"No coração desta cidade nua", por José Pereira Bezerra
Fazia alguns minutos que estava nesse local, roendo ideias que empolavam minha memória. A Pedro II, quase vazia, denunciava-me como um gato pingado, peso inerte. Na outra extremidade, beirando ao teatro, cidadãos respeitáveis batiam com a língua. Desinteressado, passei a curiar, na banca do Joel, jornais expostos e amarelados pelo sol. Palavras garrafais e fotografias afloravam em mim um sentimento de inutilidade angustiante. Segunda-feira intragável. Parecia flutuar num mundo estranho, vazio, nada fortalecia minha identidade com o coração da cidade. Incrível. Volvi-me, saltei a vista e, num lance rápido, dei-me grudado no cartaz do Rex: sanguinolenta pornochanchada nacional, conspirei comigo. Tudo bem. Melhor que um kung fu medíocre com avalanche de mentiras frescas. Preocupações, volta e meia, martelavam, num repinique chato, mexendo os trapos de minha memória cansada.
- Estou com a vista curta de grudar em livro.
- Meu filho, é sempre bom fazer um esforço.
- O futuro não promete.
- Não se preocupe, um dia tudo dará certo.
- Deus queira. Esse fio de esperança me empurra, capiongo.
- Não se deixe amolecer.
- E preciso ter muito saco… Boto muita fé em você.
- Ainda não desisti.
- ...
- A senhora é uma graça...
Ainda de pé, minhas pernas formigavam, denunciando o cansaço e o peso do corpo. Coisinha chata. Nesse instante, tinha de fazer alguma coisa pra vencer o amolecimento que ameaçava se enroscar em mim. Talvez, melhor fosse me socar no Rex, deixar o tempo correr a todo pano. E se o filme fosse ruim demais? Na dúvida, melhor não arriscar, cutucou-me o bom-senso. As ideias continuavam embrulhadas e, quando em quando, um asco inútil se apoderava de mim. Essa gente não entende nada, bando de ordinários, vive nadando em tanque vazio e anda de cara pra cima, aluada. Bestas. Mas por que diabo estou pensando nisso? Ora, ora. Dei um salto até o banco - ninguém por perto, ótimo - e sentei. A quentura do cimento me açoitava, não liguei, preferi aceitar a tortura. Não via outro lugar mais cômodo. A poucos passos de mim, escorados em suas cadeiras, engraxates ainda esperançavam cavar alguns trocados. No rádio da banca em frente, um locutor anunciou as horas: dezenove e trinta. Já era tempo de ir acostumando que tinha de dar um pulo em casa.
- Só nessa semana saquearam três cidades.
- É a fome.
- Ouvi que é coisa de agitadores…
- Apenas uma versão.
- A seca seca a terra e o homem.
- O homem pacato vira fera.
- Na televisão o homem disse que o caburé cantou.
- Sinal de chuva.
- A praça tá vazia.
- Dez e meia.
- Tem jogo domingo na televisão.
- Estou pra pegar no sono .
- Vamos. A conversa faz a vida saltar pela língua afora.
Sim, realmente me achava agastado. Não queria esbarrar com nenhum conhecido. Um esmorecimento se disseminava em meu corpo inteiro. Não gostava de ficar grilado, mas o fato era que tudo conspirava contra mim, inclusive meu próprio corpo. Ansiedade, respiração cansada, formigamento na cara. Fazia força pra descontrair-me, não via como, uma angústia incisiva triturava a paciência que ainda me pertencia. Uma música de Chico Buarque cortou o ar, falando em coisas bonitas, distantes. Agora já não conseguia nem apurar a memória direito, tudo parecia escapar ao controle dos sentidos e uma confusão alimentava o mal-estar. Sei lá, mas nessa altura tudo parecia irremediavelmente perdido. Dizem que esse estado é psicológico e, pensando nisso, fazia tudo para reagir. Pensamento positivo, homem, você goza de boa saúde. Onde já se viu um homem tão forte se deixar baquear por simples distonia? O médico injetava-me otimismo, mas eu não conseguia sentir melhora.
