha, da Piçarra, do Poty Velho, do Mercado Velho, do Mafuá, da Vila Operária, do Porenquanto – bairro de nome poético que era pra ser provisório e está perpetuado no esquecimento da cidade antiga.

A minha saudade está esmaecendo e ficando sem lugar.

Quando Teresina aniversaria me lembro do poeta Lucídio de Freitas:

Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida.
Espera-me, distante, em outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


em 21 de agosto de 2016

21.11.15

ESTILHAÇOS: ENTRE O MARGINAL E O EXPERIMENTAL







O vídeo-documentário “Estilhaços: entre o Marginal e o Experimental” tem como objetivo geral relatar a produção do Cinema Experimental, posteriormente chamado de Cinema Marginal, feita com a câmera Super 8, em Teresina, no início dos anos de 1970. A ideia de fazer cinema superoitista surgiu de um grupo formado por oito jovens que eram adeptos à cultura marginal. Como objetivo específico, buscou-se retratar o movimento através da apreciação de três filmes que fizeram parte do ciclo de produção do grupo. A narrativa é construída por meio dos depoimentos de alguns dos produtores, diretores, atores e roteiristas dos filmes da época, através de entrevistas em profundidade realizadas com base na pesquisa documental e fílmica. Ao final do trabalho foi possível retratar o sentido de Cinema Marginal em formato audiovisual, através da junção da significância do movimento cinematográfico dada pelos produtores e pela análise geral de um historiador pesquisador da área.

Sob a influência das produções cinematográficas nacionais e com uma experiência junto aos cineastas nacionais como Ivan Cardoso e Glauber Rocha, Torquato Neto veio à Teresina com a ideia de fazer cinema com o recurso que tinha: a câmera Super 8. O objeto privativo da Kodak era de fácil manuseio e de custo baixo em relação às outras câmeras, porém, ainda era pouco acessível e nasceu com o objetivo de fazer pequenos registros (cada rolo de filme Super 8 tinha apenas 3 minutos) de eventos familiares, mas com o advento do experimentalismo cinematográfico foi utilizado para fazer filmes um pouco mais longos na intenção de expressar as nuances juvenis daquela época. Aos seus 28 anos, Torquato Neto se uniu a outros jovens piauienses de classe média como Edmar Oliveira, Arnaldo Albuquerque, Durvalino Couto Filho, Paulo José Cunha, Carlos Galvão, Francisco Pereira e Noronha Filho para fazer cinema com a Super 8 no Piauí.



Direção e roteiro: Patrícia Kelly
Produção: Morgana Castro e Alison Santos 
Imagens: Alison Santos, Morgana Castro e Patrícia Kelly 
Edição: Dionísio Costa


23.11.15

ARNALDO ALBUQUERQUE [1]


Arnaldo Albuquerque

Ele sempre brincava de morrer. Teve um quase suicídio num acidente de moto e sua perna esquerda despedaçou-se tendo que ficar em cima de uma cama por quase um ano. Neste período produziu um desenho animado que impressionou todo mundo, ganhou prêmios e se perdeu, como tudo que ele fez. Nessa época ele estava no Rio e visitei-o em Botafogo, no apartamento da mãe. Na imobilização quase total dos membros inferiores, agitava o corpanzil, os braços e as mãos. Fazia careta na cara barbuda para que eu entendesse a técnica de animação usando caixas de sapatos, lâmpadas, cartolina, pincéis, tintas. Quando vi o resultado, muito depois, já em Teresina, não acreditei. Aquilo me impactou tanto! Era um carcará que atacava os bruguelos do sertão. Meninos recém nascidos. O carcará virava o Capitão América, representando o colonizador. Uma família, tipo Vidas Secas do Graciliano, andava na seca escaldante. O menino mata o Capitão América com uma baladeira (estilingue). O capitão América, abatido vira a águia símbolo dos americanos. Corte para uma cena onde a família faminta está assando a águia/carcará para matar a fome. Não é genial? E os anos 1970 estavam apenas começando.

