"Anos 70: Por que essa lâmina nas palavras? Antiestética Marginal e Geração Mimeógrafo no Piauí", de José Pereira Bezerra
A geração marginália despertou confusa
e vazia com o televisor na sala
os primeiros vestígios aportaram na cidade
com os projetos de cinema, poesia e os gestos
cheios de dicas de Torquato
e não foram enterrados em novembro
de setenta e dois
com seus ossos no cemitério São José
a nossa geração teve pouco tempo para
mostrar as asas quebradas
e alçar o vôo suicida dos anjos predestinados
(Panfleto Poético/1982)
INTRODUÇÃO
Decorrido pouco mais de uma década da eclosão do fenômeno que constitui a produção cultural dos anos 70, vejo-me diante do desafio: escrever sobre a então denominada literatura marginal no Piauí. Ora, tocar num fenômeno extremamente contemporâneo em que nós, jovens protagonistas da geração mimeógrafo, estamos todos vivos, sobrevivendo aos percalços sociais e existenciais, no estado mais pobre da região mais subdesenvolvida do país, é sobremaneira doloroso, até pelos tímidos impulsos econômicos e culturais.
O que resultou daqueles festivos anos insuportáveis? Pouca coisa, quase nada, mas o suficiente para evidenciar um momento de muita desinformação e manipulação, uma certa "idade média" cultural em que a produção cultural no Piauí era resultante de uma compulsão juvenil, de muita vitalidade, que buscava resistir ao sufoco (e os seus reflexos) impostos pelos instrumentos repressivos do regime militar pós-64 e pós-68, que teve como contrapartida econômica o crescimento e o impulso modernizador do milagre econômico.
A contradição entre os anos festivos e insuportáveis residia no fato desse "mal-estar" ser atenuado por uma vitalidade e compulsão em viver nosso momento. De jeans e camisetas, uma inquietação nos movia, e através da palavra, geralmente "mal-dita" e, às vezes, envenenada até a raiz, a realidade era questionada por poetas e contistas.
Mas ninguém era de ferro, e depois de lançamentos, discussões, da aula ou do trabalho, caíamos na noite e as utopias floresciam em bares e botequins da cidade.
Qual então meu objetivo ao esboçar uma reflexão sobre tão polêmico assunto? Moveu-me o interesse em resgatar, embora de forma genérica e provisória, os contornos culturais do fenômeno da literatura marginal, acentuando aspectos de uma antiestética, não enquanto proposta, pois esta não existia, mas como um conjunto de práticas que apontava, anárquica e fragmentariamente para várias vertentes da cultura, do romantismo a aspectos estéticos mais contemporâneos, dentro do contexto dos anos 70, nos aspectos materiais, literários e ideológicos.
Nós, filhos bastardos do AI-5, diante da agonia/euforia, entre a repressão e o "milagre", confusamente buscávamos uma atualização possível e a revelação de uma realidade, prenhe de anseios e frustrações, mas com pitadas de lirismo temperando o peso das metáforas. Até porque a Antiestética Marginal, longe da ideia do "sublime e exemplar" da produção acadêmica, tendia para a adrenalina, o coloquial, o impulso tenso e controvertido.
Embora alguns fatos apontem para o surgimento de manifestações na imprensa alternativa em Teresina e Parnaíba ainda no limiar dos anos 70, o realce desse estudo se inicia com a publicação do livro-apostila "Tudo é Melhor Que Nada", em 74. Todavia, a emergência do fenômeno somente ocorre de 77/80, nas cidades de Teresina e Parnaíba, as quais, por serem mais urbanizadas, foram campo fértil para o desenrolar das discussões que desaguaram na produção da literatura marginal.
A partir de 1980, as publicações de livros refluíram, com um certo desarmamento da ideia de "resistência", não só como reflexo do afrouxamento dos instrumentos repressivos, mas também por causa do fantasma da inflação, que tornou proibitiva a produção de livros, ainda que utilizando o mimeógrafo.
Em 81, ainda ocorreram, embora muito residualmente, publicações em mímeo, tematizando a problemática da literatura marginal, mas as condições históricas e culturais eram outras, de modo que tais produções, sobretudo poéticas, não tinham mais a força do impacto. Era, portanto, uma produção cultural fora do contexto de literatura marginal e não mais respondia às inquietações daquele momento histórico.
É importante frisar que, para efeito desse estudo, entendemos por literatura marginal a produção cultural de um determinado período, entendido como fenômeno que, do ponto de vista do fazer, aproxima-se de uma antiestética, que inclui envolvimento e postura (fator geracional), tematização comprometida com o aqui e o agora, materialidade predominantemente em mímeo. Daí a denominação geração mimeógrafo, produção autofinanciada e venda pessoalizada. (grifos nossos)
Para efeito de coleta, seleção e análise, manuseamos livros de poemas e de contos, individuais ou coletivos que, de alguma maneira, se enquadram nos critérios estabelecidos, inclusive as publicações na imprensa alternativa, editados e publicados no Piauí, no período histórico-cultural enfocado.
Este estudo, embora me tenha valido muitas horas de pesquisa e reflexão, não tem a pretensão de ser a última palavra sobre este polêmico assunto, colocando-se como um ponto de vista para futuras discussões sobre esse fenômeno cultural e sua antiestética, no qual, no que pese a desinformação, amadorismo e displicência bem típicos de um período obscurantista, deu o seu recado, revelando as inquietações de uma geração marcada pelo silêncio e pelo grito, pela indignação e audácia - a geração mimeógrafo.
02. ANTISTÉTICA MARGINAL
O termo Antiestética Marginal, utilizado neste trabalho, engloba uma pluralidade de formas, concepções e posturas fora dos padrões institucionais e mercadológicos, com ênfase na tematização e apresentação material, captados a posteriori, caracterizadores da produção que resultou do fenômeno de literatura marginal no Piauí.
