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11.6.21

Os Bares de Teresina, por Eugênio Rosa de Oliveira Ribeiro (2013)






Certa noite, pertinho do aniversário de 161 anos de Teresina, numa das cervejadas no Bar do Osvaldo, ficou uma pergunta no ar: O que ou quem mais representaria o jeito de ser da cidade de Teresina?

Conversando com o Conselheiro Fernando Porto, primeiro e único Comendador do Barrocão, veio a solução! Nossos bares e botecos são quem mais refletem a alma do Teresinense.

E por qual razão? Qual é a característica dos nossos botecos? O que os diferencia? Quais são eles?

A maioria de nossos bares é bem simples. Despojados, não muitos limpos (tem um com o nome “Bar do Imundo”), copo americano, cadeira de espaguete, ás vezes nem cadeira têm! E, apesar de serem um templo de celebração da mulher, são um ambiente eminentemente masculino.

O dono, geralmente mais grosso que lixa 40, contraria todas as lições do SEBRAE sobre a cortesia e atenção aos clientes.

No entanto, estes botecos são ponto de intelectuais, médicos, engenheiros, jornalistas, empresários, um sem número de pessoas conhecidas e bem sucedidas, além dos tradicionais cachaceiros dos diversos matizes.

Tem boteco frequentado pelas mesmas pessoas faz 40, 50 anos. Agora já são os filhos que estão tomando o lugar dos pais.

O Bar do Osvaldo, por exemplo, que funcionava perto da casa do estudante, antes de mudar para o Barrocão (ficou no lugar do bar do seu Luís Veloso, pai da primeira dama Lilian), foi frequentado por sucessivas gerações de estudantes (iam comprar ovo e sardinha!).

Muitos desses estudantes se formaram e, apesar de profissionais de sucesso, mantiveram o hábito de visitar o veterano da guerra (seu Osvaldo lutou no Suez).

No Osvaldo não há cadeiras, nem mesas. Quando aparece uma pessoa conhecida (só se for conhecida) ele tira detrás do balcão um tamborete e, assim, os fregueses se posicionam uns de frente para os outros nos dois lados do balcão.

O balcão de madeira do seu Osvaldo tem mais de cem anos e pertenceu ao comércio do senhor Adelino, depois fiscal de rendas do estado, pai do Agenor (engenheiro), Juscelino e Dilson Pinheiro (médicos já falecidos) que permaneceram, como o pai, assíduos frequentadores.

Local de encontro de muitos amigos como: Tancredo Serra e Silva, Edmar Mota e Bona, Peninha, Manoel Afonso, José Jucá Marinho, Bernardo Castelo Branco, Oscar Castelo Branco, Ivadilson, Raimundo Marvignier, Os irmãos Raldir, Bizarria e Roosevelt Bastos, José de Sousa Santos, Afonso Ferro Gomes Filho, João Agrícola dos Passos, Walter Moura, Alberoni Lemos Neto, Ismar Andrade, e muitos outros.

Dá tristeza saber que uma grande parte já se foi!

Outros bares formam uma verdadeira confraria. Um grande exemplo é o Santana. Reduto de famílias tradicionais, os clientes se sentem irmanados e muito amigos. É muito frequentado por empresários e profissionais liberais. Os membros promovem diversos eventos durante o ano: Carro dos Amigos do Santana no Corso, filme do ano, enduros e por aí vai... Tem cliente que começou criança tomando refrigerante no antigo endereço em frente à Igreja São Benedito.

Mas afinal, quais são os bares tradicionais de Teresina do passado e do presente? Eis alguns exemplos:

Maria Tijubina: ficava no Mafuá entre o muro do Cemitério São José e a linha do trem era frequentada por boêmios e notívagos muito conhecidos como José Lopes dos Santos e o mestre do cavaquinho da Rádio Difusora Caco Velho.

• Bar do 71: na Praça do Fripisa, o dono “o Neguin Baixo” só usava branco, roupa e chapéu. Era o ponto dos estudantes da Faculdade de Direito, que funcionava na praça, quando terminavam as aulas.

• Bar do Zé Garapa: na Piçarra onde funciona hoje a Jacaúna, ponto de encontro dos melhores jogadores de sinuca. O melhor jogador era o Raimundinho da Bindá. Seu irmão Antônio da Bindá era conhecido como o maior boêmio do Piauí e um grande cantor.

• Restaurante da Dona Maria Maior: localizado na Rua Paissandu, reduto boêmio. Quando terminavam os filmes, as tertúlias e o movimento da Praça Pedro II, os homens desciam. O nome oficial era Fála-se Hotel, possivelmente uma corruptela de Pálace Hotel.

Bar Carvalho: Muito famoso, frequentado pela elite, era da família do prefeito Firmino Filho e do vereador Inácio Carvalho, ficava na Praça Rio Branco e era considerado a melhor comida de Teresina.

• Bar do Cabecinha: No Cajueiro, antes funcionou na Santa Luzia com David Caldas, reduto do famoso Basilão dos Cajueiros.

Bar Carnaúba: dos irmãos argentinos Carlos e Osvaldo Fassi, ao lado do Theatro 4 de Setembro, totalmente feito de carnaúba. Em suas proximidades funcionava a Rádio Calçada, em frente a Lanchonete Americana, onde as decisões políticas do Piauí eram tomadas. Entre os seus frequentadores temos: Deputado Ciro Nogueira (pai), Dr. João Mendes Nepomuceno Neto, Prof. Magalhães (pai de secretario de segurança) dentre outros.

• Bar do porão do Clube dos Diários: onde existia um cassino

• Largo do Boticário, no Clube dos Diários: no corredor a esquerda de quem entra no Clube, reduto de escritores e intelectuais, até os garçons eram famosos: Raimundão (pai da delegada Vilma), Careca e Cirilo.

• Bar e Hotel Avenida: onde hoje é o Hotel Piauí (Luxor), frequentado pelos sírios e libaneses, nossos conhecidos carcamanos.

• Cantinho do Tufy: também de árabe, o dono era o Jesus Thomaz Tufy, exercia suas atividades na Rua Álvaro Mendes esquina com a Rua Simplício Mendes, foi a primeira lanchonete a vender esfirra e quibe na cidade.

• Bar e Restaurante do Auto Esporte Clube: Na Rua da Palmeirinha (Clodoaldo Freitas), lugar de quem queria comer uma boa panelada. Primeiro restaurante “delivery” de Teresina.

• Chicona do Poti Velho: figura folclórica fazia piaba frita e peixe de primeira (era quem fritava os peixes – bem poucos por sinal– de minhas pescarias no encontro das águas).

• Galinha da Júlia: única comida que se pode dizer que é genuinamente teresinense, funcionava perto do Hospital São Marcos. A galinha era feita em panela de ferro e lenha, recheada com mexidos e bastante condimentada. A receita morreu com ela, mas fez tanto sucesso que a tripulação da empresa aérea Real Aerovias, ao fazer escala em Teresina já vinha com a incumbência de levar a galinha para o Rio de Janeiro e outras cidades.

• Bar do Zé de Melo: em pleno funcionamento na Dom Severino, tão frequentado e querido que existe uma confraria organizada dos amigos do seu Zé.

VTS: Na Rua João Cabral, vende um peixe muito famoso e possuía uma seleta freguesia, exemplo: Totó Barbosa, Elisiário, Carlos Said e Nodgi Nogueira

E quantos outros! Miúda, Bar do Edverton, Gela Guela (a cerveja mais gelada da cidade), Rifona, Zé guela, Sapucainha, Coqueiro Verde, Bar do Gelatti, Pesqueirinho, Bar do Lula, Bar do João Veloso, Bar do Amauri (reduto de jornalistas), Bar da Tia Maria (no encontro das águas), do Ulisses, Zé Filho, Pé Inchado, Ribamar, do Pernambuco, Bar e Restaurante Acadêmico (do Pedro Quirino).

Em Teresina, o bar é tão importante que até candidatura de governador já foi decidida em um.

Até hoje, não há maior diversão para um teresinense da gema que encontrar os amigos no final da tarde e fins de semana, no seu boteco favorito, para trocar informações e esmaecer as tensões de um dia de trabalho.

Nem melhor local para se fazer amizades que duram toda a vida.

São os bares e botecos que fizeram a alegria dos teresinenses de ontem e de hoje.

E que refletem muito do nosso jeito simples e amigo de ser.



