CLUBE DOS DIÁRIOS, por José Ribamar Garcia



Arquivo Coordenação de Patrimônio Cultural e Natural do Piauí


Às quartas, à noite, a sessão de cinema para os sócios. Melhor dizendo, para os filhos destes. O porteiro, seu Marcelino, morador lá da rua, antiga Baixa da Égua, atual Benjamin Constant, num gesto mais de bondade do que de solidariedade, franqueava a entrada aos colegas de seus filhos. E, só assim, alguns companheiros da Quinta Velha tiveram a felicidade de pôr os pés naquele recinto. Os filmes não eram lá essas coisas. Muito ordinários, repetidos, cansativos. Ao "Conde de Monte Cristo" assisti duas vezes; mais não porque me saturei. Houve um, com Gilbert Roland, que me ficou. Nem sei se pela história ou pela música: "Cerezo Rosa", ou " Cerejeira não é rosa mais". O tema se desenvolvia sobre a exploração de esponjas no fundo do mar. O mocinho, interpretado por esse ator mexicano, morria quase no final da história, deixando o filho que enfrentava sozinho os bandidos, já que os amigos do pai o abandonaram. Melodrama tolo, mas me fixou. 

O assoalho liso, escorregadio, lustrado com parafina, me impressionava. Bom para se brincar de deslizar, o que se fazia depois da sessão. Havia uma turminha de frequentadores assíduos, que gostava de provocar brigas. Alguns filhinhos de papai, familiarizados com o clube, que se sentiam mais à vontade e até donos do mesmo. Um deles passou a rasteira no filho do seu Patu que, apesar do tamanho, coitado, era medroso e não sabia defender-se. Nunca tive vocação para herói, mas também nunca gostei de ver alguém apanhando covardemente. Fui ao seu socorro e derrubei o agressor com um murro. Isso quase me valeu um linchamento. Ainda me cercaram e não apanhei, graças à intervenção providencial do seu Marcelino. O garoto sangrou nariz. E acabei marcado por eles.

Fora fundado no início da década de 1920 por uma elite. Local de reunião da grã-finagem. E, aburguesado, permaneceu ate os seus últimos dias, quando se popularizou um pouco, em decorrência da criação de novos clubes, instalados nos arredores da cidade. Para se ingressar no seu quadro social, o pretendente tinha a vida vasculhada, esmiuçada, dependia muito de sua condição socioeconômica. Se fosse negro, não entrava, a não ser que tivesse dinheiro ou fosse doutor, coisa raríssima na época. 

O carnaval da cidade se concentrava nos Diários, porque o de rua era na base do corso. Com meses de antecedência, a ornamentação ficava pronta. E os assaltos carnavalescos se tornavam animados com a chegada da moçada que estudava fora. Durante os dias carnavalescos, a coisa endoidava, ele superlotava. Tocavam-se mais marchas e frevos. Pouco samba. Samba-enredo nem se ouvia. Inexistia desfile de fantasia. O lança-perfume corria frouxo. E o aroma resplandecia no ar quente, poeirento. Um colega de ginásio aspirou excessivamente e caiu durinho no salão. Morto. A partir daí tentou-se proibir seu uso aos menores, porém em vão. A meninada ia aspirar no porão e vinha endiabrada. O mulherio gritava ẹ se agachava sob as mesas ou se refugiava nos banheiros. As brigas eram constantes, com cadeiras e garrafas voando pelo salão. A diretoria prometia severas punições para quem brigasse, mas nada acontecia. O apadrinhamento garantia impunidade. Tirantes as cenas de pugilato, havia um comportamento comedido com relação ao pudor. Nada de trajes sumários, nem de agarramentos. Fantasias simples, comuns: tirolesas, baianas, índias, blusas e shorts.  O então prefeito, Petrônio Portela, não faltava a uma noite de carnaval, o que continuou fazendo como governador. Ficava o tempo todo na sua mesa, cercado de assessores, inflado, observando o movimento. Se gostava ou não de carnaval, não se sabia, já que nunca fora visto no salão dançando, mas como bom político profissional que era, não faltava a uma festa popular. E se deixava ser visto pela plebe que se postava fora do clube, contentando-se com o som das músicas. 

Já as tertúlias domingueiras transcorriam em clima de paz. Casais dançavam e namoravam na penumbra, quando muito de rostos colados. O garçons não gostavam porque vendiam pouco. Só namoradinhos consumindo Guaraná Tufy. Muitos romances iniciados ali acabaram em casamento.

O formalismo dos bailes de formaturas, debutantes, réveillon. Conjuntos musicais trazidos de fora, especialmente, para esse fim. Os trajes a rigor. E o pessoal todo empacotado sob um calor de 40 graus. As mocinhas debutando. Os pais envaidecidos, mostrando à sociedade suas novilhas a ser preparadas para a vida. Cantores do Rio. Os convites e mesas à venda com bastante antecedência, além da volumosa divulgação pela Rádio Difusora. Depois, entraria a Pioneira, disputando audiência. 

Conferências também foram realizadas no seu amplo salão. Houve uma sobre parapsicologia, com demonstrações práticas, apresentada por um padre paulista, que deu o que falar por muito tempo.

Os concursos de misses agitavam a sociedade. Candidatas de várias cidades do Estado. As preferências, prejulgamentos, palpites, mas, na hora da escolha, as decepções. A de Parnaíba sempre rivalizava com a de Teresina. Aliás, as duas cidades nunca se amaram. E as misses faziam questão de encarnar essa animosidade. Havia até torcida organizada. 

No subsolo, à noite, o jogo de cartas entre alguns influentes do local. Com efeito, o Clube dos Diários marcou época.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008


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