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12.1.16

MOTIVO IGNORADO



João Severino da Silva, brasileiro, casado com Dona Justina (em 10 anos, 10 filhos), biscateiro e fazedor de ponto no Troca-Troca do Jorge melo, acordou pensativo. "Seu Gosto na Berlinda é um programa feito pelo próprio ouvinte. E atendendo à solicitação do jovem Irismar Noronha, do Parque Piauí, ouviremos com Genival Santos, Eu te peguei no Flaga." Justina aumentou o volume. João na mesa, comida pouca e a mulher cantando os sucessos de seu gosto... era agosto de 78. Tempo quente. João nasceu sob o signo de Peixes e o horóscopo garantia-lhe um bom dia para negócios; possibilidade de melhora no emprego; surpresas agradáveis, além de, naquela sexta-feira, ser dia propício para acertar na Loteria.

Um locutor se esgoelava enaltecendo a construção de um ginásio. Justina fazia o grolado pros meninos. João era pisoteado no ônibus. O ginásio tinha capacidade para 10 mil. João deixou com Justina Cr$ 10,00 "pra fazer as compras". O locutor enaltecia o cartolão. Justina repartia o grolado. João descia bisonho no terminal. evitou o burburinho e aspirou a catinga que emanava do Parnaíba e adjacências. Mais adjacências. Desde há muito João ficara incrédulo. A vida tava cada vez mais difícil. Caminhou lentamente e passou, sem ligar, por várias mãos estendidas em sua direção. Se repartisse o trocado ficaria sem o do ônibus. Não repartiu. O alto falante do terminal convidava o povo para grande acontecimento.

João atravessou a avenida maranhão pensando no filho menor acometido de coqueluche. o alto falante conclamava. Justina economizava. João chegava ao Troca-Troca.

- Tudo bem, joão? (perguntou Olimpo, barbeiro do Troca-troca desde o início - amigo de todos).
- Tudo... (respondeu João escondendo o jogo).

Chico Soldado, o maior trocador do local, aproximou-se alegre, após ter lucrado Cr$ 1.500,00 ao trocar um televisor Colorado preto e branco, por uma bicicleta monark (com documento e tudo) e ainda dois relógios ORIENT, com dois caboclos do ALTO DO BODE, que queriam ver o enterro do Papa pela televisão.

- João, rapaz, desta vez eu lavei a égua. Vê aí, rapas, novinhas! Aquele televisor tá só o bocal. Só vai dar pra racha deles - comentou Chico e saiu alegre. João não tava legal. pensava em casa.

O horóscopo previa um dia propício para negócios. João era pisciano.

- Quer comprar, João? É 38, Taurus, trazido da Zona Franca. (Chico Soldado falava baixinho pro policial fardado não ouvir)... E então, rapaz, tu me dá Cr$ 2.700,00, agora, e o restante amanhã, certo?

- Tudo amanhã... pago tudo amanhã - balbuciou joão pensativo, misterioso.
- Feito. Falou bonito. Amanhã às 8 pr'eu poder fazer outros negócios com o dinheiro. Negócio fechado. Taí um bom negócio pra você, homem. Revólver pra tirar de aperreio é este aí, mano. Não falha mesmo!



INSTITUTO MÉDICO LEGAL
= Necrópsia =

                                   Nome: João Severino da Silva.
                                   Profissão: ?
                                   End.: Embrião do Bela Vista.
                                   Dia: 04/08/1978. - Sexta-feira.
                                   Causa-Mortis: Suicídio por meio de disparo de revólver,
                                                           marca Taurus, calibre 38, cuja bala se encontra 
                                                           alojada na caixa craniana, acima do ouvido direito.
                                   
                                   Motivo: I g n o r a d o

_____________________________________
Dr. Custo de Vida Inflação da Silva
- Criminalista do I.M.L. -



Venâncio do Parque
em VIA CRUCIS - Verso e Prosa

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

19.2.16

CAUIM (1978) - Ednardo






01 - C'lareou - Ednardo - 00:00
02 - Amor de Estalo - Ednardo/ Brandão - 07:03
04 - Duas Velas - Ednardo/Brandão - 09:50
05 - Rendados - Ednardo/Tânia Araújo - 11:53
06 - Rasguei o Teu Retrato - Cândido das Neves, o Índio - 15:55
07 - Cauim - Ednardo - 18:50
08 - Bloco do Susto - Ednardo - 24:06
09 - É Cara de Pau - Ednardo/Brandão - 26:20
10 - Terezina 40 Graus - Ednardo - 28:48
11 - Canção dos Vagalumes - Ednardo - 31:13



[...]



Terezina 40 Graus | Ednardo 


Troca que troca que troca
Lembranças
Contra corrente do rio,
Vai vapor
Que também sem ti
Posso navegar
E cada instante de rio
Me afasta
De cada saudade do mar
De cá, dá saudade do mar



[...]



Disco: CAUIM
Gravadora: WEA / Warner
Lançamento: 1978 (LP- BR 36.074) - 2001 (CD Warner Music)
Direção Artística - Marcos Mazola
Produzido por Guti Carvalho
Técnicos de Gravação - Carlos Duttweller / Vitor
Estúdio de Gravação - Transamérica - Rio de Janeiro
Mixagem - Guti Carvalho / Carlos Duttweller / Ednardo
Assistente de Produção - Gastão
Auxiliares de Estúdio - Franco / Cláudio
Capa e Desenhos - Brandão
Foto da Capa - Mario Luiz Thompson
Foto da Contra Capa - Francisco Régis
Arte Final - Ruth Freihof 
Arranjos - Ednardo / Pepeu Gomes / Wilson Cirino
Violões - Ednardo / Pepeu Gomes / Wilson Cirino
Violão Sétimo - Waldir (Novos Baianos)
Guitarra Acústica - Pepeu Gomes (Novos Baianos)
Bateria - Jorginho (Novos Baianos)
Contra Baixo - Luiz Carlos Tolentino - Ife
Baixo Tuba - Teles
Percussões - Sérgio Boré / Jorge José

22.10.16

AINDA TERESINA, Cineas Santos


Para Paula Danielle


Ainda não é uma cidade grande, graças a Deus! Ainda há quintais, mangueiras, passarinhos e meninos para persegui-los. Ainda se vêem pipas bailando no azul das tardes de maio e, nas manhãs de agosto, ipês derramam ouro nas calçadas. Ainda persiste o costume da cadeira na calçada e aquela conversa espichada de quem espera a brisa que ficou de vir lá do litoral. O Mercado Central, com o seu cheiro inconfundível, resiste. Lá é possível comer uma autêntica dobradinha, tomar uma talagada de cana com casca de angico, consultar um raizeiro ou "tirar um retrato" no lambe-lambe. Um pouco mais adiante, impera o Troca-Troca onde, com paciência e muita lábia, pode trocar-se quase tudo, inclusive uma de 40 por duas de 20, desde que entrem alguns caraminguás na transação.

A cidade ainda é reconhecível apesar dos esforços dos que tentam, a todo custo, desfigurá-la. Ainda existem os rios e os que vivem dos rios: pescadores, lavadeiras, canoeiros. No Encontro das Águas, por alguns centavos, meninos entanguidos recontam, à sua maneira, a lenda do Cabeça de Cuia, nunca esquecendo de trocar o verbo comer por devorar. Segundo eles, "comer virgem é prosa". Ainda persistem, nos subúrbios, práticas bem nossas como a de afixar na parede frontal da bodeguinha a placa: É AQUI O FULANO. A simples menção do nome do proprietário é uma espécie de garantia da qualidade do que se vende ali. Nos letreiros das fachadas, escancara-se a megalomania enrustida: há "reis" para todos os gostos. REI DO FRANGO, REI DOS FREIOS, REI DOS ESTOFADOS, REI DOS PARAFUSOS, REI DO TUCUNARÉ e até um inusitado REI DO TAMBAQUI ASSADO. 

É certo que o espectro da violência já ronda a cidade, mudando hábitos antigos. Mas persiste o costume (tão nosso!) de pedir "emprestado" uma colher de pó de café, uma xícara de açúcar, dois dentes de alho, com o compromisso tácito de nunca pagar. Ainda há fuxico, brigas de vizinhos, gestos de solidariedade, grandes cumplicidades e toda essa teia tênue que dá consistência ao tecido comunitário. Ainda há um geito teresinense de ser.

