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27.1.16

ZEZÉ LEÃO, VALENTE E TEMIDO, Arimatéa Carvalho




José Leão (Zezé Leão): Se Pernambuco teve Lampião, no Piauí reinou Zezé Leão. A frase rimada serve para ilustrar a fama dessa figura histórica, polêmica e discutida. Filho de uma das mais importantes famílias piauienses, a Arêa Leão, José nasceu em 1901 e morreu em 1956, num episódio cruel e que dá bem a dimensão do tipo de realidade que cercou seus 55 anos de vida.

Zezé Leão foi morto pela polícia no município de Água Branca e teve o seu corpo dilacerado. No Cemitério São José, onde foi enterrado, os coveiros contam que seu corpo chegou dentro de um saco, tamanha a mutilação sofrida.

A polícia fazia parte da trajetória de Zezé Leão de duas formas. A primeira foi bastante honrosa. Em 1930, após liderar ao lado dos irmãos Miguel, João e Júlio a Revolução no Piauí, ele recebeu o título de capitão da Brigada Militar que, mais tarde, viria a ser a Polícia Militar. Como militar, Zezé foi valente e temido.

Seu segundo envolvimento com os militares, no entanto, revelou-se desastroso. Próximo do Quartel Militar, que funcionava no prédio do Centro Artesanal, na Praça Pedro II, Zezé reencontrou-se com o capitão Vanderlei numa mesa de bar. O oficial já havia detido Zezé por homicídio. Segundo registro da época, o "Lampião do Piauí" matara um soldado. Gole vai, gole vem, surge uma discussão a respeito da prisão do Zezé. Bem mais alto e forte, o capitão dá um soco no valente jovem. Horas depois, o militar estaria morto. Zezé foi à sua casa, pegou uma arma, voltou a abateu Vanderlei.

A prisão de Zezé Leão não representou o fim de sua história de mortes e coragem. Folclore à parte, a maioria das mortes não ocorreu por crueldade ou capricho. A origem de sua fama de matador está num conflito de terras envolvendo sua família, os Arêa Leão, e o coronel José Liberato, outro grande latifundiário da região do município de São Pedro - que depois daria origem a um punhado de cidades como Água Branca, Hugo Napoleão e Miguel Leão (homenagem ao mais velho dos quatro irmãos homens da família).

A briga entre os Arêa Leão e Liberato pela posse de terras se alastrou por mais de uma década no interior do Estado. Foi o conflito armado que provocou o aparecimento do bando de jagunços, profissionais contratados para executar "serviços" e proteger as fazendas. Zezé Leão e seu bando ficaram famosos, mas há grande diferença entre ele e Lampião: enquanto o primeiro era latifundiário e de família tradicional, o outro era um nômade errante.

As mortes de ambos os lados terminaram em processo na Justiça. O julgamento do coronel José Liberato ocorreu no Tribunal de Justiça que, à época, instalava-se no prédio do hoje Museu do Piauí, em frente à Praça da Bandeira, no centro de Teresina. Liberato era acusado pelos Arêa Leão de homicídio e o evento mobilizou toda a capital. Os advogados do coronel, Adolfo Alencar (tio do empresário Valter Alencar) e Mário José Batista, também eram brigados, o que provocou uma curiosa defesa: cada profissional usou uma tese. Liberado foi absolvido. Ainda hoje a vida de Zezé Leão é tabu. Sua família se recusa a comentar o assunto.

Um dos filhos, Altamiranda, funcionário da Prefeitura Municipal de Teresina, informou que os irmãos ficaram magoados quando um escritor tentou publicar livro com o título "O Cangaceiro Zezé Leão". A família não divulgou o nome do escritor. Os jornais das décadas de 40 e 50 têm registros de episódios envolvendo Zezé Leão.

História Macabras e Cruéis, o folclore tratou de embaralhar o que é verdade e o que não passa de ficção na vida do temido Zezé Leão. A coragem do ex-militar deu origem à frase "valente que nem Zezé Leão", bastante comum no interior piauiense.

Conta-se que, no final da tarde, ele sentava-se no alpendre do casarão da fazenda Altamira, em São Pedro, e escrevia seu nome na fachada do imóvel usando o revólver. Embora seja difícil imaginar tamanha destreza com um revólver a ponto de desenhar letras com rajadas de balas, a história correu o Estado e hoje é contada como verdade.

Em outro episódio, Zezé Leão viu um negro assoviando e perguntou qual era a música. "É Asa Branca", respondeu o negro. O valentão mandou o rapaz assoviar até inchar os lábios e depois disse para ele ir embora. Quando o negro ia cumprir a ordem, Zezé o matou com sete tiros de revólver.

Segundo a tradição popular, Zezé teve duas orelhas arrancadas e penduradas num cercado, antes de ser morto, em 1956. Mas a versão oficial não registra o fato.

Entre as muitas histórias, duas são verdadeiras: Zezé Leão mandou dois de seus jagunços capturarem no Bairro Vila Operária, numa obra do colégio Leão XIII, dois trabalhadores que haviam fugido da fazenda da família. Os jagunços levaram os homens à força, alegando que eles tinham saído das terras de Zezé com dívidas. Os dois nunca mais foram vistos.

Além disso, o polêmico membro da família Arêa Leão destruiu um dos jornais de Teresina por motivos políticos, conforme relato do prefeito Wall Ferraz em seu livro de memória.

