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3.12.12

SEGUNDA FOTOGRAFIA VIVER TERESINA, Elizabeth Oliveira


Quem visita o bairro Poti Velho pode ver as casinhas
miseráveis presas à terra.
Os meninos do Rio Poti brincam em completa alegria,
alheios ao abandono.
Têm o corpo marcado pela desnutrição.
Esquecidos, a cidade não lhes repara.
Nem o país observa sua própria miséria.

Os meninos do Rio Poti dependurados no horizonte.
Comigo-não-se-pode ironizam o homem,
acidente circunspecto em céu aberto.

Por que a vida aqui parece uma fotografia pardacenta
onde o tempo parou?
O primeiro bairro da cidade anualmente
confirma a tradição pública festejada:
acompanhado pelos fiéis,
São Pedro percorre as ruas em procissão.
O povo lhe devota o sagrado sentimento,
na intenção de dias melhores,
que as aves de rapina lhes prometem no período eleitoral.

O Cabeça de Cuia escuta a fome em danças,
crianças em roda, ao encontro do Rio Parnaíba
com o Rio Poti de braços dados com a gente ibiapiana.

Ao se tornarem adultos, os meninos do Rio Poti
(e os do Brasil) verão com espanto sua lembranças,
a infância tomada, de doídas medidas.
Que futuro pode ter o país
com essa massa (ignorada) de miseráveis?


em O ofício da palavra
Teresina: FCMC, 1996

15.4.16

ONDE UMA BARCA VEIO A POETA BUSCAR (A MANDADO), Luiz Filho de Oliveira




– psiu! – diz seo rio –  
vamos passear em mim
enquanto eu não vou... sim?

– sim – disse a mavioso convite (e mais disse!) –
vou embarcar assim sem a tal da catacrese – rio nativo
e navegar-te rio de muitos dito rio de minha terra
nossa! tanta terra! de tantos poetas & de gente tanta
que rio – rio – porque te-reverso uma margem apenas
emerso duma taba de imenso contentamento poti
como um piaga a desafiar-te-desafinar – rio grande

pois sei: és do filósofo antigo
o não-mesmo-rio-porque-passaste
e depois que a tua ira foi apascentada por Leonardo
– estando poeta-mentecontínua-revolucionário –
ficou mais fácil ir ter contigo ao teu catre alegorizado
mesmo agora em estado leito lento paciente porque
se canos & projetos já te-levaram as lavadeiras – rio dejeto
a largo canto canto o largo das águas em verso de monge velho

mas à margem de tuas melhores canetadas – rio verba
aquiagora levas a hidromassagem aos motéis urbanos (um caso)
onde secamente em programas as garotas falam falsas propagandas
beiravidando contra o rumo do mundo de Mundoca novamente    
e marginália mundana a cidade ainda te-reduz (o descaso)
de água e cais e caminho e mesa e banho
a esgoto latrina lixeira tema de campanhas
campanas pro dinheiro mesmo!

não mais Letes (esquece!)
nem Estiges nem Infernos  (estigmas do poético)
nestes versos te-quero música apenas: let’s play that!

e mais que o mar da costa – rio dádiva
vem e silva selvas de brisa vivas
e se o mar é longe e longo em linha
tu – rio – és doce e não amaro a toda a vida
linguagem para tudo quanto praias:
praio doce coroa & brotinhos

no averedado da verdade de teu chão – rio – caminho
e em filme grave gravo estas palavras em eco
lógico: não caço garças nem choro em coro
só aporto lado a lados: leito ladino (trino) se
margem a margens (imagens emergindo)
te-desavesso os versos líquidos – rio fio

todavia se a nado não cheguei a
nada de novo sob teu céu sobre as águas
liquido: aceito passear em ti nessa barca
por onde tropica o sol destas praças
(veio)

pronto, seo moço?

(rio)


(De Teresina a Timon, sôbolo rio Parnaíba, abarcando-o.)






Via Deleituras em 25 de novembro de 2009

1.8.15

VARIAÇÕES EM SOLO DUM RIO DESTA ALDEIA




I.


POTICAGANDO

Lixolatrina
aos olhos d’água:
esgoto caseiro de coliformes.

Eles estão cagando presse rio,
eles estão ali,
nem aí...



II.


OUTRO LEITO DE FOLHAS VERDES

Por que tardas por vir,
poder dos poderes públicos,
para assistir o doente Poti,
à mortalha de merda sufocando-se?



III.


DE CÚBITO DORSAL (ANTES DOCE!)

A espinha do rio que já foi meu – que não foi
dum Pessoa ou dom Francisco amarantino –,
cobreando (subterrâneo!) o seu rumo teresino,
reverbera uma verde mortalha ecotrágica.

IV.



POR QUE TARDAS, PODER, AO POTI?


À beira do rio, os edifícios
defecam a água e os resíduos
caseiros via pia ou latrinas e
tecem o manto de folhas verdes,
não romântico, classecotrágico,
a mortalhar a vida de evoluídos
seres da cidade no concretaço
das margens da sustentabilidade.

No caos da vida contemporânea,
cravam suas garras nas encostas
do rio quinda é dessaminha terra
e vergalham projetos contra o veio
d’água doce do solo de nossa taba.

Dejetos sem tratamento, um erro de projeto,
de lei, de responsabilidades de agentes, de quem,
publicamente, deságua suja e infozmente o consumo
à beira do rio coberto da vergonha verde de aguapés
punidores impolutos dos filhos do Poti, rio limpo,
rio brando e doce se desaguando um triste quando...



V.


POR QUE MANHANAS TARDAS EM NOITADAS POR VIR, SOCORRO?

Qual Jati, a ti, Poti,
pra te-salvar não quer vir
quem vê sem poder o público
compartilhar tua imagem
de aguapés sem esperança,
apenas verdes se vale
a pena ou este teclado
a poetarem o mesmo tema

a variações nestas cenas.



Luiz Filho de Oliveira
em Deleitura

22.10.13

Memória (Caminhos de Estrelas), de Menezes y Morais




Vênus incendiava teus cabelos naquela noite
em que caminhávamos refletidos nas águas
margens assassinadas do rio poti
e no mangal
eu viajei na constelação dos teus olhos
e te dizia
a vida vai além daquilo q a gente imagina
e a liberdade pode estar ali
na próxima esquina
e sobre os trilhos noturnos
convergendo olhares favelados
com a tua mão esquerda dentro da minha direita
sentimos o fogo estrelar daquela noite azul
no céu de teresina
e o vento soprou leve
sussurrando em tua boca
entre o rio e a cidade existe um caminho
onde o tempo cicatriza toda dor



Menezes y Morais
em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina/Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


3.11.11

VIR VER OU VIR, por Torquato Neto




a coroa do rio poti em teresina lá no piauí. areia palmeiras de babaçu e
céu e água e muito longe, depois, um caso de amor um casal uns e outros.
procuro para todos os lados - localizo e reconheço , meu chicote na mão e
os outros: a hora da novela o terror da vermelha
o problema sem solução a quadratura do círculo o demônio a águia o núme-
ro do mistério dos elementos os quintais a minha terra é a minha vida!
o faroesteiro da cidade verde
estás doido, então? (sousândrade)
ela me vê e corre, praça joão luís ferreira
esfaqueada num jardim
estudante encontrado morto

ando pelas ruas tudo de repente é novo para mim. a grama. o meu caso de
amor, que persigo, êsses meninos me matam na praça do liceu. conversa com
gilberto gil
e recomeço a
vir ver ou
aqui onde herondina faz o show
na estação da estrada de ferro teresina-são luís um dia de manhã
ali
onde etim é sangrado



TRISTERESINA



uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques
eis tudo. observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto
saio, uma vez feriado de morte e me salvei
o primeiro filme - todos cantam sua terra
também vou cantar a minha



VIAGEM/LINGUA/VIALINGUAGEM



um documento secreto
enquanto a feiticeira não me vê
e eu pareço um louco pela rua e um dia eu encontrei um cara muito legal
que eu me amarrei e nós ficamos muito amigos eu o via o dia inteiro e a
poucos conheci tão bem.