Mas há outra cidade que desponta veloz, que se verticaliza como se quisesse distanciar-se de tudo que lembre a província. É a cidade dos edifícios com nomes de celebridades; dos que tem os pés aqui e a cabeça em Miami; dos que não vivem sem a presença do celular; dos que só circulam à noite; dos que fazem grandes negócios; dos que ignoram a lei; dos que nada temem; dos que metem medo, dos que, tendo nascido aqui, não sabem exatamente onde fica Teresina.

Impedir que essa cidade veloz e voraz engula a cidadezinha que se fez com trabalho, sacrifícios e ternura é tarefa inadiável. é preciso mostrar aos bem-nascidos, aos alpinistas, aos emergentes que há espaço para todos: para o Teresina Shopping e para o Mercado do Mafuá; para o Tarrafa's e para o Restaurante da Tijubina; para o Garden e para o Cabaré da Pretinha; para o Ensaio Vocal e para a Maria da Inglaterra, com o seu famoso "Estrela de Luzilândia", o único conjunto do mundo capaz de acompanhá-la, ou melhor, de persegui-la.

Que a cidade cresça, prospere, se modernize, mas sem abrir mão do que tem de melhor: a generosidade com que acolhe a todos, como acolheu, numa remota manhã de maio de 65, este cronista de meia-tijela que está fazendo todos esses volteios apenas para dizer o óbvio: TE AMO, TERESINA.

Jornal MN, 2000

em As Despesas do Envelhecer 
Teresina: Corisco, 2001

19.9.12

BEIRA RIO BEIRA VIDA, Marcos Freitas


beira de rio
açucenas
Casa Marc Jacob
Armazém Paraíba
lavadeiras
fogão e geladeira
troca-troca cais

beira de rio
pescador na CEPISA
manguezal no São Pedro
balsas em travessia
lavadores em agonia

beira rio
quase morto
assoreado
noite e dia


Marcos Freitas
em Urdidura de sonhos e assombros
Poemas escolhidos (2003 – 2007)
Rio de Janeiro: CBJE, 2010

15.4.16

ONDE UMA BARCA VEIO A POETA BUSCAR (A MANDADO), Luiz Filho de Oliveira




– psiu! – diz seo rio –  
vamos passear em mim
enquanto eu não vou... sim?

– sim – disse a mavioso convite (e mais disse!) –
vou embarcar assim sem a tal da catacrese – rio nativo
e navegar-te rio de muitos dito rio de minha terra
nossa! tanta terra! de tantos poetas & de gente tanta
que rio – rio – porque te-reverso uma margem apenas
emerso duma taba de imenso contentamento poti
como um piaga a desafiar-te-desafinar – rio grande

pois sei: és do filósofo antigo
o não-mesmo-rio-porque-passaste
e depois que a tua ira foi apascentada por Leonardo
– estando poeta-mentecontínua-revolucionário –
ficou mais fácil ir ter contigo ao teu catre alegorizado
mesmo agora em estado leito lento paciente porque
se canos & projetos já te-levaram as lavadeiras – rio dejeto
a largo canto canto o largo das águas em verso de monge velho

mas à margem de tuas melhores canetadas – rio verba
aquiagora levas a hidromassagem aos motéis urbanos (um caso)
onde secamente em programas as garotas falam falsas propagandas
beiravidando contra o rumo do mundo de Mundoca novamente    
e marginália mundana a cidade ainda te-reduz (o descaso)
de água e cais e caminho e mesa e banho
a esgoto latrina lixeira tema de campanhas
campanas pro dinheiro mesmo!

não mais Letes (esquece!)
nem Estiges nem Infernos  (estigmas do poético)
nestes versos te-quero música apenas: let’s play that!

e mais que o mar da costa – rio dádiva
vem e silva selvas de brisa vivas
e se o mar é longe e longo em linha
tu – rio – és doce e não amaro a toda a vida
linguagem para tudo quanto praias:
praio doce coroa & brotinhos

no averedado da verdade de teu chão – rio – caminho
e em filme grave gravo estas palavras em eco
lógico: não caço garças nem choro em coro
só aporto lado a lados: leito ladino (trino) se
margem a margens (imagens emergindo)
te-desavesso os versos líquidos – rio fio

todavia se a nado não cheguei a
nada de novo sob teu céu sobre as águas
liquido: aceito passear em ti nessa barca
por onde tropica o sol destas praças
(veio)

pronto, seo moço?

(rio)


(De Teresina a Timon, sôbolo rio Parnaíba, abarcando-o.)






Via Deleituras em 25 de novembro de 2009

22.10.13

EU, TERESINA E ELE, Wellington Soares


Há seis meses namorávamos e nada. Ao contrário dos outros, bolinar comigo não queria. Como um pedaço de descaminho, no dizer dos rapazes, chateada fiquei. Valfrido, esse era o seu nome, nem aí. Sua estranheza me prendia cada vez mais a ele. Que o amava, não tinha dúvidas, mas não podia continuar subindo pelas paredes.

- Transar comigo, por que você evita?
- Só cai no chão, a manga, quando está madura.
- Tanto tempo assim, como posso?
- Pela bela serrana, Jacó muitos anos esperou.
- Mas eu o amo.
- Amar é saber, no momento exato, tirar o cílio do olho.
- Quando, então?
- De Teresina se embriagar e se despir com pureza.

Com o coração aberto, deixei me levar por suas mãos seguras e macias, descortinando outros horizontes. De barco, o Velho Monge atravessamos para Timon, cruzando com pescadores de redes vazias. Na volta, um suco delicioso no Abraão, tendo como troco palavras de estímulo. À tardinha, um faroeste no Rex, balas de horror raspando minha cabeça. Maria da Inglaterra e seu Peru Rodou, no Clube dos Diários, a noitada fechando, o sabor de cerveja nas bocas geladas.

Acordada cedinho, um café reforçado na Piçarra, ânimo para encarar a arte misteriosa de seduzir. No troca-troca, sob um escaldante sol, o comércio de tudo, menos o do amor, inegociável. O gostoso cheiro da panelada, nunca provada no Mercado Velho, no meu estômago faz alegria. O restante da tarde, navegamos na beleza do encontro dos rios, onde deixei claro ao Cabeça de Cuia não me chamar Maria e muito menos virgem. De bicicleta, à noite, vários bairros da cidade percorremos. Na despedida, sem esperar, ouvi:

- Amanhã, esteja pronta, será o dia.
- Onde? A que horas?
- Dezesseis, na praça da Bandeira, sem atraso.
- Vou de carro?
- Não, sem nada, só você. De lá partimos.
- Que mais?
- Relógio sem ponteiros.

Noite em parafuso, sem conseguir os olhos pregar. A espera, alfinete ferindo o corpo, compensa? Do ônibus, descemos em frente ao motelzinho, mãos coladas e a galope os desejos.

Depois dali, mesmo com os apelos dos velhos, nunca mais retornei, nem fui em casa pegar nada. Ele me bastava. Era, sem exagero, uma pessoa muito especial. Que outro homem, diga, me levaria a conhecer e a amar Teresina? Comendo estas piabas fritas agora, nas coroas do Parnaíba, tendo-o ao meu lado, a vida passa a ter sentido.


Wellington Soares
em Maçã Profanada
Teresina: 2003

1.11.11

TERESINA NO PASSADO, Guaipuan Vieira


No final de maio de 1996, retornei a Teresina, integrando a Comissão de Intercâmbio Cultural de Fortaleza, a convite da Academia de Letras Vale do Longá. Ficamos hospedados no Hotel São José, à margem direita do rio Parnaíba, no coração da Verde Capital. Além da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, estavam o diretor desta, o escritor Alberto Santiago Galeno e o poeta Paulo de Tarso. Alberto me pedira para levá-lo ao Mercado Central, pois desejava comprar um chapéu de vaqueiro feito no Piauí. Eram quinze horas de sábado. O silêncio pairava no centro, devido o final de semana. Mesmo sabendo que àquelas horas seria impossível encontrar o mercado aberto, tive que atender o pedido.

