17.10.13

INTRODUÇÃO




Esta cidade ardente, poucos homens a trazem na lembrança ou no coração. É uma cidade simples, tranquila. Aqui não há becos nem ladeiras, mistérios nem tradições. Cem anos não deixam acumular muita cousa na vida de uma cidade que já nasceu velha e que sempre teve o ar de uma aldeia grande, como notou um viajante ilustre e mal-humorado. Um ar que se transforma aos poucos com o correr do tempo e esta transformação indecisa mais o progresso ajudam a descaracterizar a cidade. Tem suas diferenças, é claro. O clima, as condições geográficas, a vida, as árvores. Outro viajante ilustre, porque gostasse de adjetivos ou porque realmente o impressionaram tantas copas verdes sobre os telhados desbotados, chamou-a Cidade Verde. Os naturais gostaram, o nome ficou. Hoje não existe mais aquele imenso arvoredo a que se referiam os cronistas do tempo, mas ainda se pode dizer que é uma cidade velada pelas árvores. Mangueiras e oitizeiros dão a sua sombra como frágil proteção contra o sol. O sol é muito claro, como se estivesse sempre em desespero, há excesso de luz nesta cidade. As cores se afirmam definitivamente, mas há predominância de tons claros. As casa claras e baixas, as roupas claras, os dias límpidos. Raros dias cinzentos e as chuvas, embora não sejam raras, chegam a ser uma distração. A marcha das estações é quase imperceptível. O tempo das chuvas e o estio. Em maio chegam brisas do Atlântico e dão à cidade um leve toque de primavera. Nesta época as madrugadas deixam um neblina tênue, que marca o fim do inverno. Depois é a soalheira. Meses mais tarde nuvens se formam ao nascente e começam as chuvas outra vez. Então alguns contemplativos descobrem que há bandos de aves voltando do Maranhão, cruzando o rio para o Piauí. São os patos e marrecas que voltam para as lagoas distantes. Assim se vai o tempo e a vida. O ritmo da vida é muito calmo. Os dias passam serenamente vazios, os rios descem o seu caminho, as nuvens seguem o seu curso, grandes cúmulos brancos na pura duração do azul. Os cafés se enchem de homens, os homens estão cheios de pó e de retórica, discutem política, negócio, amor e a vida dos outros. Há praças para os namorados, a quem a polícia não permite muitas expansões, cinemas, a missa dos domingos, os bailes, a cerveja e em qualquer lugar há sempre a música de um alto-falante. A cidade é aberta, sem segredos, acolhedora. Tem um ar de família que vem do fato de que quase toda gente tem relações ou se conhece. O que dá origem a uma intimidade deliciosa, como a daqueles dois que conversam em um dos cafés mais movimentados da cidade. Dizia um: "Ele é cretino, convencido, besta". Veio o garçom, bota a bandeja na mesa e entra naturalmente na conversa: "Quem é?" O que estava contando também responde naturalmente: "O Dr. F...".
em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

APONTAMENTOS PARA UM POEMA DO RIO POTY




Mais na lembrança do que na paisagem
desce no seu caminho vagaroso um rio pobre.
Lento fluir de águas quase mortas.
Rio Poty
rio sem história
rio sem memória.

Um sinal de beleza nesse rio é uma cousa exterior a ele
e está confinado em palavras - o Porto do Noivos. Porque a
beleza não está propriamente no porto, mas nessa
denominação com tudo o que ela sugere de lirismo.

Algo fantástico nesse rio mal nutrido, meio devorado pelo 
sol: as arraias enterradas na lama que, há muitas águas
passadas, assombravam os moleques da manhã.
Como um pássaro mudo o rio humilde vai passando pelos
espaços do seu silêncio.
Rio Poty
rio sem surpresa
rio sem memória.



H. Dobal
em Obra Completa - I (poesia)
Teresina: Corisco, 1997

OS CABARÉS



Rua Paissandu via Bernardo Sá Filho


O lado cabaré merece uma referência que corresponda à sua importância, que esteja de acordo com o seu papel de destaque, com íntimas ligações e reflexos na vida da cidade. Aqui se pratica intensamente esta espécie de amor e o número de profissionais que existe, não só nos cabarés, mas também fazendo esse jogo do amor é grande. Um sociólogo apresentaria o fato como  índice de pobreza da cidade. Os cabarés ou pensões de mulheres, que têm menos o aspecto de bordéis, no mau sentido, do que de night-clubs ou dancings, ficam localizados em zonas determinadas e são mesmo chamados a "zona". Quase sempre tomam o nome das proprietárias: Raimundinha Leite, Maria Aguiar, Zezé, e são constituídos de restaurante, botequim, mesas ao ar livre, e o salão de danças, que é, às vezes, decorado com pinturas, obra de artistas simples e inspirados em motivos ainda mais simples: paisagens mansas. Têm orquestras próprias ou eletrolas com alto-falantes e as músicas, quaisquer que sejam, sofrem no ambiente a transformação de uma vaga nostalgia. Têm ainda uma cousa que lhes diminui a brutalidade ou a mesquinhez: não é claramente um comércio. Para o sucesso faz-se preciso certa dose de corte e de galanteio.