VER

e deu-se que um dia eu o matei, por merecimento.
sou um homem desesperado andando à margem do rio parnaíba.

BOIJARDIM DA NOITE

êste jardim é guardado pelo barão. um comercial da pitu, hommage, à sa-
úde de luiz otávio.
o médioc e o monstro. hospital getúlio vargas. morte no jardim. paulo josé, meu primo, estudante de comunicação em brasília, morre segurando bravamente seu rolling stone da semana

sol a pino e conceição.

VIR
correndo sol a pino pela avenida

T E R E S I N A

zona tórrida musa advir

uma ponta de filme - calças amarelas
quarto número seis sete cidades



Torquato Neto
em Gramma, nº 2
Teresina, 1972



6.11.13

Duas perguntas para o Menezes y Morais, por Rodrigo M Leite




Rodrigo M Leite: O que foi o movimento "Viver Teresina" que aconteceu na década de 70 em Teresina, Piauí?

Menezes y Morais: O Movimento Viver Teresina foi uma tentativa de chamar atenção dos artistas em geral, especialmente dos poetas, para que incluíssem em sua produção a nossa amada "Cidade Verde" como musa ou referência. Uma tentativa de levantar a autoestima da cidade, como você faz no "A Musa Esquecida". Eu lancei a ideia e logo depois migrei do Estado, e, retornando em visita um ano depois, fiquei tão feliz, porque o poeta William Melo Soares dera continuidade à campanha, lançando um livro de poesia com a informação "da coleção Viver Teresina". E vi duas pichações em muros do centro da cidade "VIVER TERESINA". Achei o maior barato.


Rodrigo M Leite: Li aquela sua entrevista feita por Wilmar Silva, do portal Germinaliteratura. Nela você comenta que veio de Altos para Teresina e que por volta dos 18 anos a sua poesia "ganhou a dimensão do real". Então, com 18 anos em 1969/70, quais lugares você frequentava em Teresina? 

Menezes y Morais: A minha poesia mudou por dois motivos: primeiro, mostrei grande parte para uma professora, ela disse que gostou muito e comentou: "Mas você, tão novo, tem tanta experiência...". Eu rasguei os poemas que ela elogiou, porque eram mentirosos, ficção, eu não tinha vivido nada daquilo, apenas imaginado. E depois, fui convidado para editar o Suplemento de Cultura do jornal O Dia: a experiência diária, cara a cara, com a realidade, consolidou a mudança: só escrevo sobre aquilo que eu vivo. Eu andava na cidade inteira, amava andar a pé (até hoje). Especialmente nos finais de semana. É claro que isto não era possível no horário de pico do sol. E nos finais de semana, era banho de rio e pescaria (de anzol ou linha de mão, pra pegar arraia), no Rio Poti, com amigos, família.



4.2.12

BARRINHA QUE JÁ SE FOI, João Ferry


Barrinha, minha Barrinha
Viraste Palha de Arroz!
A palha não era minha
O rio levou depois

O rio, assim como o vento,
Depressa doido ficou.
Não houve chuva a contento
E o rio também secou.

Quando houve chuvas a granel
O rio sem paciência,
Cumpriu seu triste papel,
Levou tudo sem demência!

Na Vermelha, do Laurindo
Tanta gente brincou lá,
Que a Vermelha foi caindo
Descendo pro Mafuá:

O Mafuá cresceu tanto,
Mas, fez tantas confusões,
Que se acabou por encanto,
Como os bons Três Corações

Buraco da Velha foi
Também zona de alegria
Mas, adeus Bumba-meu-boi
Busca-pés e cantorias

O querido barrocão
Que nos deu Doutor Boeiros
Sucumbiu-se, foi ao chão
Dando vida aos Cajueiros.

Minhas saudades, porém,
Confesso, não me dão trégua,
Quando na mente me vem
O sol da Baixa da Égua.

São Raimundo! São Raimundo!
Frautas, luar, sonho e farra,
Virou poeira no mundo
Trazendo após a Piçarra!

Poti Velho, Teso Duro!
Poções, Noivos, e o Pau-Dágua!
Vamos ver, se temos furo,
Sem ter choro, sem ter mágoa.

Catarina e São Joaquim
Matadouro e Pirajá
Passeios bons do Angelim
Já não existem por cá.

Já não tem rua do Amparo
Nem da Estrela, nem da Glória,
Tudo mudou sua história.
Ficou tudo ao desespero!

Tudo se foi - Retrocesso!
Com fonte rara e divina
Veio em seguida o progresso
Engalanar Teresina.

Pedro Silva! Hoje tudo
Tudo! Tudo é diferente!
Tudo é grande e não me iludo,
Só nós dois somos gente!

Até mesmo a Não-Se-Pode...
Também assim é demais!
A nossa alma não sacode,
Ai, nunca mais! Nunca mais!


João Ferry
em A GERAÇÃO PERDIDA

de M. Paulo Nunes
São Cristovão/RJ: Artenova

11.11.13

AQUELAS FLORES AINDA SALTAM NO MEU CÉU!




Quase nenhum garoto do bairro Primavera do final da década de 70 e início da de 80 deixava de admirar os paraquedistas (o hífen foi retirado para não atrapalhar a queda) que executavam suas manobras lá pras bandas da curva do rio Poti, talvez perto da floresta de fósseis que há em seu leito, depois da ponte da Frei Serafim. Com seus paraquedas redondos, aproveitando a corrente de ar que os levaria até a pista do aeroporto, passando por cima de nosso bairro (que beleza!); aquilo era surpreendente para qualquer criança setentoitentona, e isso não era diferente para mim, que vinha, como já o-disse noutras vezes, de uma cidadezinha do interior, que me-madrastou mansamente: essa Alto Longá – domundopróximo – distante. Em Teresina, nesses idos, olhávamos os meninos para cima, à espera de todos (e, em expectativa, de um) pularem.

Hem-hém. Quão fácil era prender a atenção de crianças assim! Sim, tão pouco era necessário. E, imaginem só, assistir à audácia daqueles homens: o desafio de confiar em equipamentos, em tecnologia de afronta à gravidade – dane-se Newton; todos queríamos vê-los saltando davincianamente para um voo planado por asas de tecido sintético! Redondinhos. Sim, os paraquedas ainda eram os redondos, mesmo o italiano engenhoso tendo-os pensado piramidalmente mais pesados e quadrados e os nossos contemporâneos, mais leves e retangulares, com a possibilidade de o paraquedas ter manobrada a sua direção. Então, os meninos de olho no céu, à procura dos pontinhos coloridos que desabrochavam uma flor salva-vidas; perigosa ideia do desejo humano do voar, oqual, ainda hoje, renova suas asas com as penas de outra tecnologia, criada da ciência. Quer ler? Hoje, agosto de 2011, aposto se há tanto alguém nesta ilha terrena que ainda queira voar com o grego, usando as asas de cera que Dédalo criou para si e seu filho, Ícaro (não escrevo do paraquedas de Da Vinci, porque isso já foi feito; a foto que ilustra esse texto comprova-o!).

É, o não ter asas para voar deu ao humano a possibilidade de trabalhar com as mãos (estendam-se os braços), esses Oficiais de Justiça do cérebro. Foram essas mãos, por exemplo, que criaram essa possibilidade de sobreviver qualquer um que pule de qualquer lugar (estático ou célere) estando a tantos metros do chão. Claro que esse “qualquer um” foi somente para ilustração de que há pessoas que fazem isso. Mas não o-é para todos. Para nós, os meninos que observávamos estupefatos de alegria aquela loucura de se-atirar de um avião a mais de dois mil metros de altitude, ainda não havia nada que se-comparasse a isso. E, nesta linha mesma, me-vem à mente o nome dum homem (claro que havia outros com ele!); não, seu apelido. Louro. Loro (pra confirmar a nossa “morte do ditongo”, já praticada pelos espanhóis, de mais antiga língua). 

