23.10.18

DE POETA E LOUCO..., por Edmar Oliveira



"Leve um homem e um boi ao matadouro. 
O que berrar mais na hora do perigo é o homem, 
nem que seja o boi" 
(Torquato Neto)


Somos contemporâneos e conterrâneos meio atravessados. Cheguei a Teresina quando ele já tinha ido embora e a nossa diferença de idade era enorme na meninice. Quando o conheci, a Tropicália já tinha sido feita, eu já conhecia todas as músicas que ele colocou letras, ele já tinha voltado do exílio no exterior, suas colunas nos jornais – algumas lidas por mim – já tinham chegado ao fim. No nosso encontro eu tinha 19 anos e ele 26, já perto de morrer aos 28. Portanto conheci o Torquato maduro. Por isso só consigo pensar nele como muito mais velho que eu. Foram encontros demorados e intensos, onde fizemos jornais, cinema e conversamos em demasia. Eu ouvia muito, mas também falava no atrevimento dos jovens. Só muito depois soube que ele tinha escrito, àquela época, ao Hélio Oiticica dizendo que conhecera uns meninos incríveis no Piauí – referindo-se à turma do Gramma, jornal pra burro, que só fizemos dois números mimeografados e deu no que falar até hoje. E a gente sabia que estava diante de uma pessoa importante para o futuro, quando a Teresina, que hoje o cultua, ainda não gostava dele.

Eu já estava na faculdade de medicina quando o conheci e quis o destino que, quando vim  morar no Rio, fosse trabalhar e dirigir o hospício em que ele foi internado, tentando transformá-lo no Instituto Nise da Silveira. Depois, quando estava no Ministério da Saúde, me ocupei do fechamento do Meduna, hospício piauiense, onde ele também esteve internado. Portanto, cruza-mo-nos outras vezes, mesmo depois dele morto.

Por conta desse nosso destino, perguntam-me sempre sobre a loucura do poeta triste. Nessa homenagem, a Revestrés também pergunta – na voz do povo – sobre o poeta e a loucura. Na faculdade de medicina eu estava inclinado a fazer saúde pública, local de refúgio de “subversivos” nos anos de chumbo. Foi Torquato quem me chamou atenção para o campo psi, quando me aconselhou a prestar tenência de que a psique humana talvez fosse tão infinita quanto o infinito cósmico. Por ele ouço falar de arquétipos que só entenderia muito mais tarde, quando conheci Nise da Silveira.

Na saúde mental me dediquei à Reforma Psiquiátrica, combatendo os perversos manicômios e as rotulações psiquiátricas para justificar a internação dos que estavam à margem da sociedade. E é desse lugar que dou a minha opinião.

Torquato tinha uma intolerância ao álcool, o que não acontecia ao uso de maconha ou outras drogas. Com o álcool, além da intolerância, tendia também a um consumo excessivo e o pacato e manso cidadão às vezes exaltava-se além da conta. Nada que justificasse uma “dependência química” tão a gosto do saber psiquiátrico de então. No Engenho de Dentro foi internado duas vezes. Da primeira foi submetido a tratamento com drogas psicotrópicas de efeitos tão devastadores ou maiores do que a droga que alegavam combater. Não aguentou a barra e fugiu. Evadiu-se, no jargão psiquiátrico. 
Retornou por ter encontrado Oswaldo dos Santos (psiquiatra reformista de então, não tão conhecido, mas da importância histórica de Nise da Silveira) num bar do Leblon. Osvaldo lhe recomenda uma internação na Comunidade Terapêutica que criara então no Engenho de Dentro. Mesmo hospício, mas outra prática. E nessa comunidade mais liberal não deixa de travar um embate intelectual sobre a loucura com Osvaldo dos Santos, como está descrito em “Diários de Engenho de Dentro” – parte integrante dos “Últimos Dias de Paupéria” (sua única obra póstuma que foi autorizada): “o Dr Oswaldo não pode fugir, nem fingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremos a nossa primeira entrevista”.

Mesmo numa experiência inovadora, como a Comunidade de Oswaldo dos Santos, Torquato percebia, com bastante lucidez, as contradições, a segregação psiquiátrica e a que classe esse saber sequestrava: “Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais – de qualquer maneira esperamos a ‘cura’ no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se ‘regenerem’, etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista (...) Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima (...) Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba. Pode me dar um cigarro? Eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte?”

Poderíamos chamá-lo de um “observador participativo” no jargão das pesquisas sociológicas de hoje, mas o homem estava internado no matadouro das liberdades, junto com os marginais sociais. Sérgio Sampaio o homenageou numa canção que compreendia a experiência vivenciada pelo poeta: ”Tive internado ontem / Na cabine 103 / Do hospício do Engenho de Dentro / Só comigo tinham dez”. Uma canção miúda, mas com um significado intenso e muito real da experiência de Torquato: “a minha cama já virou leito” retrata a contradição da psiquiatria em transformar uma vivência humana em doença, como discursaria Foucault sobre a transformação da loucura em doença mental pela medicina; “saí do palco e fui pra plateia / saí da sala fui pro porão”, a transformação do artista na geleia geral brasileira onde alguém tem de exercer o papel de medula e osso, na frase bem sucedida de Décio Pignatari e que Torquato emprestou a vida no cumprimento da sentença.  