No Cemitério São José, na zona Norte de Teresina, os coveiros mais antigos relatam a fama de valentão de Zezé. Passando 42 anos de sua morte, o "Lampião do Piauí" sobrevive em episódios impressionantes, sejam verídicos ou fantasiosos.

De acordo com um deles, não foi a polícia que matou Zezé. Ele teria sido assassinado por um caboclo e só então os militares se apossaram de seu corpo.

O ex-capitão da Brigada Militar foi casado com dona Olinda e tem muitos herdeiros vivos, entre filhos, netos, bisnetos e sobrinhos. A maioria não gosta de lembrar o passado.

"Eu Conheci Zezé" - Zezé Leão era educado e gentil quando estava sóbrio. "O problema acontecia quando ele bebia", relembra o professor Moaci Madeira Campos, que conheceu o valentão pessoalmente e protagonizou um curioso episódio com o homem que virou sinônimo de coragem.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil vivia em estado de sítio informal. Os cidadãos precisavam de um salvo-conduto para viajar dentro do pais e o clima era de tensão. O professor Moaci Madeira Campos tentava visitar a noiva no interior e aproveitava o único caminhão que fazia o percurso. Quando o veículo chegou ao posto militar situado no Bairro Tabuleta, na zona Sul da Capital, a polícia mandou o motorista parar:

Foi exigido o salvo-conduto de todos os ocupantes do caminhão. Como o documento do professor estava com prazo vencido, o militar responsável pela fiscalização disse que não permitiria que ele prosseguisse. "Aí Zezé Leão virou para mim e disse: O senhor vai viajar sim, professor. Vamos ver se o senhor não viaja!", relata Madeira Campos. Ele confessa que ficou com medo da reação de Zezé, caso o militar resolvesse comprar a briga. "Mas, graças a Deus, fomos liberados e não aconteceu nada", conta o professor.

O segundo encontro entre Madeira Campos e Zezé Leão não foi menos interessante. Dono do Colégio Leão XIII, o professor recebeu a inesperada visita do ex-capitão. Ele estava bêbado e reclamava que havia discutido com o dono do colégio onde seus filhos estudavam. "Fiquei com medo que ele pedisse para transferir os alunos para meu colégio, pois não me relacionava tão bem com o dono do outro estabelecimento. Mas o convenci a não levar o caso adiante", diz.

Segundo Madeira Campos, Zezé era de "fino trato" e muito de sua fama surgiu dos conflitos armados entre a família Arêa Leão e o coronel José Liberato que, por incrível que pareça, era parente desse grupo familiar.



Arimatéa Carvalho
em Jornal Meio Norte, Alternativo, 
9 de agosto de 1998

15.10.18

TERESINA ANTIGA, A. Tito Filho


Nos festejos de São João acendiam-se inúmeras fogueiras e se enfeitavam as ruas de patis. Defronte do palácio do governo exibia-se o boi do Manoel Foguista. A cidade tinha mais casas de palha do que de telhas. Quase não havia muros nos terrenos, cercados de talos de buriti. Fabricavam-se cigarros de duas marcas: CONDOR e REI DE PAUS. Principais operários da fabricação: Antônio Cazé, Leônidas Carvalho e Domingos Ferreira. Fazedor de imagens de santos, Vitor. As quadrilhas nos bailes eram marcadas pelo funileiro Gervásio, de fraque. Fabricante de violão, Lourenço Queirós. BANDAS DE MÚSICA: a dos Almeidas, a do Azevedo, a de pau de corda, composta de violão, flauta e pandeiro, entre outros instrumentos, propriedade de Pedro Tonga. A professora de música Ana Bugyja Britto mantinha orquestra para tocar nas novenas e aniversários. As bandas da Polícia e do Exército exibiam-se nas retretas da praça Rio Branco, dividida em duas áreas, a da alta-roda, ou gente de PRIMEIRA, e  a de segunda classe: ÁGUA. Denominavam-se cargueiros os animais carregadores de água do rio para as residências, vendida de porta em porta. Pessoas ilustres apanhavam o precioso líquido no seus próprios animais. CAVALOS. O cidadão Boeiro, morador no Barracão, fundou uma escola para que os cavalos aprendessem a marchar, esquipar, trotar. Dia de domingo realizava-se corrida desses quadrúpedes do centro da cidade até a Catarina. Esporte dos ricos. Boeiro vendia fumo de corda. Homem de posses. Emprestava dinheiro até ao Estado em dificuldades. ARROZ. A primeira máquina de beneficiar arroz pertenceu ao cidadão Manoel da ria São José, hoje Félix Pacheco. Ainda trabalho se dava às pisadeiras, no pilão, iniciavam a tarefa pelas três da madrugada no bairro Vermelha. CABARÉS. Animados. Danças até de madrugada. Cada rapariga tinha sua alcova, com cama, rede, penteadeira. Serviço de bar. Mulheres sempre novas. Havia intercâmbio de prostitutas de São Luís, Fortaleza e Teresina. Principais lupanares: Rosa Branca, Raimundinha Leite, Gerusa, na década de trinta e quarenta. Famoso também o cabaré da Calu na Piçarra. No carnaval as meninas alugavam caminhão e participavam do corso pelas ruas da cidade. As mais aplaudidas pelos machacás. CINEMAS. Quando me entendi, eram 3 as casas exibidoras: Royal, para molecada, bancos de madeira, sem encosto, o "Olímpia", na praça Rio Branco, da elite. Muita elegância nas sessões dominicais. A princípio, fitas mudas acompanhadas de música por artistas da terra, e o Theatro 4 de Setembro, que inaugurou o cinema falado em Teresina, a partir de 1933. Depois surgiram o "Rex", o "São Raimundo", o "São Luís", o "Royal", segundo deste nome. Muito namoro em todos eles. Namoro forte. O Teatro e o "Olímpia" ofereciam, sábado e segunda-feira, respectivamente, entrada gratuitas as meninas da Escola Normal. Os gajos pagavam. Na escuridade das salas de projeção, nesses dias saudosos, vigorava a bolinação. Uma pouca vergonha, rapazes agarrados nos seios das garotas. Uma graça Teresina. Boa de viver. Inesquecível para os que a conheceram nas suas graças e atrativos.