Um velho piauiense, que atingiu alta posição em um os poderes da República e que há anos não vinha a seu Estado, perguntava a seu sobrinho como era a vida noturna de Teresina. O rapaz, profundo conhecedor, com a experiência de muitas noites de rondas pelos lugares mais secretos, se excedia em detalhes. O figurão não continha o entusiasmo: "Nem em Paris, meu filho! Assim nem em Paris!". Talvez no seu entusiasmo estivesse muita saudade da terra e da mocidade, talvez estivesse sendo sincero, porque, na cidade, participam do seu sentimento quase todos os solteiros e muitos casados. Foi em um cabaré que dois jovens políticos festejaram, estrondosamente, as suas candidaturas a importantes cargos da administração pública. Entretanto não há necessidade de motivos: mesmo sem eles as comemorações se sucedem, as farras se realizam, os cabarés vivem cheios e constituem na vida da cidade talvez o maior centro de atração. As mulheres, com aquele ar inconfundível que as distingue imediatamente, são discutidas, tornam-se conhecidas e algumas chegam quase a se envolver em uma aura de lenda, como a Rosa Banco, que dava uns famosos bailes verdes em que todos os participantes se vestiam desta cor. Figuras que toda a cidade conhece e comenta, uma parte só conhece as referências, este material humano é de todos os tipos, se divide em escalas para todos os gostos ou possibilidades e, naturalmente, sofre a inconstância e as dificuldades próprias do seu gênero de vida. Há duas zonas principais: a da Rua Paissandu e adjacências, próximas ao Parnaíba, mais antiga, afada e numerosa, e a da Piçarra que tem a preferência de certo número de frequentadores, e onde se destaca a Casa Amarela.

em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

ROTEIRO SENTIMENTAL E PITORESCO DE TERESINA




É uma cidade, sem dúvida. Tem um comércio muito barulhento e uma indústria muito modesta. Tem lugar para os mortos: dois cemitérios, o da Vermelha onde são enterrados os indigentes, mas não somente eles, e o de S. José com muros brancos e portões de ferro. São cemitérios brasileiros sem o lirismo e a estética dos americanos. Tem as associações: religiosas, profissionais, filantrópicas, culturais, que também nesta cidade os homens são gregários: A Academias de Letras, a Ordem dos Advogados, o Rotary Clube, a Maçonaria. Tem o seu tédio aos domingos e os lugares onde se pode enganá-lo: a Socopo, projeto de uma cidade jardim a alguns instantes de Teresina, na estrada de União, com uma piscina de águas sulfurosas e outras instalações que transformaram em balneário o antigo centro de seu Juvêncio. Os que gostam do campo podem dar um passeio a Buenos Aires, um posto do Ministério da Agricultura, que fornece verduras e frutas à cidade e onde um tostão ainda é dinheiro: com ele podem ser comprados cinco maxixes.

E como é preciso chegar a uma conclusão há o recurso de citar Camus, por intermédio de Sartre: “Um processo cômodo de se conhecer uma cidade é procurar como se trabalha nela, como se ama, como se morre”. Talvez seja esta a verdade: só diretamente é que se pode apreender a vida íntima e real de uma cidade. Compreender as suas cousas. Saber que aquela casa da Rua Bela com uma frase na platibanda: “Homenagem ao lugar em que nasceu Luiz José de Souza”, representa apenas uma singela homenagem do dono da casa ao local em que nasceu o dono da casa. O dono, de bigodões, que é conhecido pelo nome mais modesto de Luiz Cabelo Duro, é relojoeiro de profissão, mas não conserta relógios de pulso porque é contra esta “moda idiota”. Nos seus vagares se apaixona pela astronomia e prepara o dossiê da cidade contando que terríveis segredos só a posteridade saberá um dia. Enquanto isto a cidade vive: a política picha os muros e solta foguetes. O espocar dos foguetes e ronqueiras marca todas as ocasiões festivas. As faíscas são derrotadas pelos pára-raios e o próprio calor pode ser combatido: as redes facilitam a vida. Desde que os armadores estejam na altura e na distância ideais, que lhes determina Huguinho, o maior conhecedor: a sua altura mais quatro dedos e quatro passadas suas mais um pé. Depois disso tudo estará bem. O carnaval é fraco. Também o futebol. A luz elétrica é boa, a água é melhor. O céu é imenso para os aviões e os urubus e nele um barbeiro da Rua Grande já viu o disco voador. A cidade completa cem anos. Já apareceu em um baião formoso e na Melodia Moura, de Mario de Andrade, Laura, que foi empregada na farmácia de D. Lili, falava de Teresina. O boi “Riso do Amor” dança em junho. Na última noite do ano dançam o réveillon no Clube dos Diários. Os dias se sucedem com o mesmo sol, as noites acompanham a lua. A vida é calma.