Eugênio Rosa de Oliveira Ribeiro
Em 10/08/2013 | Teresina/PI

Publicado no blogue do Poeta Elmar Carvalho "Recebi o vertente texto por WhatsApp. Não tendo o contato do autor, não lhe pude pedir autorização para a publicação em meu blog. Espero que ele não se aborreça. Quem me enviou o texto também não tinha o endereço virtual dele. Publiquei porque achei um texto muito bom e importante para a memória de Teresina."


15.4.20

Entrevista com Elio Ferreira e Lisete Napoleão - Revista Amálgama #1




Publicado originalmente em amálgama #1, janeiro de 2002


Parte 1

Entrevistados por Hermes Coelho, Adriano Lobão Aragão e Sérgio Batista, numa manhã de sábado, diante de lentas águas do Rio Poti, o poeta Elio Ferreira e a professora Lisete Napoleão ponderaram sobre literatura piauiense, poesia, hip-hop, folclore, bumba-meu-boi e o que mais apareceu na conversa. Elio é professor de literatura na UESPI, pesquisador da cultura e resistência negra no Brasil e no mundo, autor do livro de poemas O Contra-lei, já em sua segunda edição, onde mistura do hip-hop à poesia marginal. Lisete é Pró-Reitora de Ensino na UESPI, professora de literatura piauiense e pesquisadora de nosso folclore. Escreveu os livros Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto, Zamba e Histórias que Ouvi. Entre um gole de água mineral para o Elio e uma cervejinha para Lisete, perdidos no bairro Santa Sofia, sob pés de “segura-ela” e mangas, deu-se o interrogatório.

(...)

Amálgama - Quais as características próprias da literatura piauiense?

Lisete - A característica que a gente vê, que a gente tem, no Piauí, é ter esse amor pelo Piauí. Porque são raros os escritores que deixam de falar. O Da Costa e Silva, sempre que falava, era telúrico mesmo. A marca maior deles, que eu vejo, é que sempre que eles usem temas universais, estão sempre voltados para o Piauí. Ao nosso Piauí ou à sua cidade natal.

Elio - Dentro do grande, do nacional, deve existir identidade. Eu sou do Piauí, mas eu sou do universo, eu sou cidadão do mundo. Então meu sentimento daqui vai partir também para o que eu tenho de universal e de humano, que existe em toda parte.

Lisete - Dentro da auto-estima impor respeito e espaço.

Elio - O Piauí não está isolado. Porque o mundo ocidental... muita coisa que se escreve aqui vem do ocidente. Chega aqui e se adapta a uma outra realidade com elementos complementares da arte e da mentalidade de um povo, de um lugar em que está se vivendo.

Lisete - Nós sabemos o quê? Que nós temos toda uma influência de Portugal, que foi de onde nós passamos muito tempo ligados. Portugal, por sua vez, tem toda sua influência de onde? Do resto da Europa, onde o Garrett [Almeida Garrett, poeta e dramaturgo português do romantismo] e todo o pessoal iam e retornavam à Portugal... o próprio Bocage [poeta português, árcade pré-romântico] deixou essa influência para nós, que por nossa vez, à medida em que fomos aprendendo a caminhar, nós fomos absorvendo essas características e compondo nossas músicas, nossas poesias, dentro da nossa realidade.

Elio - Toda literatura dialoga com literaturas anteriores, como na própria vida existe esse elemento. O diálogo com conhecimentos anteriores. Hoje, a negritude não pode ficar descartada numa situação como essa. Portugal veio, mas tem-se de Portugal como se tem do índio, como temos do negro e de outros povos. E o momento da literatura autenticamente brasileira é quando a gente começa a perceber a dominação, a perceber que temos que pensar com a nossa própria cabeça, por nosso próprio mundo. Estabelecer que a realidade de Portugal veio até aqui, mas temos de Portugal como temos também da África, do índio. Então a gente tem que ver de outra maneira. Ver com os nossos próprios olhos, onde está a questão de identidade. E o que vai marcar a literatura brasileira hoje, a literatura do mundo, é pensar com o olhar do dominado. Então não se pode passar a vida inteira pensando como europeu. Se tem essa estrutura, a gente modifica isso. A gente fala outra coisa...

Lisete [interrompendo] - Ver o que eles têm e construir a nossa realidade.

Elio - É claro. No mundo e na literatura, as culturas dialogam com outras. Deve haver um mundo miscigenado.

Amálgama - A antropofagia na prática?

Elio [gesticulando muito] - A antropofagia da prática. O que é que eu tenho de negro? Eu tenho de negro isso. O que é que eu tenho de índio? Eu tenho de índio isso. O que é que eu tenho de europeu? Eu tenho de europeu isso. Então são as coisas que eu preciso viver nesse momento.

Lisete - O que nós, brasileiros, temos disso...

Elio - Agora eu, como negro, assumo hoje mais o quê? A questão da negritude. Porque essa é minha maior herança.

Lisete - Embora essa face gritante seja do negro, você não pode negar o que tem do índio e do branco.

Elio - Renegar o índio nunca! A minha ancestralidade também está no presente. Eu fiz um estudo da minha ancestralidade e descobri que a minha bisavó foi pega "a dente de cachorro", que era uma índia. Temos que resgatar esses nossos valores que foram apagados. Temos que resgatar isso para que tudo conviva em pé de igualdade. Essa relação de diálogo e respeito a todas as culturas e a todas as religiões. Isso é o que se busca. Por que falou-se em negritude e na cultura do índio? É para que sejam respeitadas num mesmo nível que o branco. O branco é branco, e é bonito. O negro é negro, e é bonito. O índio é bonito. A cultura do índio é tão importante quanto a cultura do europeu. O que a literatura brasileira faz nos últimos tempos? É buscar uma linguagem aproximada da que o povo fala, quebrar valores também. Não podemos passar o tempo todo discutindo os valores europeus. O que há de Piauí aqui? O que o pessoal do Piauí está escrevendo? A gente deve entender o Piauí, esse conceito, a partir do que se tem escrito. O cordel é uma marca forte no Piauí. E o que marca o Brasil nesse cordel é a oralidade do poema. O poema para ser gritado.

Lisete - Devemos nos arrancar desse marasmo, porque ele é analisado na Sorbonne e no exterior, mas nós conhecemos pouco e trabalhamos pouco o cordel. Até que a nossa Universidade Estadual começou a resgatar e tentar fazer um trabalho junto ao próprio Pedro Mendes Ribeiro, que todos os anos faz um encontro internacional de cordel aqui no Piauí.

Elio - O que precisamos resgatar é a nossa história. Resgatar a memória do Piauí. Essa questão da piauiensidade é importante. Temos que nos identificar para nos assumir como nós somos e conquistar um espaço também fora daqui. Porque o que acontece é isso aqui: nós somos a periferia. Assim como o negro é tido como periferia, assim como o índio é tido como periferia, essas culturas... E o Piauí em relação ao Brasil é periferia...

Lisete [protestando] - Ainda é periferia. Ainda...

Elio - Considera-se periferia. Estamos aqui num isolamento. O Piauí ainda é tido como o estado mais atrasado, mais pobre. Ainda é visto assim. Então voltar a nossa visão para nós mesmos é importante. O amor próprio, e amar aos outros, para começar a conquistar espaço fora. Agora tem-se que fazer alguma coisa aqui.

Lisete - Mas já estamos melhorando, já há um avanço. A preocupação está muito maior.

Elio - Mas tem que ter investimento! Investimento cultural! Pra quem faz literatura é muito pequeno.

Lisete - É pequeno, eu sei. Mas e quando não se tinha nada? E hoje já se tem.

Elio - Mas são pequenos.

Lisete - E quando não se tinha nada?

Elio - Sim. Mas não se está nesse ponto mais. Você vai, por exemplo, ao Ceará ver a quantidade que eles investem em literatura lá. Todo dia tem gente de fora pra falar de literatura lá. O que o Piauí não faz é isso.

Lisete - Mas nós estávamos falando de produção.

Elio - Mas o diálogo pra fora é válido, porque é preciso isso para levar a nossa literatura para outros lugares. Não devemos ficar ilhados aqui. Precisamos nos comunicar com outras literaturas.

Lisete - Nós precisamos conhecer é a nossa casa. Primeiro trabalhar a nossa casa, dentro. A partir desse momento é que nós podemos ir lá pra fora e abrir as nossas fronteiras. Mostrar que nós somos bons também.