No bojo dessa "antiestética", de práticas não propostas, mas reveladas a partir de uma produção cultural, em que o reprocessar de aspectos estéticos de propostas anteriores era muito precário, é que surgirão a poesia e o conto marginal.
Todavia, embora se saiba que o fenômeno da literatura marginal está inserido no contexto cultural do Ocidente, a partir dos anos 60, importa-nos o início do fenômeno no limiar dos anos 70, no Rio, Bahia e São Paulo, consolidando-se, enquanto fenômeno, por volta de 75/76. E, como no processo cultural as informações fluem do centro para a periferia com uma certa defasagem, esta concepção literária, resultante de um contexto histórico/cultural bem particular, tomará feição própria de conceber e interferir na realidade sócio/cultural, enquanto fenômeno, a partir de 1977.
Supondo que a emergência de um determinado "surto" de produção cultural, ainda quando decorrente de uma repercussão mais geral, tenha uma dinâmica própria, a ser compreendida a partir do local onde ele emerge, este estudo visa identificar a feição particular piauiense do fenômeno de literatura marginal, a partir de fatos e do material empírico.
Portanto, o caráter exploratório da produção marginal é explicitado com base em aspectos econômico/sociais, a partir do exame de situações concretas no plano cultural, que se articulam entre si, resultando numa discussão que ajudou a situar e até "reconhecer" a "antiestética marginaľ" como um fator dinâmico no processo cultural piauiense.
Essa reflexão leva em conta a evidência de que o isolamento geográfico e econômico, no caso piauiense, resultou historicamente no isolamento cultural, com a defasagem e o atraso correspondentes, espelhado até em obras de autores "reconhecidos" pela elite letrada do poder e das instituições, como a Universidade e a Academia de Letras. Assim, o modernismo passou a ser "deglutido", enquanto discussão, a partir dos anos 70, e a repercussão dos movimentos de vanguarda (Concretismo, Praxis e Processo) simplesmente inexistiu. Nesse contexto, o fenômeno da literatura marginal, com a sua juventude, precariedade e impulsividade, ajudou a abrir um leque de questionamento cujos frutos somente começariam a surgir nos anos oitenta.
Por outro lado, o enfoque deste estudo se situa numa perspectiva histórica e cultural, pois há recorrência à explicitação de fatos cronológicos, enquanto fio condutor dos eventos literários (lançamentos de livros), e também a fragmentos de poemas e contos. Não visei à captação de um estilo, uma linguagem, mas sobretudo busquei fixar uma perspectiva contextual, na tentativa de uma decifração das inquietações e da cosmovisão dos autores. A literatura marginal não é tratada, portanto, enquanto literatura no sentido de uma "arte verbal", pronta e acabada, mas como história e vertente cultural e literária dos anos 70.
03 - O CONTEXTO CULTURAL
Os anos 70 se iniciaram, sobretudo em Teresina e Parnaíba, sob o signo do silêncio e da desinformação, em que toda uma geração despertou diante da televisão, manietada pela censura e por interesses comerciais. É através dessa "caixa infernal" que o Piauí passa a integrar a "aldeia global", via satélite, preconizada por Mac Luhan.
Foi a televisão, embora de canal único e de qualidade discutível (aliás, isso foi tema de muitos debates), que alterou costumes familiares e sociais. Entretanto, apesar da deformação de valores impostos sub-repticiamente via centro/periferia, verificou-se uma maior velocidade da informação, a diversão barata, a novela, o futebol e a mídia eletrônica, e tudo isso significou um impacto na atmosfera cultural imobilista que reinava até então.
Do ponto de vista literário, no que pese a defasagem cultural referida no item anterior, pode-se realçar o livro de poemas "Pedra em Sobressalto", de Chico Miguel de Moura, pela sua linguagem despojada e moderna, assim como a ficção de O.G. Rego de Carvalho (Rio Subterrâneo), pelo zelo no tratamento da linguagem e pela profundidade psicológica.
Todavia, ainda em 1972, são publicados os dois primeiros números do jornal alternativo (mimeografado) "Linguinha", editado por Alcenor Candeira Filho, no Rio de Janeiro, e lançado em Parnaíba. Seguiu-se a publicação, em Teresina, do alternativo "Gramma", em mímeo, editado em Brasília por Paulo José Cunha, e dos jornais "Hora Fatal, "Estado Interessante" e "Boquitas Rouges.
Ainda no início da década, são fatos culturais as filmagens de "Adão e Eva do Paraiso ao Consumo" (na coroa do Poti) e o "Terror da Vermelha", ambos roteirizados e dirigidos por Torquato Neto, e os shows "udigrudi", no Theatro 4 de Setembro, com a participação de Assis Daves, Edmar Oliveira, Lena Rios, Galvão, Ana Miranda, Jacó Batera etc., questionando os valores e a problemática local.
Apesar dos primeiros impulsos culturais apontarem para um questionamento diverso do que se fazia na década anterior, o cenário cultural continuava precário, como se pode ver pelas páginas ditas culturais dos jornais O Dia e O Estado.
O mimeógrafo, enquanto forma de impressão de livros começa a ser utilizado ainda no início dos anos 70 (sobretudo veiculando literatura técnica). Mas é com o advento do fenômeno da literatura marginal que o mimeógrafo adquirirá uma importância capital. Em 1974, foi publicado o livro/apostila "Tudo é Melhor Que Nada", coletânea de poemas, contos e crônicas, com a participação de Cineas Santos, Menezes y Morais, Tarciso Prado, Geraldo Borges, Eulino Martins, Francisco Miguel de Moura e Chico Viana.
