"Paulo Machado: o poeta, visceral, de Teresina", por Airton Sampaio
Quem conhece um tanto a Literatura Brasileira de Expressão Piauiense, em especial a produzida no último quartel do século 20, dificilmente porá em dúvida a afirmação contida no título desta apresentação de Tá pronto, seu lobo?, o melhor livro de poemas da Geração 70 e um dos mais representativos momentos da arte literária feita por essas paragens belas, mas, infelizmente, ainda marcadas, a ferro e fogo, por latifúndios e misérias decorrentes, sem falar que
não há bar carnaúba mas os homens de casimira cinza
continuam arquitetando planos
cogitando não aceitando irreverências.
Na verdade, foi necessário que a cidade fizesse 150 anos, neste 2002 que, por entre dedos, escorre, para que Tá pronto, seu lobo?, publicado pela primeira vez em 1978 (no auge, mesmo, das underground actions, tão características da rodada inicial da nossa, e já referida, Geração) recebesse esta edição segunda, atrasada, não, porém, tardia, que biscoitos finos, como esses jamais tardam. Apesar de tudo, Tá pronto, seu lobo? está de novo à mão dos apreciadores da Poesia, que é o que vige nesta obra-marco, cujos poemas são contundentes, mas ternos (vide, por exemplo, "o poeta"); incisivos, mas leves ("réquiem"); impiedosos, mas utópicos ("esboço"). E profundos. Aliás, profundíssimos. É que vertical é a poesia de Paulo Machado, pois que substancial é o Poeta, avesso a exaltações estéreis, ufanismos subalternos e obas-obas passageiros. Por isso, Paulo ama Teresina, mas de verdade, "de com força", e, por amá-la assim, segue o sábio conselho de Drummond, e nunca a canta, nem a eleva, menos ainda a vangloria além de sua história mesma, de opressões inomináveis feita e que, estas sim, estetiza e denuncia, com a paixão dos autênticos amantes e o compromisso, radical, dos grandes artistas. Ninguém, então, o verá chamá-la, pauperrimamente, de "cidade menina", "cidade verde", "hospitaleira cidade", nem surpreenderá, em verso algum, o "seu todo de mulher" ou outros clichês e lugares-comuns deploráveis, próprios dos discursos pouco elaborados, geralmente oficiais ou oficialescos. Ao contrário, para o Poeta, Teresina é "loba no cio", é "ancoradouro de fúrias invisíveis", e diferente não podia ser, pois Paulo Machado sabe, como nenhum alguém mais, da horrenda história da cidade. É que ela, a
aldeia, esta (sem mais índios, que exterminados foram todos, e nós, seus descendentes, via de regra, vergonha temos da nativa ancestralidade, lusos que, achamos, somos), é seu lugar, prenhe de violência, e riscos, e segredos, por onde, diz ele, caminho solitariamente pelas ruas de minha cidade e guardo-me para desvendar seus enigmas inúmeros, que são os mistérios, mutretas e marmotas nesta
cidadezinha situada na zona tórrida,
no nordeste do brasil.