Essa é apenas uma pequena aventura desse monstro que foi Arnaldo Albuquerque. A primeira revista de quadrinhos do Piauí foi ele quem fez. A capa era um exército de cartunistas nativos, comandados por ele Arnaldo, que com penas e lápis ameaçavam os heróis dos quadrinhos americanos num paredão como se fossem ser fuzilados. Com o sangrar dos pincéis e das tintas como faziam os cartunistas do Charlie Hebdo ainda agora e foram mortos por isso. Arnaldo atacou primeiro. E morreu no dia seguinte a Wolinski, um de seus heróis.

De outra feita organizou o que hoje se chama happening (é assim mesmo?) que na época nada entendi, mas que teve um resultado interessante. Ele confeccionou bustos de gesso dos amigos (eu era um deles) e espalhou esses bustos em pontos de grande concentração popular na cidade. No busto tinha um cartaz escrito “quebre-me” ao lado de um porrete. Ele filmava as reações. Interessante que no final alguém quebrava o busto e era mais interessante quando conhecia o retratado... Sacaram?

Todos os filmes super-oito da época tiveram a sua câmera. O "Adão e Eva” com Torquato Neto e o "Terror da Vermelha" – único filme que Torquato dirigiu, inclusive. No filme do Galvão, filmado aqui no Rio, tem uma cena impagável. A câmera de Arnaldo faz um zoom na buceta nua de uma estátua do Jardim de Alá. Arnaldo para o zoom, marca o local com os pés na areia, coloca ketchup na vagina da estátua, volta para o lugar e conclui o zoom. Efeito: surge sangue na vagina da estátua como por encanto e não se percebe o corte. De gênio.

No show musical “Udigrudi” na boate do Zé Paulino, Arnaldo fez uma cenografia detalhista de um cabaré da Paissandu (o baixo de Teresina) no palco. E que girava em dois ambientes. Coisa de profissional absoluto.

E fez muito mais. Desenhou, pintou e bordou para uma época desbundante. Mesmo com ele ainda vivo, sempre confessei que foi o MAIOR da minha geração. Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus habitantes nos enredos de suas lendas.

Uma vez, por causa de uma paixão, comprou um revolver e ameaçava se matar todo dia. No começo, Assai Campelo dormia com ele e se embriagavam juntos. Desistiu e ele não se matou. Era uma brincadeira.

Um pessoal da nova geração o descobriu e os meninos estavam organizando seus guardados já quase perdidos. Fizeram um documentário sobre sua vida já agora perto do fim, que ainda não vi.

Da última vez que o vi foi que entendi a brincadeira de morrer. Estava se matando aos poucos, afogado no álcool. Ontem recebi a notícia de sua morte. Foi como se apagasse um bom pedaço do meu passado. O que posso fazer além de chorar se morro também um tanto na morte dele?


26.10.11

O TERROR DA VERMELHA, Torquato Neto




a) - um filme é feito de dois planos:
a b c: um plano depois do outro
depois do outro depois do outro
depois do outro - planos. não é
feito de cenas, rapaziada - cineclube.

1 plano é 1 plano, porquanto
montagem é, ante sempre
montagem é, antesempre, uma análise
de planos. e mais soma/divisão
multiplicação/subtração. certo disso.
dziga vertov, citado por godard em
inglês: ...montar um filme antes
da filmagem, montar um filme durante
a filmagem, montar um filme depois
da filmagem.

b) - fotografar ontem, guardar
(SAUSÂDRADE)
fui a teresina pelo início de
junho (sanatório meduna), entrei
em contato com os rapazes que
haviam feito o jornal gramma e
partimos para um superoito de
metragem média que resultou neste
O TERROR DA VERMELHA (ou
qual outro nome escolherem). o
material filmado percorria
aceidentalmente acidentalmente
um fio de acontecimento, matéria
de memória de uma sópessoa em
equipe percorrendo roteiro de
lugares, quintais, paisagens-
plano geral
paisagens-planos-gerai,
distância. a cidade transformada
retornada transformada em
EM TRANSFORMAÇÃO. o jôgo
(from navilouca) VIR/VER/OU/VIR
etc (AQUI/ALI), títulos subtítulos
versos pontuação: TEXTO-LEGENDA,
ora ocupando totalmente o
fotograma ora
precisamente ilustrando-o
"sur-place", como
palavra-cenário (luiz otávio), e
também (galvão em OU),
palavracontradestaque, como
destaque (waly) na dança da
herondina. nove cassetes filmados,
filme ektachrome kodak.