Apesar do sabor eclético e pré-marginal de alguns textos, o editor Cineas Santos percebeu o clima cultural e político do momento, ao dizer que "meus companheiros estão quietos, mudos, precocemente envelhecidos: pastam o presente insípido e se empanturram ante a impossibilidade do arroto" (...). O livro/apostila traz sintomaticamente, na página de abertura, o poema "Distorção", de Torquato Neto, revelando, sobretudo tematicamente, uma certa aproximação com as inquietações do poeta tropicalista piauiense.
Em "Tudo é Melhor Que Nada" as ilustrações são assinadas por Arnaldo Albuquerque, David Aguiar, Cineas Santos, Heloisa Cristina e Carivaldo Marques. Ressalte-se a participação nesse trabalho de elementos da geração anterior (Clip), revelando a transitividade inicial desses autores no limiar da produção marginal. Essa publicação, não só por ser cronologicamente a primeira, mas por apresentar, gráfica e tematicamente, aproximação com as publicações que se iniciariam a partir de 1977, é um importante marco da geração mimeógrafo.
Um fato marcante ocorrido ainda no início dos anos 70 foi a criação da Fundação Universidade Federal do Piauí, em 1972, instalada no Campus da lninga, em Teresina, e, posteriormente, no Campus Reis Veloso, em Parnaíba. Nesses espaços, as informações e ideias passaram a fluir com maior intensidade resultando num importante palco natural (não exclusivo, pois existiam outros) para as manifestações culturais que passaram a ocorrer a partir da segunda metade da década.
Além das discussões resultantes de lançamentos de livros, revistas, cartazes e de mesas de debates, ocorridas sobretudo no auditório Herbert Parentes Fortes, ressalte-se a vinda a Teresina de pessoas significativas do meio cultural e político (Plínio Marcos Henfil, Tiago de Melo, Almino Afonso, Eduardo Suplicy etc.). Após as palestras, verificavam-se debates, que ajudaram a intensificar um clima político e cultural, destacando-se como promotores ou co-patrocinadores desses eventos o animador cultural Cineas Santos, a Fundação Cultural, a Universidade e órgãos estudantis.
Do ponto de vista político, o fenômeno da literatura marginal está intrinsecamente ligado à rearticulação da sociedade civil em geral e do movimento estudantil em particular, daí a tematização de resistência contra o regime militar que, em decorrência de suas contradições internas e da pressão da sociedade civil, começa a esboçar uma abertura efetiva a partir de 1978.
Culturalmente, as publicações alternativas tiveram grande importância, tanto em Teresina como em Parnaíba, para que se realizassem discussões em torno de vários temas, além de possibilitar a publicação de poemas e contos de autores da geração mimeógrafo. Merecem destaques o "Chapada do Corisco", em Teresina, e o "Alternativo", em Parnaíba.
Ressalte-se que o grupo que gravitava em torno do "Chapada do Corisco" era basicamente o que participaria das coletâneas de poemas "Ciranda" (76) e "Ô de Casa" (77), editadas por Cineas Santos, professor de literatura e o mais articulado do grupo. Perifericamente a esse grupo, surgirão outros pequenos núcleos, com menor capacidade de articulação e produção cultural, mas com um número significativo de autores que participaram ativamente do fenômeno da literatura marginal no Piauí.
04 - LITERATURA MARGINAL & IMPRENSA ALTERNATIVA
Em nível nacional, além da televisão, com o seu discurso incisivo e intransitivo, e da grande imprensa, oficiosa e comprometida despontava também a imprensa alternativa, questionadora de vários aspectos políticos e culturais do país, a exemplo de "O Pasquim", "Opinião", "Coojornal", "Versos", "Movimento" etc., tentando, sempre com um drible na censura, revelar o outro lado da notícia.
No plano local, ao lado da imprensa tradicional e oficiosa (O Dia, O Estado), sobretudo a partir da segunda metade da década, proliferaram vários jornais e revistas alternativos, a maioria dos quais de vida efêmera, questionando problemas locais e nacionais.
Um dos aspectos marcantes dessas publicações alternativas, além da concepção e apresentação gráficas, era a postura questionadora, às vezes irreverente, diante de assuntos "sérios", não reforçando o narcisismo do poder, nem o central (autoritário e repressor), nem o local (oligárquico e clientelista).
Antes que se desencadeasse o fenômeno da literatura marginal no Piauí, surgiram algumas publicações alternativas como resultado de grupos de pessoas que, fugindo à mesmice e ao atrelamento aos interesses da imprensa escrita e tradicional, passaram a articular um novo rumo para as discussões, com a publicação de jornais que, embora com limitada capacidade de intervenção crítica, atraía outras pessoas, formando um centro de interesses mais ou menos comum.
Dessa necessidade foram surgindo alguns jornais (no impressos em off-set, outros, a maioria, mimeografados), tanto em Teresina como em Parnaíba o primeiro alternativo de grande repercussão cultural foi o "Chapada do Corisco", editado pela Editora Nossa, tendo como diretor Cineas Santos e editor Dodó Macedo. "O Chapada do Corisco", nos seus sete números, publicados ainda em 1976 contou com um significativo grupo de colaboradores, formado por Albert Piauí, Paulo Machado, João de Lima, Arnaldo Albuquerque, Reco, Fábio Torres, Assaí Campelo, Fernando Costa, Alberoni Lemos Filho e Geraldo Borges. Impresso em formato tablóide e em off-set, esse alternativo, durante a sua atuação, teve repercussão em vários Estados, questionando na sua linha temática os valores e problemas locais. Era ilustrado com espaços para humor, entrevistas, poesias e contos.
Em 1977, fevereiro e agosto, saíram as duas edições do "Distanteresina", impressas em linotipo e off-set, congregando no seu quadro de colaboradores uma parte do pessoal do "Chapada do Corisco".
Outro alternativo importante é o "Inovação", lançado em Parnaíba, em dezembro de 1977, o qual se estenderia até os anos oitenta. Impresso em mímeo, o"Inovação" teve váríos colaboradores com espaço para questões locais, para a poesia, comentários econômicos e políticos. Pela sua constância e postura independente foi o mais significativo jornal alternativo publicado no Piauí nos anos 70.