Quem era esse cara? Ainda hoje sei pouco sobre ele. Certa vez, aqui, em Teresina, encontrei um seu filho, um fotógrafo, de nome Cleyton, não lembro bem (sei que o-conheço), que falou qual era o verdadeiro nome de Louro, seu pai, mas infelizmente perdi isso em minhas agendas; foi mal, Cleyton (nem sei se seu nome é escrito assim), mas talvez alguém possa reconstituir os fatos dessa história teresina, que, junto-com os meninos, também eu vi. Isso, se não já o-tiverem feito. Talvez alguns poucos possam-se-lembrar de Louro e de seus companheiros de saltos. Eles são os primeiros em nossa capital? Eles, de fato e de saltos, não deixaram quaisquer seguidores pelos ares dessas suas quedas de -longe? Quem sabe? Sei que foram ousados. Nem sei se há ainda, aqui, nesta capital, algum grupo que pratique paraquedismo. Aliás, há paraquedismo ainda, aqui, em Teresina, como havia naquela época?

Vixe, eram muitos saltos! Acredito que fosse uma espécie de clube de paraquedismo. Não posso confirmá-lo, mas isto, sim: o Louro era “o Cara”. Era o nome que os caras (como os meninos nos-chamávamos) mais pronunciavam. Todos, abestalhados com aquela habilidade, que vem desde os acrobatas chineses, precursores do paraquedismo de “altas altitudes”, até a ideia-cabeça de Leonardo, o iníco de uma sequência de ousadias, que ofereceram ao público um Fausto De Veranzio, um Sebastan Le Normand, um Jean-Pierre Blanchard, que já saltava com paraquedas dobrável de seda, ou um André-Jacques Garnerin, o primeiro a desafiar as grandes altitudes, ou uma Genevieve Labrosse, a primeira mulher, e sua sobrinha, Elise, que fez mais de 40 saltos, o que, para a época, era algo surpreendente. Não; somente eles eram ousados a tal ponto no céu. Ah, esses saltos sempre foram perigosos, e nossa expectativa de meninos roía as unhas e nossos heróis tiveram que pagar o preço com suas próprias vidas-próprias e eu, de boca aberta ainda e olhos espremidos, calibrando o olhar, e este texto, por réquiem profano, saltando do meu cérebro, pulando com as mãos nesta tela. 

Ao Louro, estas “memórias póstumas”. Elas, que, pelo céu de minha boca passam palavras, puladas por mim, a sonorizar as imagens, que gravadas no “paraquedas do meu cérebro” ficaram a saltar. Não eram elas a borboleta preta nas rodas do quarto, mas pareciam floresinhas pequeninas (bem pituibinhas!) no céu do meu bairro, daquela cidade do tempo em que os meninos, na primavera das idades e no Primavera de suas casas, estavam de olho duro no céu. O salto que eu ainda espero é o de Louro. Como, hoje, o paraquedas pode ser manobrado pelo paraquedista, como tento fazer com estas palavras que saltam de mim num céu de página branca (papel ou tela), quero que ele caia dentro deste poema:



Outra inscrição para um túmulo no ar (o segundo voo)


Meninos,
nas matinês dos
domingos, lá pras
bandas da curva do
rio – com o Poti abaixo
(sim, uma garantia?) –, um
passarinho de metal desovava
no céu sementinhas; e vinham caindo
velocíssimas para, em seguida, abrirem-se
como florzinhas: pequeninas ilhas de cores teresinas,
paridas pelo voo dessas aves ocas, loucas pelas alturas terrenas!
Os meninos esperávamos, sobretudo, sobre todas as altitudes, pelo Louro,
o principal pontinho do grupo dos pulos nos ares do abismo, o príncipe dos
comentários dos caras do bairro, do Primavera  (sempre abismados, os meninos); entanto, estávamos tão abaixo de entendermos a altura dessa Física, de um artefato
saltado do entendimento davinciano e longíquo. Ah, seos meninos, eu vi também os
saltos do Louro pelo brancinzazul do céu do meu bairro soltos; primaveral flor do céu
que voa, e todas voam: o pouso sobre o desejo tão grande e tão baixinho (mítico?) de voar acima dos telhados dos olhos primaverinos. – Lá vai o Louro saltar!– Lá vem o louco! – Lá vai no vento indo. – Vai pro aeroporto. Esse foi o salto que caiu dentro do encanto dos meninos de boca aberta: – Quede os paraquedas? – Quedê? – Cadê? Que pena. Ninguém mais os-espera. Como flores soltas na corrente de ar: elas, pelos louros do desafio à queda-livre, presas dentro deste poema, dos céus das páginas, saltam nos









olhos
dum menino
teresino.



Luiz Filho de Oliveira
enviado pelo autor

27.11.11

IMAGENS SOLTAS, José Ribamar Garcia


O pneu saltitando no paralelepípedo. O menino sem camisa, de calção e descalço, empurrava-o com um pedaço de tábua.
     
O céu girando, girando. A bicicleta substitui o pneu que, por sua vez, sucedeu o velocípede. A Gulliver vermelha, cuidada, brilhava com duas flâmulas do Fluminense dependuradas no guidom. Entrava na Rua Firmino Pires, dobrava à esquerda, na Estrela, caía à direita, na Rui Barbosa, depois à esquerda, na Lizandro Nogueira e, finalmente, na Coelho Neto. A estrela, em alto relevo, na fachada da casa do Monsenhor Chaves. O borracheiro que várias vezes remendara a câmara de ar da bicicleta.
     
O céu girando, girando. A ponte do Mafuá. A linha do trem sobre a qual se colocavam cacos de vidro para que o trem os transformasse em pó, a fim de ser utilizado, como cerol, na linha do papagaio. O Augusto Ferro, reduto dos boêmios suburbanos.

O Cemitério São José guardando lembranças, saudades. Dia de Finados, aquela romaria toda. Os vendedores gritando:

- Olha as velas Três Coroas!

- Olha as flores!

O matadouro, onde se adquiriam, à tarde, fígado, língua, coração, miúdos fresquinhos. O boi sendo arrastado por dois ou três homens, a entrar no salão, ensanguentado. O animal urrava, relutava, esperneava, pressentindo o fim. Com sacrifício, ele era amarrado ao mourão. A faca curta, fina e afiada entrava-lhe na nuca. E a queda brusca. Mais outro a adentrar e a cena se repetia.

O Poti Velho escondido, abandonado, sempre preterido, desde os tempos do Conselheiro Saraiva. Ali a gente caçava passarinho e preá. A mania do Milton Rodrigues de comprar canários, fuçando a periferia da cidade na sua motocicleta barulhenta, que o motor custava a pegar, ora pela bateria, ora por defeito mesmo.

A usina elétrica na beira do rio, fornecedora de água e luz, que funcionava na base da lenha. E as caldeiras queimando madeira, trazida em caminhões das matas maranhenses, já bem devastadas.

A Socopo do outro lado do Poti. Estância mineral com o clube social enfiando no mato. A cidade já marchava para aquelas bandas.

O céu girando, girando. A pescaria debaixo da ponte. A brisa soprava e a canoa deslizava, vagarosamente, sobre as águas do Parnaíba, puxando a rede ou o arrastão. o peixe era assado e devorado ali mesmo, na coroa do lado maranhense, enquanto se ouvia o baque das mangas, caindo no mangueiral que se estendia ao longo do rio.


em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

1.12.11

O CABEÇA DE CUIA, João Ferry


Com o sol a pino, um dia, no Poti,
Um pescador voltou da pescaria;
Vinha fulo, porque no seu pari;
Um peixinho sequer, nele caía.

Alegre a velha mãe o aguardava
Com o almoço frugal que de costume,
Para o filho querido preparava,
Quando vinha feliz com seu cardume.

Neste dia, zangado, o belo moço,
Tratou mal a velhinha e aos palavrões,
Recusou-se aceitar seu almoço,
Uma ossada gostosa de pirões.

Em vão a velha mãe bondosamente,
Com mimos, com carinho e com amor,
Procurou acalmar o imprudente,
Que tomando um osso, um "corredor"...

Bateu na velha mãe, em louca fúria,
Esmurrou-lhe a cabeça veneranda
E cobrindo-a de apodos e de injúria,
Mostrou sua alma vil, negra e execranda.