Amálgama - Elio, os seus trabalhos sobre Torquato Neto e Mário Faustino foram publicados em jornais. Como você vê o espaço dado a esse tipo de trabalho nos jornais?

Lisete - Os jornais de grande circulação você sabe que têm que ter um retorno financeiro, e esse tipo de matéria não dá.

Elio - Mas o que é que falta para isso? Onde é que está o vazio? Por isso é que o vazio é grande. Naquela época, por exemplo, quando eu fui fazer as performances de poesia de rua, é porque não havia espaço, meu amigo! O poeta se sente sufocado, então precisa de um espaço, porque falta isso num jornal. O que se faz pra publicar hoje? Eles não publicam mais.

Amálgama - O que as agremiações e academias estão fazendo nesse sentido?

Lisete - A Academia de Letras do Vale do Longá tem um espaço no jornal O Dia, onde você tem espaço pra publicar. A UBE também tem um espaço...

Amálgama - Não existe um exagerado elitismo dentro dessas academias?

Elio - Toda academia é elitista.

Lisete - Até porque há limitações no número de cadeiras.

Elio - Essa questão no Brasil hoje é uma questão de amizade. É claro que todo grupo gira em torno de interesses, ou pelo menos de visões parecidas, estéticas e ideológicas, mesmo que surjam divergências dentro do grupo. Mas a academia parece algo mais fechado ainda. Há um padrão, você tem que ser “assim” pra ter uma vaga: “esse aqui não cabe aqui porque foge dos nossos padrões”. Quando é um movimento, há mais abertura. E tem a política no meio ainda, valores morais, econômicos, políticos, que sempre influenciam na academia.


Parte 2

Elio Ferreira, por Sérgio Batista

Lisete Napoleão, por Sérgio Batista

Amálgama - Elio, como foi o episódio no qual você ficou nu durante uma apresentação em Campina Grande?

Elio - Em Campina Grande foi o seguinte...

Lisete [interrompendo, risos]- Não estava no script...

Elio - Não estava. Não havia nada premeditado. Mas é a questão do contra-lei, né? Era aquela coisa de criar um clima que dissesse da nossa angústia da época. Então a coisa foi acontecendo...

Amálgama - Foi no dia do massacre no Carandiru?

Elio - Foi no dia do massacre no Carandiru! Eu tinha visto na televisão e eu disse: que país é esse? Em que mundo nós estamos vivendo? Eu passei a viver toda a circunstância da poesia. Aquela relação de fazer o contra-lei e você incorporava não apenas o poema como um indivíduo que a poesia te fazia aquilo.

Lisete - Tu fizestes isso em sã consciência? Não tinha tomado nada?

Elio - Não, não... Isso aí é à parte... [risos]

Lisete - É muita coragem... [risos]

Elio - Mas quando você pinta a cara, você não é mais você. Parece que baixa um fogo assim, em cima de você. Dos seus ancestrais, sabe? Quando o poeta fala, ele fala por muitas vozes, não é só por ele não. É muita gente falando através dele.

Amálgama - Mas lá na hora, como foi?

Elio - Na hora, foi o seguinte, eu disse: “que país é esse onde acontece esse tipo de coisa?” E eu comecei a declamar: “eu não sou o presidente, eu não sou o governador...” aí começaram a aparecer as imagens do Brasil, um bocado de sacanagem, de miséria, de violência...

Lisete - Mas essa alucinação era real?

Elio - Era o que eu estava falando na poesia. Era uma coisa real. E eu me perguntava: “que país é esse?” Aí desci as calças e peguei no saco e mostrei pro pessoal. “Que país escroto é esse?” Aí as meninas gritavam: “professor!!!” e botavam a mão no rosto, assim, mas ficavam vendo tudo com os olhos entre os dedos... [risos]

Lisete - Viram a coisa preta, Elio! [risos]

Elio - Mas não é que você faça a coisa pra chocar. É uma coisa que acontece... A coisa foi crescendo...

Lisete - O meu questionamento é esse.

Amálgama - O que a Lisete quer saber é se você estava drogado.

Elio - Em primeiro lugar, quando eu vou para as minhas performances, eu não bebo.

Lisete - Mas, Elio, veja bem. Era um público enorme. Qual era o público?

Elio - Tinha umas cinco mil pessoas, não tinha não? Tinha não. Era o Encontro Nacional de Letras...

Amálgama - O ENEL de 1992, em Campina Grande.

Elio - Em São Paulo, na USP, também aconteceu outro lance assim, parecido. O que agredia não era só tirar a roupa. Era também o texto. Na Paraíba, quando eu ia pra praça, o pessoal começava a gritar: “eu vou comer a tua mãe, eu vou comer o teu pai...” [cantando, trecho do poema Canibal, do livro O Contra-Lei]

Amálgama - Então a poesia embriaga?

Elio - Embriaga. A poesia te envolve. Porque a poesia do contra-lei não é só o texto poético. Há a incorporação de um personagem. Viver a poesia na dimensão em que escrevo.

Lisete - Mas lá [em Campina Grande] estava o professor Elio...

Elio [interrompendo]- Não! Professor não! Professor é na sala de aula. Eu sou o poeta!

Lisete - Mas você estava representando a universidade...

Elio [interrompendo]- Não! Eu sou o poeta. O Elio é o professor lá na sala de aula. Se eu saí de lá, eu sou mais eu, eu tô rua, eu sou outra entidade.

Lisete - Se você estivesse representando a universidade, deveria ter tido a postura de professor.

Elio - Mas eu sou é o poeta. A entidade é outra coisa. O cara é administrador de empresas, ou é empresário, mas faz uma peça de teatro. Lá no palco, ele é o ator ou é o empresário? Eu tô em casa, eu estou com minha família, eu sou um pai de família. Mas se eu tô na rua falando poesia eu sou o poeta. Eu não sou mais pai de família.

Lisete - Mas se eu for a um seminário representando a Universidade Estadual do Piauí, ali eu sou a representante da universidade, eu sou a professora Lisete.

Elio - Enquanto estiver em sala de aula!

Lisete - Não. Enquanto eu estiver ali, inclusive sendo financiada com passagem paga, com estada paga pela universidade.

Elio - Mas o dinheiro não é da universidade, o dinheiro é do povo, é do Brasil...

Lisete - Mas se eu for para um teatro...

Elio [interrompendo]- Mas o meu trabalho como professor é na sala de aula.

Lisete - Você estava nu na conferência como professor ou como escritor?

Elio - Eu estava como professor e como convidado, poeta, a falar poesia! Eu estava na pauta como poeta, pra falar poesia. Eu não tirei a roupa na sala de aula. Eu tirei num espaço propício pra fazer arte!

Amálgama - A agressividade de sua poesia nasce de uma frustração social?

Elio - O que eu falo não sou eu que falo. Talvez o que as pessoas gostariam de dizer, ou o que as pessoas dizem. Para os meus poemas, eu tiro muito o que as pessoas dizem na rua. Eu sou negro, venho de uma classe social pobre, no nordeste, no Piauí, Floriano. O que você escreve é tua vida. Machado de Assis dizia que o menino é pai do homem. Eu convivi em oficina de ferreiro. Minha família era toda Ferreira, meus tios, minha mãe era flandeira, meu pai ferreiro, e eu cresci naquele som do metal e do palavrão, que quando você tá puto com alguma coisa você xinga. Então procurei alguma coisa que dissesse da angústia e do sofrimento do povo, da realidade que eu vivia. Uma maneira mais forte de tocar as pessoas.

Amálgama - E como está sua poesia hoje?

Elio - Minha poesia hoje não está mais dentro daquele tom. É um momento que você cria uma espécie de ser que você incorpora. Você escreveu aquela fase, você esgotou aquilo ali. É uma coisa de momento.

Lisete - Eu acho que houve um amadurecimento. Acho o Elio mais maduro, mais consciente.