via Jornal O DIA
em 04 de novembro de 1988

11.11.13

DOUTOR GOJOBA, DO PRIMAVERA PRO MUNDO, por Luiz Filho de Oliveira



Dentro da política habitacional planejada pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) para Teresina, a construção do conjunto Primavera, em 1966, foi a terceira obra desse tipo na capital piauiense, antecedida que foi pelos conjuntos Tabuleta e São Raimundo. O Primavera fez, pois, parte da estratégia do governo para atrair a população do interior do Piauí para a “Cidade Verde”, como Coelho Neto a-cunhou (que trocadilho escroto!). Isso deu certo. A partir desse período, a população da “primeira capital planejada do Brasil” passou de noventa e tantos para quase quatrocentos mil habitantes. Somente nos dois primeiros anos desse projeto, de 1966, época do primeiro conjunto habitacional da capital, até 1968, quando foi construído o Parque Piauí, o quinto conjunto, foram vendidas à população cerca de três mil unidades habitacionais. Haja casa para tantos casos!

O meu,
o-escrevo: a atração de minha família, vinda do Alto Longá em 1974, também se-deu por esses planos e planejamentos. É. Também, porque mamãe passou um tempão nas oiças de papai pedindo pra ele nos trazer para a capital, para estudar. Ladainha de mãe, coro de professora; alguns de vocês sabem. Persistência, mundivisão, sabença. Assim – ou asnão! –, o Primavera entra nisso, sim; e entramos nele em um “misto” (um caminhão com uma boleia de passageiros e uma outra parte, uma carroceria para cargas) fretado por meu pai para trazer-nos e a nossa muda, que dizia tudo – éramos “matueiros”! –, a esta Canaã urbana. Ao chegarmos à “Capital Mafrense”, nossa família, nove pessoas, foi morar em frente às Quadras B e C desse conjunto, no bairro Primavera, que surgiu, claro, a partir daquele. 

Foi, então, que o nosso cenário mudou completamente: dos bois e bodes a carneiros e cabras, que nos-rodeavam na Fazenda Criolis, de nossa família, passando pelas paisagens em volta da casa na rua..., em Alto Longá, chegamos aos “cabras de peia”, comadres e “caras” dessa cidade. Cenário novo; novas personagens. E, ainda mais, um novo palco para nós: papai comprou uma casa nova na outra esquina do mesmo quarteirão onde morávamos, pois a que habitávamos era de aluguel. Obras nessa nova casa, ainda inacabada: paredes sem reboco, piso bruto, banheiro externo, cerca de arame... É melhor chamar um pedreiro. Obragem. 

Era uma vez, então, o Gojoba, o pedreiro da área, do bairro, ou melhor, do conjunto. Gojoba morava lá embaixo; é fácil chamá-lo. “Às vezes, até no domingo dá, se eu não tiver bebendo”. Gojoba era querido de todos, principalmente, dos filhos do seo Domingo, o alfaiate. Netão, Pedro Cão, Zé “Orea” e Paulo Cenoura, se tiverem bebendo, o Gojoba tava lá. E foi desse jeito que aconteceu uma anedota conhecidíssima no Primavera, entre os  moradores das décadas de 70 e 80, claro. Ela virou até piada na boca do Dirceu Andrade; alguém muito próximo (mais de mim do que dele) é que me-disse. É, foi hilário. Caso de anedota mesmo. História pra boi sorrir!

Mas não vou contá-la literalmente; tentarei somente escrever o que possivelmente tenha havido. Não sei se o Pedro Cão já havia-se-formado ou se ainda estava cursando Medicina na UFPI. O certo é que haveria uma festa, parece-me que ligada aos acadêmicos desse curso. Pedro Cão, claro, deveria ir. Aliás, sempre ia a esse tipo de comemoração. Só que a decisão foi tomada numa bebedeira da turma, talvez na quitanda do seo Juarez. Pois não é que o Gojoba também estava lá. Pois é, o pessoal decidiu que levaria Gojoba para a festa. Aliás, Doutor Gojoba; era assim que eles iriam apresentá-lo a todos. Nisso, certo, havia uma boa dose (dá-lhe, cana!) de preconceito ou de previdência quanto a possíveis preconceitos de outras pessoas. Afinal, Gojoba era um simples pedreiro. É, Gojoba ia ser o Doutor Gojoba, o que é que tem?