Alberto, que caminhava a passos lentos e, cambaleando, estava calado, mas observador. Paulo, que nos acompanhava, admirava os velhos casarões e o rio que solitário descia entrecortado pelas coroas, indagou a Alberto:

- Doutor, o senhor conhecia Teresina?

Ele, sem pensar, duas vezes respondeu:

 - De passagem. Guaipuan não nos conta a sua história.

A responsabilidade pesou-me nos ombros. Calado, como menino repreendido, não sabia por onde começar. As recordações refletiam à mente. Mas uma luz me surgiu dos anos 60. Tive que superar o desafio, e conjugar costumes, tradições e modos de vida de um povo que, embora embriagado pelo vício e prostituição, deixara página de sua história, vez por outra folheada por algum pesquisador.

 - Isso aqui foi a famosa Palha de Arroz. O nome vem das torrefações. Nesse meio funcionou o baixo meretrício, o Q.G. era o cabaré Barrinha, conhecido por “tabaco”, freqüentado pelos “porcos-d’água”, que eram os ajudantes das embarcações.

Paramos um pouco, sob a sombra de oitizeiros, direcionados para o sul, a uma distância de 200 metros. Articulando, mostrei-lhes onde funcionava a usina termelétrica, que fornecera energia para toda a cidade, até a década de 60, substituída por uma caldeira a diesel, vinda de Alagoas, não esquecendo seus ritmados apitos como de uma maria-fumaça, que até as 21 horas servia-nos de relógio, quando num toque de despedida saudava a noite, que paulatinamente ia em busca do novo dia. Nessa época, o rio Parnaíba era navegável. De longe também se ouvia o rugir dos vapores, lanchas e alvarengas vindos do sul do Estado, transportando mercadorias e passageiros, em direção ao Porto, que ficava limitando a Praça da Bandeira, por onde iremos passar.

Recomeçamos a caminhada. Ao cruzarmos a rua Paissandu, fizemos outra parada. Não poderia esquecer de citar que fora o núcleo dos tradicionais cabarés, como “Estrela”, “Fascinação”, “Imperatriz”, “Nove Horas”, “Gerusa”, “Raimundinha”, “Joana de Paiva”, entre outros. Subimos na rua em direção à Praça Pedro II. Na mente conduzia a surpresa que Alberto tanto esperava. Uma outra parada não fazia mal. Afinal, procurava descrever Teresina no passado, mostrando-lhes os pontos que serviram de concentrações desses personagens.

 - Onde estamos? Indagou-me.

 - Olhe, nessa casa comercial, “Rádio Ion”, foi o bar do Zé Cazuza. Às 12 horas de uma sexta-feira de 1948, o tenente Wanderley bebia aqui. Ao perceber a passagem de Zezé-Leão, o chamou. Depois de uma ligeira conversa, lembrou-lhe que em certa ocasião tinha-o prendido. Zezé, calmamente, embora entrecortado do insulto, perguntou-lhe se ia demorar no bar. Ele, ufano de autoridade, respondeu-lhe que sim. Zezé, enfatizou:

 - Voltarei logo.

Em questão de 20 minutos, o lúgubre estúpido, armado com um revólver 38, mudava o ritmo da cidade. A rádio Pioneira, que funcionava na rua Senador Teodoro Pacheco, aqui, próximo, em primeira mão, divulgou o acontecimento em reportagem exemplar de Carlos Said. No dia seguinte, as manchetes dos principais jornais: “ZEZÉ-LEÃO MATA TENENTE WANDERLEY E FOGE".

- Ah, foi assim! Sua fama chegou no Ceará, exclamou Alberto.

Paulo, aproveitando a deixa, nos contou que seu tio-avô, Cel. Domingos Gomes de Freitas, que residia em Tauá CE, tinha um criado que era o responsável pela compra de mantimentos (gêneros alimentícios) da Casa Grande. Segundo seu avô, certa ocasião, o criado, chegando de viagem, já na entrada do município, fez uma ligeira parada numa venda para beber uma pinga. Ao pagar a dose, foi surpreendido pois já estava paga. Ele então perguntou ao dono da venda o nome do desconhecido para agradecer. Esse, ouvindo, respondeu-lhe:

“José de Área Leão
A onça sussuarana
das matas do Piauí".
- E você quem é, caboclo?
Sem bater pestana, que nem um bom improvisador, informou-lhe:

“Eu sou um cachorro preto
da zona do cariri
acuador de onça sussuarana
das matas do Piauí”.
E até logo!!!

Zezé baixou a cabeça, bebeu outra pinga e exclamou: “muito bem!” Um dos seus seguranças indagou-lhe: “Pega o homem, coronel?!

-“Não. Cachorro que acua onça é respeitado".

Continuamos a caminhada. Logo estávamos na Praça Pedro II. Ali, para mim, foi um pesadelo. Não controlava as ideias, que se misturavam com as lembranças, dificultando concatenar o raciocínio, porque a Praça continuava sendo o cordão umbilical dos que edificaram a invejável história da terra.

De um lado, o Centro de Artesanato, guardando consigo lembranças do velho quartel da polícia militar. Do outro, o Cine Rex, solitário, que nem ancião, nem parecia que vencera os seus concorrentes: Cine Guarany, Olímpia, São Luís, Rio Branco, entre outros. Um cartaz lembrava Alfredo Ferreira que foi o fundador do cinema em Teresina, e o primeiro filme exibido, que era norte-americano e falado, tinha como título: “Doce como Mel.”

O Theatro 4 de Setembro, guardião da cultura, silencioso, trazia consigo recordações da luta ferrenha que travou para se desligar do cinema, para ser o que é: palco de espetáculos teatrais. Ao lado, a Galeria das Artes, num oculto quadro, descrevia o saudoso Bar Carnaúba, cercado de artistas e intelectuais. As horas corriam. Alberto, mergulhado no impressionismo, esquecia a compra do chapéu. Paulo não perdia nada da explanação. Anotava, na agenda, os subsídios para a história do município.

Guia turístico, contador de história ou causos. Sei lá quem eu era. Prosseguimos. Seus entusiasmos aumentavam. Embora quisesse parar a narração, não podia. Sempre algo chamava a atenção.

O silêncio recordava-me os tempos idos, quando menino, de calça curta, procurando remédio nas farmácias Santo Antônio, Lili e São Pedro, de Pedro Vasconcelos. Não encontrando, ia direto à farmácia “Coleta’, onde Jaime da ‘botica” fazia a manipulação de medicamentos. Naquele tempo era assim. Com essa reflexão sobre o passado, logo chegamos à Praça Rio Branco. Estava a esmo. Não parecia o logradouro de concentração de poetas populares, da ceguinha Maria Viana, no órgão, interpretando canções bregas; de aposentados driblando a velhice, tentando afeiçoar a nova geração. A brisa fria da tarde os enchia de indagações, estava num árduo ofício, não podia dissolver fatos do folclore teresinense.

-Nesse prédio da Caixa Econômica, funcionou o comércio do Carcamano, à noite tinha uma preta velha vendendo manuê; a fatia do bolo custava um tostão, e media um palmo. Tornou-se admirada pelo pessoal de vida noturna, através dos improvisos de propaganda:

“Chega gente, está na hora
Compre logo o manuê,
Compre mesmo, sem demora.
Manuê da preta velha
Tem segredo de essênça,
Inda mais com bom café
Muda até sua presença”.

Observa-se, de certa forma, que a cultura popular, destacando-se a poesia, nasce da necessidade de sobrevivência dessa gente. A não importância desses fatos contribui veementemente para o anonimato do autor, o que aconteceu com modinhas, adágios e alguns provérbios.

-Com certeza, enalteceu Alberto. Tive que ser breve nas citações, haja vista que algo mais nos aguardava. Estamos na Praça da Bandeira.

Recorda-me o pequeno zoológico, a feira dos pássaros e a do troca-troca. Nessa época chamava-a de bacia, por formar um círculo e ser de baixo relevo. Deu guarida a grandes circos, como Garcia, entre outros. Hoje, as grades que a cercam, nos reflete a ligeira impressão de que é prisioneira, e que nada tem de majestosa! Vê-se silente, concentra suas atenções no Teatro de Arena, palco dos acontecimentos culturais, de ação preservadora das tradições da terra.