c) - em seguida à versificação de
variadas férteis possibilidades
de edição (montagem), optou-se por
stanley donen. não há explicações
recomendáveis claras para a
escolha: pereceu-nos simplesmente
a mais NATURAL, CONCRETA, no
pensamento da transação com imagem
(e som): em movimento como forma de
narração concreta precisa necessária,
satisfatória. idade eletrõnica. mais
evidentemente, o
tempo/contratempo/contraoambo,
produção execução e a guerra,
(ONE PLUS ONE), godard, o filme das
famílias, televisão, cinemascope,
escambal, o diabo a 4.

d) - edmar (oliveira) o superstar
principal. mais: conceição, herondina
claudette, juçara, adélia maria,
dona salomé, livramento, etim,
paulo josé, durvalino filho, edmilson,
pereira, geraldo cabeludo, dr. heli,
galvão, joão clímaco d'almeida e
transeuntes. além de arnaldo.
arnaldo fez a maior grande parte da
câmera.


[1972]



Torquato Neto
Gramma, número 2
Teresina, 1972


11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

11.6.21

Os Bares de Teresina, por Eugênio Rosa de Oliveira Ribeiro (2013)






Certa noite, pertinho do aniversário de 161 anos de Teresina, numa das cervejadas no Bar do Osvaldo, ficou uma pergunta no ar: O que ou quem mais representaria o jeito de ser da cidade de Teresina?

Conversando com o Conselheiro Fernando Porto, primeiro e único Comendador do Barrocão, veio a solução! Nossos bares e botecos são quem mais refletem a alma do Teresinense.

E por qual razão? Qual é a característica dos nossos botecos? O que os diferencia? Quais são eles?

A maioria de nossos bares é bem simples. Despojados, não muitos limpos (tem um com o nome “Bar do Imundo”), copo americano, cadeira de espaguete, ás vezes nem cadeira têm! E, apesar de serem um templo de celebração da mulher, são um ambiente eminentemente masculino.

O dono, geralmente mais grosso que lixa 40, contraria todas as lições do SEBRAE sobre a cortesia e atenção aos clientes.

No entanto, estes botecos são ponto de intelectuais, médicos, engenheiros, jornalistas, empresários, um sem número de pessoas conhecidas e bem sucedidas, além dos tradicionais cachaceiros dos diversos matizes.

Tem boteco frequentado pelas mesmas pessoas faz 40, 50 anos. Agora já são os filhos que estão tomando o lugar dos pais.

O Bar do Osvaldo, por exemplo, que funcionava perto da casa do estudante, antes de mudar para o Barrocão (ficou no lugar do bar do seu Luís Veloso, pai da primeira dama Lilian), foi frequentado por sucessivas gerações de estudantes (iam comprar ovo e sardinha!).

Muitos desses estudantes se formaram e, apesar de profissionais de sucesso, mantiveram o hábito de visitar o veterano da guerra (seu Osvaldo lutou no Suez).

No Osvaldo não há cadeiras, nem mesas. Quando aparece uma pessoa conhecida (só se for conhecida) ele tira detrás do balcão um tamborete e, assim, os fregueses se posicionam uns de frente para os outros nos dois lados do balcão.

O balcão de madeira do seu Osvaldo tem mais de cem anos e pertenceu ao comércio do senhor Adelino, depois fiscal de rendas do estado, pai do Agenor (engenheiro), Juscelino e Dilson Pinheiro (médicos já falecidos) que permaneceram, como o pai, assíduos frequentadores.