"Choque" é outro alternativo editado em Teresina (77/78), em mímeo, que teve como editor José Olimpio Castro. Ainda no segundo semestre de 78 é editado o "Travessia" por Enéas Barros, Luis Washington e José Pereira Bezerra, com publicação limitada, em xerox.
"Cobaia"é editado em 78. Impresso mimeografado, foi o primeiro alternativo que tinha como subtítulo "periódico marginal" cujas edições, encabeçadas por Kenard Kruel e Fonseca Silva, estenderam-se até 80.
Ainda durante o período da literatura marginal, foram editados e publicados os alternativos: "Abertura" (78), em Parnaíba editado por Paulo de Athayde Couto; "Querela" (78/79), em Parnaíba editado por Fernando Ferraz; "Trilhas" (78), em mímeo, editado em Teresina, por Campos Fernandes; "Osso" (79), em mímeo, editado porJ. L. Rocha Nascimento e M.de Moura Filho; "Espinho" (80), em mímeo, editado por W. Fernando, Fernando Costa e Raimundo Alves Lima. Estes dois últimos editados em Teresina.
Seguindo o curso do fenômeno cultural que resultou na "geração mimeógrafo", algumas revistas foram editadas em Teresina, e, assim como aconteceu com os jornais alternativos, tiveram vida efêmera.
A revista mais importante em termos de permanência, nesse período, embora não tivesse necessariamente as características de uma publicação marginal, pelo seu caráter eclético, foi "Cirandinha", que atravessou os anos 70 e entrou nos anos 80, fundada que fora em 77. Editada por Francisco Miguel de Moura, poeta da geração anterior, impressa em off-set, "Cirandinha" apresentava uma linha de publicação que incluía autores "marginais' e "acadêmicos", tendo a citada revista, de certa forma, contribuído para o incremento das discussões no período cultural enfocado.
"Mandacaru", editada em 78/79, era uma revista tipicamente literária, apresentando poemas, contos e artigos. Tinha como editores William Melo Soares e Francisco Eduardo Lopes, e
era impressa em mímeo.
Na segunda metade dos anos 70 e início de 80 ocorreram publicações de páginas culturais, geralmente aos domingos, nos jornais O Dia, O Estado e posteriormente no Jornal da Manhã. Nestas páginas foram publicados, além de outras matérias de interesse cultural, contos, poesias, artigos e entrevistas do pessoal da geração mimeógrafo.
Merecem destaque, pela continuidade e permanência, a pagina cultural editada por Menezes y Morais, de 77/78, no O Dia e a editada por Kenard Kruel, a partir de 80, no Jornal da Manhã. Em agosto de 79 é publicado o primeiro número de "Madrigália", impressa em linotipo, com a apresentação de W. Melo Soares. Era uma revista que incluía apenas poemas.
"Curta & Grossa" (79), edição em mímeo, com a participação de José Wilson, Rubens Costa e Nelson Nery apresentava poemas, textos em prosa, quadrinhos, humor.
As publicações alternativas, jornais ou revistas, tiveram a sua importância no contexto cultural da geração mimeógrafo, não só pela transitividade de autores marginais nessas publicações mas também pelo fato de em torno delas formarem grupos que alimentavam as discussões que tornaram possível a eclosão do fenômeno da literatura marginal no Piauí.
05- LITERATURA MARGINAL - O FENÔMENO
A literatura marginal é produto de um fenômeno cultural típico da segunda metade dos anos 70, no Piauí, que se utilizava de uma antiestética, anárquica e confusa, que incluía a tematização da realidade, produção autofinanciada de livros (sobretudo mimeografados), e a veiculação e venda pessoalizada desses livros, além de uma postura integrada ao contexto sócio/político/cultural de seu tempo.
O primeiro livro editado no Piauí com essas características foi a coletânea "Tudo é Melhor Que Nada" (74), impresso em mímeo, e dedicado à memória de Torquato Neto. Todavia, é somente a partir de 1976 que começam a surgir as condições culturais para a emergência do fenômeno, entendido como uma sucessão de publicações de livros e eventos culturais no bojo de intensas discussões culturais e políticas, que tiveram como palcos o Campus Universitário da Ininga, em Teresina, o Campus Reis Veloso, em Parnaíba, o Theatro 4 de Setembro, além de bares e livrarias, com destaque para a "Corisco", para onde convergiam regularmente vários autores marginais.
Nesse contexto, em que a música popular atingia altos piques de audiência, contrapondo-se com a multimídia do fenômeno das discotecas, respirava-se um "ar de pré-insurreição" cultural, que possibilitava a aglutinação de jovens poetas e contistas, com as mesmas inquietações e um forte sentido de realidade.
Em 1976, é publicado "Ciranda", com o selo da Editora Nossa (a mesma do Chapada do Corisco), impressão em mímeo, apresentando poemas de João de Lima, Domingos Bezerra, Paulo Machado, Dodó Macedo, Francisco Miguel de Moura e Hardi Filho, estes dois últimos poetas de geração anterior. "Ciranda", editada por Cineas Santos, é uma publicação marcante, sobretudo porque nela se apresentam vários poetas jovens da geração mimeógrafo.
Nesse mesmo ano, Alcenor Candeira Filho publicou em Parnaíba o livro de poemas "Rosas e Pedras", em mímeo e em formato de apostila, no qual a tematização varia do lirismo a temas universais, passando pelo cotidiano e apresentando alguns efeitos plásticos via palavras.