Com a dor, a velhinha atordoada,
No terreiro de casa ajoelhou,
Filho ingrato, cruel desnaturado,
E mil pragas do céu invocou...

Filho maldito, o rio há de tragar-te,
E entre todas as suas agonias,
De monstro que tu és, para salvar-te
Haverás de engolir 7 Marias...

E o filho como um louco caiu n'água
No lugar "Poti Velho" e ali sumiu-se,
E a velhinha chorando a sua mágoa,
Ao sol quente, de dores, sucumbiu-se.

E é voz corrente que o Poti gemendo,
Quando a cheia do rio em fúria desce,
O "Cabeça de Cuia", um monstro horrendo,
Nas águas a boiar sempre aparece.

E ao que consta, até hoje, o imprudente,
Não conseguiu tragar uma só Maria...
E há de viver assim eternamente,
Um fantasma de dor e agonia.


João Ferry
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)  
Teresina, 2006

26.1.12

EXCERTO DE BALADA DO SANATÓRIO MEDUNA




Paisagem! É a nova coluna do helesponto erguida
Em suave gradação, depois desce um aclive, pára
E se estende até às margens do rio Poti;
Aí ficam a deveza e as ravinas, atravessando

A faixa que mãos nipônicas trabalharam,
Olhos oblíquos voltados para o Império do
Sol nascente. Cerejeiras em flor, lembranças.
A entrada está franqueada por “flamboyants”

E vivendas que sugerem, sugerem sempre
Coisas da França Antiga, romântica. Ao alto
Vasta cidade quadrangular, simétrica,

Com ornatos e recamos, longos corredores;
Ao lado se entremostra a pequena igreja
Acolhedora, refúgio dos aflitos...



Fabrício de Arêa Leão Carvalho
em Antologia dos Poetas Piauienses
Organizado por Wilson Carvalho Gonçalves 
Teresina: 2006

28.1.16

UM ESTRANHO EM TERESINA, Cunha e Silva Filho




Estive há pouco em Teresina e desta feita me achei um peixe realmente fora d’água, um estranho no ninho. Não que o desejasse, mas a culpa, leitor, é unicamente minha. Quem manda não a ter frequentado mais amiúde.

Da janela do hotel, lá fora, dava uma espiada para o que poderia ver que valesse a minha atenção ou curiosidade. Pois não é que procurei e achei. Era a visão de uma mulher, em plena tarde de um sol escaldante, caminhando, caminhando, caminhando, debaixo de uma sombrinha. Claro que não foi só aquela mulher que portava uma sombrinha para abrigar-se do sol abrasante. Não me lembro de outras vezes que andei por Teresina de reparar nesse costume local, aliás, bem justo e necessário, de usar uma sombrinha contra o rigor solar. Esse hábito me parece ser apenas feminino, já que não vira nenhum homem utilizando um guarda-sol.

Aqui no Rio de Janeiro, usar uma sombrinha ou guarda-chuva, em pleno calorão, não é comum como na “Cidade Verde”. Lá é hábito; aqui, é exceção, chega mesmo a ser constrangimento para quem dele faz uso com receio de se ver vítima de um gaiato qualquer perguntar-nos se está por acaso chovendo. O carioca sofre, mas não abre o guarda-sol. “Os cariocas somos pouco dados” aos guarda-chuvas, ou chapéu de sol ou muito menos a uma sombrinha, para nos intrometermos, sem sermos chamados, no labiríntico intertexto machadiano.

Das últimas vezes que fui a Teresina não me passava pela cabeça um persistente temor de violência. Não me queira por isso na conta dos paranoicos, dessas criaturas que, nas grandes cidades, passam a ter medo de tudo diante da disparada da violência dos últimos anos.

Confesso-lhe, leitor, porém, que, em Teresina, só andei mais em carro particular que, no meu caso, era do meu amigo, o ensaísta M. Paulo Nunes, de sorte que não me expus à sanha de algum pivete ou assaltante.

Num final de manhã, notei que, no hotel, não dispunha de papel para escrever, nem de caneta; a que trouxera comigo na viagem se perdeu não sei onde. Lá fui às ruas de Teresina. Algumas delas eu conhecia de priscas eras. Com o tempo, a gente perde um certo traquejo de andar por ruas de nossa cidade. Entretanto, o “eu” do presente era outro, e as ruas, à altura em que as podia identificar, não ficavam em trechos por mim palmilhados com assiduidade no passado.

Mesmo assim, criei coragem e, vendo o nome de uma rua e de outra, alguma, conhecida, outra, não, fui dar na bela Av. Frei Serafim, que divide dois lados de parte da cidade. Indaguei aqui, ali e, por fim, consegui encontrar uma papelaria. Comprei um caderninho escolar de poucas folhas e uma caneta azul. Lembrei-me, então, que teria que comprar um exemplar da edição daquele dia do jornal Meio-Norte. No hotel, depois do café, já havia passado uma vista no exemplar que me interessava, aquele no qual havia uma reportagem sobre mim a propósito de conferência que iria fazer na Academia Piauiense de Letras. A reportagem tinha sido feita no dia anterior por ocasião do lançamento, no Museu Odilon Nunes, de mais um número da excelente revista Presença, com apresentação de M. Paulo Nunes. Procurei o exemplar em mais de uma banca até que o encontrei. A reportagem exibindo foto minha, saíra bem escrita, mas continha um erro. A jornalista que me entrevistara omitira do meu nome literário, a palavra “Filho”. Sem querer, virei o nome de papai. Ainda bem que estava em boas mãos paternas e na mídia jornalística que ele tanto amava.

Voltando a Teresina, tópico principal desta crônica, pude observar outras coisas. Me convenci por completo  de que sou um estranho na cidade. Perdi mesmo o bonde da história de Teresina.

A minha Teresina não é a de hoje. Ela ainda existe e se estende por todo o velho centro da urbe. Lá vejo, intactos, alguns pontos de referências; o Theatro 4 de Setembro, o Rex, a Praça Rio Branco (o relógio!), o prédio do Arquivo Público (ó tempos da infância!) da rua Coelho Rodrigues e que, hoje, comporta também o Conselho Estadual de Cultura, a Praça Pedro II, o Karnak, a Praça João Luis Ferreira, o antigo Prédio dos Comerciários (que, um dia, fora o mais alto edifício da cidade), a Praça do Liceu (ah, sim, Landri Sales!), o Liceu Piauiense, as igrejas de São Benedito, a minha preferida, a do Amparo, a das Dores, a Praça da Bandeira, muito modificada e maltratada, e principalmente as queridas e amorosas ruas da velha Teresina, nas quais tudo nelas me leva inexoravelmente ao passado. Ah, ia-me esquecendo, o velho rio Parnaíba, o Poti (agora com sua enchente e suas vítimas). Enfim, esse passado soterrado no tempo, me está, contudo, vivo e ora me leva à alegria, ora à melancolia. 

O que não se circunscreve a essas ruas, a esses prédios, a essas arquiteturas variadas alcançadas pela minha geração não parece fazer parte da minha memória. A Teresina nova, trepidante, dos arranha-céus não me atrai. Essa Teresina verticalizada se iguala às outras metrópoles, vira mesmice. Nada tem a ver comigo em Teresina.

Relendo os belíssimos poemas de Paulo MachadoPost card/57” e “Post card/77” extraídos do livro Tá pronto, seu lobo? e “Nas ruas da minha cidade há lições? (É preciso aprendê-las)", retirado do livro A paz no pântano (1982), que se encontram na antologia A poesia piauiense no Século XX, de Assis Brasil, vejo que a poesia de Paulo Machado, de alguma forma, me conforta e não me deixa esquecer essa Teresina. Os dois primeiros poemas citados se valorizam pela riqueza semântica resultante de sua arquitetura contrapontística em termos de realidades espaciais semelhantes aliadas a realidades temporais diversas. O terceiro poema, ainda inserido na categoria do tempo fluído, reforça o tom rememorativo de viés rebelde na transposição da realidade histórico-social. Poemas de grande impacto estético que, em mim, despertam, de certa forma, por coincidência ou não do fenômeno poético, quase a mesma sensação provocada por aquela maneira de descrição pulsante, vibrátil, vigorosa, do realismo inusitado de Cesário Verde (1855-1886), como seriam exemplos os versos abaixo do poema “Post card/57":


                                    No mercado central pretas carnudas
                                    Vendiam frito de tripa de porco
                                    Fígado picado e caninha.


