"PAULO VÉRAS (30 anos) - Vida e Obra de 10 poetas piauienses que morreram jovens", por Zózimo Tavares



(...)


Eu queria que a minha morte 
Fosse como a de um mágico
Que transforma a realidade em fantasia. 

A fantasia em realidade 
E se mata com um tiro. 
Um tiro de verdade. 

(Aos quase trinta, in Poemágico




Como outros poetas piauienses, Paulo Véras não teve tempo de completar sua obra literária. Ele viveu pouco e morreu na data de seu aniversário, ao sofrer um ataque cardíaco fulminante e cair de cabeça dentro de uma lata de água fervente em que cozinhava caranguejo. Mas, como enfatiza Assis Brasil, "o pouco que deixou é o muito que marca a sua presença na literatura brasileira". Sua obra ainda é praticamente desconhecida dos piauienses, talvez porque tenha sido publicada fora do Estado natal. Somente depois de sua morte passou a figurar nas antologias poéticas publicadas no Piauí.

Paulo Trindade Véras nasceu em Parnaíba, em 23 de fevereiro de 1953. Viveu e morreu em Fortaleza, onde formou-se em Letras, pela Universidade Federal do Ceará. Ele dedicou-se à literatura e ao magistério. Venceu vários concursos literários, como estes, anotados por Adrião Neto: 1º lugar no Concurso Nacional Pena Aymoré, de Belo Horizonte, em 1978, com o livro "O Centro da Pedra"; 2º lugar no Concurso José Lins do Rego, com "Derradeiro, D. Amélia". Foi incluído em várias antologias, entre elas "A Poesia Piauiense no Século XX", de Assis Brasil.

"Foi um escritor de grandes recursos literários, dominando a prosa e a poesia com liberdade inventiva e fina sensibilidade", destaca Assis Brasil, para quem "do lirismo às alegorias de sentido cultural, a poe- sia de Paulo Véras tem uma dicção própria, uma linguagem poderosa e é uma das mais originais no âmbito mesmo da literatura nacional".

Paulo Véras desenvolveu sua literatura, prosa e poesia, concomitantemente com o exercício do magistétio. Ele teve, também, uma atuação marcante na imprensa, colaborando com jornais de São Paulo (Escrita), Rio de Janeiro (Tribuna da Imprensa) e Fortaleza (O Povo). 

Seu primeiro livro de poesia, "Maus Antecedentes", foi publicado em 1981, em parceria com Leila Míccolis. Em 1982, publicou "O Centro da Pedra", além de um livro de contos, "Os corações devem ser postos na lata de lixo". No mesmo ano, teve participação na antologia "Queda de Braço". 

Quando começava, então, a publicar sua produção, o poeta encontrou-se com a morte, em Fortaleza, ao completar 30 anos de idade, no dia 23 de fevereiro de 1983. Ele preparava, em casa, uma caranguejada para comemorar o seu aniversário. Como sofria de uma doença congênita do coração, teve um ataque cardíaco fulminante e caiu com a cabeça na lata de água quente em que ferviam os caranguejos.

O poeta parnaibano ainda é pouco conhecido no Piaui, talvez por ter vivido em Fortaleza e ter publicado muitos de seus poemas fora do Estado natal. Somente depois de sua morte, foi incluído numa antologia de poetas piauienses, "Poemágico" (1985), da qual fazem parte outros vates de sua geração igualmente aplaudidos, como Alcenor Candeira Filho, V. de Araújo, Jorge Carvalho e Elmar Carvalho

No prefácio de PoemágicoAssis Brasil destacou, em relação a Paulo Véras, "a habilidade artesanal, a sensibilidade poética, o compromisso com a vida e com o social".


Marujo


Dentro da minha casa
acolho uma velhice 
que me acompanha desde que nasci

O copo de prata de vovó
com seus lábios bordados na borda
Os olhos de uma tia morta
a vigiar-me da moldura oval
A bengala de meu avô
incentivando-me o passeio na calçada
A fruteira de vidro verde
(com frutas de cera)
a decepar-me o apetite
O aparelho de jantar azul
a fornecer-me a penumbra e a sopa
das seis da tarde

Na beira do rio
tem quermesse e eu não posso ir
tem bingo e leilão de peru assado
tem barquinho e rolete de cana

Estou vestido de marinheiro
e só posso navegar no jardim


(Porto Alegre, 30,11.77 - in Poemágico, 1985) 


(...)


Oferendas


Trago nas mãos
um resto da noite passada 
e entre os dedos o suco das estrelas 
que como sábias irmãs 
me fizeram companhia

Faltou tua orelhinha de búzio 
onde eu escutava as marés 
e retirava o sal amargo 
com a língua em arpão

Esta memória de hoje 
é apenas o retrato morto 
de um corpo com impressões digitais 
sobre a pele

Uma lembrança
que traz de volta 
uma dor antiga 
uma ferida que é uma boca 
de tão aberta

E este peito
está tão cinzento 
que chego a pensar 
que chove nas vísceras




(...)


A cidade do poeta


Era uma vez um poeta que construiu uma cidade toda de poemas. As ruas foram traçadas em versos livres. Eram largas e cheias de sombra. As casas foram feitas de sonetos, enfileiradas quatro a quatro, três a três. Todas muito bonitas. A igreja erguera-se numa longa ode. Os edifícios, ele os construiu com alexandrinos, majestosos, imponentes. Por fim, tomou um rondó e fez para si uma casinha muito acolhedora no alto do Parnaso.




(...)


Aos quase trinta


Aos quase trinta
- amadurecente

Agridoce fruto
Em úmido pomar

Ao meio da teia.
Minha vida tateia.

... Eu queria que a minha morte
    Fosse como a de um trapezista
    Que despenca do alto
    Flutua, desafia a gravidade,
    Ensaia traços de pássaro
    E cai com suavidade

... Eu queria que a minha morte
    Fosse como a de um mágico
    Que transforma a realidade em fantasia
    A fantasia em realidade
    E se mata com um tiro,
    Um tiro de verdade




(...)


Traços Noturnos


quintal amargando
abrigando velhas fruteiras
sombras, verdes, enormes
morcegos em vôos rasantes

frutas se despencando maduras
mordidas, nuas

mormaço arfando
nos troncos calosos

vozes mortas na cozinha

varal vestido de peças várias
mangas, golas, bolsos, laços

pedaço de conversa
na lata de lixo

restos de olhos verdes do gato
na água escura do prato.



(...)


Sociedade dos Poetas Trágicos
Vida e Obra de 10 poetas piauienses que morreram jovens"
Teresina: Gráfica do Povo, 2006


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