Veja “Domingos Fonseca”, do alto, sussurra a poética sem jaça, em louvação aos poetas que versejam “sua poesia”, nos Festivais de Violeiros do Nordeste. Eram 17h30min, os pardais começavam a harmoniosa sinfonia sobre os frondosos oitizeiros, em contemplação a mais um dia que se findava. Apressamos os passos, cruzamos o Mercado Central, logo saímos no desativado Cais do rio Parnaíba. De retorno ao hotel, oportunidade em que falei sobre o Velho Monge, das extintas carrancas e dos banhos aos domingos nas piscosas águas, onde as coroas são atraentes praias, que desfilam preciosas sereias, musas inspiradoras que nos confortam a alma, principalmente quando se tem um bom anzol. Alberto, satisfeito, sorriu. Paulo ficou ansioso para conhecê-las. Seguimos para o hotel, contemplando o pôr do sol, rica beleza natural. Alguns minutos, como se fora beber água, os deixei à vontade. Próximo ao hotel, Alberto exclamou:

-Gostei bastante do passeio e da sua narração. Só me falta o chapéu!


Guaipuan Vieira

21.2.12

CARNAVAL, CARNAVAL


Eu vejo as pernas de louça
Da moça que passa e não posso pegar
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar

chico buarque


A bermuda de jeans e a camiseta verde. Calçou os tênis. Virou-se. Encarou o espelho. Penteou-se. Ouvia Don't let the dragon eat your mother, brother, de John MaLaughlin.
José entrou no quarto: - 'Tamos no carnaval, cara.
Ele: - Eu sei.
José: - Então?
Ele balançou o corpo. Uma Gibson 'The Les Paul' imaginária nas mãos ágeis.
José: - O problema é que não observamos as raí...
Ele: - Vamos.
Saem.

REINADO DE MOMO
PALÁCIO DA FOLIA

Edito Real

Sua majestade, Rei Zé Fortes, Primeiro e Único, no uso de suas intransponíveis e irrevogáveis transições legais


Decreta

Art. 1º - A partir de hoje reina a alegria e é revogada a tristeza.
Art. 2º - Os descontentes com o Reinado de Momo deverão ser confinados:
a) nas praias de Luis Correia ou Barra do Ceará;
b) em Sete Cidades; e
c) nas matas de Timon e adjacências.
Art. 3º - Nos clubes, todos devem pular, lépidos e fagueiros, juntos ou separados, porque a orientação do Rei é de que sem alegria não dá.
Art. 4º - Os condes e conselheiros do Reinado anterior considerem-se demitidos, pois no novo Reinado a bossa é nova.
Art. 5º - As coroas devem abdicar máscaras e soltar os enxovalhos, uma vez que no atual Reinado toda mulher é boa.
Art. 6º - Fica abolido o preconceito à transação gay; afinal, todos são iguais no carnaval e nem sempre o saracoteio dos quadris homologa a placa.
Art. 7º - Os que saírem nas ruas, pensando ficar fora do trino momino, deverão ser sequestrados e recolhidos ao Quartel General da Folia, na Avenida Frei Serafim, até a passagem do Trio Elétrico.
Art. 8º - Revogadas as disposições e indisposições em contrário, o presente Edito Real entra em vigor na data de sua publicação.

(Jornal O Dia, edição de 21/22 e 23 de fevereiro de 1982, pág. 7)


Aqui Pegou
18h15m

José, ele, a menina de óculos e o cara de bigode de arame.
Três copos. Quatro garrafas.
José: - Quem é homem não anda assim.
Ele: - Tudo é brincadeira.
Menina de óculos: - Li depoimento de um psicólogo que dizia o carnaval permitir ao indivíduo externar seus sentimentos reprimidos, o que somente é possível durante os três dias dessa festa orgíaca, pois nos outros dias a sociedade possui um papel castrador em face daquilo que ela entende por atitudes amorais.
Cara de bigode de arame: - É, quem é homem não se veste assim. Nem no carnaval.
Ele observou o revoar assustado dos pardais sobre as copas das árvores da Avenida Frei Serafim.
Rebuliço no passeio da Av. Frei Serafim.
Blocos de sujos, animados, vão e voltam, vão e voltam. Não se cansam nunca.
No alto, trinados de pardais.
Ele e José vêem um bloco: Unidos do Esculacho. Todos com túnicas.
Ele: - É o bloco dos artistas.
José: - Aquele cara ali é artista?
Ele: - É.
José: - Todos eles são artistas?
Ele: - Não. Tem alguns que são somente veados.

Uma garota, short de jeans e blusa com a legenda  University of California, encostada num Corcel II.
Um cara de calça preta e camiseta no ombro, depois de observá-la por algum tempo, aproximou-se.
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Ôi, Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Hein?
Cara de calça preta e camiseta no ombro: - Você é Pussy.
Garota short de jeans e blusa com a legenda  University of California: - Você está enganado. Eu não sou Pussy.
César que não vem. O cara de calça preta e camiseta no ombro está bêbado. Cambaleia ao afastar-se da garota que chamara Pussy.

Numa cidade que se pretende civilizada, a polícia não acode aos desditosos habitantes martirizados por alguns engraçados sem espírito que levam horas inteiras espancando peles de zabumbas, quando as próprias é que deveriam ser escovadas, uma vez que a autoridade consente semelhantes exibições grotescas, inqualificáveis, dignas de zulus ou boçais.

(Revista Rua do Ouvidor, de 27/01/1900, citada por Chico Alencar no artigo Acabou o carnaval (mais faz muito tempo...), publicado em O Pasquim, edição de 25/02 a 03/03/1982, pág. 7).

Um corpo no chão. Ninguém dá atenção a ele.

Dançavam juntos, não dançavam? Por que, então, parou? Por que olhou-a diferente?
A moça: - O que houve?
O rapaz: - Não deveria estar com você.
A moça: - Por quê?
O rapaz: - Você sabe.
A moça: - O telefonema?
O rapaz: - É.
A moça: - Esquece, pô.

( - Fale
- Talvez você já tenha percebido.
Pausa.
- Eu gos...
- Alô? Você está me ouvindo?
- 'Tou, sim.
- Fale.
- Eu te a...
- Olha, você é um cara legal. Mas a...
- Continue.
Pausa.
- A minha cor, né?
- Pausa.
- A minha cor, né?
Afastara-se do orelhão. Sumira na noite.)

O moreno vestido como mulher e bucho forjado. Acompanhou-o à avenida o vizinho, sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito.
O branco vestido com bermuda super estampada e camiseta azul, sem mangas. Saiu no Puma.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado divertia-se, seguindo qualquer bloco.
O branco do Puma bebia no Coisa Fina; loura, sentada em suas coxas, vez em quando levava-lhe à boca um naco de carne.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado suado quando o dente começou a doer.
O branco do Puma balbuciou qualquer coisa no ouvido da loura. Saíram.
Bêbado com um litro de Mangueira na mão deu um trago de cachaça para o moreno vestido como mulher e bucho forjado.
O branco do Puma, com a loura, na pista da avenida, num e noutro bloco.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado viu o branco do Puma e disse para o sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Aquele filho da puta me tirou o emprego e não me pagou direito.
O branco do Puma espremia a loura, com força.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado, referindo-se ao branco do Puma: - Vou dar um pau nele.
- Sarará franzino de boca torta e piscar constante do olho direito: - Deixa pra lá, cumpade.
O branco do Puma continuava a espremer a loura.
O moreno vestido como mulher e bucho forjado disse: - Vamos esquecer.
O branco do Puma pisou no pé do moreno vestido como mulher e bucho forjado.

Se as fantasias revelam, então o carnaval mostra um mundo invertido, onde o pobre pode "bancar" o rico; e os donos do poder podem buscar uma aproximação com o mundo dos homens, "bancando" pobres. Entrevistas com pobres que desfilaram de "reis" revelam esse êxtase carnavalesco, quando alguém pleno de anonimato social ganhou os aplausos, as atenções e os olhares de todos os segmentos sociais num desfile. Entrevistas com gente de classe média alta indica precisamente o oposto: aqui, há um prazer - como o de um arquiteto de sucesso - de "pisar de pé descalço o asfalto da Avenida". (...) Quer dizer, eu continuo achando admirável que uma sociedade no final do século XX ainda continue a celebrar suas relações sociais utilizando essa regra de inversão e, assim fazendo, possa permitir e legitimar um "troca de lugar", ainda que essa troca seja burocratizada, controlada pelo Estado, fugidia e tenha data marcada. Porque, apesar de tudo, é uma troca que permite vivenciar a justiça e a igualdade, a liberdade, a vitória e a esperança. Esses ingredientes centrais de qualquer transformação social concreta.