Os novos bairros, avenidas, artérias, em suma, o espalhamento topográfico horizontal da cidade me espanta e ao mesmo tempo me dá a sensação de que estou em outro lugar, que nada tem mais a ver comigo, e com o meu espólio (triste espólio devorado pelo tempo!) de relembranças. Estas, por definitivo, vou encontrar num cruzamento qualquer da minha própria Teresina da memória.



Cunha e Silva Filho
via Portal Entretextos

15.4.20

Entrevista com Elio Ferreira e Lisete Napoleão - Revista Amálgama #1




Publicado originalmente em amálgama #1, janeiro de 2002


Parte 1

Entrevistados por Hermes Coelho, Adriano Lobão Aragão e Sérgio Batista, numa manhã de sábado, diante de lentas águas do Rio Poti, o poeta Elio Ferreira e a professora Lisete Napoleão ponderaram sobre literatura piauiense, poesia, hip-hop, folclore, bumba-meu-boi e o que mais apareceu na conversa. Elio é professor de literatura na UESPI, pesquisador da cultura e resistência negra no Brasil e no mundo, autor do livro de poemas O Contra-lei, já em sua segunda edição, onde mistura do hip-hop à poesia marginal. Lisete é Pró-Reitora de Ensino na UESPI, professora de literatura piauiense e pesquisadora de nosso folclore. Escreveu os livros Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto, Zamba e Histórias que Ouvi. Entre um gole de água mineral para o Elio e uma cervejinha para Lisete, perdidos no bairro Santa Sofia, sob pés de “segura-ela” e mangas, deu-se o interrogatório.

(...)

Amálgama - Quais as características próprias da literatura piauiense?

Lisete - A característica que a gente vê, que a gente tem, no Piauí, é ter esse amor pelo Piauí. Porque são raros os escritores que deixam de falar. O Da Costa e Silva, sempre que falava, era telúrico mesmo. A marca maior deles, que eu vejo, é que sempre que eles usem temas universais, estão sempre voltados para o Piauí. Ao nosso Piauí ou à sua cidade natal.

Elio - Dentro do grande, do nacional, deve existir identidade. Eu sou do Piauí, mas eu sou do universo, eu sou cidadão do mundo. Então meu sentimento daqui vai partir também para o que eu tenho de universal e de humano, que existe em toda parte.

Lisete - Dentro da auto-estima impor respeito e espaço.

Elio - O Piauí não está isolado. Porque o mundo ocidental... muita coisa que se escreve aqui vem do ocidente. Chega aqui e se adapta a uma outra realidade com elementos complementares da arte e da mentalidade de um povo, de um lugar em que está se vivendo.

Lisete - Nós sabemos o quê? Que nós temos toda uma influência de Portugal, que foi de onde nós passamos muito tempo ligados. Portugal, por sua vez, tem toda sua influência de onde? Do resto da Europa, onde o Garrett [Almeida Garrett, poeta e dramaturgo português do romantismo] e todo o pessoal iam e retornavam à Portugal... o próprio Bocage [poeta português, árcade pré-romântico] deixou essa influência para nós, que por nossa vez, à medida em que fomos aprendendo a caminhar, nós fomos absorvendo essas características e compondo nossas músicas, nossas poesias, dentro da nossa realidade.

Elio - Toda literatura dialoga com literaturas anteriores, como na própria vida existe esse elemento. O diálogo com conhecimentos anteriores. Hoje, a negritude não pode ficar descartada numa situação como essa. Portugal veio, mas tem-se de Portugal como se tem do índio, como temos do negro e de outros povos. E o momento da literatura autenticamente brasileira é quando a gente começa a perceber a dominação, a perceber que temos que pensar com a nossa própria cabeça, por nosso próprio mundo. Estabelecer que a realidade de Portugal veio até aqui, mas temos de Portugal como temos também da África, do índio. Então a gente tem que ver de outra maneira. Ver com os nossos próprios olhos, onde está a questão de identidade. E o que vai marcar a literatura brasileira hoje, a literatura do mundo, é pensar com o olhar do dominado. Então não se pode passar a vida inteira pensando como europeu. Se tem essa estrutura, a gente modifica isso. A gente fala outra coisa...

Lisete [interrompendo] - Ver o que eles têm e construir a nossa realidade.

Elio - É claro. No mundo e na literatura, as culturas dialogam com outras. Deve haver um mundo miscigenado.

Amálgama - A antropofagia na prática?

Elio [gesticulando muito] - A antropofagia da prática. O que é que eu tenho de negro? Eu tenho de negro isso. O que é que eu tenho de índio? Eu tenho de índio isso. O que é que eu tenho de europeu? Eu tenho de europeu isso. Então são as coisas que eu preciso viver nesse momento.

Lisete - O que nós, brasileiros, temos disso...

Elio - Agora eu, como negro, assumo hoje mais o quê? A questão da negritude. Porque essa é minha maior herança.

Lisete - Embora essa face gritante seja do negro, você não pode negar o que tem do índio e do branco.

Elio - Renegar o índio nunca! A minha ancestralidade também está no presente. Eu fiz um estudo da minha ancestralidade e descobri que a minha bisavó foi pega "a dente de cachorro", que era uma índia. Temos que resgatar esses nossos valores que foram apagados. Temos que resgatar isso para que tudo conviva em pé de igualdade. Essa relação de diálogo e respeito a todas as culturas e a todas as religiões. Isso é o que se busca. Por que falou-se em negritude e na cultura do índio? É para que sejam respeitadas num mesmo nível que o branco. O branco é branco, e é bonito. O negro é negro, e é bonito. O índio é bonito. A cultura do índio é tão importante quanto a cultura do europeu. O que a literatura brasileira faz nos últimos tempos? É buscar uma linguagem aproximada da que o povo fala, quebrar valores também. Não podemos passar o tempo todo discutindo os valores europeus. O que há de Piauí aqui? O que o pessoal do Piauí está escrevendo? A gente deve entender o Piauí, esse conceito, a partir do que se tem escrito. O cordel é uma marca forte no Piauí. E o que marca o Brasil nesse cordel é a oralidade do poema. O poema para ser gritado.

Lisete - Devemos nos arrancar desse marasmo, porque ele é analisado na Sorbonne e no exterior, mas nós conhecemos pouco e trabalhamos pouco o cordel. Até que a nossa Universidade Estadual começou a resgatar e tentar fazer um trabalho junto ao próprio Pedro Mendes Ribeiro, que todos os anos faz um encontro internacional de cordel aqui no Piauí.

Elio - O que precisamos resgatar é a nossa história. Resgatar a memória do Piauí. Essa questão da piauiensidade é importante. Temos que nos identificar para nos assumir como nós somos e conquistar um espaço também fora daqui. Porque o que acontece é isso aqui: nós somos a periferia. Assim como o negro é tido como periferia, assim como o índio é tido como periferia, essas culturas... E o Piauí em relação ao Brasil é periferia...

Lisete [protestando] - Ainda é periferia. Ainda...

Elio - Considera-se periferia. Estamos aqui num isolamento. O Piauí ainda é tido como o estado mais atrasado, mais pobre. Ainda é visto assim. Então voltar a nossa visão para nós mesmos é importante. O amor próprio, e amar aos outros, para começar a conquistar espaço fora. Agora tem-se que fazer alguma coisa aqui.

Lisete - Mas já estamos melhorando, já há um avanço. A preocupação está muito maior.

Elio - Mas tem que ter investimento! Investimento cultural! Pra quem faz literatura é muito pequeno.

Lisete - É pequeno, eu sei. Mas e quando não se tinha nada? E hoje já se tem.

Elio - Mas são pequenos.

Lisete - E quando não se tinha nada?