Elio - Eu preciso dizer de uma maneira que marque o meu tempo. Uma coisa que veja o mundo com a linguagem das pessoas da minha época. Do meio em que eu convivo. Eu vivo num momento difícil em que as pessoas estão buscando se situar no mundo, num lugar ao sol, e o mundo tem que ser pra todo mundo. Por que essa grande visão na miséria total, sem acesso a escola para uns, e outros com tanto? Então o contra-lei era isso. Porque a lei estava muito errada! [bem enfático] E ainda está muito errada. E eu vivi numa estrutura que eu conhecia muito tudo isso. Eu trabalhei em repartição pública, eu nunca fui só professor, porque não dava pra comprar meus livros. Eu fui educado numa família em que meu pai era ferreiro, mas se comprava livro e tinha biblioteca em casa. Minha mãe ensinava a ler, também era professora, por isso lá em casa era cheio de gente. O "poemartelos" fala disso, e é muito de memória, porque eu pegava também muito o mito do povo. Houve um crime muito hediondo na minha cidade. O cara matou outro e pinicou todinho. O que eu sei dessa história é que aparecia o demônio na casa dessas pessoas e o cara que fez esse crime era casado com uma tia minha, e sofreu muito por isso. No "poemartelos" eu falo dessa coisa. Muito som, muito martelo. Imitar o som do ferro. Eu criei uma poesia sonora pra ser falada imitando o som do ferro.

Lisete - Hoje você usa muito o estilo do Rap, não é?

Elio - O Rap foi um momento do Contra-lei. Quando eu escrevi "O Contra-lei", não tinha nenhum contato com o Rap. Comecei a ter no final de 94. Aí o pessoal do Rap, do Hip-Hop, viu meu livro e dizia: “Professor, vamos cantar isso aí ”.

Amálgama - Então, na verdade, a inclusão do Hip-Hop ao Contra-lei foi posterior ao livro?

Elio - Foi posterior. Depois eu publiquei a segunda edição já com esse contexto. Mas eu acho que já tinha alguma coisa de Rap no ouvido, por causa da poesia pra ser falada, porque quando você escreve, além das coisas do passado, tudo que há de presente no som você coloca no seu texto. Eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira. Era sempre assim, ouvindo vários tipos de música.

Amálgama - Mas foi o Rap que incorporou isso de maneira bem característica para sua poesia.

Elio - Exato.

Amálgama - Então como você vê a essa situação de respeitar uma MPB que torce o nariz para o Rap?

Elio - Eu não sei por quê. Pois o Hip-Hop é um ritmo, um ritmo negro, dos negros que viviam nos guetos dos Estados Unidos, na periferia, e Rap quer dizer o quê? Poema em ritmo. Poema pra ser cantado.

Lisete - Mas eu acho que há essa marginalização porque eles levam geralmente à anarquia, à droga, à...

Elio - O Rap não tem nada disso! O Rap é o contrário. O Hip-Hop...

Lisete - Mas as gangues e as confusões que tem no Rio de Janeiro...

Elio - Aquilo é o funk. É outra história.

Lisete - Mas há uma mistura, pois inclusive é muito parecido.

Elio - Junta-se o Rap ao Hip-Hop. O Hip-Hop é um movimento educativo. É a visão de educar. "Faça a Coisa Certa", lembra do [filme de] Spike Lee? Está diretamente ligado a isso, a educar. Tirar o sujeito da pior. Mas é claro que existe o Rap gangster, também. Não vou dizer que só há bons. Mas a força toda do Hip-Hop é tirar o cara da lama.

Lisete - Mas o próprio Hip-Hop tem também as gangues.

Elio - Não. Não tem não. O Hip-Hop é o seguinte: são pessoas educadas, gente da periferia, meninos que estudaram a história do negro, a condição de...

Lisete - Inclusive o Gabriel O Pensador faz isso...

Elio - Mas o Gabriel O Pensador não é do Hip-Hop. Ele faz Rap, mas não é do Hip-Hop, do movimento. Hip-Hop é um movimento que, em primeiro lugar, é música para divertir, para conscientizar, para educar, para contar a sua história, do momento, da periferia. Os Racionais mostram o cara quando entra no tráfico, mas também quando se dá mal no final. É instrutivo. É a consciência ideológica. Estudar a questão do negro, a questão social da miséria. Evitar entrar no mundo do álcool, da droga, porque aquilo vai te levar para um caminho que pode ser sem volta. Mas o Rap também pode se aproximar pra dialogar com as gangues, porque a gangue é apenas um fator social.

Amálgama - Não seria então a música que leva à criminalidade, ela só reflete...

Elio - Reflete a realidade. A condição de ser. Por que o sujeito está no crime? Porque não teve oportunidade, na periferia, para ele. É algo altamente político, algo revolucionário. É pra brincar, educar e pensar sempre. É a mesma situação o negro e o pobre. A visão é essa. Mas não se abre espaço na grande mídia para o Hip-Hop. Não se abre para Racionais, para Câmbio Negro, para Rio Radical Rap, que tem até um cara do [bairro de Teresina] Monte Castelo, que eu sempre converso com ele, o Yuri, no Rio de Janeiro. A polícia de Minas Gerais deu o maior cacete e quase mataram o cara, deixaram o cara jogado lá porque tinha um verso dele que dizia “Foda-se a polícia, foda-se a polícia”.

Amálgama - Lisete, e como anda a pesquisa folclórica?

Lisete - É um trabalho que estamos desenvolvendo desde um curso em Belo Horizonte, que foi Leitura e Produção de Texto. Naquela época eu viajava muito pelo interior, trabalhando pela UESPI.

Elio - Eu acredito que nossa base, nossa cultura está sempre no interior...

Lisete - E eu tenho difundido isso pra fora. Eu recebi agora em Lisboa um cavaquinho, que é um prêmio cultural de lá pelos trabalhos que faço. Eu confesso que além de ser uma defensora e uma pessoa que trabalha com a literatura piauiense, eu sou uma das pessoas que dá a vida e o sangue, qualquer coisa, para que a gente continue trabalhando a cultura de um modo geral. Eu não me preocupo se ela está elitizada ou não. Eu só me preocupo se ela chega ao povo. Que o povo, com isso, consiga fazer uma análise crítica. A nossa cultura é riquíssima e apaixonante. O meu trabalho me ajuda a descobrir isso cada vez mais.

Amálgama - Elio, a poesia já te ajudou a comer alguém? [risos]

Elio - Sacanagem. Minha mulher deve estar lendo isso. [risos] Mas eu só posso dizer que ela é apaixonante.





18.3.20

BAIÃO DE TODOS: poetas repensam a vida, num diálogo civilizatório, por Menezes y Morais




O poeta William Carlos William (1883-1964) assegura: “Os poetas enxergam com os olhos dos anjos”. Poeta, criador de Arte, é construtor, lapidador de civilização, nos assegura o conceito antropológico de cultura. Os 48 poetas reunidos em Baião de Todos (poesia, 2016) mostram isto em seus discursos poéticos.

A dicção poética questiona e repensa a Vida. Os poetas dialogam entre si, questionam a civilização, repensam a Poesia, a sociedade, o País, o mundo. O diálogo entre poetas, a reflexão sobre a sociedade moderna, o engajamento político, são temáticas perenes entre os Poetas dignos deste nome.

A Poesia não é feita apenas palavras – para lembrar os poetas Stefane Mallarmé e Paul Valéry, no final do século XIX e início do século XX – mas, sim, de palavras com significados e significantes – para lembrar São Tomás de Aquino, in Confissões (sua biografia, escrita por volta do ano 400 da nossa era).

TEMA TABU?

A segunda metade do século XX provou que se faz Poesia sem palavras. Neste surpreendente século XXI a Poesia parece regressar exclusivamente à carpintaria da palavra, depois que todas as vanguardas ficaram datadas, como, por exemplo, entre nós, a Poesia Concreta, Neoconcreta, Poesia Práxis.

No retorno à palavra, a Poesia também é feita de ideias (sem cair no panfletismo), de propostas lúdicas, de críticas civilizatórias, gritando alto ou sussurrando (em suas imagens e metáforas) em nome da Vida: todos os temas cabem no poema. Da dor ao prazer, da civilização à barbárie. Enfim: o Poeta fala de Poesia, da sua e da nossa humanidade.

UM POUCO DE CADA UM

Baião de Todos (2016) começa com Adriano Lobão Aragão, que remete o leitor às Sagradas Escrituras: “Estando Ruth posta em tormento em meio ao trigo alheio”, num poema de suave beleza estética. Aragão também é blogueiro.

Na sequência, Alcenor Candeira Filho, que o tempo consagrou mestre do fazer poético, em minha opinião. Sua temática vai do metapoema (Teoria do Poema), à morte, à vida, se revelando em plena maturidade estética. Depois, a jornalista Ananda Sampaio, de que nos ficou as imagens:

“Horas que acumulam dias”, “Roendo um dia/ que não quer acabar”, e “O homem clama por um sinal divino”. Ananda também nos remete à Bíblia – “aquele preso dentro da baleia”, (o profeta rebelde Jonas). A poeta fecha com Náufrago, um poema perfeito.