Botaram uma beca no Gojoba, e vamos lá. Festa vai, bebidas vêm; Gojoba já estava entrosado com todos, inclusive, com as colegas de curso de Pedro Cão. Era Doutor Gojoba pra cá; Doutor Gojoba pra lá. “Doutor Gojoba, o senhor acredita que...”. “Doutor Gojoba, o senhor já estudou aquele caso...”. “Doutor Gojoba...”. Gojoba, a princípio, achou graça dessa parada de “Doutor”. “Porra, aqui tá chei de coroa!”. Curtiu à vontade, principalmente, porque as acadêmicas o acharam muito engraçado. E a bebida descendo a goela, gelada ou quentíssima. E a cabeça foi enchendo. “Doutor Gojoba, cadê seu copo?”. “Doutor Gojoba, espere mais um pouco”. “Doutor Gojoba, isso; Douto Gojoba, aquilo”. Gojoba ficou cheio disso e se-levantou com a fala-desfecho da anedota:

– Que porra de Doutor Gojoba! Que nada! Eu sou é pedreiro e vou é embora; amanhã eu tenho que acordar cedo, pois eu tenho é três metros de muro pra levantar!



Luiz Filho de Oliveira
enviado pelo autor


3.12.12

SEGUNDA FOTOGRAFIA VIVER TERESINA, Elizabeth Oliveira


Quem visita o bairro Poti Velho pode ver as casinhas
miseráveis presas à terra.
Os meninos do Rio Poti brincam em completa alegria,
alheios ao abandono.
Têm o corpo marcado pela desnutrição.
Esquecidos, a cidade não lhes repara.
Nem o país observa sua própria miséria.

Os meninos do Rio Poti dependurados no horizonte.
Comigo-não-se-pode ironizam o homem,
acidente circunspecto em céu aberto.

Por que a vida aqui parece uma fotografia pardacenta
onde o tempo parou?
O primeiro bairro da cidade anualmente
confirma a tradição pública festejada:
acompanhado pelos fiéis,
São Pedro percorre as ruas em procissão.
O povo lhe devota o sagrado sentimento,
na intenção de dias melhores,
que as aves de rapina lhes prometem no período eleitoral.

O Cabeça de Cuia escuta a fome em danças,
crianças em roda, ao encontro do Rio Parnaíba
com o Rio Poti de braços dados com a gente ibiapiana.

Ao se tornarem adultos, os meninos do Rio Poti
(e os do Brasil) verão com espanto sua lembranças,
a infância tomada, de doídas medidas.
Que futuro pode ter o país
com essa massa (ignorada) de miseráveis?


em O ofício da palavra
Teresina: FCMC, 1996

21.8.16

Teresina anivessariou: 164 anos

Teresina, por Dino Alves

Quando eu nasci Teresina ainda ia fazer 100 anos no ano seguinte. Palmeirais, meu berço, nem tinha dez anos que deixara de ser Belém. Sou filho de cidades novas. Quase contemporâneas. E nesta semana Teresina aniversariou em dezesseis. Cidade menina. Parece um passarinho que troca de penas ainda pela primeira vez. 

Conheci cidades na Europa que conservam suas ruas e algumas construções de muito antes dos portugueses chegarem por aqui. Mas Teresina está abandonado o traçado geométrico que o jovem Saraiva imaginou, antes de virar Conselheiro do Império. Oeiras, mesmo abandonada para dar lugar à nova capital resiste no seu casario colonial centenário. Teresina queimou suas casas de palhas antes de fazer 100 anos. E vai chegar ao segundo século absolutamente irreconhecível no seu passado. Tem jovens que nasceram na cidade nova que nunca puseram os pés na cidade velha.

Inexorável, Teresina atravessou o rio Poty para o leste e esqueceu a cidade velha. A festejada ponte estaiada funciona como um portal moderno que nos faz adentrar na cidade nova, o que para mim – que a deixei há quarenta anos – não faz qualquer sentido. Sou contemporâneo da ponte metálica que nos separava de Timon, da Avenida – que nem precisava chamar de Serafim –, da Igreja das Dores, da Amparo, da São Benedito, da Pedro II, do Clube dos Diários, da Rio Branco, da Estação, do Marquês, da Vermelha, da Piçarra, do Poty Velho, do Mercado Velho, do Mafuá, da Vila Operária, do Porenquanto – bairro de nome poético que era pra ser provisório e está perpetuado no esquecimento da cidade antiga.

A minha saudade está esmaecendo e ficando sem lugar.

Quando Teresina aniversaria me lembro do poeta Lucídio de Freitas:

Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida.
Espera-me, distante, em outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


em 21 de agosto de 2016

15.4.20

Entrevista com Elio Ferreira e Lisete Napoleão - Revista Amálgama #1




Publicado originalmente em amálgama #1, janeiro de 2002


Parte 1

Entrevistados por Hermes Coelho, Adriano Lobão Aragão e Sérgio Batista, numa manhã de sábado, diante de lentas águas do Rio Poti, o poeta Elio Ferreira e a professora Lisete Napoleão ponderaram sobre literatura piauiense, poesia, hip-hop, folclore, bumba-meu-boi e o que mais apareceu na conversa. Elio é professor de literatura na UESPI, pesquisador da cultura e resistência negra no Brasil e no mundo, autor do livro de poemas O Contra-lei, já em sua segunda edição, onde mistura do hip-hop à poesia marginal. Lisete é Pró-Reitora de Ensino na UESPI, professora de literatura piauiense e pesquisadora de nosso folclore. Escreveu os livros Quem Conta um Conto Aumenta um Ponto, Zamba e Histórias que Ouvi. Entre um gole de água mineral para o Elio e uma cervejinha para Lisete, perdidos no bairro Santa Sofia, sob pés de “segura-ela” e mangas, deu-se o interrogatório.