Em 1977, é publicada a coletânea de contos "Ồ de Casa", editada por Cineas Santos, impressa em off-set, com trabalhos de Dodó Macedo, João de Lima, João Carneiro, Paulo Machado, Cineas Santos, Magalhães da Costa, Geraldo Borges, Durvalino Couto, Arnaldo Albuquerque, J. L. Rocha Nascimento, Pedro Guerra, Wil Prado, Menezes y Morais, Francisco Miguel de Moura, Rubervam Du Nascimento, Assaí Campelo e J. Carlos de Santana Cruz. A capa apresenta uma foto de Fernando Campos - a arte/final de Fábio Torres - mostrando uma casa abandonada, em ruínas.
"Ô de Casa" apresenta contos de autores de gerações diferentes, o que reflete não um isolamento, mas uma transitividade. O livro é rico de tematizações, embora somente alguns apontem tematicamente para uma "revisitação" do cotidiano urbano. Na introdução, o editor Cineas Santos, sacando as inquietações do momento, questiona a própria ideia de contistas marginais.
"(...) Fizemos apenas um livro que acreditamos honesto e gostaríamos de que ele fosse lido e, se possível, discutido nas escolas, praças, botequins e feiras-livres. Por que não?"
"Murmúrio das Flores", livro de poemas de V. de Araújo, impresso em mímeo, é publicado nesse mesmo ano, tematizando basicamente a subjetividade do autor, de forma lírica e precária.
Entretanto, é a partir de 1978 que o fenômeno se intensifica e toma contornos mais precisos. No bojo das discussões, rearticula- se o movimento estudantil, e com ele toda uma chama de inquietações ideológicas.
E é exatamente a sucessão de fatos culturais a (lançamento de livros, debates, shows lítero-musicais) que caracteriza fenômeno, que resultaria numa antiestética marginal ou uma estética do precário, que inclui o aspecto material do produto (em mímeo, linotipo ou off-set), a tematização variando do cotidiano à problemática social, a distribuição informal (venda geralmente realizada de mão em mão, pelo próprio autor) e até a troca de livros entre autores.
Nesse contexto, os autores marginais (poetas e contistas) vão à luta, enfrentando a ironia de uns, a receptividade de poucos a indiferença e até a hostilidade de alguns, mas conseguem vender o seu "peixe" e dar o seu recado, o seu berro, a despeito de todas as barras.
Na abertura de "Na Poeira dos Dias", livreto de poemas de F. Eduardo Lopes, em mímeo, brada o poeta,
"Desolação, sapiência, opressão,
Tem um homem morrendo, Natal
Longe de mim os pequeninos
Amor ao nada, monotonia quebrada,
progresso negro." (1)
Na trilha segue "Carnê de Viagem", livreto de poemas que inclui textos de Zemagão (José Ribamar Ribeiro) e Elisabeth Rego, em mímeo. Logo na abertura salta a voz do poeta, cheia de veneno:
...
"A manhã é um homem
a cozinhar pedra
esperar o nada
rir e atira cocô nos muros
em inédito porta/voz
futuro" (2)
Outro livreto que desponta em 78 é "Ponta de Rua", em mímeo, de William Melo Soares, que, diante do momento de tensão, ressalta:
"O riso é forte, sarcástico
a mão bruscamente farpada
a bala na agulha afilada
enquanto a faca cega
é articulada em gesto
louco, camuflado!" (3)
"Aviso Prévio", coletânea de poemas, em mímeo e capa em off-set, com ilustração-capa de Albert Piauí, apresenta poemas de Paulo Machado, Afonso Lima, Ral, João de Lima, Menezes y Morais, Alcenor Candeira, Rubervam Du Nascimento e Cineas Santos. Este último, o editor, esboça, na abertura, o "espírito" da coletânea:
"Vivemos um tempo de sufoco e aprendemos bem cedo a conviver com o medo.
Vivemos um tempo de cicatrizes abertas e angustiante espera.
Luta desigual, onde todos perdemos um pouco da necessária esperança." (4)
Em agosto, "Curta Metragem", livro de poemas de Miguel Soares, o Miso, é lançado, em mímeo, com a ilustração da capa assinada por Adalberto. Na apresentação o autor se define:
"Poeta por acaso. Pisando num teclado solto,
esse solo de concreto armado,
respirando o ar poluído. Como todo mundo,
um anjo só quando o sono devora o corpo cansado." (5)
"Camisa Aberta", em mímeo e capa em xilogravura assinada por Nonato Oliveira, primeiro livro de Chico Castro, apresenta prefácio de José Reis Pereira (professor de linguística da FUFPI), que diz:
"Convite de Chico Castro. Visitar seu diário, seu rio, seu dia. Claro como as águas da piscina, que mostram (escondendo) verdades de tudo. Visitar seu diário, seu rio, seu dia para não deixar anoitecer (...)".
A coletânea de poemas "Galopando", em mímeo e capa off-set, assinada por Fernando Costa, editada por Nonata Nerys e Socorro Soares, apresenta poemas de José EImar de Melo Carvalho, Josemar Nerys, Paulo de Athayde Couto, Paulo Machado e Rubervam Du Nascimento. Na abertura, os editores revelam o clima cultural do momento:
"(...) participando de várias reuniões, lançamentos de livros, revistas e debates em grupos de novos autores e observando a vontade desses escritores em divulgar da melhor maneira possível seus trabalhos. (...) São coisas do cotidiano que passam desapercebidas diante do corre-corre da humanidade.."