Elio - Sim. Mas não se está nesse ponto mais. Você vai, por exemplo, ao Ceará ver a quantidade que eles investem em literatura lá. Todo dia tem gente de fora pra falar de literatura lá. O que o Piauí não faz é isso.

Lisete - Mas nós estávamos falando de produção.

Elio - Mas o diálogo pra fora é válido, porque é preciso isso para levar a nossa literatura para outros lugares. Não devemos ficar ilhados aqui. Precisamos nos comunicar com outras literaturas.

Lisete - Nós precisamos conhecer é a nossa casa. Primeiro trabalhar a nossa casa, dentro. A partir desse momento é que nós podemos ir lá pra fora e abrir as nossas fronteiras. Mostrar que nós somos bons também.

Amálgama - Elio, os seus trabalhos sobre Torquato Neto e Mário Faustino foram publicados em jornais. Como você vê o espaço dado a esse tipo de trabalho nos jornais?

Lisete - Os jornais de grande circulação você sabe que têm que ter um retorno financeiro, e esse tipo de matéria não dá.

Elio - Mas o que é que falta para isso? Onde é que está o vazio? Por isso é que o vazio é grande. Naquela época, por exemplo, quando eu fui fazer as performances de poesia de rua, é porque não havia espaço, meu amigo! O poeta se sente sufocado, então precisa de um espaço, porque falta isso num jornal. O que se faz pra publicar hoje? Eles não publicam mais.

Amálgama - O que as agremiações e academias estão fazendo nesse sentido?

Lisete - A Academia de Letras do Vale do Longá tem um espaço no jornal O Dia, onde você tem espaço pra publicar. A UBE também tem um espaço...

Amálgama - Não existe um exagerado elitismo dentro dessas academias?

Elio - Toda academia é elitista.

Lisete - Até porque há limitações no número de cadeiras.

Elio - Essa questão no Brasil hoje é uma questão de amizade. É claro que todo grupo gira em torno de interesses, ou pelo menos de visões parecidas, estéticas e ideológicas, mesmo que surjam divergências dentro do grupo. Mas a academia parece algo mais fechado ainda. Há um padrão, você tem que ser “assim” pra ter uma vaga: “esse aqui não cabe aqui porque foge dos nossos padrões”. Quando é um movimento, há mais abertura. E tem a política no meio ainda, valores morais, econômicos, políticos, que sempre influenciam na academia.


Parte 2

Elio Ferreira, por Sérgio Batista

Lisete Napoleão, por Sérgio Batista

Amálgama - Elio, como foi o episódio no qual você ficou nu durante uma apresentação em Campina Grande?

Elio - Em Campina Grande foi o seguinte...

Lisete [interrompendo, risos]- Não estava no script...

Elio - Não estava. Não havia nada premeditado. Mas é a questão do contra-lei, né? Era aquela coisa de criar um clima que dissesse da nossa angústia da época. Então a coisa foi acontecendo...

Amálgama - Foi no dia do massacre no Carandiru?

Elio - Foi no dia do massacre no Carandiru! Eu tinha visto na televisão e eu disse: que país é esse? Em que mundo nós estamos vivendo? Eu passei a viver toda a circunstância da poesia. Aquela relação de fazer o contra-lei e você incorporava não apenas o poema como um indivíduo que a poesia te fazia aquilo.

Lisete - Tu fizestes isso em sã consciência? Não tinha tomado nada?

Elio - Não, não... Isso aí é à parte... [risos]

Lisete - É muita coragem... [risos]

Elio - Mas quando você pinta a cara, você não é mais você. Parece que baixa um fogo assim, em cima de você. Dos seus ancestrais, sabe? Quando o poeta fala, ele fala por muitas vozes, não é só por ele não. É muita gente falando através dele.

Amálgama - Mas lá na hora, como foi?

Elio - Na hora, foi o seguinte, eu disse: “que país é esse onde acontece esse tipo de coisa?” E eu comecei a declamar: “eu não sou o presidente, eu não sou o governador...” aí começaram a aparecer as imagens do Brasil, um bocado de sacanagem, de miséria, de violência...

Lisete - Mas essa alucinação era real?

Elio - Era o que eu estava falando na poesia. Era uma coisa real. E eu me perguntava: “que país é esse?” Aí desci as calças e peguei no saco e mostrei pro pessoal. “Que país escroto é esse?” Aí as meninas gritavam: “professor!!!” e botavam a mão no rosto, assim, mas ficavam vendo tudo com os olhos entre os dedos... [risos]

Lisete - Viram a coisa preta, Elio! [risos]

Elio - Mas não é que você faça a coisa pra chocar. É uma coisa que acontece... A coisa foi crescendo...

Lisete - O meu questionamento é esse.

Amálgama - O que a Lisete quer saber é se você estava drogado.

Elio - Em primeiro lugar, quando eu vou para as minhas performances, eu não bebo.

Lisete - Mas, Elio, veja bem. Era um público enorme. Qual era o público?

Elio - Tinha umas cinco mil pessoas, não tinha não? Tinha não. Era o Encontro Nacional de Letras...

Amálgama - O ENEL de 1992, em Campina Grande.

Elio - Em São Paulo, na USP, também aconteceu outro lance assim, parecido. O que agredia não era só tirar a roupa. Era também o texto. Na Paraíba, quando eu ia pra praça, o pessoal começava a gritar: “eu vou comer a tua mãe, eu vou comer o teu pai...” [cantando, trecho do poema Canibal, do livro O Contra-Lei]

Amálgama - Então a poesia embriaga?

Elio - Embriaga. A poesia te envolve. Porque a poesia do contra-lei não é só o texto poético. Há a incorporação de um personagem. Viver a poesia na dimensão em que escrevo.

Lisete - Mas lá [em Campina Grande] estava o professor Elio...

Elio [interrompendo]- Não! Professor não! Professor é na sala de aula. Eu sou o poeta!

Lisete - Mas você estava representando a universidade...

Elio [interrompendo]- Não! Eu sou o poeta. O Elio é o professor lá na sala de aula. Se eu saí de lá, eu sou mais eu, eu tô rua, eu sou outra entidade.

Lisete - Se você estivesse representando a universidade, deveria ter tido a postura de professor.

Elio - Mas eu sou é o poeta. A entidade é outra coisa. O cara é administrador de empresas, ou é empresário, mas faz uma peça de teatro. Lá no palco, ele é o ator ou é o empresário? Eu tô em casa, eu estou com minha família, eu sou um pai de família. Mas se eu tô na rua falando poesia eu sou o poeta. Eu não sou mais pai de família.

Lisete - Mas se eu for a um seminário representando a Universidade Estadual do Piauí, ali eu sou a representante da universidade, eu sou a professora Lisete.

Elio - Enquanto estiver em sala de aula!

Lisete - Não. Enquanto eu estiver ali, inclusive sendo financiada com passagem paga, com estada paga pela universidade.

Elio - Mas o dinheiro não é da universidade, o dinheiro é do povo, é do Brasil...

Lisete - Mas se eu for para um teatro...

Elio [interrompendo]- Mas o meu trabalho como professor é na sala de aula.

Lisete - Você estava nu na conferência como professor ou como escritor?

Elio - Eu estava como professor e como convidado, poeta, a falar poesia! Eu estava na pauta como poeta, pra falar poesia. Eu não tirei a roupa na sala de aula. Eu tirei num espaço propício pra fazer arte!

Amálgama - A agressividade de sua poesia nasce de uma frustração social?

Elio - O que eu falo não sou eu que falo. Talvez o que as pessoas gostariam de dizer, ou o que as pessoas dizem. Para os meus poemas, eu tiro muito o que as pessoas dizem na rua. Eu sou negro, venho de uma classe social pobre, no nordeste, no Piauí, Floriano. O que você escreve é tua vida. Machado de Assis dizia que o menino é pai do homem. Eu convivi em oficina de ferreiro. Minha família era toda Ferreira, meus tios, minha mãe era flandeira, meu pai ferreiro, e eu cresci naquele som do metal e do palavrão, que quando você tá puto com alguma coisa você xinga. Então procurei alguma coisa que dissesse da angústia e do sofrimento do povo, da realidade que eu vivia. Uma maneira mais forte de tocar as pessoas.