(...)

Amálgama - Quais as características próprias da literatura piauiense?

Lisete - A característica que a gente vê, que a gente tem, no Piauí, é ter esse amor pelo Piauí. Porque são raros os escritores que deixam de falar. O Da Costa e Silva, sempre que falava, era telúrico mesmo. A marca maior deles, que eu vejo, é que sempre que eles usem temas universais, estão sempre voltados para o Piauí. Ao nosso Piauí ou à sua cidade natal.

Elio - Dentro do grande, do nacional, deve existir identidade. Eu sou do Piauí, mas eu sou do universo, eu sou cidadão do mundo. Então meu sentimento daqui vai partir também para o que eu tenho de universal e de humano, que existe em toda parte.

Lisete - Dentro da auto-estima impor respeito e espaço.

Elio - O Piauí não está isolado. Porque o mundo ocidental... muita coisa que se escreve aqui vem do ocidente. Chega aqui e se adapta a uma outra realidade com elementos complementares da arte e da mentalidade de um povo, de um lugar em que está se vivendo.

Lisete - Nós sabemos o quê? Que nós temos toda uma influência de Portugal, que foi de onde nós passamos muito tempo ligados. Portugal, por sua vez, tem toda sua influência de onde? Do resto da Europa, onde o Garrett [Almeida Garrett, poeta e dramaturgo português do romantismo] e todo o pessoal iam e retornavam à Portugal... o próprio Bocage [poeta português, árcade pré-romântico] deixou essa influência para nós, que por nossa vez, à medida em que fomos aprendendo a caminhar, nós fomos absorvendo essas características e compondo nossas músicas, nossas poesias, dentro da nossa realidade.

Elio - Toda literatura dialoga com literaturas anteriores, como na própria vida existe esse elemento. O diálogo com conhecimentos anteriores. Hoje, a negritude não pode ficar descartada numa situação como essa. Portugal veio, mas tem-se de Portugal como se tem do índio, como temos do negro e de outros povos. E o momento da literatura autenticamente brasileira é quando a gente começa a perceber a dominação, a perceber que temos que pensar com a nossa própria cabeça, por nosso próprio mundo. Estabelecer que a realidade de Portugal veio até aqui, mas temos de Portugal como temos também da África, do índio. Então a gente tem que ver de outra maneira. Ver com os nossos próprios olhos, onde está a questão de identidade. E o que vai marcar a literatura brasileira hoje, a literatura do mundo, é pensar com o olhar do dominado. Então não se pode passar a vida inteira pensando como europeu. Se tem essa estrutura, a gente modifica isso. A gente fala outra coisa...

Lisete [interrompendo] - Ver o que eles têm e construir a nossa realidade.

Elio - É claro. No mundo e na literatura, as culturas dialogam com outras. Deve haver um mundo miscigenado.

Amálgama - A antropofagia na prática?

Elio [gesticulando muito] - A antropofagia da prática. O que é que eu tenho de negro? Eu tenho de negro isso. O que é que eu tenho de índio? Eu tenho de índio isso. O que é que eu tenho de europeu? Eu tenho de europeu isso. Então são as coisas que eu preciso viver nesse momento.

Lisete - O que nós, brasileiros, temos disso...

Elio - Agora eu, como negro, assumo hoje mais o quê? A questão da negritude. Porque essa é minha maior herança.

Lisete - Embora essa face gritante seja do negro, você não pode negar o que tem do índio e do branco.

Elio - Renegar o índio nunca! A minha ancestralidade também está no presente. Eu fiz um estudo da minha ancestralidade e descobri que a minha bisavó foi pega "a dente de cachorro", que era uma índia. Temos que resgatar esses nossos valores que foram apagados. Temos que resgatar isso para que tudo conviva em pé de igualdade. Essa relação de diálogo e respeito a todas as culturas e a todas as religiões. Isso é o que se busca. Por que falou-se em negritude e na cultura do índio? É para que sejam respeitadas num mesmo nível que o branco. O branco é branco, e é bonito. O negro é negro, e é bonito. O índio é bonito. A cultura do índio é tão importante quanto a cultura do europeu. O que a literatura brasileira faz nos últimos tempos? É buscar uma linguagem aproximada da que o povo fala, quebrar valores também. Não podemos passar o tempo todo discutindo os valores europeus. O que há de Piauí aqui? O que o pessoal do Piauí está escrevendo? A gente deve entender o Piauí, esse conceito, a partir do que se tem escrito. O cordel é uma marca forte no Piauí. E o que marca o Brasil nesse cordel é a oralidade do poema. O poema para ser gritado.

Lisete - Devemos nos arrancar desse marasmo, porque ele é analisado na Sorbonne e no exterior, mas nós conhecemos pouco e trabalhamos pouco o cordel. Até que a nossa Universidade Estadual começou a resgatar e tentar fazer um trabalho junto ao próprio Pedro Mendes Ribeiro, que todos os anos faz um encontro internacional de cordel aqui no Piauí.

Elio - O que precisamos resgatar é a nossa história. Resgatar a memória do Piauí. Essa questão da piauiensidade é importante. Temos que nos identificar para nos assumir como nós somos e conquistar um espaço também fora daqui. Porque o que acontece é isso aqui: nós somos a periferia. Assim como o negro é tido como periferia, assim como o índio é tido como periferia, essas culturas... E o Piauí em relação ao Brasil é periferia...