"Opressão", livro de poemas e textos em prosa (teatral), de Afonso Lima, impresso em off-set, foto-capa de Assaí Campelo, arte gráfica de Fábio Torres, apresenta na introdução trechos de poemas de Paulo Machado, Ral, Alvaro Pacheco e João de Lima. É um livro graficamente bem concebido, contendo poemas e textos que denotam uma certa atualização cultural. No poema que dá título ao livro, o poeta ressalta a sua inquietação:
"há no lamento a própria dor
ante o rasgo fundo do punhal
e o peito se oprime
como o silêncio da voz" (6)
"Tá Pronto seu Lobo?", editado por Cineas Santos, é o primeiro livro de poemas de Paulo Machado. Impresso em linotipo com montagem/capa de Fernando Costa, Nonato Oliveira e Arnaldo Albuquerque. Em "postulado", o poeta, sem esquecer o sentido da realidade, expõe sua inquietação com o próprio fazer poético:
"Fazer poemas é fácil
como amordaçar um lobo." (7)
"O Prisioneiro da Liberdade", de José Pereira Bezerra, impresso em mímeo, com a capa em xilogravura de Nonato Oliveira, é livro contendo contos populares, com um rude traço de esboço, abordando pequenos dramas suburbanos e populares
Nesse período foram lançados ainda dois importantes livros de humor. Em "O Humor Sangrento", de Arnaldo Albuquerque a partir de elementos míticos e da realidade, o autor, utilizando-se da linguagem de quadrinhos, faz uma leitura crítica, da qual não escapam nem os "super-heróis" dos comics.
No humor destacou-se ainda Dodó Macedo. Embora não tivesse publicado livro, seus cartuns, publicados no jornal Chapada do Corisco e na revista Cirandinha, refletem, em traços precisos, o clima repressivo e cultural do momento.
E em "De Frente pro Gol", Albert Piauí tematiza a realidade social e política do país, a partir da linguagem do cartum, com forte tom irônico e crítico, em traços de um estilo bem marcado.
Chega o ano de 1979 e vários fatos tomam conta da mídia, esboçando contornos bem singulares do crepúsculo do regime militar. Do ponto de vista político, por um lado a classe trabalhadora se mobilizava e articulava greves na defesa de seus salários e direitos; os estudantes se mobilizavam e, após a reconstrução da UNE, elegiam o seu primeiro presidente; por outro lado, toma posse como presidente da República o general Figueiredo, é decretada a anistia e voltam ao país os exilados políticos. Do ponto de vista econômico a inflação, como um fantasma a corroer os salários, se apressa e já ameaça o galope. No panorama ideológico, reacende a chama da guerrilha na América Latina, com a revolução sandinista na Nicarágua.
É um ano em que se respira esperança e indignação, e são os autores da geração mimeógrafo que revelam em poesia e prosa o peso desse pedaço marcante da história, pois se a geração anterior vira as portas se fecharem, a nossa geração, ainda com o peso da utopia, assistia às portas começarem a se abrir.
"Em 3 Tempos", coletânea de poemas, em mímeo, apresenta textos de Kenard Kruel, Paulo Couto e Elmar Carvalho, com edição dos autores. A capa, em off-set, é assinada por Vilson. No poema de abertura, Elmar Carvalho arremata, com a força da raiva:
"Sou triste
mas eu vejo a tristeza
como lágrimas
nos olhos do diabo." (8)
"Cerca de Arame", livro de poemas de Wilton Santos, apresenta impressão em mímeo e capa em xilogravura de Nonato Oliveira. Na abertura, o autor dá a sua receita:
"quem lidera
é preciso ser touro
no aboio ser vaqueiro
carece ser sensato
é prudente ser besouro" (9)
"Vendedor de Picolé" traz poemas de Émersom Araújo, impresso em linotipo, com a representação de um picolé, em preto, na capa. Em"Insatisfação", o autor expõe a sensação de incômodo de viver num mundo mesquinho, em que tudo transborda suor e deserto:
"a minha caricatura tem privilégio de sentir, mas hoje estou seco
...
meu coração saturado não solta mais
rimas acadêmicas para as musas
estou transbordando de secura
como esta lagoa diária" (10)
"Sub-Vivo" é um livreto de poemas, em mímeo, de Marleide Albuquerque. No poema que dá título ao livro, a autora revela lances de um olhar atento:
"Noite
avenida
lá estava ele
entre carros
...
parecia que a qualquer momento ia desmontar em ossos
ficando apenas o quebra cabeça na avenida" (11)
"Salada _Seleta", coletânea de poemas, em mímeo, desenho/capa, em off-set, de Flamarion Mesquita, apresenta textos de V. de Araújo, Alcenor Candeira Filho, Paulo de Athayde Couto, Elmar Carvalho, Ednólia Fontenele e Bernardo Silva. Em "Grito", de Ednólia Fontenele, percebe-se o esboço da precariedade daqueles anos,
"tô aqui!
velada pela morte
e espreitada
por olhos que não
consigo ver. (12)
"Via-Crúcis", livro em verso e prosa, de Venâncio do Parque, mimeografado e com capa em xilogravura de Nonato Oliveira, traz na abertura rasgos de ironia e sarcasmo:
"Em frente ao prostíbulo
uma puta otimista
sorria e cantava de pernas pro ar.
E nós transeuntes
ficamos a cismar
Será que é esta
a tal abertura de seu Figueiredo?" (13)
"Topada", coletânea de poemas, em mímeo, apresenta textos de Zemagão, William Melo Soares e Émerson Araújo. No prefácio, Rubervam Du Nascimento saca o lance dos autores e lança sua emoção:
"quarta-feira de dezembro os poetas aqui reunidos identificam-se entre si pelo conteúdo temático e pela busca (..)
...
amigos,
vocês
são
lindos" (14)
"Caderno de Poesia de Resistência", em forma de apostila, mimeografado, apresenta poemas de Chico Castro, Paulo Machado, Elisabeth Rego e Rubervam Du Nascimento. Em "Convite", Chico Castro realça a força do cotidiano daqueles dias:
"apesar de vivermos
um tempo
como velhos amigos
...
tomaremos vinho
...
sem se deixar anoitecer
conversaremos." (15)
"Poesia do Campus", publicação em mímeo, formato de caderno, com capa de Flamariom Mesquita, apresenta poemas de EImar Carvalho, J.L.de Carvalho, Adrião Neto, Antônio A. Monteiro, José de R. Ferreira, Wilton de Magalhães Porto e Paulo de A. Couto. Foi editado em Parnaíba sob a coordenação de Adrião Neto e apresentação de Alcenor Candeira Filho.