em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

HERANÇA


à artista plástica norma couto


na senador pacheco 1193 há um poema
onde os primos, em volta da mesa, guardam suas ânsias
diante das pastilhas de hortelã.

e o avô na sala de espera
sonha com o voo dos pássaros
buscando as canaranas.

(às vezes de sobrecenho, fala da guerra de 14,
da gripe espanhola)

o tio já não tosse dentro da noite
arranhando um estranho silêncio
no fim do corredor
que muito se assemelha
ao gesto acanhado dos meninos
com suas canecas, à espera das cabras.

no verão, da mesma forma que no poema,
não há lodo no muro
e as lagartixas passeiam ao sol.

da nudez das pedras e do vermelho
arrebenta um verso
cicatriz esquecida.

(nesse poema o difícil
é não ser trágico)
no quintal, a erva cidreira cresce
por entre as rachaduras da lajes,
sussurrando boatos de revoltas.
na sala de jantar, o perigo do naufrágio
nas tradições de há séculos.

há um poema que rói o tédio,
na senador pacheco, 1193.



Paulo Machado
em "ta pronto seu lobo?"
Edições Corisco: Teresina, 2002 (2ª edição)

H. Dobal - síntese biográfica




Hindemburgo Dobal Teixeira (17/10/1927 – 22/05/2008) nasceu em Teresina – PI. Poeta, cronista e professor. Formado em Direito. Foi um dos fundadores do Movimento Meridiano. Bibliografia de H. Dobal: O Tempo Consequente (1966), O Dia Sem Presságios (1970, Prêmio Jorge de Lima), A Viagem Imperfeita ( (1973), A Província Deserta (1974), A Serra das Confusões (1978, editada por Cineas Ssntos, com ilustrações geniais de Albert Piauí, saiu originalmente em A Província Deserta), A Cidade Substituída (1978), El Matador (1980, em forma de folheto, com xilogravura de Fernando Costa, editado por CS, saiu originalmente em O Dia Sem Presságios), Os Signos e as Siglas (1986, ilustrada por AP e editado por CS), Uma Antologia Provisória (1988), Cantiga de Folha (1989), Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina (1992), Ephemera (1995), Grandeza e Glória nos Letreiros de Teresina (1997), Lírica (2000), Um Homem Particular (contos, 1987, ilustrado por AP), Gleba dos Ausentes - Uma Antologia Provisória (2002). Entre as antologias que tem a poesia de H. Dobal incluída, Desde Planalto Central - Poetas de Brasília (2008, organizada e apresentada por Salomão Sousa).

TERESINA DO MEU TEMPO (A PRATA DA CASA)




Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo - é bom que se saiba - parece não terem nada a dever aos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As "Horas de Arte", festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais - a prata da casa - em geral elementos próprios da sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 no amparo, ora à noite, no Teatro 4 de Setembro, ouviam-se solos instrumentais - piano, violino, flauta, bandolim, violão - números de canto e dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: "A tesoura", "As mãos", "A luz", "As estrelas". Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e finalmente perdida, sob o título "O elogio da lágrima". Talvez influenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícia, por constituir verdadeira raridade bibliográfica.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais "Clube Recreio Teresinense", "Os Amigos do palco", "Os Talianos" e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Teatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas "O bicho", "Frutos e Frutas", "O Coronel pagante" e "Jovita", todas de Jônatas batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os "Amantes da Cena Viva", grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama "Mariazinha", também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfiou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelava no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zila Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violonistas; Durcília Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam música tocado valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Radagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingo à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! a poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizades conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namorados que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda...Lourdinha...Maria Luísa...Maria... Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado: quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo: nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela jóia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no final da jornada, acabo de perder. Mas, com licença: o assunto é outro.