(Fragmentos do artigo Carnaval: o verdadeiro milagre brasileiro, de Roberto da Matta, publicado em O Pasquim, edição de 26/02 a 04/03/1981, pág. 5)

- É bicha.
- Não. É uma mulher.
- É bicha.
- Porra. É mesmo.
- Olha outra ali.

Primeiro uma chuvinha fina. Parara. Pouco depois, como da vez passada, espectadores à procura de abrigos. A maioria permaneceu na chuva.
- É incrível, ouvintes. Nem a chuva que desaba sobre o centro da Cidade Verde consegue afastar os espectadores da Frei Serafim. A chuva aumenta cada vez mais o entusiasmo do folião. Dá mais gosto de se ver um carnaval assim.
Locutor do Posto Nº 1, da Secom:
- Loucura. Toda esta chuva e o carnaval se torna ainda mais quente, mais movimentado. Não tenham dúvida: nesta festa explodem tradições milenares trazidas da terra de origem e abafadas durante o ano inteiro. É para esta festa, que é a maior do ano no Brasil, que o povo economiza o ano inteiro.
Ele e José tinham deixado numa mesa do Aqui Pegou a menina de óculos e o cara de bigode de arame. Caminhavam lentamente. José não parava de falar. Ele viu a garota de short jeans e blusa com a legenda University of California.
Ele: - Olá gracinha.
Garota de short e jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy.
Ele: - Hein?
Garota de short jeans e blusa com a legenda University of California: - Pussy. Me chamo Pussy.
Ele fez sinal para José.
Garota de short jeans e blusa com a legenda University os California: - Parece que ele se chateou.
Ele: - Um chato.

Locutor do Posto Nº2, da Secom:
- Atenção Laura Maria. Atenção Laura Maria. Sua mãe te espera aqui no Posto Nº 2. Compareça o mais breve possível.

Quem não conhece o carnaval não conhece o Brasil, e quem não gosta de carnaval não gosta da alma brasileira. O carnaval ainda é feito pelo povo, já que a participação popular espontânea é maior que qualquer interferência dirigida, venha ela do poder público, de empresas privadas ou de qualquer pessoa diretamente interessada na festa. Essa manifestação espontânea é tão poderosa que mesmo durante as ditaduras impostas ao Brasil - do Estado Novo ao período pós-64 - conseguiu ser mais forte que a repressão. O povo continua dançando e cantando, porque para o povo brasileiro cantar é tão importante quanto sobreviver. (...)
O morador do morro, quando encontra um vizinho no bar, não quer falar de suas desgraças. Prefere cantar sambas. Se tiver um pouquinho de sensibilidade, já faz um ritmo. Um pouco mais e improvisa em verso. Esse comportamento não morre com a ação de forças externas e garante a eterna sobrevivência do carnaval.

(Albino Pinheiro, fragmento de O carnaval é eterno, revista Veja, nº 703, pág. 90.)

José no bar.
Três garrafas vazias sobre a mesa. Pediu a quarta. Duas vezes levantara-se e fora ao banheiro. Fedorento.
Cerveja esquentando no copo.

Populares cercavam um corpo no passeio da Avenida Miguel Rosa, em frente à AFAL.
O assassino agiu rapidamente. O homem corria com dificuldade e Violeta, sóbrio, facilmente abateu-o.
Conjectura-se que tudo aconteceu por causa de uma puta chamada Margô.
Violeta, após matar o homem, tirou da bolsa uma gilete e começou a cortar-se, principalmente no antebraço esquerdo.
Desesperado, deixou a peruca cair.

As paredes desbotadas. Quase brancas. Cadeira na palha, bacia, jarra, penteadeira e cama.

Pussy virou-se. Encontrou-se diante de um homem que lhe sorria. Espantada, protegeu sua nudez. Levantou-se rapidamente. Vestiu-se. Abriu a porta. Saiu.
Na rua, duas senhoras, com terços e véus, caminhavam para a igreja.
O sol há muito fora parido.


1º Lugar do II Concurso de Contos JOÃO PINHEIRO,
Realizado em 1982



Manoel de Moura Filho
em Novos Contos Piauienses
Teresina: Fundação Cultural, 1983

1.8.15

CAMINHO DE PERDIÇÃO (trechos)




Capítulo 7

Saímos, eu e o Borba. Sentamos num banco da praça Pedro II, os olhos espetados no voltear das môças. Borba falava:

- Todos nós já fomos vítimas, de certo modo, de uma decepção amorosa, uma certa frustração sentimental. Isso é comum, portanto. Aconteceu comigo e com você. Acontecerá com muitos outros também, porque os homens são os mesmos, onde quer que estejam.

(...)

Súbito, as moças começaram a retirar-se, em grupos. A praça foi ficando vazia. Eram vinte e uma horas, na certeza. Porque as moças costumavam sair da praça exatamente às nove da noite.

(...)

Irei ao cabaré.

Capítulo 31

Acabado o filme, procurei Sandra no tumulto da saída e os meus olhos a perseguiram, sôfregos, até que ela desapareceu, de todo.

Não retornei a casa. Sentei-me num dos bancos da praça Pedro II, a contemplar, distraído e triste, o movimento dos homens. E a cidade noturna foi ficando vazia. Vazia de homens e dos rumôres de gente. Como vazio estava eu de esperanças.

O outro cinema despejou na praça um borborinho de pessoas. Criou-se um lufa-lufa destrabalhado, logo dissolvido. Os homens recolheram-se, até que apenas uns vultos permaneceram no local.

Álvaro estava disposto a recolher-se tarde. Programamos descer ao cabaré e o fizemos. Era a busca do pecado. Ou antes, o desejo infrene de aliviar, entre gargalhadas de prostitutas e garrafas de cerveja, o pêso bruto da vida. Mas voltávamos sempre com um pêso mais pesado arqueando os nossos ombros, muito embora voltasse conosco uma ilusão de alívio, ao sabor de nossa inconsciência.

No cabaré pedimos cerveja. Ficamos logo rodeados de prostitutas.

(...)

Capítulo 40

Já estava saturado daquilo. Era preciso, porém, suportar aquêle voltear de mulheres, única coisa que a praça Pedro II ainda nos proporcionava, na sua monotonia noturna cansativa. Moças girando, incansáveis, ante o renque de rapazes. Habito antigo, aquêle. Quase tôdas as môças da sociedade iam rodar na praça, expondo aos rapazes sua mocidade em botão, ou um rosto amarfanhado, muito pintado, para encobrir o avanço da idade. Os rapazes ficavam de pés, em tôrno a analisar-lhe os modos. E as môças, infatigáveis, continuavam volteando, um sorriso no rosto, um apêlo no olhar, um gesto de espera. Nada mais idiota que aquilo. Ir para a praça servir ao banquete dos olhos maliciosos dos rapazes da cidade. Algumas levavam a vida esperando um homem que não chegava nunca...

Continuei a mirar, indiferente, o voltear das môças. Um vento gélido começou a soprar nas ruas e, no céu, as estrêlas foram-se apagando. Iniciou-se um cisquinho de chuva. O pessoal recolheu-se apressado. Saí andando em rumo de casa. E eis que reconheci, no caminho, um vulto abraçado com outro vulto. Parei, petrificado. Era Sandra.

Senti uma rajada de ciúme e de inveja vasculhar-me o peito. Tremeram-se minhas pernas. O ódio assomou-me ao coração.

A chuva caiu. Os dois vultos, unidinhos, procuraram abrigo. E recolheram-se ao vão de uma das portas laterais fechadas da igreja de São Benedito, enquanto noutra porta, sem que me vissem, me deixei ficar, cosido à parede, a contemplá-los com minha inveja rancorosa.