Local de encontro de muitos amigos como: Tancredo Serra e Silva, Edmar Mota e Bona, Peninha, Manoel Afonso, José Jucá Marinho, Bernardo Castelo Branco, Oscar Castelo Branco, Ivadilson, Raimundo Marvignier, Os irmãos Raldir, Bizarria e Roosevelt Bastos, José de Sousa Santos, Afonso Ferro Gomes Filho, João Agrícola dos Passos, Walter Moura, Alberoni Lemos Neto, Ismar Andrade, e muitos outros.

Dá tristeza saber que uma grande parte já se foi!

Outros bares formam uma verdadeira confraria. Um grande exemplo é o Santana. Reduto de famílias tradicionais, os clientes se sentem irmanados e muito amigos. É muito frequentado por empresários e profissionais liberais. Os membros promovem diversos eventos durante o ano: Carro dos Amigos do Santana no Corso, filme do ano, enduros e por aí vai... Tem cliente que começou criança tomando refrigerante no antigo endereço em frente à Igreja São Benedito.

Mas afinal, quais são os bares tradicionais de Teresina do passado e do presente? Eis alguns exemplos:

Maria Tijubina: ficava no Mafuá entre o muro do Cemitério São José e a linha do trem era frequentada por boêmios e notívagos muito conhecidos como José Lopes dos Santos e o mestre do cavaquinho da Rádio Difusora Caco Velho.

• Bar do 71: na Praça do Fripisa, o dono “o Neguin Baixo” só usava branco, roupa e chapéu. Era o ponto dos estudantes da Faculdade de Direito, que funcionava na praça, quando terminavam as aulas.

• Bar do Zé Garapa: na Piçarra onde funciona hoje a Jacaúna, ponto de encontro dos melhores jogadores de sinuca. O melhor jogador era o Raimundinho da Bindá. Seu irmão Antônio da Bindá era conhecido como o maior boêmio do Piauí e um grande cantor.

• Restaurante da Dona Maria Maior: localizado na Rua Paissandu, reduto boêmio. Quando terminavam os filmes, as tertúlias e o movimento da Praça Pedro II, os homens desciam. O nome oficial era Fála-se Hotel, possivelmente uma corruptela de Pálace Hotel.

Bar Carvalho: Muito famoso, frequentado pela elite, era da família do prefeito Firmino Filho e do vereador Inácio Carvalho, ficava na Praça Rio Branco e era considerado a melhor comida de Teresina.

• Bar do Cabecinha: No Cajueiro, antes funcionou na Santa Luzia com David Caldas, reduto do famoso Basilão dos Cajueiros.

Bar Carnaúba: dos irmãos argentinos Carlos e Osvaldo Fassi, ao lado do Theatro 4 de Setembro, totalmente feito de carnaúba. Em suas proximidades funcionava a Rádio Calçada, em frente a Lanchonete Americana, onde as decisões políticas do Piauí eram tomadas. Entre os seus frequentadores temos: Deputado Ciro Nogueira (pai), Dr. João Mendes Nepomuceno Neto, Prof. Magalhães (pai de secretario de segurança) dentre outros.

• Bar do porão do Clube dos Diários: onde existia um cassino

• Largo do Boticário, no Clube dos Diários: no corredor a esquerda de quem entra no Clube, reduto de escritores e intelectuais, até os garçons eram famosos: Raimundão (pai da delegada Vilma), Careca e Cirilo.

• Bar e Hotel Avenida: onde hoje é o Hotel Piauí (Luxor), frequentado pelos sírios e libaneses, nossos conhecidos carcamanos.

• Cantinho do Tufy: também de árabe, o dono era o Jesus Thomaz Tufy, exercia suas atividades na Rua Álvaro Mendes esquina com a Rua Simplício Mendes, foi a primeira lanchonete a vender esfirra e quibe na cidade.

• Bar e Restaurante do Auto Esporte Clube: Na Rua da Palmeirinha (Clodoaldo Freitas), lugar de quem queria comer uma boa panelada. Primeiro restaurante “delivery” de Teresina.

• Chicona do Poti Velho: figura folclórica fazia piaba frita e peixe de primeira (era quem fritava os peixes – bem poucos por sinal– de minhas pescarias no encontro das águas).