Entretanto, tudo isto seria inútil (a poesia, diga-se, é sempre útil, embora nunca utilitária) se o Poeta não soubesse, mas como sabe!, que
fazer poemas é fácil
como amordaçar um lobo
fazer poemas é fácil
como amordaçar um lobo
podendo, então, consciente disso, sem nesga de panfletaria, que
ou que
há um poema que rói o tédio,
na senador pacheco, 1193
trecho do belíssimo "herança", poema delicado, de teor autobiográfico, que nem
uma rua torta que se prolonga
à névoa da infância perdida
paisagem, esta, presente num trecho de "fragmento", em que
Ora, quem pensa, sente e faz poesia assim, mais transpiração que inspiração, mais eLABORação que emoção, inscreve-se na modernidade literária, na qual o eu do poema pouco, ou nada, coincide com o eu do poeta. Nesse sentido, Paulo Machado, mesmo nos momentos mais intimistas ("fragmento", "herança", "perspectiva", "relatório", "réquiem", "revisão"), esquiva-se do confessional, indivíduo que só se percebe, Poeta, em relação com o social e a história, ou seja, com seu espaço (a América Latina) e o seu tempo (o hoje, caótico, tecido por ontens-paz, ontens-espanto, ontens-violência). Razão disso, quem sabe, a perspectiva de ser
impossível esquecer
a fúria dos táxis, imponentes
rabos-de-peixe, comendo neblina,
às cinco da manhã, na caça
aos pombos, varando a ruela torta
que dividia a praça pedro II
em duas paisagens desiguais
e de, também, reconhecer que
meu avô não gozou das honras e direitos
inerentes ao posto, apesar de ter prestado
a solene promessa
de bem servir à pátria
Quanta ironia! E que Poeta não é irônico? E que Poeta se omite em face das agruras de sua gente e de seu tempo? Muitos, decerto, mas Paulo Machado não. Daí "libertinagem", magnífico poema lirisépico, em dois movimentos, no qual somos esteticamente provocados à consciência, dolorosa, de que
os estilhaços de sonhos de meu povo
estão cravados nas entranhas da província.
os estilhaços de sonhos de meu povo
estão além das sombras do particfpio passado
e, impelidos, vamos à lembrança, nada alvissareira de que
no princípio, a bandeira lusa.
no princípio, a bandeira lusa.
depois, quatro batismos,
dosados de ilogismo
cuja
flor do lácio, séculos de decadência,
flor do lácio, séculos de decadência,
floriu sob o sol tropical.
com ela os seus cultores,
um novo sangue, muita sífilis
Ora, quão perigoso, mesmo, o Poeta! E quão candidato, ele, ao banimento da República, a não ser que se escusasse de fazer versos assim, que dizem, retorcendo, verdades convenientemente caladas, como
adão andou nas mãos dos paisanos
adão andou nas mãos dos paisanos
e foi encontrado na praça da liberdade
como um mamulengo esquecido detrás do palco:
olhos abertos, boca cerrada, músculos petrificados,
sangue coagulado nas narinas
Eis, pois, leitoramigo, uma chave, aurífera, de leitura de Paulo Machado: seus poemas advêm sim de seu talento enorme, todavia, o Poeta os reescreve, à exaustão, limando-os, lapidando-os, depurando-os até à essência da expressão, até chegar ao caroço, mesmo, da fruta
bárbara
bárbara
porto seguro onde os homens frequentam
assiduamente como o mar famintos
bárbara
casto silêncio velando
os olhos insones dos desvalidos
bárbara
bárbara
ruela torta onde os bêbados líricos
apregoam insubmissão
Contido é, assim, o estilo do Poeta, que não admite qualquer verborragia, seja para os lados, seja para lugar algum. Decorrência disso, a palavra excessiva, num poema de Paulo Machado, será, inevitavelmente, cortada. Não está ela exata, precisa, milimétrica? Suprimida então será, ou substituída por outra, de melhor dizer. Por isso que o Tá pronto, seu lobo?, agora apresentado, difere um tanto do de 1978, não em substância, que permanece a mesma, mas em limagens, depuramentos, melhoras - e mais belo está do que, então, já em verdade era, é, será.
É simples, pois, leitoramigo, sentir a alta qualidade da poética de Tá pronto, seu lobo?. Basta abrir o pequeno grande livro ao léu, e um poema tomará de assalto o espírito, e dará a saboreio a melhor poesia. Advertência, porém, necessária: caia não em tentação de achar poesia machadina simples, no sentido de superficial. O Poeta é profundo, já disse, e flagrado será jamais em qualquer retoricismo, numa única sequer pieguice, ou mínima alienação. Afinal, Antenas da Raça,como os definia Pound, aos poeta cabe, segundo Drummond, o penetrar "surdamente no reino das palavras", em que estas, em "estado de dicionário", requerem convivência e intimidade para virar poemas. Tome-se, por exemplo, o "post card 57/77", o mais famoso poema de Tá pronto, seu lobo?, e os seus dez pares de tercetos, em paralelismos contrastantes, que marcam tempos que distam 20 anos um do outro e, em contraponto, revelam, especularmente, uma cidade em mudança. Para pior, infelizmente.