Amálgama - E como está sua poesia hoje?

Elio - Minha poesia hoje não está mais dentro daquele tom. É um momento que você cria uma espécie de ser que você incorpora. Você escreveu aquela fase, você esgotou aquilo ali. É uma coisa de momento.

Lisete - Eu acho que houve um amadurecimento. Acho o Elio mais maduro, mais consciente.

Elio - Eu preciso dizer de uma maneira que marque o meu tempo. Uma coisa que veja o mundo com a linguagem das pessoas da minha época. Do meio em que eu convivo. Eu vivo num momento difícil em que as pessoas estão buscando se situar no mundo, num lugar ao sol, e o mundo tem que ser pra todo mundo. Por que essa grande visão na miséria total, sem acesso a escola para uns, e outros com tanto? Então o contra-lei era isso. Porque a lei estava muito errada! [bem enfático] E ainda está muito errada. E eu vivi numa estrutura que eu conhecia muito tudo isso. Eu trabalhei em repartição pública, eu nunca fui só professor, porque não dava pra comprar meus livros. Eu fui educado numa família em que meu pai era ferreiro, mas se comprava livro e tinha biblioteca em casa. Minha mãe ensinava a ler, também era professora, por isso lá em casa era cheio de gente. O "poemartelos" fala disso, e é muito de memória, porque eu pegava também muito o mito do povo. Houve um crime muito hediondo na minha cidade. O cara matou outro e pinicou todinho. O que eu sei dessa história é que aparecia o demônio na casa dessas pessoas e o cara que fez esse crime era casado com uma tia minha, e sofreu muito por isso. No "poemartelos" eu falo dessa coisa. Muito som, muito martelo. Imitar o som do ferro. Eu criei uma poesia sonora pra ser falada imitando o som do ferro.

Lisete - Hoje você usa muito o estilo do Rap, não é?

Elio - O Rap foi um momento do Contra-lei. Quando eu escrevi "O Contra-lei", não tinha nenhum contato com o Rap. Comecei a ter no final de 94. Aí o pessoal do Rap, do Hip-Hop, viu meu livro e dizia: “Professor, vamos cantar isso aí ”.

Amálgama - Então, na verdade, a inclusão do Hip-Hop ao Contra-lei foi posterior ao livro?

Elio - Foi posterior. Depois eu publiquei a segunda edição já com esse contexto. Mas eu acho que já tinha alguma coisa de Rap no ouvido, por causa da poesia pra ser falada, porque quando você escreve, além das coisas do passado, tudo que há de presente no som você coloca no seu texto. Eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira. Era sempre assim, ouvindo vários tipos de música.

Amálgama - Mas foi o Rap que incorporou isso de maneira bem característica para sua poesia.

Elio - Exato.

Amálgama - Então como você vê a essa situação de respeitar uma MPB que torce o nariz para o Rap?

Elio - Eu não sei por quê. Pois o Hip-Hop é um ritmo, um ritmo negro, dos negros que viviam nos guetos dos Estados Unidos, na periferia, e Rap quer dizer o quê? Poema em ritmo. Poema pra ser cantado.

Lisete - Mas eu acho que há essa marginalização porque eles levam geralmente à anarquia, à droga, à...

Elio - O Rap não tem nada disso! O Rap é o contrário. O Hip-Hop...

Lisete - Mas as gangues e as confusões que tem no Rio de Janeiro...

Elio - Aquilo é o funk. É outra história.

Lisete - Mas há uma mistura, pois inclusive é muito parecido.

Elio - Junta-se o Rap ao Hip-Hop. O Hip-Hop é um movimento educativo. É a visão de educar. "Faça a Coisa Certa", lembra do [filme de] Spike Lee? Está diretamente ligado a isso, a educar. Tirar o sujeito da pior. Mas é claro que existe o Rap gangster, também. Não vou dizer que só há bons. Mas a força toda do Hip-Hop é tirar o cara da lama.

Lisete - Mas o próprio Hip-Hop tem também as gangues.

Elio - Não. Não tem não. O Hip-Hop é o seguinte: são pessoas educadas, gente da periferia, meninos que estudaram a história do negro, a condição de...

Lisete - Inclusive o Gabriel O Pensador faz isso...

Elio - Mas o Gabriel O Pensador não é do Hip-Hop. Ele faz Rap, mas não é do Hip-Hop, do movimento. Hip-Hop é um movimento que, em primeiro lugar, é música para divertir, para conscientizar, para educar, para contar a sua história, do momento, da periferia. Os Racionais mostram o cara quando entra no tráfico, mas também quando se dá mal no final. É instrutivo. É a consciência ideológica. Estudar a questão do negro, a questão social da miséria. Evitar entrar no mundo do álcool, da droga, porque aquilo vai te levar para um caminho que pode ser sem volta. Mas o Rap também pode se aproximar pra dialogar com as gangues, porque a gangue é apenas um fator social.

Amálgama - Não seria então a música que leva à criminalidade, ela só reflete...

Elio - Reflete a realidade. A condição de ser. Por que o sujeito está no crime? Porque não teve oportunidade, na periferia, para ele. É algo altamente político, algo revolucionário. É pra brincar, educar e pensar sempre. É a mesma situação o negro e o pobre. A visão é essa. Mas não se abre espaço na grande mídia para o Hip-Hop. Não se abre para Racionais, para Câmbio Negro, para Rio Radical Rap, que tem até um cara do [bairro de Teresina] Monte Castelo, que eu sempre converso com ele, o Yuri, no Rio de Janeiro. A polícia de Minas Gerais deu o maior cacete e quase mataram o cara, deixaram o cara jogado lá porque tinha um verso dele que dizia “Foda-se a polícia, foda-se a polícia”.

Amálgama - Lisete, e como anda a pesquisa folclórica?

Lisete - É um trabalho que estamos desenvolvendo desde um curso em Belo Horizonte, que foi Leitura e Produção de Texto. Naquela época eu viajava muito pelo interior, trabalhando pela UESPI.

Elio - Eu acredito que nossa base, nossa cultura está sempre no interior...

Lisete - E eu tenho difundido isso pra fora. Eu recebi agora em Lisboa um cavaquinho, que é um prêmio cultural de lá pelos trabalhos que faço. Eu confesso que além de ser uma defensora e uma pessoa que trabalha com a literatura piauiense, eu sou uma das pessoas que dá a vida e o sangue, qualquer coisa, para que a gente continue trabalhando a cultura de um modo geral. Eu não me preocupo se ela está elitizada ou não. Eu só me preocupo se ela chega ao povo. Que o povo, com isso, consiga fazer uma análise crítica. A nossa cultura é riquíssima e apaixonante. O meu trabalho me ajuda a descobrir isso cada vez mais.

Amálgama - Elio, a poesia já te ajudou a comer alguém? [risos]

Elio - Sacanagem. Minha mulher deve estar lendo isso. [risos] Mas eu só posso dizer que ela é apaixonante.





2.9.14

Teresina, Graça Vilhena


sobre a ponte do Poti
a cidade vê de frente
seu retrato vertical

para trás ficaram praças
meninos de bicicletas
feiras, danças e cinemas
que ensinavam a namorar

para muito além da ponte
em um canto do futuro
os meninos que hoje crescem
também guardarão no peito
sua cidade esquecida
que dançou em outro tempo
com sua saia estaiada
sobre o rio que secou


Graça Vilhena

11.6.21

Os Bares de Teresina, por Eugênio Rosa de Oliveira Ribeiro (2013)






Certa noite, pertinho do aniversário de 161 anos de Teresina, numa das cervejadas no Bar do Osvaldo, ficou uma pergunta no ar: O que ou quem mais representaria o jeito de ser da cidade de Teresina?

Conversando com o Conselheiro Fernando Porto, primeiro e único Comendador do Barrocão, veio a solução! Nossos bares e botecos são quem mais refletem a alma do Teresinense.

E por qual razão? Qual é a característica dos nossos botecos? O que os diferencia? Quais são eles?