Me conformava, desanimado. Não era a primeira vez que me achava deprimido, todavia essa situação criava irritações fáceis, pavio curto. Coisas chatas. A menor insinuação soava em mim como agressão velada, consumada, e uma resposta dura ou um mutismo providencial eram reações esperadas. A mulher sabia o quanto era difícil labutar comigo desse jeito, embora, às vezes, com um esforço enorme, eu me reprimisse. Todavia me sentia artificial agindo assim. Olhava pra minha filha sem ânimo de ensaiar sequer uma brincadeira mas, a um sorriso seu, abria-me numa ternura contida. Sentia-me feliz. Ao primeiro mal-estar, o médico: crise nervosa, início de estafa, excesso de trabalho, preocupações. Deixe de ler trabalhe menos, homem, se divirta. Você está se esquecendo do outro pedaço da vida. O papo terminou com ele me receitando antidistônicos, complexo B e um período de repouso. Tudo bem. Segui o que recomendara, contudo nunca voltei a ser o mesmo. E, cá comigo, subnutridos desde infância não podem se exceder não, têm de conhecer as limitações, caso contrário a vaca vai pro brejo. "Credo em cruz!" "É assim mesmo, mãe". O tempo passava, eu reagia, mas o calor do cimento ainda incomodava.
- Nem conto a tragédia…
- Estou aqui pra isso.
- Cheguei do banco beirando ao meio-dia, estiquei a rede e puxei um sono até mais tarde.
- E daí?
- Não é que quando despertei dei com a porta escancarada? Moro sozinho, pensei logo no pior.
- …
- Aí meu instinto foi correr até a mala, confirmei a desgraça: o filho do diabo tinha arrebentado a tranca e surrupiado o meu vencimento.
- Suspeita de alguém?
- Não, não senhor.
- Sem pista é difícil dar com o gatuno.
- Como vou passar o mês?
- Tem algum parente que mora próximo?
- Minha ramagem é de Cocal.
- Ah…
Enquanto não me decidia se saia ou não, ruminava pensamentos aparentemente desconexos, porém formando uma teia de aranha dos diabos. Ideias estranhas mexiam com a paciência já tão curta, que me deixava escapar um porra espremido e sussurrado. Vez em quando sentia uma baita vontade de pisar rumo de casa, jantar alguma coisa, dar um pulo até a praça e matar o tempo. Mas a ideia morria na vontade: voltava à estaca zero. A mulher naturalmente viria com a cara amarrada, ensaiaria um interrogatório. Frases curtas, mastigando resmungos. Reagia duro, ou calado, como de costume. Onde já se viu mulher me montar cavalo de pau? Um sentimento de fraqueza voltava a me atuzigar e mexer com a ponta de certeza que ainda trazia nas paredes da memória. A vida me alertava, resistindo, porém a realidade gritava em mim como um arauto, com afirmações óbvias. Volta e meia, indiferente, encarava populares com gestos evasivos.
- Ele saiu de casa sem mais nem menos?
- Não foi bem assim…
- Vocês brigavam?
- Às vezes, por besteira.
- Deixou quantos filhos?
- Cinco, o mais novo com três meses.
- Qual a profissão dele?
- Funcionário público.
- Tem outra mulher?
- Tenho quase certeza.
- Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
- Tão jovem. Que pretende fazer?
- Dar de comer a meus filhos e pagar a casa.
- Quanto tempo moravam no Conjunto?
- Desde a liberação das casas.
- Tire um atestado de pobreza e dê entrada na pensão alimentícia.