Lisete [protestando] - Ainda é periferia. Ainda...

Elio - Considera-se periferia. Estamos aqui num isolamento. O Piauí ainda é tido como o estado mais atrasado, mais pobre. Ainda é visto assim. Então voltar a nossa visão para nós mesmos é importante. O amor próprio, e amar aos outros, para começar a conquistar espaço fora. Agora tem-se que fazer alguma coisa aqui.

Lisete - Mas já estamos melhorando, já há um avanço. A preocupação está muito maior.

Elio - Mas tem que ter investimento! Investimento cultural! Pra quem faz literatura é muito pequeno.

Lisete - É pequeno, eu sei. Mas e quando não se tinha nada? E hoje já se tem.

Elio - Mas são pequenos.

Lisete - E quando não se tinha nada?

Elio - Sim. Mas não se está nesse ponto mais. Você vai, por exemplo, ao Ceará ver a quantidade que eles investem em literatura lá. Todo dia tem gente de fora pra falar de literatura lá. O que o Piauí não faz é isso.

Lisete - Mas nós estávamos falando de produção.

Elio - Mas o diálogo pra fora é válido, porque é preciso isso para levar a nossa literatura para outros lugares. Não devemos ficar ilhados aqui. Precisamos nos comunicar com outras literaturas.

Lisete - Nós precisamos conhecer é a nossa casa. Primeiro trabalhar a nossa casa, dentro. A partir desse momento é que nós podemos ir lá pra fora e abrir as nossas fronteiras. Mostrar que nós somos bons também.

Amálgama - Elio, os seus trabalhos sobre Torquato Neto e Mário Faustino foram publicados em jornais. Como você vê o espaço dado a esse tipo de trabalho nos jornais?

Lisete - Os jornais de grande circulação você sabe que têm que ter um retorno financeiro, e esse tipo de matéria não dá.

Elio - Mas o que é que falta para isso? Onde é que está o vazio? Por isso é que o vazio é grande. Naquela época, por exemplo, quando eu fui fazer as performances de poesia de rua, é porque não havia espaço, meu amigo! O poeta se sente sufocado, então precisa de um espaço, porque falta isso num jornal. O que se faz pra publicar hoje? Eles não publicam mais.

Amálgama - O que as agremiações e academias estão fazendo nesse sentido?

Lisete - A Academia de Letras do Vale do Longá tem um espaço no jornal O Dia, onde você tem espaço pra publicar. A UBE também tem um espaço...

Amálgama - Não existe um exagerado elitismo dentro dessas academias?

Elio - Toda academia é elitista.

Lisete - Até porque há limitações no número de cadeiras.

Elio - Essa questão no Brasil hoje é uma questão de amizade. É claro que todo grupo gira em torno de interesses, ou pelo menos de visões parecidas, estéticas e ideológicas, mesmo que surjam divergências dentro do grupo. Mas a academia parece algo mais fechado ainda. Há um padrão, você tem que ser “assim” pra ter uma vaga: “esse aqui não cabe aqui porque foge dos nossos padrões”. Quando é um movimento, há mais abertura. E tem a política no meio ainda, valores morais, econômicos, políticos, que sempre influenciam na academia.


Parte 2

Elio Ferreira, por Sérgio Batista

Lisete Napoleão, por Sérgio Batista

Amálgama - Elio, como foi o episódio no qual você ficou nu durante uma apresentação em Campina Grande?

Elio - Em Campina Grande foi o seguinte...

Lisete [interrompendo, risos]- Não estava no script...

Elio - Não estava. Não havia nada premeditado. Mas é a questão do contra-lei, né? Era aquela coisa de criar um clima que dissesse da nossa angústia da época. Então a coisa foi acontecendo...

Amálgama - Foi no dia do massacre no Carandiru?

Elio - Foi no dia do massacre no Carandiru! Eu tinha visto na televisão e eu disse: que país é esse? Em que mundo nós estamos vivendo? Eu passei a viver toda a circunstância da poesia. Aquela relação de fazer o contra-lei e você incorporava não apenas o poema como um indivíduo que a poesia te fazia aquilo.

Lisete - Tu fizestes isso em sã consciência? Não tinha tomado nada?

Elio - Não, não... Isso aí é à parte... [risos]

Lisete - É muita coragem... [risos]

Elio - Mas quando você pinta a cara, você não é mais você. Parece que baixa um fogo assim, em cima de você. Dos seus ancestrais, sabe? Quando o poeta fala, ele fala por muitas vozes, não é só por ele não. É muita gente falando através dele.

Amálgama - Mas lá na hora, como foi?

Elio - Na hora, foi o seguinte, eu disse: “que país é esse onde acontece esse tipo de coisa?” E eu comecei a declamar: “eu não sou o presidente, eu não sou o governador...” aí começaram a aparecer as imagens do Brasil, um bocado de sacanagem, de miséria, de violência...

Lisete - Mas essa alucinação era real?

Elio - Era o que eu estava falando na poesia. Era uma coisa real. E eu me perguntava: “que país é esse?” Aí desci as calças e peguei no saco e mostrei pro pessoal. “Que país escroto é esse?” Aí as meninas gritavam: “professor!!!” e botavam a mão no rosto, assim, mas ficavam vendo tudo com os olhos entre os dedos... [risos]

Lisete - Viram a coisa preta, Elio! [risos]

Elio - Mas não é que você faça a coisa pra chocar. É uma coisa que acontece... A coisa foi crescendo...