RUA DO POETA

Na sequência, Caio Negreiros. Ele tem, entre outros, um livro com um bom título (A Decadência das Horas). Caio também é fotógrafo. O poema dele não tem título, mas uma imagem bonita – “uma gota de sol” – e ao final acena à solidão urbana e universal, remetendo o leitor ao poeta Carlos Drummond de Andrade – “não é rima ou solução”. Da poeta Carmen Gonzáles, nos sensibilizou o poema Estrela Guia.

Carvalho Neto, outro poeta esteticamente amadurecido – também é odontólogo e letrista – salpica o tema “rua”, ofertando imagens como “amor inquilino”, “minha rua é do tamanho da saudade”, “minha rua, universo de dor contida”, para desaguar no poema Estação: “na velha estação, aguardo / o bilhete desbotado/ da viagem que não fiz”. Meu amigo Carvalho Neto é um poeta que publica com regularidade.

ALÉM-FRONTEIRA

O poeta seguinte é Chico Castro, também professor, ensaísta e historiador. Chico Castro tem dois belos poemas que se somam ao enriquecimento estético de Baião de Todos: Dallas para que te quero, e Trapo Chique. Além de Chico Castro, um nome conhecido nacionalmente, a letra C tem mais nomes da literatura piauiense que ultrapassaram as fronteiras (literárias) nordestinas. Por exemplo, Cineas Santos.

São de Cineas os poemas Desobediência Civil, Consulta, Convalescença e a obra-prima Poema Inevitável. São poemas dignos deste nome. Deixaram em mim as imagens: “Meu pai me queria lavrador / adubo na semente do seu chão (...) eu queria ser o vento/ pra bolinar o teu corpo”. “A linha principal não leva a nada/ (...) esta linha transversa me leva a você”. “Há muito não se houve meu uivo lancinante/ varando a madrugada”.

Climério Ferreira é outro nome nacional. Ele brinda o leitor com os poemas Pássaro Perdido, Eu sou meu próprio universo, e O Choro da História. Climério (Cli, assim o chamava a eterna Nara Leão) também é compositor, cantor, letrista e professor. O Brasil agradece.

SURPRESAS 

Uma surpresa para mim, entre os poetas piauienses que ainda não conheço pessoalmente, é a cantora, compositora, produtora cultural, Cláudia Simone: fala em “colchão de sonhos”, indaga “Quem foi que masturbou minha inocência?” E afirma: “A vida se encarregou de mostrar / que o amor nunca acaba onde deveria estar”.

Cyntia Osório encerra o índice da letra C. Dela, me ficaram as imagens: “Passeei pelo labirinto do tédio”, no “andar de quem tem asas”, “Existir é infinito”, imagens que marcam Penduricalho, um belo poema. Outra imagem de Cyntia Osório: “5 mg de desejos brancos para o cansaço”. A poeta também nos brinda com o belo Deslugar.

Outra surpresa é Demetrios Galvão, professor e historiador. Recanto é um poema perfeito. Em cine-mirante ficou-me a imagem “um olho filmando tudo”.

Em tempo: ganhei (como diria mestre Manuel Bandeira) o poema Cinema do Olho, musicado por Carlos Bivar Eduardo, com o qual fomos contemplados com um Prêmio SESC de Música 2007.

Demetrios Galvão nos brinda ainda com imagens como “liturgia de campo arrasado”, “exporta desertos”. O poema “a previsão do tempo é uma falácia” é um dos melhores deste Baião de Todos.

SEM GORGULHO

A letra D encerra com Diego Mendes Sousa, poeta da nova geração que usa as redes sociais para divulgar a literatura brasileira. Tinteiros de Mágoa é um poema perfeito, dividido com os títulos de tinteiros: da angústia; dos desertos, e do estranhamento. Evoé, Diego!

Ednólia Fonteles é outra poeta que se me revela em plena maturidade estética. Baião de Todos tem quatro poemas dela numerados com o título Quase Poema, um metapoema perfeito, sem gorgulho. Ednólia Fonteles deve ter um balaio de poesia inédita. Beijo, Ednólia.

Do amigo poeta Elias Paz e Silva ficaram-me a imagem “minha mão escreve / (no esgoto da cidade) / um poema tão grande / como a esperança”. E no poema Proposta, também sem gorgulho: “O dia foi duro amor / mas valia o suor da labuta / e a proposta de outro sol / como desculpa”. Lindaço, Elias.

NEGRITUDE

O também professor, o poeta e meu amigo Elio Ferreira traz o universo africano da “América Negra”. Tem o seu excelente (recitado por ele, com jogo de cintura e dicção bibopeana e onomatopaica) Abracadabra, de cujas imagens, fortíssimas, seleciono: “meu corpo apodrecendo no esgoto”, “meu corpo apodrecendo a céu aberto”, “você quer me ver no lixo”, e “teu corpo apodrecendo numa vitrine virim”.

O também juiz de direito Elmar Carvalho, meu amigo, nos oferece A Ero Moça, Noturno em Campo Maior, Perdição, e Sex-Appeal. Elmar Carvalho é fiel à proposta dos modernistas de 1922: precisamos conhecer o Brasil (no caso dele, o Piauí, Campo Maior, onde nasceu). H. Dobal, que também fixou paisagens campo-maionenses.

O meu amigo jornalista, poeta e professor Emerson Araújo é vida que segue: nos fala de “metáfora de plantão” (poema Novo Achado), faz metapoesia (Nova poética) e desagua em Junho em meu oficio, que me parece um poema sem gorgulho. Emerson tem vários livros publicados, entre os quais Címbalos, lutas e olhares (poesia, 2015).

Na nova safra de poetas está Ernâni Getirana, mistura o substantivo belicoso “guerrilha” (que seduziu muita gente boa no século XX) com o metapoema de Drummond (“lutar com palavras / é a luta mais vã...) no poema (es) talo, e nos apresenta Encontro, um poemeto perfeito.

GERALDO BORGES

O poeta Fernando Ferraz homenageia Cineas Santos in “Poesia como alimento”. Ele também nos brinda com duas pérolas poéticas: Ipês de Maria, e Teus Olhos. Depois dele, surge o também contista, cronista e historiador Geraldo Borges, outro escritor que se encontra em plena maturidade estética.

Os quatro poemas de Geraldo Borges também são termômetros da qualidade estética da coletânea: Viagem, Rio 1, 2 e 3 (sonetos). Nas quatro peças poéticas, Geraldo Borges transfigura lembranças de infância, e louva o nosso mítico, querido, maltratado (porém amado pelos poetas) rio Parnaíba.

Do também compositor (premiado) Glauco Luz nos ficou a lembrança de Carlos Drummond de Andrade in Dicotomia. Nele, o poeta Glauco oferta a imagem que se destaca – “socos do desalento”, além duma reflexão sobre a palavra (Palavra suja) e o melhor dele, em minha opinião, Poeira de Estrelas.

BISCOITO FINO

Contista e professora, Graça Vilhena nos brinda com quatro “biscoitos finos”, (diria Oswald de Andrade) da sua “oficina da palavra” (apud Cineas Santos): Poesia; Rua da Glória (ao Paulo Machado); O Garrafeiro (para Cineas Santos) e Carpete de Cordas. Graça Vilhena tematiza a Poesia e duas paisagens, geográfica e humana – no poema Garrafeiro.

Ficaram em mim as imagens: “Cerzindo os dias”, “pescar piabas no Poti”, “piabas prateadas nas garrafas”, “aquele instante que o tempo não deixa envelhecer” e “os dias são feitos de um longo esquecer”. Graça Vilhena é uma das melhores poetas brasileiras.

Admiro ainda sua parceria poética com William Melo Soares, no belo e clássico Passo a Pássaro (poesia, s. d), que tem capa de Paulo Moura, apresentação de Cineas Santos, de Rubervan Du Nascimento, e posfácio de Héctor Pellizzi.

Em tempo: aonde anda Héctor Pellizzi? Ele escreveu um miniensaio sobre o meu livro O Suicídio da Mãe Terra (contos, 1980), que eu vou publicar na segunda edição.

