21.11.15

"virão de novo os dias dos banhos na chuva"




virão de novo os dias dos banhos na chuva
ah os dias dos banhos na chuva
e a chuva era boa e fria
e escorria das bicas
das casas ricas
e das calhas
das casas pobres
e havia meninos correndo
na chuva
algazarra de meninos correndo na chuva
batendo os dentes de frio
e rindo e rindo e rindo
na chuva

virá de novo o dia
em que o menino
comeu a fruta peca
e sentiu o amargo na boca
a louca levantou a roupa
e o menino viu aterrorizado
viu e ouviu sua risada
e sentiu pela primeira vez
desatar-se
a tormenta do desejo

pois vem de lá
da antevisão do futuro
este filme a se desenrolar
na tela da memória

vem de algum lugar
(e onde?)
a imagem do pai
o terno branco
saindo para trabalhar de bicicleta
a mãe de saia rodada
blusa de algodão
bordados miúdos

pois há sempre um tempo de ternura
quando a vida se guarda
em porta-joias
para ser usada em gotas

assim
se conservou o congá de tia duquinha
a tititinha
a índia velha feiticeira que dançava na chuva
cantando pontos de macumba e incorporando pretos velhos
no meio da sala perfumada com defumador de sambaíba

tititinha
a bruxa
de mil encantos e sortilégios
que habitava as terras do bem-querer
e aprendeu com os orixás e pretos velhos
a arte do esquecimento das coisas sérias

assim foi se desmemoriando de tudo enquanto
até se esquecer
por derradeiro
do roteiro da morte

e havia uma cidade
havia
naquele tempo
uma cidade antiga
esquecida no fundo dos olhos

"eu estou comprando
por qualquer dinheiro
uma cidade antiga
uma cidade velha
de ruas estreitas
e pessoas vivas
que um dia se perdeu
na retina escura
de um menino vadio
que se escondeu na noite
e nem notícias deu

mas hoje eu sei
que em qualquer esquina
ou ponta de rua
deste lugarejo
resiste intacto
puro imaculado
um beijo de menina"

e vêm do fundo do olfato os cheiros
de goiaba madura caderno novo
pastilha de hortelã bolo frito
o cheiro do capim cortado
pelos homens da limpeza pública
o cheiro da madeira dos caminhõezinhos entalhados
pelos presos da penitenciária
o cheiro do uniforme engomado
camisa bege calça cáqui
sapato vulcabrás

o cheiro sem passado
nem futuro
dos retirantes
nos paus-de-arara
tangidos pela seca
amontoados
sob as árvores
da praça saraiva

os imigrantes do ceará
que fediam a fome
sezão
catarro
empilhados como latas vazias
enferrujados de poeira
entrevados de tanto chão
com pretume nos pés

crianças de cabelos desgrenhados
pela seca
esticada de sol
e narizes escorrendo um sumo
no colo de mulheres desgrenhadas
ramela nos olhos

não havia poesia
no cheiro de merda e mijo
dos imigrantes que roubavam a paz dos sobradões
e não serviam ao sossego dos cidadãos de bem
por isso eram expulsos a cassetete
para os longes da tabuleta
onde miséria fome e choro
não incomodassem
as pessoas de família
e eles pudessem receber
(a prudente distância)
os donativos entregues pelas mãos caridosas
das senhoras de nossa mais fina sociedade

(mesmo a mais severina das fomes
termina um dia
embebida na memória
e se presta quando nada
ao ofício inútil dos poetas)

invade a alma o cheiro
das fraldas defumadas
com alfazema
pela preta velha
o cheiro de talo de buriti cortado
o cheiro da sala encerada
do café torrado com rapadura
na cozinha do casarão

mundo de cheiros

o cheiro
do orvalho da manhã
das folhas das begônias
de mijo ardido nos fundos da igreja
de vela estearina da sacristia
das flores murchas nos altares
dos ramos das palmeiras de domingo de ramos
e o cheiro de incenso ah o cheiro eterno dos incensos
queimados em turíbulos de prata
evolando-se ao céu
à honra de um deus suave
morador das redondezas

o cheiro dos charutos de seu joão
o cheiro forte das velhas cachimbeiras
e o cheiro da cachaça entranhada
no balcão da bodega de seu zeca