x
x  x

A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela a oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão influído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso "Teresina meu amor":


RONDÓ À AMADA AUSENTE

Não quero flor nem brilhante,
Quero carinhos de amante
Para o mais fino louvor
A quem já nasceu prendada
- A ti, minha namorada,
Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos,
Logo nos apaixonamos,
Tu - princesa, eu - trovador.
Atirei-me nos teus braços,
Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,
Não perdeu tempo em conquista,
Já nasceu triunfador.
- Formosa rosa trigueira,
Flor da raça brasileira,
Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,
E outro amante não tiveste
Com mais paixão e calor.
Em noites de serenatas
Dediquei-te mil oblatas,
Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,
Cantasse o céu, o universo,
Tinham meu mel, tua cor.
Vivi de ti impregnado,
- Garotão apaixonado,
Teresina meu amor...

Assim vivemos, querida,
A quadra melhor da vida
Que me deu Nosso Senhor.
Mas em busca de outros ares,
Perdi-me noutros lugares,
Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,
Envelheci de repente,
Do azar da sorte ao sabor.
Tu continuas menina,
Áurea estrela matutina,
Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,
És muito namoradeira,
De amantes possuis um ror
Sei de um, escritor de fama,
Que em belo livro te chama
“Teresina meu amor".

Vivo morrendo de ciúmes,
Da saudade subo aos cumes,
Desço aos socavãos da dor...
Mas não te esqueço um momento,
Vives no meu pensamento,
Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,
Mando-te um montão de beijos,
Pois te amo seja onde for.
- Minha cidade menina,
Minha linda Teresina,
Teresina meu amor!
em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Café Avenida I, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Quando deixei Teresina, em abril de 1951, ainda havia dois bares muito concorridos na Praça Rio Branco - o Bar Carvalho e o Café Avenida.

O Bar Carvalho era também restaurante e sua cozinha obedecia ao comando de um espanhol gordo de nome Gumercindo. Nunca esqueci o sabor de alguns de seus pratos. E já que aqui se fala de música, lembro o famoso filé à Carlos Gomes, para mim sem igual até hoje. E a farofa de ovos de que só em falar sinto a boca cheia d'água? De ovos mesmo e não apenas de ovo. À noite fazia também sucesso o substancioso chocolate com gema de ovo batida, servido numa xícara enorme - um verdadeiro jantar.

Apesar dessas delícias, o ponto de reunião ideal para o grupo de amigos e intelectuais que me incluía, notadamente na década de 40, era o Café Avenida, onde só bebíamos o tradicional cafezinho.

Ficava ao lado da igreja de Nossa Senhora do Amparo, sempre lotada aos domingos pela manhã, na missa das 9.

Vale registrar que, durante muitos anos, a missa das 9, no Amparo, constituiu ponto alto na vida social da cidade. Lá estavam senhoras e moças nos seus melhores trajes e homens de terno e gravata, apesar do calor de 40 à sombra nos meses terminados em "bro". O coro, do qual fazia parte com meu violino nos dias de festa, oferecia músicas e cantos agradáveis, acompanhando os atos litúrgicos. Muitas vezes lá nos encontrávamos, Martins Napoleão e eu. Por isso Celso Pinheiro troçava, dizendo que éramos do partido da negra velha...

Fotografia publicada no livro "Ulisses, entre o amor e a morte"
de O. G. Rêgo de Carvalho

Terminada a missa, não resistíamos a uma parada no Avenida, não só para aguardar a "hora do almoço", na expressão local, como especialmente para o descontraído e divertido papo na roda já formada por Celso Pinheiro, Martins Vieira, Álvaro Ferreira, Ribamar Ramos e outros, entre os quais, embora menos assíduos, os Professores Pedro Torres e Cláudio Ferreira, ambos egressos do Seminário, e o serventuário da Justiça, mais tarde desembargador, Manuel Belisário dos Santos.

Estabelecimento de sírios, o Café Avenida congregava também, invariavelmente, os principais representantes da colônia árabe que tão bem se adaptou à vida e aos costumes da terra, emprestando a ela o valioso concurso do seu trabalho, da sua experiência e do seu sonho de vitória no comércio, na indústria e outras atividades lucrativas; integrando-se enfim na segunda e bela pátria que os acolhera sem discriminação e com carinho e onde seus filhos, pela constituição de novas famílias, com o tempo se tornaram parte ativa da comunidade, brilhando muitos deles nas profissões liberais, na política, no magistério e até na administração pública.

