ORIGEM, por Clóvis Moura




Minhas origens não são somente terra e nuvem mas nascem de um povo,
também, Não são apenas epiderme deslumbrada de sapos e serpentes. Têm
cravos, conversas, batizados e sentenças.

No pó deito meus pés de estranhas marchas e violentas carreiras. Quando o
canto sobe, pressinto que a poeira chega E o som é áspero como se esperasse
a dimensão do sol.

Quando no quarto, seguro o lado esquerdo sinto um estranho relógio
equiparando-me às saudades. A solidão me faz rever a origem que
construíram para mim bastante amarga

A vida é um rio (permitam-me a imagem) que leva no seu bojo as impurezas.
Os parentes, os gostos, a memória, os remorsos, os tiques, os amores, A
loucura, o silêncio e a malquerença, A vingança, o dilema, a lealdade, o
medo, a vaga espera, o desencanto.

São sua água salobra de mistério. Aí me encontro. A música da noite diz
dessa origem humilde. Qual espelho confidente, solerte, deslumbrado. Dizem
que nas matrizes encontramos A sombra que ficou de quando éramos. É
preciso esquecer canções de berço. É preciso esquecer os doces braços. É
preciso esquecer mesmo o segredo que é nosso, apenas.

É preciso saber que na origem há o problema, Há o naco de espera, sofrida
desventuras, As côdeas de amargura comidas em silencia Há o grito
deglutido, o protesto sem eco, O labirinto, o claro o perceber que sofremos, a
canção do vizinho E o pranto da família, a humilhação, a infâmia A
corrupção do encanto e a morte da pureza

Na origem não há remorsos porque somos puros. Depois, do pó e da argila,
do grito e do silêncio Construímos a capa em que nos envolvemos O resto
são mortalhas de nós mesmo que persistem sem molduras ou diademas.



Clóvis Moura,
em Argila da Memória
São Paulo: Editora Fulgor, 1964.



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