• Galinha da Júlia: única comida que se pode dizer que é genuinamente teresinense, funcionava perto do Hospital São Marcos. A galinha era feita em panela de ferro e lenha, recheada com mexidos e bastante condimentada. A receita morreu com ela, mas fez tanto sucesso que a tripulação da empresa aérea Real Aerovias, ao fazer escala em Teresina já vinha com a incumbência de levar a galinha para o Rio de Janeiro e outras cidades.

• Bar do Zé de Melo: em pleno funcionamento na Dom Severino, tão frequentado e querido que existe uma confraria organizada dos amigos do seu Zé.

VTS: Na Rua João Cabral, vende um peixe muito famoso e possuía uma seleta freguesia, exemplo: Totó Barbosa, Elisiário, Carlos Said e Nodgi Nogueira

E quantos outros! Miúda, Bar do Edverton, Gela Guela (a cerveja mais gelada da cidade), Rifona, Zé guela, Sapucainha, Coqueiro Verde, Bar do Gelatti, Pesqueirinho, Bar do Lula, Bar do João Veloso, Bar do Amauri (reduto de jornalistas), Bar da Tia Maria (no encontro das águas), do Ulisses, Zé Filho, Pé Inchado, Ribamar, do Pernambuco, Bar e Restaurante Acadêmico (do Pedro Quirino).

Em Teresina, o bar é tão importante que até candidatura de governador já foi decidida em um.

Até hoje, não há maior diversão para um teresinense da gema que encontrar os amigos no final da tarde e fins de semana, no seu boteco favorito, para trocar informações e esmaecer as tensões de um dia de trabalho.

Nem melhor local para se fazer amizades que duram toda a vida.

São os bares e botecos que fizeram a alegria dos teresinenses de ontem e de hoje.

E que refletem muito do nosso jeito simples e amigo de ser.



Eugênio Rosa de Oliveira Ribeiro
Em 10/08/2013 | Teresina/PI

Publicado no blogue do Poeta Elmar Carvalho "Recebi o vertente texto por WhatsApp. Não tendo o contato do autor, não lhe pude pedir autorização para a publicação em meu blog. Espero que ele não se aborreça. Quem me enviou o texto também não tinha o endereço virtual dele. Publiquei porque achei um texto muito bom e importante para a memória de Teresina."


21.11.15

MEMÓRIA PEDRO II, por M. Paulo Nunes



Houve um tempo em que a vida social e política de nossa capital era feita em suas duas principais praças, a Rio Branco e a Pedro II, esta mais nova, uma vez que a João Luiz Ferreira, sem dispor ainda do necessário tratamento urbanístico, o que somente ocorreria por volta da década de 50, era destinada apenas aos festejos juninos que a animavam uma vez por ano.

Na Rio Branco, a mais antiga, que vinha das origens da capital, onde ficavam os bares, os cafés e o cinema Olympia, de propriedade do Sr. José Ommati, se fazia a vida política, social e literária, ora, no Bar Carvalho, ora, no Café Avenida, todos já desaparecido, o último dos quais criminosamente convertido num estacionamento de automóveis, na última reforma do Hotel Luxor, o antigo Hotel Piauí, realizada pelo governo do Estado, na década de 70. No Bar Carvalho, com um excelente restaurante, em que se destacava o bife a cavalo do famoso cozinheiro espanhol Gumercindo, reuniam-se os políticos, os juízes, os desembargadores e os professores da Faculdade de Direito, que funcionava no prédio do antigo casarão que abrigava algumas repartições do Estado, também criminosamente demolido para dar lugar ao edifício da Receita Federal, originalmente destinado a um centro administrativo e transferido, de mão beijada, como se dizia, ao Governo Federal, que o concluiu.

No Café Avenida, se reuniam, ordinariamente, os intelectuais, os membros da Academia Piauiense de Letras, que ali realizava, inclusive, suas eleições, e a colônia síria que formava, todas as tardes, uma roda de conversa em sua língua.