Azar Chaib, Elias João Tajra, Miguel e Elias Caddah, Tomás Tajra, Elias Hidd, Miguel Sady, e Saba, Said, Adad, Mualem, Kalume - eis alguns de seus nomes. Sérgio Tajra, o patriarca da colônia, creio que à época já se havia transferido para São Paulo, onde passou a morar depois do falecimento da esposa, Dona Adélia.

Sentavam-se em área separada, ao fundo do bar, aí formavam o que eles chamavam de "roda" e onde durante horas, nos momentos de folga, trocavam idéias sobre suas vidas e seus negócios. Um apenas se desgarrava às vezes do grupo dos patrícios - o simpático Wady, para vir à nossa mesa contar anedotas das quais só ele ria...

Anedotas e episódios de fino humorístico eram aliás constantes na nossa roda de amigos. De Celso Pinheiro, o grande poeta simbolista admirado e aplaudido em sua terra e fora dela, excelente conversador, e de Martins Vieira - para nós simplesmente o Júlio - espírito vivaz e brilhante, sempre de bom humor, sobretudo deles guardo muitos casos. E embora fugindo um pouco ao tema principal destas Notas, mas justificando-o com o fato de aí se discutirem tudo, inclusive música, aproveito a oportunidade para recordar algumas dessas passagens pitorescas, num preito de saudade aos queridos companheiros mortos.

Celso não gostava do presidente Getúlio Vargas. Responsabilizava-o pelas desventuras do filho, o jovem e inteligente Celso Pinheiro Filho, mais tarde advogado e prefeito de Teresina, cujas idéias e atividades políticas o levaram ao presídio na ilha de Fernando de Noronha.

Certa manhã, ao acercar-me do grupo, meio atrasado, Celso Pinheiro foi logo me dizendo:

- Poeta, você não quer ver o Getúlio trabalhar no cinema? Deve ir, você é um Getulista.

Estranhando a sugestão, indaguei se se tratava de algum documentário importante, com imagens de realizações do vigente Estado Novo. Respondeu que não; tratava-se de filme em que o Presidente figurava como principal personagem, como ator mesmo.

Mais intrigado ainda, apanhei o programa do dia, que o Cinema Olímpia, ali pertinho, fazia distribuir sobre as mesas do bar. O título do filme era "Um espertalhão de marca maior". E Celso garantia, convicto:

- Só pode ser o Getúlio!



em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988


Café Avenida II, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Em outra oportunidade comentava-se a compra, pelo Estado, da biblioteca de Mestre Higino Cunha - um punhado de livros velhos que o governo acabava de adquirir mais como pretexto para suavizar economicamente a velhice do extraordinário polígrafo e servidor, pelo próprio governo sempre explorado e mal pago. Celso Pinheiro aplaudia o ato governamental, revelando ao mesmo tempo que a sua biblioteca é que ninguém poderia comprar. Não haveria dinheiro que chegasse.

Todos ali sabíamos que o poeta não tinha biblioteca nenhuma. Uns poucos volumes, geralmente de poesia, e nada mais. Martins napoleão até o considerava um gênio, justificando sua opinião com o fato de que, sem estudar, sem viajar, lendo praticamente só livros de versos, Celso possuía um domínio de uma escrita admirável, na correção, na criatividade, no conceito e nas imagens, tanto na poesia como na prosa. Eis por que a história da valiosa biblioteca não soara muito bem. E um de nós, creio que o Júlio, quis saber que biblioteca era essa de que ninguém tinha notícia.

Celso respondeu como que declamando, meio fora da realidade:

- O céu azul e as estrelas...

Cláudio Ferreira, como seu colega Pedro Torres, ainda trazia a cabeça cheia de histórias do seu tempo de seminarista. Contou que durante um retiro, na sede episcopal, o Padre Áureo fora escolhido para ler o texto destinado à ceia, a longa mesa de refeições totalmente ocupada por sarcedotes de várias localidades e presidida pelo bispo, D. Severino Vieira de Melo. E tudo ia bem até que o leitor, tropeçando em determinada palavra, começou a gaguejar: "geme... geme... gemebunda...".

Um risinho maroto percorreu então toda a mesa, logo, porém, abafado ante a atitude sisuda de chefe da igreja. Mas terminada a ceia, quando este já se retirava, o Padre Uchoa, sempre brincalhão, passando por trás do Padre Áureo, que permanecia sentado, acariciou-lhe a carapinha dizendo:

- Desta vez ela gemeu, hein nêgo!

Apesar do estrondo das risadas, o bispo apressou o passo, fingindo não haver tomado conhecimento da brincadeira.