CAMINHO CRUZADO

Halan Silva vem na sequência, homenageia Charles Baudelaire, com a tradução do poema Remorso Póstumo. Mas, o poema sem título, em três partes, de Halan Silva, em Baião de Todos, é melhor que o traduzido do poeta francês. Que me perdoe o genial Baudelaire.

A poeta seguinte é Jasmine Malta. Arte-educadora, entre outras prendas, Jasmine faz Teresina de musa num poema, fala do calor e das “antigas lavadeiras”, que decoram a paisagem fluvial da Cidade Verde (ainda é?), que virou metrópole de concreto na passagem do século XX para o XXI.

Time is time é belo. Jasmine confessa noutro: “Eu gosto de homem que tem cheiro de homem.” / “O Homem que desconcerta os passos /quando cruza meu caminho”.

João Batista sequencia com quatro poemas: olhadela; vovó lavadeira, e enguias. O quarto, dias de brisa, tem um verso sublime: “a doçura de outros quintais”. E por falar em quintais, os quintais de Teresina do meu tempo desapareceram, as casas antigas foram demolidas e os quintais se transformaram em estacionamento. Concretados.

De João Batista sublinho ainda as imagens “o marulho dos teus olhos”, “coisa que o vento aluga e leva”, e “sem a pressa do repouso”. João Batista é um poeta atuante, produtor cultural e professor.


O alfabeto continua em movimento in Baião de Todos. Keula Araújo é a sequência. Organizou a coletânea com Cineas Santos. Keula também é professora e arquiteta. Dos seus poemas destaco o belo Do Amor, tem imagens como “sob o sol imorredouro/ da vontade”.

Para a poeta, o amor destrói os cárceres. Cantigas do Sem-Fim é um poema prenhe de ternura/ imagens – “jeito desarrumado /do jeito de respirar”, “um amor cru, mal passado/que não foi, nunca será”.

Teu Reino tem um verso para mim comovente: “Rompi com as horas / trespassadas de espera”. Keula Araújo é surpresa comovente entre os poetas piauienses que eu ainda não conheço pessoalmente.


O poeta seguinte é Kilito Trindade, vive hoje em Brasília. Ele também é produtor cultural e meu amigo. Kilito Trindade, uma doçura de ser humano.

In Baião de Todos Kilito Trindade publicou um poema sem título (ou dois?) que contextualiza “Eu bala perdida”, e o segundo “Apalavra chave desapareceu. A palavra (chave) AMOR”.

Também dele os poemas Anima, seguido doutro destitulado, que louva Guimarães Rosa: “É preciso sofrer depois de ter sofrido, / e amar, e mais amar, depois de ter amado”. Kilito é uma das realizações das promessas poéticas. Recita bem, à risca, no pulsar do planeTerra.

O poeta seguinte é Laerte Magalhães, também professor, tem quatro livros publicados. Dos seus poemas de Laerte destaco: Oração, e Das Dores, têm dicção bem humorada, de apelo ao imaginário auditivo. Os demais – Percussão, e Puta Poeta – tematizam a música, a dança. Eros é convocado.

SONETOS

Lara Matos dá continuidade, duma dicção poética de visão de mundo afiada, um olhar consciente na ponta da língua. Publicou os poemas Riscos, Mancha, e Ofélia.

Diz ela, poderosa: “Mas minha linha de vida curvada / como minhas costas / pela tenacidade dos sem-sorte/ recita uma canção há muito sabida”. E “Amo tanto que as palavras/ faltam/ Meu corpo cansado apenas / sussurra uma cantiga”... Evoé, Lara Matos.

O poeta-médico Leandro Fernandes é a sequência, com Soneto da Saudade, que se destaca entre o também soneto Chapada do Araripe, e o poema Cantiga.

BICICLETAR

Outra surpresa é Lívia Maria, 17 primaveras. Tem muito feijão-com-arroz pela frente. Entre outras observações que podem acontecer, destaco:

“Amar é ter uma bicicleta / mesmo morando no primeiro andar”, criticando “o amante visionário / embriagado pelo vinho da nudez e da loucura” Para Lívia Maria. “o poema é um vazio / no rosto indignado do poeta”. Vamos que vamos, Lívia.

Lucas Rolim é a continuidade, com os poemas o grande leão, louva-deus sobre a folha. o lobo, os caneleiros, a formiga e Terrários. Machado Júnior é o próximo, ele também é compositor, músico e publicitário. São dele os poemas Dom Quixote (para Flávio de Castro, in memoriam), Fé, Bela, e De Tudo um Tanto.

MARLEIDE LINS

Minha amiga Marleide Lins é a sequência alfabética. Também editora, vários livros publicados aqui e no exterior. Lirismo Antropofágico e Estações de Mim a meu ver sem gorgulho. Dor dos Deuses é seu terceiro trabalho nesta edição. A poeta Marleide está na 1ª edição de Baião de Todos, livro que a Avante Garde assina a programação visual.

Continuando a letra M, depois de Menezes y Morais - José Menezes de Morais - (não vou falar de mim mesmo), que publica o poema Domicilio Inviolável (pequeno elogio da rebeldia musical), entra em cena Nelson Nunes, com os poemas dignos deste nome – A miséria abunda, Na terra do sol, e Clarice. Nelson Nunes é advogado, tem vários livros de poesia publicados.

PAULOS

Quem aparece depois é o também professor, pesquisador, letrista, jornalista premiado Paulo José Cunha, meu amigo, com os poemas (dignos deste nome) Substâncias, Moto perpétuo (para Paulo Cunha, neto), Agora, e Chegue: “Apenas chegue/ e diga alguma coisa em meu ouvido/ como se nunca tivesse saído”.

Paulo Machado é o poeta seguinte: defensor público, historiador e contista. Assina in Baião de Todos os poemas Canção de Amor e Morte, O Rio (para o poeta Cineas Santos), e Cotidiano 2 (para Durvalino Filho). Nutro ternura e admiração por Paulo Machado, morei um tempo no mesmo bairro dele em Teresina, cidade que o poeta também transformou em musa, com belos poemas sobre algumas de suas.

Paulo Machado tem dois livros que considero pequenas obras-primas: Tá pronto seu Lobo, e A paz do pântano. Na sequência da letra P, o poeta meu amigo Paulo Moura, também chargista, compositor, designe gráfico, parceiro do meu compadre querido Cineas Santos no livro Aldeia Grande (1992).

Lembro-me dum bate-papo acervejado que eu e Paulo Moura travamos, numa mesa de bar em Teresina, ele criticando uma canção dos Beatles (Here comes the sun, de George Harrison), falando mal da letra – “arte pela arte” – e eu defendendo a declaração de amor à natureza: “Aqui chega o sol”.

Paulo Tabatinga encerra a letra P. É da nova geração de poetas piauienses que ainda não apertei a mão. Dia Claro, Meu poema, Província submersa e Crachá liberal são poemas poderosos. O olhar crítico do poeta sobre o cotidiano humano e geográfico também transborda ternura. Aleluia!


Rodrigo M Leite é outro nome da nova geração de poetas piauienses. Ele usa o formato fanzine e as redes sociais para divulgar Poesia. Dele e de outros poetas. Ainda não o conheço pessoalmente, só via e-mail, mas aprendi a admirá-lo, por esta e a qualidade estética do seu trabalho.

Rodrigo M Leite edita um blog, a musa esquecida, no qual resgata poemas que têm a Capital piauiense como tema. In Baião de Todos, tocou-me os poemas a casa rupestre (“a casa é centenária / mas está viva/ e / comunica perguntas / ao morador”) e café art bar, do qual cito estes versos: “da tarde que segue nervosa / homens surgem suados / carregados de preocupações / a tarde é consumida dentro de um café”).


Encerra a letra R, Rubervan Du Nascimento, poeta premiado, meu amigo, do qual também sinto saudade das nossas conversas, dos nossos agitos culturais (paralelos) com F. Eduardo Lopes, William Melo Soares, Miguel Soares (Jorbacilomar), os saudosos Josemar da Silva Neres, o poeta Zé Magão etc.

Rubervan Du Nascimento também rompeu as fronteiras nordestinas. Tem quatro livros publicados, entre os quais A Profissão dos Peixes (poesia, 1993). Ele migrou do Maranhão para Teresina, e, da musa tórrida advir (com licença de Mário Faustino) retirou para São Paulo. Rubervan nos presenteia com 4 Poemas Dispersos, dos quais me perseguem as imagens “ferida dos dias”, “na boca em êxtase”, e “da janela dos dentes”, para falar de cenas bucólicas, urbanas, briga de casais etc.


