10.4.21

Sou um d’os que vagueiam no mundo, por Francisco Gomes



Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: observo a opaca estrela

entristecida nos olhos da noite…

Observo a lânguida lua dolorida

nas nuas costelas das nuvens…


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…


As últimas pegadas

apagaram-se sob a matilha

de querubins endiabrados.


As últimas pegadas

apagaram-se sob os pés

de virgens enlouquecidomadas.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: madrugada cúbica

in lieblicher bläue…


O mundo vermelho cultivado no espelho

guarda sóis indecisos

&

sexos de granito

(esse é um dos mundos que vagueio).


Sobre rosas amarelas

, nojos descabidos

, espumas de súplicas

caminho

               , todo cinza

               , solstício

               , solidão.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…


Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: estátua de tédio

, mistério-ultra em frutas frias

, natureza-morta no banquete dos deuses.


Observo a calcinação da noite

: astros-epitalâmios

; harpias depilando as partes íntimas

; bêbados apregoando cismas

; travestis com seus cus a granel…


Vagando

, a volúvel infância capricorniana

invade os sonhos da insônia

(a noite é um banheiro público).


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…


As portas fechadas

ladram para os noctívagos.


O beijo em chamas

serpenteia o mamilo.


Os postes estéreis

abrigam urina.


As ruas vazias

absurdam existências.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: uma navalha latina degolando semideuses

ou

hipermetropiados suicidas

no carcomido jardim das aflições

atirando-se em roseiras-kamikazes.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…


Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: gato amarelo atento ao dia

(clara noite em descoberta)

; vento quente solfejando Serge Gainsbourg.


As pernas trêmulas tensas…

Tarântulas

, túmulos

, turbilhões de signos

são produzidos pelo parfum de la nuit

(noitescarlate cingida de adagas).


Fugir?!

Tendes-me aqui.


Um urro a fórceps

rasgáspero o imprevisível da lágrima.


Desesperado

, intranquilo

, acordo aos risos

: a brutalidade ocre

agridoce no peito desperto

: mais um sonho inútil

: albinas virgens de prata em estado de musgo

apertando meus colhões improdutivos.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…


Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: de mãos dadas com Gide

atravessamos a avenida dos sonhos

rumo ao Sun City Hotel

: Rimbaud nos aguarda

com doses de ópio efervescente

“os manterei alucinadamente ligados”.

A sonolência persiste

; o cansaço é isca (fácil?).


Para os que acreditam

que a noite é causadora de lesões

, digo

: a noite é um cavalo indomável

, exige ser montado.


Para os que acreditam

que a noite é causadora de lesões

, digo

: cada esquina é um atalho.


Para os que acreditam

que a noite é causadora de lesões

, é porque nunca olharam

bem no fundo

do olho de um cavalo.


A noite

, somente a noite (…)

é para quem

se desliga do conforto.


A noite

, somente a noite (…)

é para

Os que vagueiam no mundo.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…


Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: mariposa hibernando

na parede descascada da sala

; saliva reimosa convertida em ELÉTRONS

; teimosa acidez altiva na uretra.


O corpo cheio de gavetas

(a face lisa sem semblante)

— minifúndio sitiado

, na indecisão a vagar

, rompe cicatrizes cristalizadas

convertidas em inúteis sons.

Sons de luz

: extravio de si

na rua obscena dos desavisados.


Tenho vulcões nos poros

&

abalos sísmicos nas veias

: sentinelas antissono.


Nas andanças oníricas

corro o risco do esquecimento.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…


A identidade se perde

num mergulho esparso

no espaço inóspito do orgulho.

Pouco importa.

O tempo é breve.

O tempo é movediço.

Apenas sigo.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo

como em Shelley

: certezas provisórias

são reentrâncias dos dias…


(colidir sempre com a esperança

: a calmaria traz desassossego).


A vida-estratagema

— extensão do finito pantempo

impõe aos cegos

códigos distorcidos.

Pré-firo (abrir) os olhos

na excêntrica claridade

&

fitar a enferrujada velhice

de tantos séculos

que nos arrasa.


Sou um

d’os que vagueiam no mundo…



Francisco Gomes, 

Em O Despertar Selvagem do Azul Cavalo Domesticado 

Rio de Janeiro: Multifoco, 2018




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por comentar!