Quando me decidi sair da praça e tencionava tomar o ônibus, esbarrei com um colega que há muito não via. Não topava muito com o sujeito, porém depois de trocarmos amabilidades e, ignorando minha indisposição, convidou-me pra umas doses no bar ao lado do teatro. Estava tão desarmado que nem finquei o pé ou despistei do convite. A distonia tinha dado uma trégua, mas ainda me sentia esmorecido. Momentos após, surpreendi-me à mesa com o cara, feito uma grande figura, tomando uísque com soda e gelo. Quando em quando era impulsionado pelo rompante de pedir desculpas ao sujeito e sumir dali, mas algo me oprimia. Não conseguia realizar a vontade que me açoitava a paciência, já tocada pelo álcool. Cá comigo, me sentia um trapo. Ele puxava conversa, respondia-lhe ou afirmava sem nenhum interesse, feito um boneco mecânico. Isso era lá papel de gente? Agora que aguentasse a maçada pra deixar de ser besta. Olhares davam em mim de vista metida no copo, parecendo bem puxado pela bebida. Nem tanto. Encabulado, não gostava de encarar ninguém.
- Viu o homem caído?
- Não, apenas uma poça de sangue escorrida no esgoto.
- Jovem, na casa dos vinte, trabalhador braçal, morava na Piçarreira.
- Casado?
- Com quatro filhos e um na barriga.
- Imprudência?
- Do motorista.
- Como foi?
- Foi atropelado por médico embriagado que, espichado em seu carrão, brincava de corrida em plena Frei Serafim.
- Foi preso?
- Que nada, evadiu-se, mas antes voltou, ameaçando populares com uma Taurus 38 em punho.
- E a bicicleta?
- Ficou retorcida. Intacto apenas - estranhamente - um pequeno saco plástico na garupa. Cheio de mantimentos.
- De fato, era sábado...
Conversa ia, conversa vinha e a bebida curtia meus bofes vazios. O papo continuava fraco, com a agravante de ser em voz alta. O colega não se mancava e teimava em contar aventuras nem um pouco recomendáveis, sem um pingo de constrangimento. Receava algum atrito do tipo (não gostava de engolir desaforo calado) com o sujeito da mesa vizinha. Agora discutiam futebol. Uma música melosa e lenta corria os ouvidos num lamento vagamente lírico. Socados num canto, sob minha vista curiosa, um carinha, atracado com uma mocinha, teimava em bolinar-lhe o corpo branco. A garota, entretida, nem se tocava com os olhares devoradores.
- Vamos, não posso demorar.
- Careço, gosto de você, fique.
- Tira a mão da minha blusa, saliente!
- Calma. Que você pensa que sou?
- Sei lá...
- Gosto de ficar assim com você.
- Você não regula...
- Seu corpo é um pedaço de mim.
- Olha, não sei por que gosto de você. Ai...
- Deixa minhas mãos correrem na bundinha, sim?
- Você não se corrige...
- Que coisa... que coisinha...
- Oh, não!
- Eu te amo.
- Queria você somente meu.
...
- Me morda, me beija..
- Passa o lenço, está com a cara manchada.
- Cadê minha calcinha?
- Seu vestido está sujo.
- E agora?
- Vamos..
O tempo corria. Sentia urgente necessidade de me safar do tipo ordinário. Em minha lucidez eufórica, buscava ânimo para esfriar as emoções. Mas, por baixo do álcool, uma angústia sutil varava a consciência, ferida pelo desgosto contido. Num impulso raro e sem muita conversa ergui-me, resoluto. Ele ponderou que não carecia pressa, que ia me deixar em casa. Eu, hem, conspirei comigo. Desconversei. Não dei ouvidos e me joguei pra casa. Já chegando, sentia-me um pássaro livre pra poder mastigar minhas preocupações, embora um sentimento de culpa me roesse. Beirava a meia-noite, a rua estava deserta. Entrei. Ela, capionga, embalava a criança, amuada. Nada falei. Porém um soluço resignado cortou o peito da criatura como uma chicotada nos lombos. Calado, dei um beijo na filha acovardado e, sem enfrentar o olhar da mulher, tombei na cama feito pedra.
A noite tinha que passar, a vida tinha de correr, apesar de tudo.
in "Geração de 1970 no Piauí: contos antológicos"
Teresina: Zodíaco, 2007
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