O meu amigo-irmão, compadre-poeta e letrista José Salgado Maranhão, equilibrista da vida, vem em seguida. É outro nome nacional (e de dimensão internacional) que enriquece esteticamente Baião de Dois. Nele, o poeta-protagonista com sua envolvente dicção, plena da sua peculiar atmosfera misteriosa, me perseguem imagens:

“Oráculo de atabaque e pergaminho”, “arrimo de vozes no lugar das unhas”, “feito um caju que apodrece/mas a castanha resiste’ (genial). Salgado também é coleciona prêmios literários – Jabuti, Academia Brasileira de Letras. Salve, salve poeta. Que lhe venham outras láureas.

Baião de Todos me apresentou Thiago E, também é músico e professor. Tem livro publicado e CD gravado. Dele, se cristalizaram em mim as imagens poéticas “a língua é um molusco, já não sabe se é carne ou um soluço – sem concha, se reinventa no escuro”, e “o mar sempre guarda um jardim dentro do bolso”.

PAREDES DO VERSO

Na letra V, Vagner Ribeiro nos remete a Virgílio, pela voz de Fernando Pessoa (“viver não é preciso” e também homenageia Guimarães Rosa, citando o clássico Grande Sertão: Veredas. A sequência é a artista plástica, professora, contista e poeta Vanessa Trajano. Ela surpreendeu-me com o poema Impronunciável. Perfeito, sem gorgulho.

De Vanessa Trajano também me sensibilizaram as imagens “tem horas que até o impulso é tarde”, “nas paredes do verso”, “amei cinco homens sem retorno”, “o poema permanece in vitro” e “na angústia dessa busca”.


O último autor deste Baião de Todos é o meu amigo-irmão William Melo Soares, um dos melhores poetas brasileiros da nossa geração. Wiliam nos presenteia com as pérolas pedra de fogo, Insônia, e Indomáveis. Também letrista, William tem vários livros publicados. Confessa que o seu tempo “é pedra de fogo”, que a mariposa “me dá lição de silêncio”, “no vasto campo da fala”.

Além da sua poesia em si, o flagrante delito autoral que ilumina de ternura e civilidade, William, a meu ver, é uma personificação do ser Poeta. Pela sua sabedoria quase ingênua, pela sua simplicidade, pela sua humildade, pela intuição e leveza. Explico melhor.

Cito dois exemplos históricos, envolvendo quatro poetas: para Carlos Drummond de Andrade, a materialização do poeta era Vinicius de Moraes. Para Mário Quintana, a personificação do poeta era Cecília Meireles. É claro que existem muitos poetas (de geração e geração) que se enquadram neste perfil.

William Melo Soares é um deles. Graças a Deus.

(...)



Menezes y Morais [Poeta, escritor, professor, jornalista e historiador piauiense. 12 livros publicados (mais 12 na gaveta), entre os quais o romance A Íris do Olho da Noite (Thesaurus), Por Favor, Dirija-se a Outro Guichê (teatro em um ato), na Micropiscina da Lágrima Feliz (poesia), A Luta é de Todos – História do controle dos gastos públicos no Brasil (Unacon), com Teresinha Pantoja] Via blogue do poeta Emerson Araújo



Totó Barbosa: Sítese biográfica, por Osnir Veríssimo


Totó Barbosa por Paulo Gutemberg

Antônio Barbosa de Miranda Totó nasceu no ano de 1919 na cidade de Teresina (PI), na mesma casa em que mora até hoje, filho de Raimundo Barbosa Miranda e Luíza Barbosa Miranda. Iniciou sua carreira profissional aos 16 anos. Começou como assistente no Foto Brasil e Foto Osael de onde se tornou conhecido por retratar Teresina em diversos aspectos sejam no lado social ou a evolução da cidade. Especializou-se em Fotografia de Estúdio e cobertura de Eventos Sociais da cidade. A primeira sede de seu estúdio ficava na antiga Rua da Glória e hoje, a sede própria se localiza na Rua Barroso, 165. Era uma figura muito popular em Teresina, quando músico foi violonista da rádio Difusora nos anos 50, e da rádio clube nos anos 60. Foi também representante do povo, como Vereador na Câmara Municipal, durante 14 anos, em épocas diferentes. Além da Arte fotográfica, dedicou-se à Música, tendo atuado como cantor nas Rádios: Difusora, Clube, Poti e Pioneira de Teresina. Notabilizou-se também como seresteiro em nossa capital. Constituiu família aqui, tendo se casado com Dona Raimunda Paixão Costa de Miranda, com a qual teve oito filhos (Luiza, Andréa, Anselmo, Sarita, Camila, Adelmo, Rebeca e Catarina). Em 2008, foi condecorado com o grau oficial da Ordem Estadual do Mérito Renascença, pelo governador Wellington Dias. Totó recebeu o reconhecimento de sua arte pela cidade de Teresina, através de homenagens prestadas durante o V Salão Municipal de Fotografia.

Osnir Veríssimo

15.10.18

RUBRO SOBRE O VERDE ou SANGUE ENTRE DOIS RIOS QUE SE ABRAÇAM ou CONTO EM CINCO DESATINOS E UM ESBOÇO DE EDITORIAL, um conto de Airton Sampaio


1
LUCRECIUS

Quando se despediram, há bem uma hora já havia apitado a Usina. Conversaram, na calçada do sobrado, em cadeiras de vime e espaldar, desde a boca da noite. A visita morava a poucas quadras dali, para onde se dirigiu, a passo pequeno, após efusivo abraço no amigo, sob a luz leve da lua o paletó e a gravata brancos alinhados, o chapéu de feltro também branco e importado, a bengala refinada, um mimo da neta.
Contava então Therezina, nesses idos de 1927, com não mais de 60 mil almas, e chamavam a atenção os seus quintais e o verde de seus quintais e suas igrejas imponentes, como a de São Benedito, no Alto da Jurubeba, ali ao lado do Morro da Moderação, e a do Amparo, na Praça da Bandeira, mais adiante, a oeste de quem de costas está para o norte, como sentados estavam os amigos, em agradável interlóquio.
- Sem as circunstâncias da política, a cidade teria permanecido como Vila Nova do Poti, mas, sendo decisivo o apoio do imperador para a mudança da capital de Oeiras para cá, era preciso beijar, e se beijou, a mão à imperatriz.
- Ainda bem que bonito, o diminutivo de Teresa.
- Bonito também se Therezina anagrama de Thereza Cristina for.            

Naquela noite de ausentes estrelas e pouca lua não mais se via um pé de cristão. A Usina já apitara, por assim dizer, o toque de recolher. O juiz, no andar de cima, metera-se em seu camisolão de dormir e nem ainda se deitara ouve batidas fortes, e muitas, na porta.
 
- Vai ver ele esqueceu alguma coisa.
Assim pensando, e dizendo já vai, já vai, já vai, desceu a escada, tirou a taramela de segurança da porta e eis que um homem de capote preto, aba do chapéu preto caído sobre o rosto, diz-lhe algo e desfere a primeira facada, depois a segunda, e a terceira, e outra, e mais outra, e outra. Na parede, escrito ficou, com sangue e letra trêmula, uma sílaba com duas vogais, que logo se deduziu ser parte do nome do mandante, que fizera questão de se dar a conhecer à vítima pela boca mesma do assassino ou pronunciado fora o nome para desviar a atenção do verdadeiro autor intelectual e incriminar a outrem? Teria sido a morte do juiz crime de política ou acerto de contas por decisão judicial intragada? Ou a ambição e a inveja seriam o móvel de tanto sangue no sobrado do Alto da Moderação?
Therezina especulava no Café, nos bares, nos cabarés, nas ruas, nas praças, nas casas, nas feiras, nos festejos, nas tertúlias, na imprensa, em livros... Certeza só a de que o executor, fosse quem fosse, não passava de um pé de chinelo, e o mandante, fosse quem fosse, era um potentado. Ali perto, uma igreja, erguida, no Morro da Jurubeba, pelo suor do povo miúdo, detinha toda a verdade, pois de sua torre alta, que espiava as cercanias, testemunhara tudo, porém emudeceu, embora as prisões, embora o suposto homem de capote preto tenha declarado, em depoimento, o nome de um militar. Não seria isso mais uma manobra diversionista? Ou falava mesmo a verdade o pistoleiro?