Capítulo 62

Ao retirar-me daquele quarto, não encontrei mais o Alceu. Rumei para a redação do jornal: Faltava-me escrever ainda o artigo de fundo e dois ou três tópicos, além de algumas notícias. Numa esquina de rua mal iluminada, deparei-me com casais, abraçadinhos, em troca de beijos. Levei as cenas para a redação e escrevi o editorial sôbre aquela falta de pudor e de vergonha, que o prefeito, com a ineficácia de sua administração, ajudava a proliferar, por aí, em virtude da lastimável ausência, na Capital, de iluminação pública. Escrevi alguns tópicos, comentando as aberrantes imoralidades do Govêrno e dei a notícia de que a praça Landri Sales se transformava, paulatinamente, num covil de prostitutas, em visível atentado à imoralidade de nossa gente. Afinal, queria fazer o meu jornalismo.

Capítulo 64

Sábado.
Convidei Tânia para uma tertúlia, à noite, no Clube dos Diários

(...)

Capítulo 65

A música era suave, o conjunto bom. O Clube dos Diários estava cheio. Uma luz muito embaciada colocava matizes no recinto. Os pares moviam-se, lentamente, na quadra de dança. Doce penumbra envolvia a sala.

(...)

Continuávamos dançando. Uma dança suava, excitante. Pouco a pouco, ia abraçando contra mim o meu par. Levemente. Calmamente. Como coisa natural.

Senti o membro do meu corpo enrijecido. Os seios dela roçavam-se em mim. Excitavam-me. Acariciavam-me. Armavam um exército de emoções nas fronteiras do meu eu.

Capítulo 66

Eram duas horas da madrugada, quando deixamos o Clube. Soprava um vento frio, que despertava mais ainda o desejo de mulher.

Capítulo 67

Dei uma volta pela cidade. Estava passando, num dos cinema, um filme impróprio, a quem um tumulto de gente procurava assistir. Resolvi entrar na fila também. O filme trazia encenações eróticas, que me despertaram a lascívia. Um fogo de desejos deitou suas chamas no meu palheiro interior. Senti-me excitado e o sexo dominou os meus sentidos.

Saí da sala de projeções com a cabeça cheia de desejos desgovernados. Encontrei-me com o Álvaro e, juntos, descemos ao meretrício. Ia ali diariamente, amiúde. Algumas mulheres já maltratadas e gastas, nos faziam festa, em gestos convidativos.

Fiquei mirando as prostitutas. Analisando-as. Três ou quatro desconhecidas. Escolhi uma delas. A mais simpática. A mais apresentada. De seios empinados e pernas grossas.


Castro Aguiar
em Caminho de Perdição
Edições Meridiano: Teresina/PI, 1965
Fotografia: crédito desconhecido, inserida pelo blogue

26.7.23

As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino (fichamento)






Memória

As cidades e a memória 1

Diomira

"Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes".

As cidades e a memória 2

Isidoria

"O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade";

"Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações".

As cidades e a memória 3

Zaíra

"A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado";

"A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata";

"Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras".

As cidades e a memória 4

Zara

"O seu segredo é o modo pelo qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar nenhuma nota";

"Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória".

As cidades e a memória 5

Maurília

"Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais e prefira-a à atual, tomando cuidado, porém, em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional — que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi."

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos.

É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília.

Desejo


As cidades e o desejo 2

Anastácia

"A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer".

As cidades e o desejo 3

Despina

"A cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar".

As cidades e o desejo 4

Fedora

"Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la na cidade ideal, mas, enquanto construía o seu modelo em miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e o que até ontem havia sido um possível futuro hoje não passava de um brinquedo numa esfera de vidro".

Símbolos


As cidades e os símbolos 1

Tamara

"Os olhos não vêem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas";

"O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes";

"Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o que esconde, ao se sair de Tamara é impossível saber".

As cidades e os símbolos 2

Zirma

"A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente";

"A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir".

As cidades e os símbolos 3

Zoé

"Assim — dizem alguns — confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares";

"Mas então qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos?".

As cidades e os símbolos 4

Ipásia

"Os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer".

As cidades e os símbolos 5

Olívia

"Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles".

Delgadas


As cidades delgadas 2

Zenóbia

"Dito isto, é inútil determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados".

Trocas


As cidades e as trocas 1

Eufêmia

"Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz — como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”, “sarna”, “amantes” — os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas";

"E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios";

As cidades e as trocas 3

Eufêmia

"(...) das inúmeras cidades imagináveis, devem-se excluir aquelas em que os elementos se juntam sem um fio condutor, sem um código interno, uma perspectiva, um discurso. E uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discursos seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa".

As cidades e as trocas 5

Esmeraldina

"Mas é difícil fixar no papel os caminhos das andorinhas, que cortam o ar acima dos telhados, perfazem parábolas invisíveis com as asas rígidas, desviam-se para engolir um mosquito, voltam a subir em espiral rente a um pináculo, sobranceiam todos os pontos da cidade de cada ponto de suas trilhas aéreas".

Olhos


As cidades e os olhos 1

Valdrada

"As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas".

As cidades e os olhos 2

Zemruda

"Cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distingui- los da calçada".

As cidades e os olhos 3

Bauci

"...contemplando fascinados a própria ausência".

As cidades e os olhos 4

Fílide

"Em todos os pontos, a cidade oferece surpresas para os olhos: (...)";

"Como todos os habitantes de Fílide, anda-se por linhas em ziguezague de uma rua para a outra, distingue-se entre zonas de sol e zonas de sombra, uma porta aqui, uma escada ali, um banco para apoiar o cesto, uma valeta onde tropeça quem não toma cuidado. Todo o resto da cidade é invisível".

As cidades e os olhos 5

Mariana

"Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que não podem se separar nem se encarar".

Nome


As cidades e o nome 1

Aglaura

"Portanto, se quisesse descrever Aglaura limitando-me ao que vi e experimentei pessoalmente, deveria dizer que é uma cidade apagada, sem personalidade, colocada ali quase por acaso. Mas nem isso seria verdadeiro: em certas horas, em certas ruas, surge a suspeita de que ali há algo de inconfundível, de raro, talvez até de magnífico; sente-se o desejo de descobrir o que é, mas tudo o que se disse sobre Aglaura até agora aprisiona as palavras e obriga a rir em vez de falar";

"Por isso, os habitantes sempre imaginam habitar numa Aglaura que só cresce em função do nome Aglaura e não se dão conta da Aglaura que cresce sobre o solo".

As cidades e o nome 3

Pirra

"A minha mente continua a conter um grande número de cidades que não vi e não verei, nomes que trazem consigo uma figura ou fragmento ou ofuscação de figura imaginada".

As cidades e o nome 5

Irene

"A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar; cada uma merece um nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene".

Mortos


As cidades e os mortos 1

Melânia

"A população de Melânia se renova: os dialogadores morrem um após o outro, entretanto nascem aqueles que assumirão os seus lugares no diálogo, uns num papel, uns em outro".
Céu

As cidades e o céu 3

Tecla

"Por que a construção de Tecla prolonga-se por tanto tempo?, os habitantes, sem deixar de içar baldes, de baixar cabos de ferro, de mover longos pincéis para cima e para baixo, respondem: Para que não comece a destruição. — E, questionados se temem que após a retirada dos andaimes a cidade comece a desmoronar e a despedaçar- se, acrescentam rapidamente, sussurrando: — Não só a cidade".

As cidades e o céu 5

Ândria

"A cidade e o céu nunca permanecem iguais".



Ítalo Calvino
em "As cidades invisíveis"
Ilustrações de Matteo Pericoli
Companhia das Letras: 2017


6.11.11

O PRISIONEIRO DA LIBERDADE, José Pereira Bezerra

"A gratidão é uma forma sutil de desforra;
o beneficiado recobra a sua superioridade
no esforço de ser grato".

João Davidson

Um homem moreno, forte, aparentando quarenta anos... Diziam ser louco... Estava deitado no cais e contemplava as águas do velho Parnaíba que corriam silenciosas.