"Impressões", em mímeo e com capa em xilogravura de Fernando Costa, reúne poemas de Antônio A. Neto. Na apresentação, Paulo Machado anuncia:
"Antônio A. Neto põe tudo à prova, vivendo um tempo que ensina a resistir, a dizer de muitas maneiras."
"A Filosofia do Tiro", de Chico Castro, mimeografado e com capa em xilogravura de Kinkim. Na introdução, o autor sublinha a tragédia diária dos habitantes deste canto da América:
"nordeste sarampo feijão
mais pra sarampo que pra feijão
é foda beth este balido baby-doll" (16)
"Descartável", livro-envelope, em xilogravura, com ilustrações de Fernando Costa, apresenta poemas de Chico Castro, Leonan Moura, Paulo Machado, Menezes y Morais, Salgado Maranhão, Domingos Bezerra, Francisco Sales, Cineas Santos, João Luís e H. Dobal. Na introdução, o editor expõe as dificuldades de publicação e identifica o fantasma que se esgueira as portas dos anos 80:
"Vivendo sob o signo da inflação que, atiçada pela ganância e protegida pela incompetência, sangra impiedosamente as economias da sofrida gente dessa república relativa. Nós, "os poetas de dez cruzeiros", resolvemos adotar uma medida (a única ao nosso alcance) em defesa do consumidor: baixar o nosso preço Agora, somos dez poetas por apenas vinte cruzeiros"
"O Sono da Madrugada", de José Pereira Bezerra, mimeografado e com capa em off-set ilustrada por Fernando Costa, apresentando ilustrações de Arnaldo Albuquerque e Evandro Vieira, reúne dez contos, em forma de narrativas simples, com "ênfase nos pequenos dramas na sua nudez cotidiana.
"Um Dedo de Prosa", coletânea em mímeo, capa/xilogravura de Fernando Costa, com ilustrações de Fernando Costa, Heloísa Cristina e Amaral, apresenta contos de J. L. Rocha Nascimento, Francisco Sales e M.de Moura Filho. Na apresentação Paulo Machado salienta que,"(...) os contos parecem esboços, são flexíveis. A escolha dos verbos, o uso cauteloso dos adjetivos e a pontuação sugerem uma preocupação constante com o leitor.
"A Chacina do Posto King e a Desforra de Valter Alencar" cordel em mimeo, de autoria de Zemagão, narra um caso policial que marcou a crônica de Teresina. E o único livro do fenômeno marginal com recorrência à poesia popular de cordel.
"Laranja Partida ao Meio", livro de poemas e prosa de Meneses y Morais, em mímeo, capa de Fábio Torres e contracapa de Arnaldo Albuquerque, apresenta poemas e, sobretudo, uma prosa experimental, numa linguagem macarrônica, onde o autor expõe a sua cosmovisão.
Ainda nesse mesmo final de década foi publicado o livro "Nas Mãos de Deus", de Francisco das Chagas Dias, de apresentação gráfica bem particular, no qual aborda temas existenciais e a ideia marcante de finitude que caracteriza sua obra.
Os anos 78 e 79 foram, portanto, muito significativos para a geração/mimeógrafo no Piauí, pois esse período corresponde ao ápice do fenômeno, como se pode ver na sucessão de publicações, calcado numa antiestética marginal em que prevalecia a ideia do precário como forma de produção, tematização e veiculação de livros, cartazes e panfletos editados pelos próprios autores.
Ao entrar 1980 ocorreu um reflexo na produção marginal, e com o correr do tempo a própria concepção de uma literatura circunstancial, em que o aspecto cultural contava mais que o literário, foi se diluindo no tempo. Por isso, este ano, para efeito de compreensão do fenômeno de literatura marginal, foi o último, marcado pelo declínio e o fim do período enfocado.
Além de lançamentos de livros de autores inseridos na literatura marginal, outros eventos culturais marcaram o panorama cultural no Piauí.
Ainda no ano anterior fora lançado o disco "Chapada do Corisco", do pessoal do Som Piauí (Clodô, Climério e Clésio), pela CBS, em que aspectos do Piauí e de Teresina são tematizados.
Outro evento importante na área cultural foi "Poesia na Praça", em janeiro de 1980, com a publicação de livros de autores marginais e o lançamento do Manifesto Ecológico, em forma de cordel, por Cineas Santos, e ainda um recital com a participação de vários poetas, no Theatro 4 de Setembro.
No segundo semestre, o fato cultural marcante foi a realização do I Festival de Música Popular do Piauí-FMPBEP, com a gravação em disco, no final do ano, das doze composições classificadas.
Na música popular, na segunda metade da década destacaram-se ainda os grupos Calçada, com os shows "Canto Amordaçado", "Claridade" e "Fruto da Terra"; Candeia, com "Óculos", "Suíte de Terreiro" e "Catavento"; e mais os grupos Varanda, Currulepo e Nova Vida.
Outros livros publicados em 1980, de autores da geração mimeógrafo:
"Teresina", livreto de poemas de Paulo Machado, com a apresentação de Cineas Santos. Impresso em off-set e com o selo da Editora Corisco, reúne poemas em que a cidade é tematizada.
"Quando a Vida Fere", coletânea de poemas, impresso em off-set e editado por Francisco Miguel de Moura (edições cirandinha), apresenta textos de Rosângela Santos, Ximenes de Melo, Batista Caldas e F. M. de Moura Júnior. Na apresentação, o editor ressalta:
"Nós nos damos por satisfeitos em apresentar estes quatro jovens, num único volume, como prova de solidariedade da juventude nos seus planos e sonhos, num único volume que consideramos válido e necessário (..)."