Mistérios de Therezina, que continuaram em Terezina e vigem, ainda, em Teresina. Quem, enfim, mandou matar o juiz federal? Ó anagramática cidade! Ó elites entrerrienses! Ó histórias mal contadas! Que véus são esses que estendes do Parnaíba ao Poti sobre os fatos de sangue desse lugar mesopotâmico também tido por chapada e pleno de sol, coriscos, trovões e impunidades?


2
THEATRO

Isso se perguntava o homem que acaba de entrar no condomínio onde mora e que para seu ap, no quarto andar, sobe as escadas mais apressado do que quando à rua, que mesmo com tanto assalto teimava por caminhar depois das dez da noite.
- Uma forma, essa minha, de parir ideias que me vêm, o dia todo, engravidar a mente.
- Elevador?
- Nem pensar...  

Uma vez na escrivaninha, diante de si o papel, há dias em branco. Escreveu, no alto, e sublinhou: O Carteiro e a Ditadura. Era o título! Ato contínuo, digitou: “Naquela noite therezinense, quando Elzano foi para o encontro no costumeiro bar, não atinava que se dirigia para a morte e abandonado lhe seria o corpo todo mutilado dentro de um porta-malas de um conhecido carro”. Enfim, a frase de abertura! Agora, era tecer os diálogos ocorridos dentro da madrugada rubra e o conto, pode-se bem dizer, nascia. O fecho, aliás, já o tinha escrito, ao pé da página: “De onde não havia mistério a polícia, agindo às avessas, criara um, lançando um véu sobre o que desvelado estava. Sanha, e sina, de Therezina, isso”.

- Você vai parar de dizer que matou ele.
- Como assim, senhor secretário?
- Você vai parar com essa história de que foi você quem matou.
- Mas foi.
- Se aferre nessa versão que agora lhe dou e tudo ficará como dantes no quartel de Abrantes.


3
CHUVA!

Chuva! Chuva nos Cajueiros! Esse grito medonho e o badalo dos sinos das igrejas anunciavam, na Therezina do Estado Novo, o horror: gente correndo em desatino, pessoas se consumindo em chamas para tentar salvar alguém ou alguma coisa de dentro das casas de palha, que crepitam, aos montes, às vezes cem de uma vez, geralmente ao sol do meio-dia.

- Eu não taquei fogo em nada não, seu delegado.
- Deixe de conversa mole, ora.
- Sou inocente, seu delegado.
- É? Vamos ver se é macho mesmo é lá nas Ilhotas.
- Delegado, me tire daqui, que não fiz nada não, juro por Deus.
- Diga que foram esses aqui que mandaram o senhor tocar fogo nas casas e vamos ver o que podemos fazer.
- Não fui eu, seu delegado, eu não queimei nada.
- Enquanto não confessar vai ficar assim, o corpo enterrado de pé, só a cabeça de fora, neste solzão de outubro, e sem comer nem beber.
- Não sou incendiário, delegado.
- Mas eu, seu Luiz Enfermeiro, eu sou chefe de polícia e farei com o senhor o que bem quiser, entendeu?
Coisas, esses incêndios, de quem queria baratear ainda mais os terrenos dos pobres para comprá-los por pechincha? Atos malvados da Oposição, como dizia o Governo? Atos cruéis do Governo, como dizia a Oposição? No meio do terror, o povo chamuscava, perdia tudo, desesperava. A Igreja quase nunca passava do badalar dos sinos, os jornais em geral calavam, os escritores só um, o Vítor Gonçalves Neto, escreveu Santa Luzia dos Cajueiros, novela que num porre extraviou, mas da qual veio Fogo, o conto.
“Continua indecifrado o enigma dos incêndios de casas de palha que há muitos anos flagelam a pobreza de Teresina”. Isso disse, em O Piauí, em 13 nov 1946, o udenista Eurípides de Aguiar, presidente do Estado de 1916 a 1920. O que diziam, então, os pessedistas de Leônidas Mello, interventor do Piauí de 1937 a 1945, é fácil imaginar. Ó Neros! Ó Herodes!
- Durante a semana, retire os meninos e as coisas, que vai ter chuva.
- Obrigado, meu irmão, por avisar.
- Mas saia discretamente, para não espantar os outros.
- Mas eles vão se tostar...
- Avisei você, correndo todos os riscos, porque é sangue do meu sangue. Agora, se quiser se queimar na chuva com eles, Deus seja contigo. Vai ter um temporal dos diabos aqui na Vermelha!
- Tá bem. Eu e os meninos vamos sair hoje mesmo.
- Isso. Mas sem dar na vista, entendeu? Ou eu é que me lasco todo.
“Sabe-se com certeza que Feitosa, um pobre lavrador, morreu de pancadas e diz-se que alguns outros infelizes, assassinados pelos verdugos policiais, foram sepultados às escondidos na quinta das Ilhotas e nas matas da Tabuleta. Muitas vítimas tiveram ossos quebrados, articulações luxadas ou ficaram loucas, inutilizadas para o resto da vida.”
Sim, entre 1941 e 1947 Therezina esturricava,

(Fogo na Feira de Amostra!
Chuva na Catarina!
Temporal na Tabuleta!)

sob terror, arbítrio, monstruosidades... Quem mandava queimar os casebres? Therezina especulava, à boca pequena, no Café, nos bares, nas feiras, nas igrejas, nos festejos... Ó homens, que hoje dormem! De que lhes valeu acender e lançar nas palhas pobrérrimas as baganas de Odeon?


4
À MERCÊ

deles está você, Mercês.
Eu vi ele saindo do quarto da patroa, mas ele não viu que eu vi ele.
Eles são perigosos, Mercês.
Ainda a história que ele torturou gente?
Torturou, Mercês.
Mas ele não viu que eu vi ele.
Vamos embora, Mercês.
Ô xente, homem, deixe de aperreio.

No jardim da casa faustosa era manhãzinha quando o leiteiro deu com o corpo coberto de sangue, retalhado como a um porco. As manchetes iniciais viraram títulos de página, os títulos de página se tornaram tópicos de coluna, os tópicos de coluna... Véu! Ó véu que lançam do Parnaíba ao Poti sobre ti, ó verde Mesopotâmia rubra! Ó Macondo sertaneja! À mercê desses facínoras estou, estás, estamos?


5
H. F. / D. A.

PISTOLEIROS EXECUTAM JORNALISTA EM CASA!
JORNALISTA ASSASSINADO DENTRO DE CASA!
PISTOLEIROS INVADEM CASA E MATAM JORNALISTA!

JORNALISTA ESPANCADO E FUZILADO NA MADRUGADA!
ASSASSINADO JORNALISTA PARANAENSE!
JORNALISTA MORREU E NÃO VIU TUDO!

PRESOS PELA MORTE DE JORNALISTA OBTÊM HABEAS CORPUS
SOLTO ACUSADO DE MANDANTE DO CRIME CONTRA JORNALISTA
STF ANULA PRONÚNCIA DE MANDANTE DO CRIME CONTRA JORNALISTA


EDITORIAL

Quem Manda Avermelhar o Verde?
Começamos este Editorial explicando que Teresina é Therezina e Theresina.  Há a Therezina que, desde o encontro do Poti e do Parnaíba, segue entre rios até mais ou menos a Tabuleta, depois do que emerge, ainda entre rios, Theresina. Já Teresina fica, digamos assim, a leste e sudeste, após o Poti, não mais entre rios, porém um apêndice mesopotâmico e ainda assim o lar, expandido, do Cabeça de Cuia, da Não Se Pode, de inofensivos loucos como o Jaime, o Avião, a Nicinha, o Espiga, a Porca Ruiva, e de poderosos ensandecidos que tocavam fogo nas casas dos pobres, empastelavam jornais e mandam matar, porque impunes se sabem, quem lhes incomoda ou, simplesmente,  antipatizam.
É linda e verde Teresina, mas. Não raro se tinge de rubro esse verde que se esvai porque era ele, disse-o bem o Poeta, era ele um verde de quintais, que desaparece(m) sob prédios que arranham o céu. Menos o vermelho sobre o verde que resta. Quem, afinal, manda tingir de rubro o verde que queremos verde? A resposta todos sabem, menos, é claro, a Polícia e a Justiça...


Airton Sampaio
via blogue do autor