Lisete - O meu questionamento é esse.

Amálgama - O que a Lisete quer saber é se você estava drogado.

Elio - Em primeiro lugar, quando eu vou para as minhas performances, eu não bebo.

Lisete - Mas, Elio, veja bem. Era um público enorme. Qual era o público?

Elio - Tinha umas cinco mil pessoas, não tinha não? Tinha não. Era o Encontro Nacional de Letras...

Amálgama - O ENEL de 1992, em Campina Grande.

Elio - Em São Paulo, na USP, também aconteceu outro lance assim, parecido. O que agredia não era só tirar a roupa. Era também o texto. Na Paraíba, quando eu ia pra praça, o pessoal começava a gritar: “eu vou comer a tua mãe, eu vou comer o teu pai...” [cantando, trecho do poema Canibal, do livro O Contra-Lei]

Amálgama - Então a poesia embriaga?

Elio - Embriaga. A poesia te envolve. Porque a poesia do contra-lei não é só o texto poético. Há a incorporação de um personagem. Viver a poesia na dimensão em que escrevo.

Lisete - Mas lá [em Campina Grande] estava o professor Elio...

Elio [interrompendo]- Não! Professor não! Professor é na sala de aula. Eu sou o poeta!

Lisete - Mas você estava representando a universidade...

Elio [interrompendo]- Não! Eu sou o poeta. O Elio é o professor lá na sala de aula. Se eu saí de lá, eu sou mais eu, eu tô rua, eu sou outra entidade.

Lisete - Se você estivesse representando a universidade, deveria ter tido a postura de professor.

Elio - Mas eu sou é o poeta. A entidade é outra coisa. O cara é administrador de empresas, ou é empresário, mas faz uma peça de teatro. Lá no palco, ele é o ator ou é o empresário? Eu tô em casa, eu estou com minha família, eu sou um pai de família. Mas se eu tô na rua falando poesia eu sou o poeta. Eu não sou mais pai de família.

Lisete - Mas se eu for a um seminário representando a Universidade Estadual do Piauí, ali eu sou a representante da universidade, eu sou a professora Lisete.

Elio - Enquanto estiver em sala de aula!

Lisete - Não. Enquanto eu estiver ali, inclusive sendo financiada com passagem paga, com estada paga pela universidade.

Elio - Mas o dinheiro não é da universidade, o dinheiro é do povo, é do Brasil...

Lisete - Mas se eu for para um teatro...

Elio [interrompendo]- Mas o meu trabalho como professor é na sala de aula.

Lisete - Você estava nu na conferência como professor ou como escritor?

Elio - Eu estava como professor e como convidado, poeta, a falar poesia! Eu estava na pauta como poeta, pra falar poesia. Eu não tirei a roupa na sala de aula. Eu tirei num espaço propício pra fazer arte!

Amálgama - A agressividade de sua poesia nasce de uma frustração social?

Elio - O que eu falo não sou eu que falo. Talvez o que as pessoas gostariam de dizer, ou o que as pessoas dizem. Para os meus poemas, eu tiro muito o que as pessoas dizem na rua. Eu sou negro, venho de uma classe social pobre, no nordeste, no Piauí, Floriano. O que você escreve é tua vida. Machado de Assis dizia que o menino é pai do homem. Eu convivi em oficina de ferreiro. Minha família era toda Ferreira, meus tios, minha mãe era flandeira, meu pai ferreiro, e eu cresci naquele som do metal e do palavrão, que quando você tá puto com alguma coisa você xinga. Então procurei alguma coisa que dissesse da angústia e do sofrimento do povo, da realidade que eu vivia. Uma maneira mais forte de tocar as pessoas.

Amálgama - E como está sua poesia hoje?

Elio - Minha poesia hoje não está mais dentro daquele tom. É um momento que você cria uma espécie de ser que você incorpora. Você escreveu aquela fase, você esgotou aquilo ali. É uma coisa de momento.

Lisete - Eu acho que houve um amadurecimento. Acho o Elio mais maduro, mais consciente.

Elio - Eu preciso dizer de uma maneira que marque o meu tempo. Uma coisa que veja o mundo com a linguagem das pessoas da minha época. Do meio em que eu convivo. Eu vivo num momento difícil em que as pessoas estão buscando se situar no mundo, num lugar ao sol, e o mundo tem que ser pra todo mundo. Por que essa grande visão na miséria total, sem acesso a escola para uns, e outros com tanto? Então o contra-lei era isso. Porque a lei estava muito errada! [bem enfático] E ainda está muito errada. E eu vivi numa estrutura que eu conhecia muito tudo isso. Eu trabalhei em repartição pública, eu nunca fui só professor, porque não dava pra comprar meus livros. Eu fui educado numa família em que meu pai era ferreiro, mas se comprava livro e tinha biblioteca em casa. Minha mãe ensinava a ler, também era professora, por isso lá em casa era cheio de gente. O "poemartelos" fala disso, e é muito de memória, porque eu pegava também muito o mito do povo. Houve um crime muito hediondo na minha cidade. O cara matou outro e pinicou todinho. O que eu sei dessa história é que aparecia o demônio na casa dessas pessoas e o cara que fez esse crime era casado com uma tia minha, e sofreu muito por isso. No "poemartelos" eu falo dessa coisa. Muito som, muito martelo. Imitar o som do ferro. Eu criei uma poesia sonora pra ser falada imitando o som do ferro.