"Asas", livro de poemas de Rubens Costa, impresso em off-set/mímeo, foto/capa do próprio autor. No poema "Asas", que abre o livro, o salto lírico de um gesto incontido:
"queria soltar
saltar o que não vi
e sei
esquecer o outro lado
e este
onde sou
onde tento o vôo
e tenho rosto de quem tem
asas" (17)
Em agosto de 1980 é publicado "O Rio", coletânea de poemas editada por Cineas Santos (Ediçőes Corisco), em off-set, foto/capa de Alcide Filho, na qual, apresentada pelo poeta H. Dobal, explicita-se uma preocupação ecológica e de denúncia em defesa do rio Parnaíba. Esse livro inclui, além de poetas de gerações anteriores (Da Costa e Silva, Vidal de Freitas, Martins Vieira, Alvaro Pacheco, Olímpio Vaz, Clóvis Moura, H. Dobal, Francisco Miguel de Moura e Herculano Moraes), autores da geração mimeógrafo Climério Ferreira, Paulo Machado, Nelson Nunes, Kenard Kruel, Raimundo Alves Lima, W. Melo Soares, Salgado Maranhão, Rubervam Du Nascimento, Menezes y Morais e Cineas Santos. Nessa coletânea, apesar da perspectiva formal bem eclética, ressalta uma tematização comum - o Rio.
Em meados de 79, como resultado da reunião de vários autores da geração mimeógrafo, com a finalidade cooperativista de publicação de trabalhos dos filiados, foi criada em Teresina a União Piauiense de Escritores - UNIPIS, que, em virtude de atritos internos e da ausência de uma base de sustentação econômica, inviabilizou-se, tendo, portanto, vida efêmera.
"Quadro BR" reúne poemas de Raimundo Silva, em mímeo e capa/xilogravura de Edmilson. Na apresentação, o autor faz a sua queixa:
"Democracia", mas do jeito que foi e está, nem precisa. Neste trabalho (minúsculo), é procurado realçar alguns dos nossos maiores problemas, porém, por determinação do próprio sistema, muitas coisas deixaram de ser citadas."
"Painel de Sombras", livro de contos de Airton Araújo, em mímeo, capa de Fernando Costa, em xilogravura. Na apresentação José Pereira Bezerra salienta que:
"Os personagens que povoam os contos são basicamente pessoas simples: bêbados, prostitutas, pedintes... Enfim, todos aqueles que sentem nos ombros o peso da discriminação de uma sociedade injusta que faz o homem inimigo do próprio homem."
O fenômeno de literatura marginal repercutiu em todo país. Todavia, em cada estado revelou contornos próprios e conseguiu ajudar a criar as condições para um questionamento que resultaria numa produção cultural mais consistente na década de 80.
Mas os jovens autores marginais não ficaram impunes por sua ousadia. Pompílio Santos, um dos representantes 'informais' da "sagrada família acadêmica", soltou a sua indignação em artigo de jornal:
"A cidade está sendo inundada de textos (poesia, prosa, o diabo) mimeografados. Aproveitando o clima de pavor inflacionário, 'os autores' invadem os escritórios e os lares e cobram cem, duzentos cruzeiros por volumezinhos de poesia chinfrim ou prosa de baixa cotação. A chamada "poesia moderna" facilita a produção de versos que não passam de tolices em fileira. O governo devia baixar um decreto: "a partir de hoje, todo poeta fica obrigado a só escrever soneto" com rimas ricas, sem pés quebrados, dentro da estética bilaquiana. Fica proibida a chamada poesia moderna. Alguém já chamou esta gente de 'a geração do mimeógrafo'. Depois dessa maquinazinha infernal, a literatura em Teresina está sendo vendida na rua, nos escritórios, pelos preços da inflação. Parece até a invasão americana no lrã. Cada leitor agora vai ter que bancar o aiatolá para expulsar os poetinhas e poetastros do mimeógrafo." ( O Estado 04.12.79)
Em resposta a esse insulto surgiram vários artigos em defesa dos autores marginais, mas o importante é saber que os jovens tanto interferiram na realidade cultural que provocaram esse tipo de "reação", a qual, em última instância, embora talvez inconscientemente, foi uma forma de reconhecimento. Não se insulta o que não existe, e se o fenômeno de literatura marginal incomodou os 'medalhões que florescem à sombra do poder', o gesto juvenil e impetuoso não foi em vão. Valeu a pena e virou história de um tempo singular, marcado pelo silêncio e pela ansiedade do grito.
Indicação Bibliográfica:
1) - LOPES, Eduardo, in "Na Poeira dos Dias"
2) - ZEMAGÃO, in "Carnê de Viagem"
3) - SOARES, William Melo, in "Ponta de Rua"
4) - SANTOS, Cineas, in "Aviso Prévio"
5) - CASTRO, Chico, in "Camisa Aberta"
6) - LIMA, Afonso, in "Opressão"
7) - MACHADO, Paulo, in "Tá Pronto seu Lobo?"
8) - CARVALHO, Elmar, in "Em 3 Tempos"
9) - SANTOS, Wilton, in "Cerca de Arame"
10) - ARAÚJO, Émerson, in "Vendedor de Picolé"
11) - ALBUQUERQUE, Marleide, in "Sub-Vivo"
12) - FONTENELE, Ednólia, in "Salada Seleta"
13) - PARQUE, Venâncio do, in "Via-Crúcis"
14) - NASCIMENTO, Rubervam Du, in "Topada"
15) - CASTRO, Chico, in "Caderno de Poesia de Resistência"
16) - CASTRO, Chico, in "A Filosofia do Tiro"
17) - COSTA, Rubem, in "Asas".
Anos 70: Por que essa lâmina nas palavras?
Antiestética Marginal e Geração Mimeógrafo no Piauí (1/3)
Teresina, Piauí: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1993
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