à noite
as ruas tomadas
pela embriaguez dos cheiros de jasmin
resedá
copo-de-leite
dama-da-noite
o cheiro doce dos jardins da casa branca
onde morava a moça rica
que derramava rios de fogo e desejo
à passagem do menino de olhos baixos
e opresso coração

ainda resiste
desde as lonjuras daquele tempo
o cheiro das boras assadas
no forno de barro
da avó miúda
que mascava fumo
e dela ficou-me o cheiro
do fumo de rolo
as peas de fumo
escondidas entre tijolos
e o cheiro da lenha verde
estalando no fogão

e o cheiro das folhas e raízes
que usava com secular segurança
no combate às enfermidades
doo corpo e da alma

velame pra urina presa
angico pra diarreia
mulungu pra acalmar doido
arnica pra machucadura
catuaba pra ressurreição de macheza
paulista pra abortar prenhez indesejada
caroba pra afinar o sangue
aperta-ruão pra doença do mundo
aroeira pra desmantelo da senhora
erva-cidreira pra mal de angústia

o odor agudo das ervas mágicas
nos tabuleiros do mercado velho
de vasta qualidade e serventia
anunciadas com letras mal tracejadas
desde uma
que era tiro-e-queda
para arrancar catarro encroado em peito de menino
outra que atraía amor e sorte
a até uma que expulsava vício de jogo ou senvergonheza

vastidão de cheiros
o cheiro do jacá de carvão
o cheiro do estrume de gado espalhado no roseiral
regado pela minha mãe
o cheiro de alfenim
pitomba bolo de goma
pirulito beiju com coco

e o cheiro bom
do sonho de eleonora

o cheiro que subia da terra molhada
pelos primeiros pingos de chuva
o cheiro
de brilhantina glostora
o cheiro do suor dos mecânicos
e o cheiro
dos surubins que subiam a olavo bilac
desciam pelos cajueiros
e ganhavam a estrada nova
no ombro de homens de torso brilhante

e no mercado velho
o cheiro de vísceras de peixe
carne-de-sol
molho-pardo
camarão
melancia
cuscuz de milho
pimenta-de-cheiro mão-de-vaca frito de porco farinha-dágua
perfume barato torresmo

em tudo e por todos os cantos da memória
o cheiro de gente
o cheiro bom de gente

e o cheiro  da praça
guardado para sempre
num canto iluminado do coração
o cheiro fresco das manhãs
sim
o cheiro das manhãs
das alvoradas
o frescor das manhãs
daquele tempo

e de outro tempo
a sombra dos ingás
as flores amarelas dos ipês
as folhas novas dos oitizeiros
dos juás
das figueiras
dos brotos vermelhos dos cajueiros

e vem do chão a imagem
viva dos acidentes
que a morte não alcançou
o dedo cortado de gilete
o lápis de ponta feita
o canivete afiado
a manga verde e o sal
(que torquato me ensinou a comer
escondido da mãe e das tias)
o cio dos gatos noturnos
as balsas de buriti descendo o rio
as canoas e os vareiros e os vapores
conduzindo mulheres pudicas
saias compridas sombrinhas estampadas
e homens de chapéu-de-massa
camisas de riscado
parnaíba afiada na cintura

naquele tempo
os rios corriam para o mar
e o mar ia dar no céu
onde as nuvens purificavam a água
que caía doce e fria e criadeira
para irrigar a terra
e para encher os riachos
que enchiam os rios
onde de proa do vapor mais alto
dava pra ver o adeus de tuas mãos
e o vento em teu cabelo

(como sabido
vapor subindo rio
faca peixeira
dedo cortado
e aceno de mãos no cais
sempre acabam em poesia)

compenetrado de seu poder
muito sério e muito grave
o menino sabia que o tempo é da natureza dos rios
por isso
colocava a mão na água
contra a corrente
empurrava a água
e assim parava
por um brevíssimo momento
o rio
do tempo



Paulo José Cunha
em Perfume de Resedá
Teresina: Oficina da Palavra, 2009
via uns2poemas

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