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988


Café Avenida III, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


No Café Avenida também fazia ponto, quase todo dia, o Padre Acilino Portela, virtuoso pároco da matriz do Amparo. Era aí que, bebendo repetidamente seu cafezinho, sempre na mesma xícara, ele tomava dinheiro dos comerciantes, industriais, fazendeiros e outras pessoas, conhecidas ou não, para obras de reconstrução da igreja, que encontrara caindo aos pedaços. Homem simples, de palavra singela, era, entretanto, estimado e respeitado por todo mundo. Sermões monótonos, repisados e entremeados de uma palavra cacoete, nem por isso suas missas eram menos concorridas. Pelo contrário: aos domingos, na missa das 9, a igreja se tornava pequena para comportar os que nela se comprimiam.

Num desses sermões, o vigário falava, com visível aborrecimento, de certa pessoa que fora levar a D. Severino informações malévolas sobre seu modo de vida. E contava que o bispo, de quem recebera chamado, lhe manifestara não achar correto que ele, Padre Acilino, passasse os dias sentados num botequim, de pernas cruzadas e fumando cigarro. Mas fora franco - contava - como é do seu feitio. Confirmara as informações, justificando que, perdida sua mãezinha e não sendo casado nem podendo pagar empregada, não tinha quem lhe fizesse café; e como fosse o café sua única bebida, depois do vinho da missa e da água do pote, via-se obrigado a tomá-lo no bar, sempre pago pelos amigos por não ter dinheiro. E quanto ao cigarro, que o senhor bispo aconselhava usar mais recatadamente, afirmara não ser homem de fazer escondido aquilo que pudesse ser feito em público. E como não julgasse pecado, continuaria a fumar na presença de todo mundo e não detrás da porta, mesmo porque o cigarro também lhe era dado por amigos. E mais: dissera que passava os dias no bar para arranjar dinheiro para as obras da igreja, porque a diocese nunca lhe dera um tostão, para isso ou para qualquer outra coisa. E com isso encerrou-se a entrevista.

Padre Acilino repisava seu cacoete num crescendo nervoso, realmente aborrecido:

- Mas justamente eu sei quem foi fuxicar para o senhor bispo. Eu sei o nome dessa pessoa que justamente devia era melhor cuidar da sua vida e deixar a dos outros em paz. É gente que aqui mesmo vive batendo no peito, sem fé nem espírito crisão, e o que devia fazer era justamente tratar de ter mais merecimento junto a Deus. Mas eu sei quem é essa pessoa.

E alterando mais a voz:
- Eu sei quem é. Estou quase dizendo o nome dela! Justamente estou até sentindo cócega na língua. Vou acabar dizendo o nome dessa pessoa!

Toda a igreja ria. Menos decerto a pessoa de quem falava e que ali devia estar tremendo e rezando para não ser revelada.

Deixado em paz, pelos detratores e pelo bispo, Padre Acilino pôde concluir as obras de restauração de sua igraja, deixando apenas para seu substituto, Monsenhor Joaquim Ferreira Chaves - ou simplesmente Padre Chaves, como gosta de ser chamado - a construção das altíssimas e esguias torres que hoje identificam de longe, nas vistas terrestres ou aéreas, a imponente matriz de Nossa Senhora do Amparo.



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Café Avenida IV, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Embora mais raramente, às vezes nos reuníamos também à noite, sempre no Café Avenida. Até às 21 horas, quando a cidade quase toda se recolhia para dormir. Os encontros ocorriam ao acaso: um de nós entrando para um cafezinho, encontrava um companheiro. Logo vinha outro, e o grupo ia se formando em torno de uma mesa e em meio aos comentários sobre fatos do dia ou trazidos pelos jornais do Rio de Janeiro. Mas qualquer assunto servia.

Uma noite, por exemplo, falava-se, entre outras coisas, de religião, da existência de Deus. Lembro-me bem dos presentes: Álvaro, Celso, Júlio, Ribamar e eu, e em mesa ao lado, depois de nos interromper duas ou três vezes, bêbado, o Agostinho Danado.

Celso acreditava em Jesus como um ser privilegiado, um profeta, um filósofo, e tinha por ele grande simpatia. Dizia até que, se estivesse em Jerusalém naqueles tempos, teria feito um barulho danado para evitar que o Cristo fosse, como foi, condenado sem culpa. Mas em matéria de religião, resumia suas idéias numa pequena frase: Tudo é amor. Deus, a vida e a morte, o sonho, a felicidade, o que é material e o que é abstrato, tudo é amor.

Júlio gostava de espicaçá-lo, sabendo que o amigo, nervoso, pegava fogo de repente. Nessa noite, após ouvir repetidas vezes a frase "tudo é amor", ele não dormiu no ponto, atirou o seu fósforo:

- Poeta, merda é amor?