Desde quando deixara a família, há muitos anos atrás, por querer recobrar a liberdade - admitia ele quando falavam no assunto - sempre dormira no cais e gostava de lá. Era como sua própria casa... A paz que o cimento frio, o céu azul cheio de estrelas, as águas mansas do rio refletindo as luzes dos postes, lhe proporcionavam era realmente confortadora.

Conhecia todas as mulheres que faziam e vendiam comida no mercado velho. Elas, não raro, davam-lhe prato-feito sem nada em troca. Gostavam, sim, gostavam demais dele; ajudava-lhes carregar as compras, fazia compras, dava recados... Era de inteira confiança e muito útil - diziam elas, umas às outras, abanando o fogareiro com uma grande panela em cima; a comida fervia... É verdade também que de vez em quando ele dormia com uma delas.

Ele gostava de passear pelas ruas de Teresina, sentar-se perto das fontes luminosas. Fontes luminosas. Não, não gostava de andar perto delas... Nunca mais se esqueceria do que aconteceu com ele numa tarde calorenta de outubro... Estava suado, com muito calor... Dera uma vontade de lavar o rosto e molhar a cabeça... Estava longe do rio... Caíra na besteira de utilizar a água da fonte luminosa, pra que!? Levou um grande choque elétrico... Quase morreu... Nunca mais se esqueceria disso... Ficaria como exemplo... Fontes luminosas eram como a mulher do diabo, bonita de verdade, mas matava... Concluiu ele perdido em pensamentos.

Sofria de insônia e às vezes passava a noite toda acordado. Aquela noite era uma delas; de vez em quando olhava para uns cestos de tabocas, dispostos em pilha ao seu lado... Às vezes falava sozinho, como quem dialogasse com o rio que ele conhecia melhor que ninguém... Não, não tenho medo do Cabeça de Cuia falava de si para si, como para dar prova de sua coragem - pois já o vi várias vezes... É verdade que o brilho da cuia preta me fez ficar meio arrepiado... Mas foi só a primeira vez... Depois me acostumei... Dizem que ele só se desencanta quando levar sete virgens... Não sou mulher, não tenho medo.

Nesse instante chegou no cais uma mulher correndo. Mulher nova, lábios pintados de vermelho, cabelos compridos, trajando um vestido semilongo vermelho, com um longo corte em cada lado que dava para ver boa parte das coxas pareceu que ela nem sentiu a presença dele, ou talvez pensasse que estivese dormindo... Não estava... Talvez tivesse vindo do cabaré da Paissandu, e fosse tomar banho, está fazendo mesmo muito calor - pensou.

A mulher começou a despir-se descontraidamente com movimentos rápidos e bruscos... Num segundo estava só de calcinha amarela... Tinha os seios ainda bem duros... Veio-lhe uma vontade de agarrá-la, mas se conteve... Já era muito vê-la banhar nua em sua frente e naquela hora... A mulher ficou instantes na beira do rio, pensando e... Tbungo n'água. Ele continuou deitado no cais mas a observava atentamente, tentando ver melhor seu corpo nu e molhado, cintilante pelo reflexo da luz... Porém, minutos depois, ele notou que a mulher não sabia nadar, porque se debatia desordenadamente contra as águas barrentas do rio, como estivesse afogando-se, mas sem dá um grito sequer... Ele levantou-se imediatamente... Pulou n'água do jeito que estava, vestido de calça e camisa e foi de encontro à mulher, que subia e descia... Com gestos rápidos e firmes, agarrou-a por trás e rapidamente guindou-a até o cais. Ela permaneceu calada; já havia bebido uns goles d'água. Ele fitou-lhe o corpo nu... E como levado por um desejo forte aproximou-se dela e começou apalpar-lhe o corpo... Ela não dizia nada, naturalmente gostava - pensou.

- Por que você entrou no rio, se não sabia nadar?

- Queria morrer... Esta vida é um inferno... Madame surrou-me, ameaçou-me, expulsou-me do cabaré... pensava que eu queria o homem dela... ele era quem vinha atrás de mim... Disse chorando baixinho, aos soluços.

- Não chore... não faça isso mais, não - disse puxando-a contra si - o mundo é grande, e sempre existe um lugar pra quem quer viver...

Fizeram amor ali mesmo. Parou de chorar e naquela madrugada não pensou mais em suicídio.


José Pereira Bezerra
em O prisioneiro da liberdade
Teresina, 1978(?)

22.10.13

O SUCO DO ABRAHÃO, por Wellington Soares





Quando criança, minha obrigação semanal era ir à novena com dona Mundica, ali na Vila Operária, zona norte de Teresina. Toda terça-feira, se a memória não me trai, estava eu lá, cercado de santos e anjos, aprendendo que melhor do que os pecados cometidos é a sensação de leveza do perdão alcançado. Em troca, exigia apenas algumas moedas para comprar uns picolés Amazonas e uns poucos alfinins, chantagem aceita e cumprida rigorosamente por mamãe, mas só atendida após a celebração religiosa. Com o espírito confortado e o corpo alegre, retornava feliz para casa, saboreando cada um daqueles momentos com incontido prazer. Já deitado na rede, pensava, mesmo não conhecendo ainda Bandeira, que a noite podia descer, a noite com os seus sortilégios.

Agora, sem compromisso e por vontade própria, troquei as novenas de outrora pelos refrescos deliciosos do mestre Abrahão, situado nas proximidades do Instituto de Educação. Toda semana apareço lá, como um montão de gente também, para assinar o ponto: tomar um refresco - que de tão espesso parece mais um suco - e comer um pastelzinho caseiro. Dos sabores, prefiro os de cajá e bacuri, sem igual e que nos levam aos céus. O de abacate é bom nem falar, covardia pura, o negócio é tomar aos poucos e devagarinho, lambendo os beiços e pedindo mais outro. Para quem está resfriado, ou precisando de um reforço no estoque de vitamina C, a casa prepara um suco de laranja no capricho, feito ali na presença do freguês, com mel de italiana usado como açúcar. Na hora do prejuízo, depois de ter enchido a pança, é quem vem a parte melhor de tudo: uns nadinha de reais, um ou dois, com direito a troco ainda, "muito obrigado" e "volte sempre".

E não é que volto mesmo!?, na primeira distração das pelejas do trabalho, estou lá novamente, esperando a vez de ser atendido, não só para saborear os refrescos, mas, sobretudo, as palavras de sabedoria do mestre da Rui Barbosa com a Manuel Domingos. Com a invejável experiência de vida que tem, ele nos serve gratuitamente, apesar da pouca escolaridade, lições importantes de humildade, dedicação e amor ao próximo. Através de cartazes afixados nas paredes do comércio, Abrahão da Silva Gama - o popular ASIGA -, este maranhense de São João dos Patos que reside em Teresina há mais de cinquenta anos, planta nas retinas das pessoas mensagens perturbadoras e educativas, difíceis de esquecer pelo humor sarcástico e engraçado que destilam: "Prove que é orelhudo, preferindo um refrigerante de 1 real e renunciando a um suco por apenas 75 centavos". Ou, então, aquela dirigida aos que têm a mania de consumir sem querer pagar, tentando sair de fininho e sem dar na vista: "Pagar antes está na moda e virou samba! Siga o ritmo e receba nosso agradecimentos".

O mais impressionante, acreditem, é que os preços e a qualidade permanecem, ao longo dos anos, quase sempre os mesmos, um tantinho de nada e uma gostosura que só provando. Com ou sem crise econômica, a clientela festeja e solta foguetes. Todos entram e saem dali com a barriga contente e o bolso satisfeito. Um ambiente, aliás, bonito de se ver e estar, com as mais distintas classes e raças harmonizadas pela fome de comida e saber, instante sublime porque guarda algo de misterioso e primitivo. A imagem comovente de homens e mulheres unidos em torno do sagrado alimento da caça e das reflexões existenciais, que os fortaleciam enquanto comunidade ávida de desbravar as naturezas em geral, sem as distinções ainda absurdas e inaceitáveis que surgiram depois.