Lisete - Hoje você usa muito o estilo do Rap, não é?

Elio - O Rap foi um momento do Contra-lei. Quando eu escrevi "O Contra-lei", não tinha nenhum contato com o Rap. Comecei a ter no final de 94. Aí o pessoal do Rap, do Hip-Hop, viu meu livro e dizia: “Professor, vamos cantar isso aí ”.

Amálgama - Então, na verdade, a inclusão do Hip-Hop ao Contra-lei foi posterior ao livro?

Elio - Foi posterior. Depois eu publiquei a segunda edição já com esse contexto. Mas eu acho que já tinha alguma coisa de Rap no ouvido, por causa da poesia pra ser falada, porque quando você escreve, além das coisas do passado, tudo que há de presente no som você coloca no seu texto. Eu gostava de escrever ouvindo blues, jazz, música popular brasileira. Era sempre assim, ouvindo vários tipos de música.

Amálgama - Mas foi o Rap que incorporou isso de maneira bem característica para sua poesia.

Elio - Exato.

Amálgama - Então como você vê a essa situação de respeitar uma MPB que torce o nariz para o Rap?

Elio - Eu não sei por quê. Pois o Hip-Hop é um ritmo, um ritmo negro, dos negros que viviam nos guetos dos Estados Unidos, na periferia, e Rap quer dizer o quê? Poema em ritmo. Poema pra ser cantado.

Lisete - Mas eu acho que há essa marginalização porque eles levam geralmente à anarquia, à droga, à...

Elio - O Rap não tem nada disso! O Rap é o contrário. O Hip-Hop...

Lisete - Mas as gangues e as confusões que tem no Rio de Janeiro...

Elio - Aquilo é o funk. É outra história.

Lisete - Mas há uma mistura, pois inclusive é muito parecido.

Elio - Junta-se o Rap ao Hip-Hop. O Hip-Hop é um movimento educativo. É a visão de educar. "Faça a Coisa Certa", lembra do [filme de] Spike Lee? Está diretamente ligado a isso, a educar. Tirar o sujeito da pior. Mas é claro que existe o Rap gangster, também. Não vou dizer que só há bons. Mas a força toda do Hip-Hop é tirar o cara da lama.

Lisete - Mas o próprio Hip-Hop tem também as gangues.

Elio - Não. Não tem não. O Hip-Hop é o seguinte: são pessoas educadas, gente da periferia, meninos que estudaram a história do negro, a condição de...

Lisete - Inclusive o Gabriel O Pensador faz isso...

Elio - Mas o Gabriel O Pensador não é do Hip-Hop. Ele faz Rap, mas não é do Hip-Hop, do movimento. Hip-Hop é um movimento que, em primeiro lugar, é música para divertir, para conscientizar, para educar, para contar a sua história, do momento, da periferia. Os Racionais mostram o cara quando entra no tráfico, mas também quando se dá mal no final. É instrutivo. É a consciência ideológica. Estudar a questão do negro, a questão social da miséria. Evitar entrar no mundo do álcool, da droga, porque aquilo vai te levar para um caminho que pode ser sem volta. Mas o Rap também pode se aproximar pra dialogar com as gangues, porque a gangue é apenas um fator social.

Amálgama - Não seria então a música que leva à criminalidade, ela só reflete...

Elio - Reflete a realidade. A condição de ser. Por que o sujeito está no crime? Porque não teve oportunidade, na periferia, para ele. É algo altamente político, algo revolucionário. É pra brincar, educar e pensar sempre. É a mesma situação o negro e o pobre. A visão é essa. Mas não se abre espaço na grande mídia para o Hip-Hop. Não se abre para Racionais, para Câmbio Negro, para Rio Radical Rap, que tem até um cara do [bairro de Teresina] Monte Castelo, que eu sempre converso com ele, o Yuri, no Rio de Janeiro. A polícia de Minas Gerais deu o maior cacete e quase mataram o cara, deixaram o cara jogado lá porque tinha um verso dele que dizia “Foda-se a polícia, foda-se a polícia”.

Amálgama - Lisete, e como anda a pesquisa folclórica?

Lisete - É um trabalho que estamos desenvolvendo desde um curso em Belo Horizonte, que foi Leitura e Produção de Texto. Naquela época eu viajava muito pelo interior, trabalhando pela UESPI.

Elio - Eu acredito que nossa base, nossa cultura está sempre no interior...

Lisete - E eu tenho difundido isso pra fora. Eu recebi agora em Lisboa um cavaquinho, que é um prêmio cultural de lá pelos trabalhos que faço. Eu confesso que além de ser uma defensora e uma pessoa que trabalha com a literatura piauiense, eu sou uma das pessoas que dá a vida e o sangue, qualquer coisa, para que a gente continue trabalhando a cultura de um modo geral. Eu não me preocupo se ela está elitizada ou não. Eu só me preocupo se ela chega ao povo. Que o povo, com isso, consiga fazer uma análise crítica. A nossa cultura é riquíssima e apaixonante. O meu trabalho me ajuda a descobrir isso cada vez mais.

Amálgama - Elio, a poesia já te ajudou a comer alguém? [risos]

Elio - Sacanagem. Minha mulher deve estar lendo isso. [risos] Mas eu só posso dizer que ela é apaixonante.