Celso deixou a cadeira onde estava sentado quase num salto, e plantando-se diante do insolente, logo bradava e gesticulava, os olhos faiscando:
- Merda é amor, sim senhor! Merda é amor!

E fez um verdadeiro discurso em que havia esterco, húmus semente, germinação, planta, flor, beleza, paz e, finalmente, amor, tudo para tentar convencer, ao Júlio e a quem mais quisesse ouvi-lo, que merda é amor...

Em outro desses encontros noturnos o assunto era a reforma ortográfica, decretada pelo governo federal, e o vocabulário que a ela se integraria, organizado pela Academia Brasileira de Letras.

Celso Pinheiro confessava não haver aprendido as regras em vigor, por isso iria continuar escrevendo como até então e quem quisesse que fosse recolocando os acentos, os tremas, os hífens e outras coisas exigidas pela reforma.

Júlio Vieira faz-lhe ver que a coisa não é assim tão difícil, bastando notar, por exemplo, que toda palavra proparoxítona leva acento na sílaba tônica, agudo ou circunflexo, conforme o caráter aberto ou fechado da vogal: cálculo, pródigo, trêfego, cômodo. Prossegue explicando que o acento agudo também se emprega para evitar o ditongo em certas palavras, como país, juízo, saúde, viúvo.

Meio desinteressado, o poeta da "Flor Incógnita" interrompe a aula e se levanta para sair. Fala:

- Vou guardar minh'alma. Hoje tenho a cabeça tão doída.

Júlio logo corrige:

- A última palavra aí não tem acento...



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Moura Rêgo - síntese biográfica




Raimundo de Moura Rêgo nasceu na antiga vila de São José dos Matões, hoje cidade de Matões, a 23/06/1911. Viveu a adolescência, a mocidade e parte da vida adulta em Teresina, a que ele dedicava extremo afeto. Contador, Bacharel em Direito. Professor da antiga Escola Industrial. Inspetor Federal do Ensino. Inspetor fiscal do Imposto de Consumo. Advogado.

Jornalista militante fez parte da antiga Associação de Imprensa do Piauí, com Cláudio Pacheco, Álvaro Ferreira, Martins Napoleão, Joel Oliveira e muitos outros. Em Teresina dirigiu a revista "Garota", de feição literária, e participou de vários movimentos intelectuais de jovens, como Arcádia dos Novos e Cenáculo Piauiense de Letras - colaborando nas revistas e jornais representativos desses movimentos e agremiações, com Odilo Costa, filho, Anísio e Wagner de Abreu Cavalcante, Viana Filho, Jacob Martins, Emílio Costa, Clemente Fortes, Firmino Paz e outros.

Músico, deu concertos de flauta, violão e violino. Especializando-se neste último instrumento, fez-se aplaudir em inúmeros recitais realizados não só em Teresina como em Fortaleza e São Luis do Maranhão. Continuou no Rio tocando violino em reuniões familiares com outros amadores. Em Teresina, foi uma espécie de introdutor de todos os artistas que a visitaram, especialmente na década de 40, recebendo-os, apresentando-os em público e cooperando com eles na execução dos respectivos programas. Exerceu a crítica de arte nos jornais "Vanguarda" e "Diário Oficial". Em 1941 realizou, com Antilhon Ribeiro Soares, a opereta "Uma noite do Oriente", levada a efeito, com sucesso, primeiro no auditório do Liceu Piauiense e depois no Teatro 4 de Setembro, sendo autor dos versos da maioria das músicas apresentadas e, além de violinista, regente do conjunto orquestral por ele mesmo organizado com amadores locais e músicos das bandas da Polícia e do Exército.

Moura Rêgo abrilhantou as mais queridas festas artísticas do Teatro 4 de Setembro. Exímio flautista, foi encanto da chegada de misse Piauí, do Rio, em 1929. Clarinetista, pianista, encontrou ainda no violino o seu instrumento de beleza. Compositor, poeta, prosador, memorialista.

Mereceu elogios de Martins Napoleão, Cláudio de Sousa, Jonas da Silva, Cruz Filho, Carlyle Martins, Celso Pinheiro, Cleómenes Campos, Malba Tahan e outros críticos e homens de letras do Brasil.