A maioria de nossos bares é bem simples. Despojados, não muitos limpos (tem um com o nome “Bar do Imundo”), copo americano, cadeira de espaguete, ás vezes nem cadeira têm! E, apesar de serem um templo de celebração da mulher, são um ambiente eminentemente masculino.

O dono, geralmente mais grosso que lixa 40, contraria todas as lições do SEBRAE sobre a cortesia e atenção aos clientes.

No entanto, estes botecos são ponto de intelectuais, médicos, engenheiros, jornalistas, empresários, um sem número de pessoas conhecidas e bem sucedidas, além dos tradicionais cachaceiros dos diversos matizes.

Tem boteco frequentado pelas mesmas pessoas faz 40, 50 anos. Agora já são os filhos que estão tomando o lugar dos pais.

O Bar do Osvaldo, por exemplo, que funcionava perto da casa do estudante, antes de mudar para o Barrocão (ficou no lugar do bar do seu Luís Veloso, pai da primeira dama Lilian), foi frequentado por sucessivas gerações de estudantes (iam comprar ovo e sardinha!).

Muitos desses estudantes se formaram e, apesar de profissionais de sucesso, mantiveram o hábito de visitar o veterano da guerra (seu Osvaldo lutou no Suez).

No Osvaldo não há cadeiras, nem mesas. Quando aparece uma pessoa conhecida (só se for conhecida) ele tira detrás do balcão um tamborete e, assim, os fregueses se posicionam uns de frente para os outros nos dois lados do balcão.

O balcão de madeira do seu Osvaldo tem mais de cem anos e pertenceu ao comércio do senhor Adelino, depois fiscal de rendas do estado, pai do Agenor (engenheiro), Juscelino e Dilson Pinheiro (médicos já falecidos) que permaneceram, como o pai, assíduos frequentadores.

Local de encontro de muitos amigos como: Tancredo Serra e Silva, Edmar Mota e Bona, Peninha, Manoel Afonso, José Jucá Marinho, Bernardo Castelo Branco, Oscar Castelo Branco, Ivadilson, Raimundo Marvignier, Os irmãos Raldir, Bizarria e Roosevelt Bastos, José de Sousa Santos, Afonso Ferro Gomes Filho, João Agrícola dos Passos, Walter Moura, Alberoni Lemos Neto, Ismar Andrade, e muitos outros.

Dá tristeza saber que uma grande parte já se foi!

Outros bares formam uma verdadeira confraria. Um grande exemplo é o Santana. Reduto de famílias tradicionais, os clientes se sentem irmanados e muito amigos. É muito frequentado por empresários e profissionais liberais. Os membros promovem diversos eventos durante o ano: Carro dos Amigos do Santana no Corso, filme do ano, enduros e por aí vai... Tem cliente que começou criança tomando refrigerante no antigo endereço em frente à Igreja São Benedito.

Mas afinal, quais são os bares tradicionais de Teresina do passado e do presente? Eis alguns exemplos:

Maria Tijubina: ficava no Mafuá entre o muro do Cemitério São José e a linha do trem era frequentada por boêmios e notívagos muito conhecidos como José Lopes dos Santos e o mestre do cavaquinho da Rádio Difusora Caco Velho.

• Bar do 71: na Praça do Fripisa, o dono “o Neguin Baixo” só usava branco, roupa e chapéu. Era o ponto dos estudantes da Faculdade de Direito, que funcionava na praça, quando terminavam as aulas.

• Bar do Zé Garapa: na Piçarra onde funciona hoje a Jacaúna, ponto de encontro dos melhores jogadores de sinuca. O melhor jogador era o Raimundinho da Bindá. Seu irmão Antônio da Bindá era conhecido como o maior boêmio do Piauí e um grande cantor.

• Restaurante da Dona Maria Maior: localizado na Rua Paissandu, reduto boêmio. Quando terminavam os filmes, as tertúlias e o movimento da Praça Pedro II, os homens desciam. O nome oficial era Fála-se Hotel, possivelmente uma corruptela de Pálace Hotel.

Bar Carvalho: Muito famoso, frequentado pela elite, era da família do prefeito Firmino Filho e do vereador Inácio Carvalho, ficava na Praça Rio Branco e era considerado a melhor comida de Teresina.

• Bar do Cabecinha: No Cajueiro, antes funcionou na Santa Luzia com David Caldas, reduto do famoso Basilão dos Cajueiros.

Bar Carnaúba: dos irmãos argentinos Carlos e Osvaldo Fassi, ao lado do Theatro 4 de Setembro, totalmente feito de carnaúba. Em suas proximidades funcionava a Rádio Calçada, em frente a Lanchonete Americana, onde as decisões políticas do Piauí eram tomadas. Entre os seus frequentadores temos: Deputado Ciro Nogueira (pai), Dr. João Mendes Nepomuceno Neto, Prof. Magalhães (pai de secretario de segurança) dentre outros.

• Bar do porão do Clube dos Diários: onde existia um cassino

• Largo do Boticário, no Clube dos Diários: no corredor a esquerda de quem entra no Clube, reduto de escritores e intelectuais, até os garçons eram famosos: Raimundão (pai da delegada Vilma), Careca e Cirilo.

• Bar e Hotel Avenida: onde hoje é o Hotel Piauí (Luxor), frequentado pelos sírios e libaneses, nossos conhecidos carcamanos.

• Cantinho do Tufy: também de árabe, o dono era o Jesus Thomaz Tufy, exercia suas atividades na Rua Álvaro Mendes esquina com a Rua Simplício Mendes, foi a primeira lanchonete a vender esfirra e quibe na cidade.

• Bar e Restaurante do Auto Esporte Clube: Na Rua da Palmeirinha (Clodoaldo Freitas), lugar de quem queria comer uma boa panelada. Primeiro restaurante “delivery” de Teresina.

• Chicona do Poti Velho: figura folclórica fazia piaba frita e peixe de primeira (era quem fritava os peixes – bem poucos por sinal– de minhas pescarias no encontro das águas).

• Galinha da Júlia: única comida que se pode dizer que é genuinamente teresinense, funcionava perto do Hospital São Marcos. A galinha era feita em panela de ferro e lenha, recheada com mexidos e bastante condimentada. A receita morreu com ela, mas fez tanto sucesso que a tripulação da empresa aérea Real Aerovias, ao fazer escala em Teresina já vinha com a incumbência de levar a galinha para o Rio de Janeiro e outras cidades.

• Bar do Zé de Melo: em pleno funcionamento na Dom Severino, tão frequentado e querido que existe uma confraria organizada dos amigos do seu Zé.

VTS: Na Rua João Cabral, vende um peixe muito famoso e possuía uma seleta freguesia, exemplo: Totó Barbosa, Elisiário, Carlos Said e Nodgi Nogueira

E quantos outros! Miúda, Bar do Edverton, Gela Guela (a cerveja mais gelada da cidade), Rifona, Zé guela, Sapucainha, Coqueiro Verde, Bar do Gelatti, Pesqueirinho, Bar do Lula, Bar do João Veloso, Bar do Amauri (reduto de jornalistas), Bar da Tia Maria (no encontro das águas), do Ulisses, Zé Filho, Pé Inchado, Ribamar, do Pernambuco, Bar e Restaurante Acadêmico (do Pedro Quirino).

Em Teresina, o bar é tão importante que até candidatura de governador já foi decidida em um.

Até hoje, não há maior diversão para um teresinense da gema que encontrar os amigos no final da tarde e fins de semana, no seu boteco favorito, para trocar informações e esmaecer as tensões de um dia de trabalho.

Nem melhor local para se fazer amizades que duram toda a vida.

São os bares e botecos que fizeram a alegria dos teresinenses de ontem e de hoje.

E que refletem muito do nosso jeito simples e amigo de ser.



Eugênio Rosa de Oliveira Ribeiro
Em 10/08/2013 | Teresina/PI

Publicado no blogue do Poeta Elmar Carvalho "Recebi o vertente texto por WhatsApp. Não tendo o contato do autor, não lhe pude pedir autorização para a publicação em meu blog. Espero que ele não se aborreça. Quem me enviou o texto também não tinha o endereço virtual dele. Publiquei porque achei um texto muito bom e importante para a memória de Teresina."