A Pedro II teve vida mais recente. Quando vim para Teresina, continuar meus estudos e preparar-me para a vida, em 1938, já ela existia, inaugurada que fora, no ano anterior, com o nome atual. Agora restaurada, não integralmente, em sua feição ordinária, dá uma ideia, entretanto, de como ela era. No plano superior, junto ao antigo Quartel de Polícia, hoje Centro de Artesanato, reunia-se o pessoal chamado de 2ª, constituído de empregadinhas domésticas, soldados de polícia e a arraia miúda, em seus namoricos de ocasião. Havia ali também o coreto, ora restaurado, não como fora anteriormente, onde, às quintas-feiras, a banda de música da Polícia Militar executava o seu nutrido repertório, constituído de dobrados famosos como o “Capitão Caçula” e “Juarez”, este, em homenagem ao Cap. Juarez Távora, herói da Revolução de 30: “Juarez, Juarez, o teu nome é uma glória / o Brasil te consagra o general da vitória.”

Na parte inferior, se reunia a chamada elite, com moças e rapazes desfilando em sentido contrário, a fim de que os olhos pudessem encontrar-se, já que os corpos teriam que manter-se à distância, segundo os rígidos costumes da época.

A praça era ladeada por algumas residências e na parte oeste, por alguns cafés e um arremedo de hotel, bastante chic para a época, chamado Hotel Central. Ao lado do Theatro 4 de Setembro, que à época funcionava como cinema, de propriedade do Sr. Alfredo Ferreira, salvo quando aportavam alguma companhias teatrais, alguma famosas, o que era freqüente, foi aberto, a partir do final da década de 30, o Cine Rex, cujo proprietário era o Sr. Bartolomeu Vasconcelos.

No centro do passeio da Praça, havia um sugestivo globo de luz, de cor esverdeada, em torno do qual se reuniam, em meados da década de 40, os plumitivos das letras, superiormente indiferentes ao fascínio do eterno feminino que mostrava suas formas exuberantes à curiosidade dos rapazes do nosso tempo, enquanto, nós outros, superiormente nos empenhávamos em discussões bizarras, sobre literatura, política, filosofia e outros temas inúteis. Quanto tempo perdido!

Ali nos reuníamos H. Dobal, nosso excelso poeta, O.G. Rego de Carvalho, nosso maior romancista. Edmar Santana, um professor brilhante, talvez o mais velho, que logo se mudaria para o sul do país e de quem há poucos anos recebi das peças teatrais, Eustachio Portella, que se tornaria psiquiatra de renome nacional, José Camilo Filho, que desenvolveria o ensino universitário no estado, através de nossa Universidade Federal, de que foi Reitor por dez nos, Afonso Ligório Pires de Carvalho, jornalista e romancista, residente em Brasília, Genésio Pires de Carvalho, procurador público, o autor desta nota e os que já se encontram do outro lado do mistério, como diria Machado de Assis; Arnaldo Victor de Pinho, bancário e engenheiro naval, José Maria Ribeiro, membro de nossa Academia e alto funcionário do Banco do Brasil, José Ribamar de Oliveira, romancista e membro da Academia, e Vítor Gonçalves Neto, o nosso Vitinho cronista e boêmio incorrigível. Vez por outra, por ali aparecia, como um furacão, o poeta Anísio de Abreu Pereira da Silva, que a frequentou por pouco tempo.

Em nossa Arcádia, como se auto-intitulava aquele grupo estranho aos pacatos hábitos provincianos, foram geradas algumas idéias importantes, como a da criação do Clube dos Novos, de vida efetiva até o final da década de 40, e a Revista Meridiano, que seria dirigida por O.G., Hindemburgo e o autor destas linhas que, como revista literária, surgiria também ao influxo daquelas discussões bizantinas

Tudo isto, que já é passado, em nós ainda subsiste. O desfile das moças em flor, quais aquelas “jeunes filles em fleurs” de Marcel Proust, a corneta do Quartel, em seu toque de silêncio, como que a chamar para seu redil as moças casadouras, os nossos sonhos e esperanças fementidos, tudo revive ainda em nós, como naquela quadra de Pessoa:

“Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma”.



M. Paulo Nunes
em P2 
Livraria e Editora Corisco LTDA, Teresina: 2001