Publicou: "Ascensão dos Sonhos", poesias da juventude, 1936; "Trovas", 1942, e "Gritos Perdidos", 1944. No Rio, em 1987, editou "Em Surdina - Trovas e outras Cantigas". Dele a Academia Piauiense de Letras fez edições de três obras: "Contracanto", os seus melhores instantes de sensibilidade poética, o mestre do verso, cheiroso a amor, de alexandrinos perfeitos; "As Mamoranas estão florindo", história de uma fazenda e de uma época, no Maranhão, romance documentário, tipos, costumes, dureza da vida, gente abandonada; "Notas Fora da Pauta", memórias de Teresina, em que conta o pedaço mais bonito da sua vida, narra a maravilhosa fase artística teresinense de participou, com alma e coração, relembra nomes de que a cidade se orgulhava e fatos deliciosos dos tempos idos - uma Teresina pobre, mas alegre, rica do espírito de sua gente modesta, trabalhadora, fraterna - e nela esteve Moura Rêgo em serestas de amor e bem-querer.

Faleceu no Rio a 12 de março de 1988.



A. Tito Filho
em Jornal O Dia de 16 de julho  de 1988

DA CIDADE I




o poeta sobidesce
um arranha céus
outro caminho torto
na rua
espias casas

há um visível con
traste
entre o que é e o estar:
existir por cisma
já não vinga!




em Percurso do verbo
Teresina: 1987

DA CIDADE II




existe um canto
que sobrevive
à (b) usina de todos os dias
acalanto da memória
que a cidade descongela.

que é a barra / a barca
tremulando nos espaços
do arquiteto imóvel

a noite cobre aflitiva
a cidade:
o poema não se vence;
um homem bebe cicuta!



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

DA CIDADE III




teresina se inclina
e uma névoa brusca
torna frágil o caminho

como custas a vir (meu amor)

ontem éramos nácar e sol
                                 hoje orvalho:
quanta coisa a te dizer
muito que fazermos
na aquarela escura
da cidade



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

16.10.13

"o amor é recreio feito nos pastos verdes"




..........................................................................


o amor é recreio feito nos pastos verdes
da tristerezina
não tenha esses tantos medos
(que acho tão belos
em suas essências intocáveis)
porque o amor omnibus idem
e há tempos em que somos apenas amor
tudo em nós aí se imanta desse doce flagelo
e por ele respiramos
como se não existira nada além

aí reside a mudança das luas
devemos alçar o coração abaixar a cabeça
e participar dessa comunhão
cantando loas
correndo campoadentro
à toa...



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

CENAS DE MORTE SOBRE O RIO




quando a gente tá nessas noites de ansiedade
e sai madrugada afora com um litro de chave de ouro
sob a camisa, comprimindo a lágrima na estação da saudade
descobre que a poesia ajuda a viver e quer que nosso poema
fira a carne dos mortais mas traga boas doses de riso
quem detém sobre a alba o sorriso perdido?
quem detém na vida a luz da saída?
quando a gente descobre que está só no mundo
está nu sobre o rio, e que a brutalidade das margens
compressas faz com que a água venha transbordando
dos olhos nos alhos, quer chorar sob a lua...
quem chamou por mim lá no longe?
quem me olhou chorar sob a ponte?
a vida é mesmo essa multidão de rostos inválidos
que a gente precisa ressuscitar. o poema é a melhor
maneira de falar para os meninos perdidos na escuridão
do rio e para as meninas da vida cingidas de cio...
quem viu meu poema no horizonte?
será que a vida me garante?


em Percurso do verbo
Teresina: 1987

TEREZIENSTADT




o muro da vergonha separa cidade da miséria
em ondulações de granito e flores de concreto
escondem os mafuás e malungos
frau tijubina não sabe
que a beleza é aparente
apenas pressente a separação
como dolorosa incisão
de um bisturi impiedoso



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

"meu silêncio é planície morta"




meu silêncio é planície morta
do verde grandes lenços de linho
balançam a relva e assopram gemidos mudos
silvo de violino / aguilhão quando descansa

meu silêncio é a beira do poty
margens com-pressas
sussurrando loucuras / bandeirinhas vegetais
remando contra o re-mar

meu silêncio lençol horizontal
estendido no parnaíba
grande fala de poder falar e não precisar mais



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

Ramsés Ramos - síntese biográfica





Ramsés Bahury de Sousa Ramos [ ✰ 28/12/1962 - † 20/09/1998 ] nasceu em Teresina - PI, faleceu na Rússia. Poeta, músico, jornalista, tradutor, tradutor e crítico de arte. Bibliografia: Dois gumes (1981); Envelope de poesia (com outros autores); Dança o caos (1981 - com outros autores); Percurso do verbo (1987); Baião de todos (1996 - com outros autores); Poema da paixão (1992).