na praça marechal deodoro
na praça marechal deodoro
às nove horas falavam
da udn e do american-can
na praça marechal deodoro
na praça marechal deodoro
às nove horas há velhos com suas memórias
recompondo o tempo
[...]
no cais do parnaíba piabas prata
saltavam das águas barrentas
como no sonho dos meninos
o parnaíba continua lavando as almas pagäs
dos meninos fujões
roendo as pedras do cais com a mesma fúria
Em síntese, a poética machadina, notadamente a de Tá pronto, seu lobo?, parece apresentar, no geral, as seguintes características:
i. estética ou estilística:
• linguagem enxuta, depurada, substantiva;
• linguagem enxuta, depurada, substantiva;
• metáforas incomuns ("encarapitado no dorso de um potro negro/partiu, para recuperar o tempo esquecido");
• metonímias inusitadas ("bárbara/ porto seguro onde os homens frequentam assiduamente como o mar famintos"), levando-se em conta a possibilidade de "bárbara" também ser "bares" (isto é, bar, bar), continente espacial de fregueses, o conteúdo;
• versos livres (sem metrificação) e brancos (sem rimas);
• modo de dizer preponderantemente narrativo-descritivo, com a predominância de prosoemas, ou seja, poemas em prosa ("arquivo", "relatório" proposta");
ii. temática ou conteúdo
• tem como eixo central a questão da opressão/liberdade;
ii. temática ou conteúdo
• tem como eixo central a questão da opressão/liberdade;
• como temas decorrentes, traz Teresina, violência (urbana, rural, política), migração, história, fomne, miséria etc.
iii. visão de mundo ou cosmovisão:
• hiper-realismo (realidade expressa com contundência, sem ornamentos);
iii. visão de mundo ou cosmovisão:
• hiper-realismo (realidade expressa com contundência, sem ornamentos);
• utopia contida (sem arrufos, ufanismos ou ingenuidades tais);
• senso de coletivismo (convicção de que o indivíduo importa muito, mas o povo é que é mesmo o trans-forma-dor).
Por fim, digo que vejo a poesia, no âmbito da Literatura Brasileira de Expressão Piauiense, no século 20, dividida em três grandes lapsos temporais, que vão de, aproximadamente: 1901 a 1945, 1945 a 1970 e 1970 até hoje. No primeiro, a nossa trindade poética é Da Costa e Silva (Verônica, 1927, a obra-prima), Jonas da Silva (brilhante simbolista de Ulhanos, 1902) e João Cabral (criador do insólito e injustamente olvidado Palimpsesto, 1935). No segundo, ilumina-nos a tríade Mário Faustino (que clássico estupendo O homem e sua hora, 1955!), H. Dobal (O tempo consequente, 1966, é belo, belo, belo!) e Torquato Neto (autor de vasta, esparsa e diversificada obra, postumamente reunida parte significativa dela em Os últimos dias de Paupéria, 1973; é o único "avant garde", em toda história de literatura nossa, o poeta). No terceiro tempo (de 1970 para cá, na verdade, o período estético pós-moderno em pleno vigor), avulta a trinca poética atual, contemporânea, hodierna, formada por Paulo Machado e mais dois outros, selecionáveis entre Carmen Gonzalez, Chico Castro, Durvalino Filho, Elias Paz, Emerson Araújo, Francisco Sales, Graça Vilhena, Rubervan du Nascimento, Salgado Maranhão, William Melo Soares e Wilton Santos. Um timaço de Poetas, esses, integrantes da mais ousada e talentosa geração artística já surgida no Piauí, a Geração 70, depois, é claro, da geração do jovem e irrequieto Lucídio Freitas, que pontificou no primeiro quartel do século 20 e ainda agora remanesce, ou cintila, ou reverbera sobre nós, que nem uma estrela que se foi, mas deixou, espalhado pelo Cosmos, seu incandescente e imorredouro brilho.
Airton Sampaio, na apresentação de
POESIA REUNIDA, de
FUNDAPI, Teresina: 2021
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