Sempre que converso com Seo Abrahão, a quem chamo respeitosamente de mestre, me vêm à lembrança os versos antológicos de Bertold Brecht, nos quais o poeta e dramaturgo alemão exalta os que transformam a vida em uma permanente e apaixonada luta, não só no campo político como em qualquer atividade abraçada com amor e determinação: "Há aqueles que lutam um dia, e por isso são bons; / Há aqueles que lutam muitos dias, e por isso são muito bons; / Há aqueles que lutam anos, e são melhores ainda; / Porém há aqueles que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis". O mestre Abrahão pertence, sem dúvida e na opinião de todos que o conhecem, ao seleto grupo dos que foram escolhidos e vieram com a nobre missão de serem imprescindíveis. Ainda bem que - para nossa eterna e grata felicidade - ele desembarcou por essas bandas da Chapada do Corisco, e acabou se tornando um dos nossos mais queridos e legítimos filhos.



Wellington Soares
Por um triz 
Teresina: Fundação Quixote, 2007

1.2.12

PRAÇA PEDRO SEGUNDO NOS TEMPOS DA LAMBADA


pernas à vista
pessoas indo e vindo, engraxates, cervejas
uma gatinha vendendo charme
meninos, amendoins e esmolas
olhos injetados
mãos amarelas vendem cigarros e bombons
uma turma de canas da civil
"lambada: botando fogo na noite"
em cartaz no cine rex
senhora com mais de quarenta vende espetinho à brasa
gordura fumacificada impregnando tudo
uma morena de seios lindíssimos
quatro mãos num diálogo de trejeitos
gays ao lado da banca de revistas
um bêbado diz que é o tal, que faz e acontece, e enche o saco
olhares de todos para todos os lados:
troca de projéteis silenciosos
fui atingido à altura do peito, mas já estou recuperado
um rapaz encabulado que tropeça
batedores de carteira relaxam na hora do descanso
(a hora do descanso é sagrada!)
doido varrido dorme na calçada do Teatro
sonha?
música em volume acima do suportável por uma vitrola rouca
caldo de cana
lambada para dar nos nervos de qualquer mortal razoável
paralisado um homem olha as formas da mulher que passa
gritos, assobios, acenos e copos contra a garrafa:
a disputa da atenção do garçom que, impassível, demora
o colega que tirou a tramela da língua após o terceiro copo
conversa animada
comentários diversos
um poste metálico no meio da praça:
herança inexplicável de um relógio digital que não vingou
especulações em torno do passado da praça
um casal que se beija
homem andando com toda pressa
trombadinhas perto da fonte
observação visual, táctil, gustativa e olfativa
observados patéticos
sons que muito lembram um inferninho
o próprio inferno
mãos que se tocam
palmadas nas costas:
demonstração de carinho ou virilidade?
impressos devorados por taciturnos leitores de prateleira
o bar do cuspe, à distância
uma turma de canas fardados
a galeria do Teatro, no local onde existia o bar Carnaúba?
anotação em papéis
convite para a inauguração de um bar
alguns vão ao Clube dos Diários
jornal das oito, seu Marcelino e A. Tito jogando conversa, Flávio na bandeja,
gente rara
um homem cuspindo a todo instante
motoqueiro sem noção do ridículo sobe a praça com sua máquina
e continua acelerando:
indisfarçável vocação para dono do mundo
a colega que só agora noto ser uma gata
conversa sobre o tempo e outras amenidades
convite para uma festa engajada e nas decências
colegiais de procedência indeterminada
lebres em pele de lobas
uma mulher com embrulhos
garota sensual usa saia curta estampada
picolés, pipocas e sorvetes
roupas coladas ao corpo
lua anunciando para breve encher-se de claridade arrasadora
o garçom que cobra a despesa além da conta
debates, negociações e acordos
pagamento em cheque
hora de levantar âncora
vamos em frente, a todo pano,
desbravar outras praias:
a noite é uma seda!


Manoel Ciríaco
em 145 anos: Teresina cidade futuro 
Teresina: FCMC, 1997

7.4.14

NÓS ESTAMOS POR AÍ SEM MEDO - Por falar em Nós e Elis




“Nós estamos por aí sem medo”, diz uma canção que estou ouvindo agora, cujo trecho dá nome a esse texto que começo a escrever. Uma canção gostosa de ouvir chamada “Copacabana velha de guerra”, composta pela Joyce e cantada por Elis Regina.  Só ouvindo muita boa música pude relembrar daquele tempo de Nós e Elis. Do mesmo tempo que levou nosso templo. Tempo dos Boêmios, das musas e dos amantes da melhor canção brasileira, dos poetas perdidos à procura de, por que não, versos livres.  Da galera que vinha a pé ou de carona da UFPI, naqueles tempos da Universidade, “quando a rapaziada discutia a conjuntura nacional”. Era o nosso “bar esperança”, nunca fechado para nós e para o nosso mundo musical particular. Um bar sem paredes nem portas, só janelas sem tamanho, sempre abertas para todas as cores, para a melodia daquelas noites sem final e a harmonia que rolava entres todos que por ali habitavam. Sim, pois ninguém em sua plena consciência conseguia apenas visitar de vez em quando aquele bar e não se apaixonar por ele.

Comigo foi assim, como aquele amor platônico do adolescente tímido pela menina mais popular da escola.  Eu sempre estava por ali, tomando alguma, batendo papo, mas nada de mesa; ficava sempre circulando, de olho no que rolava no palco. De olho nas mãos e nos acordes do GB (Geraldo Brito) na batera do Carlinhos, do Bebeto, ouvidos ligados nas vozes de tantos cantores e divas e no contrabaixo (minha grande paixão) sempre bem acompanhado por grandes feras como Tim Fonteles, Robert, Júlio Medeiros, Lima Jr. e outros tantos.  Sonhando acordado me via fazendo parte daquilo tudo e me imaginava naquele pequeno palco que mais parecia um mundo inteiro a anos-luz de distância de quem apenas ensaiava alguns acordes com uma banda de rock de estudantes. Não lembro como foi, nem quando eu tomei umas a mais, criei coragem, pedi uma “canja”, subi lá e mandei ver. Nada de extraordinário para quem já estava acostumado a ouvir os melhores tocando o melhor da MPB e da nossa MPB-PI, mas depois daquela noite comecei a transformar a minha paixão platônica num dos grandes amores da minha vida: a música.

Assim foi para mim aquele bar. Lá toquei minhas primeiras canções com o NOIGANDRES - eu, Marquinhos, Flávio e nosso grande Naka - quando nós tocamos pela primeira na Rádio Cidade Verde FM, e fiz todo mundo dançar com banda LUAU nos inesquecíveis domingos onde a praça virava parte do bar. Assim diz uma frase na parede de um boteco em São Paulo: porque há bares que vem para o bem. O Nós e Elis foi um desses bares.

Para o “romance ideal”, o cenário perfeito. Assim foi o meu, o seu, o nosso “nós”. Ali crescemos e celebramos, tecemos e cantamos a vida que ainda podia ser cantada, pois ela dava maior “bola” para gente. Passei pela MPB, pelo pop, rock, axé, reggae, pelo forró, nas tantas e tantas idas e vindas do bar dos bares. Conheci gente e convenci a música, tive grandes professores e muitos amores. Fui feliz e eu sabia. Fiz canções dias e dias, “abri a porta, apareci, e a mais bonita sorriu pra mim” quando acabei descobrindo a palavra-chave das minhas noites vadias. E aquele palco continua grande, inesquecível em minha memória.  Nos blues de Edvaldo Nascimento, na alegria vital (e sua moto) do meu amigo e parceiro Roraima, no som “tranqüilo e infalível como Bruce Lee” da guitarra do Geraldo Brito, na lembrança dos instrumentais do velho HAJA SAX e na saudade do meu amigo e mestre Netinho, que fez tanta flauta com o Zé de Boy e hoje faz muita falta. Uma geração que puxou outra, que puxa outra e assim chegamos ao hoje. E vamos nessa que o sol já vem.  Do grupo Candeia ao Conjunto Roque Moreira, a nossa música continua aí, em busca de palcos como aquele.

De “bailes da vida ou de um bar em troca de pão” e de circo também. Afinal, somos todos malabaristas. Cada vez mais firmes. Cada vez mais precisos e certeiros. Herdeiros do bar “Nós e Elis”. Nós estamos por aí sem medo.



Machado Jr. 
em "No Nós & Elis: A Gente Era Feliz – e sabia"
Teresina: Gráfica Halley, 2010
Organizado por Joca Oeiras