No Sanatório Meduna, em Teresina, acompanhei a sua internação. Foi voluntária, para escrever e pousar para fotos da revista Nave Louca, que teve um número único. Foi interessante ver a sua relação com os internos. A sua relação deliberada com a loucura. Ele praticamente administrava um batalhão de pacientes para carregarem mesas, cadeiras, máquina de escrever e seus objetos pessoais de uma sombra a outra melhor, onde conversava animadamente, escrevia e se preparava para as fotos.
Na internação que testemunhei, apenas vi uma deliberada vivência com a loucura. Uma atração fatal de um sujeito que tem na sua vida a maior obra daqueles anos infelizes. Essas impressões eu guardo de quando ainda não era um profissional da área.

Hoje, estou convencido que muitos foram internos de manicômios sem um diagnóstico condizente. Os sobrantes, os párias, homossexuais,  mulheres traídas, herdeiros indesejados, discordantes do regime. Principalmente os pretos, pardos e pobres como observou Lima Barreto. Quem se debruçar um pouco na história da psiquiatria vai perceber isso.

Mas a pergunta que sempre me fazem é se Torquato não era “pelo menos” um depressivo. Sempre respondo que éramos uma geração depressiva. Os anos de chumbo pareciam nos sufocar em demasia e, naquela época, não víamos a luz no fim do túnel. E um suicídio pode mesclar uma depressão com uma determinação existencial filosófica e não necessariamente ser atribuída apenas a um mísero diagnóstico.


Como disse antes, conheci o Torquato maduro, que apesar da pouca idade tinha participado de um movimento decisivo e diluidor (em sua concepção) da música popular brasileira e dos costumes nas artes em geral; esteve com outros artistas na linha de frente na passeata dos cem mil e ficou exilado em Londres e Paris; teve uma coluna de opinião (sobre tudo palpitava) em um dos maiores jornais do país; experimentou cinema e as multilinguagens da poesia; viveu os limites da condição humana (em suas letras o “vou pra não voltar” é uma constante). Como não querer experimentar os limites da loucura repetindo voluntariamente Antonin Artaud de quem era leitor?

Torquato quis viver a contradição entre o fascínio e o horror que a loucura desperta na nossa alma, porque só ao ser humano ela é possível. Como mais uma faceta do seu estar no mundo, onde suas ações se confundem com a obra. Porque o seu comportamento frente a uma sociedade opressora, castradora e violenta dos anos de chumbo foram gerados para “desafinar o coro dos contentes”. Manso calmo e cordato, não era necessário o álcool para o pacato cidadão desagradar um consenso que achasse burro (então não botemos a culpa na droga e sim no homem). Não aguentava a burguesia idiotizada e de bem com o regime, mas também não suportava a “caretice” da esquerda – para usar um termo da época – e seu reacionarismo cultural (no que teve toda a razão que o futuro lhe reconheceu).

Depressivo, esquizofrênico (como já lhe chamou alguém), dependente químico, bipolar não são rótulos diagnósticos da psiquiatria nos quais se possam enquadrar o poeta triste. Depressivo se é quando se vive em uma sociedade sem futuro; somos vistos como esquizofrênicos quando não nos enquadramos em uma sociedade doente; a droga nos faz experimentar uma outra sensação quando o real não nos basta; bipolar quando temos que animar a moçada e chorar no ombro amigo.

Quem captou um possível diagnóstico cultural de Torquato foi Paulo Roberto Pires na organização fenomenal de Torquatália. Dois volumes de uma bipolaridade incrível. “Geleia Geral” – o apanhado da miscelânea jogada para fora na imprensa, na poesia, nas artes & manhas em alegria geral. “Do lado de dentro” – o poeta triste, reclamando no ombro dos amigos o que lamentava dos acontecimentos que o entristeciam.

Loucura? Como a de todo poeta e louco que habitam o humano. Em Torquato Neto rompendo o limite com que estamos acostumados. Mas não chamemos o que nos é estranho de loucura. Ou a loucura é um dos inumeráveis estados do ser, como queria Artaud e foi compreendida na percepção de Nise da Silveira.



Edmar Oliveira (Psiquiatra, militante da Luta Antimanicomial, escritor. Autor de “Ouvindo Vozes” (Vieira & Lent, Rio 2009) e “von Meduna” (Oficina da Palavra, Teresina, 2011) sobre a prática em Saúde Mental; e dos romances “Terra do Fogo” (Vieira & Lent, Rio, 2013) e “Sitiado” (Chiado Editora, Lisboa, 2017). Texto publicado originalmente na revista REVESTRÉS, número 33, novembro/17, dedicada a Torquato Neto.