25.6.18

TERESINA - Bucólica visão dos anos sessenta, Herculano Moraes


i
g
r
esbelta
j
cal
massa
tijolão
tinta e telha

erguida no alto da jurubeba por frei serafim
vozes, cânticos, ritos, missas, congresso, oração
o santo negro abençoando a cidade de
Aparecida
c
degraus                   r                   degraus
degraus              u              degraus
degraus           z           degraus

fone                          carnaúba                       karnak
casa                                                              poder
casa                          carnaúba                       jardim
escola                                                           piscina
esquina                          estátua                         carnaúba
decetê                                                          esquina
casa                          carnaúba                       parada
casa                                                           casa
casa                          carnaúba                          casa
pão                                                            coop
esquina                        semáforos                      endemias


Herculano Moraes
em Legendas, 1ª edição
Edição do autor: Teresina, 1995

23.1.18

O PEQUENIQUE (trechos), por Ogmar Monteiro


Angelim de Baixo

O meu avô materno era proprietário da fazenda Angelim de Baixo, que tinha esse qualificativo terminológico para distingui-la da outra, fazenda Angelim, do Dr. Helvídio, a qual era identificada como Angelim de Cima.

A fazenda foi vendida ao Sr. Chaves, transferida posteriormente ao Sr. Joaquim Macedo, como genro e herdeiro. O território da mesma abrangia o que atualmente se denomina: Saci, SEASA, Distrito Industrial, Parque Piauí, Lourival Parente, Bela Vista e outros locais.

Após aquela reunião de familiares e amigos para reverem os filhos do casal que retornavam ao lar paterno, onde o ágape se realizou com o clássico comes-e-bebes, sobreveio, no domingo que se seguiu, a celebração do piquenique no Angelim de Baixo. Era o ato simbólico da transmissão da posse ao novo dono.

Lendo o livro "Olga", recentemente publicado por Fernando Morais, constatei que Prestes e sua esposa entendiam-se na língua de Voltaire.

Isso se devia à circunstância do currículo na Escola Militar, como base profissionalizante. Depois do latim, foi o francês a língua do Tribunal de Haia, das conferências internacionais e do Tratado de Versales; somente após a última Grande Guerra foi que o inglês subiu ao plenário de língua entre os povos.


Angelim de Baixo

Sob a denominação acima estendia-se no planalto ao sul de Teresina a fazenda de meu avô materno. Era apenas a última parcela da fazenda do Cap. Marques, meu bisavô, que por sucessão legítima passara a minha a vó materna, ainda órfã.

Honorato José de Sousa aqui chegou como empregado da Companhia de Melhoramento da Navegabilidade do Rio Parnaíba, onde foi o almoxarife. A sua função na Companhia levou-o a se relacionar com José Monteiro, que era dono e Comandante de um barco a vapor e barcas, o meu outro avô. Desta amizade sobreveio o casamento com a cunhada caçula do Comandante José Monteiro.

A fazendo decrescendo. O rebanho diminuía. Foi vendida, naquele ano, ao Sr. Chaves, pai de Luiz Amada (consorciada com Joaquim Macedo) e George Pires Chaves, o caçula, pelo alto valor de um conto e quinhentos mil réis. Atualmente com a duas desvalorizações, com seis zeros a menos, nem sei que valor será escrito. E o pagamento incluía o gado restante, animais de trabalho e criações (porcos, carneiros e bodes), as miunças, como as designam os sertanejos.

Crescido, envelhecido e refletindo sobre essa venda de cujos comentários ouvi recriminações repetidas vezes sem conta, através dos anos pela minha avó Mariquinha, fixou-se na minha memória as condições e o valor da venda, e por isso valorizo o refrão: "- "Queres ficar pobre? Transforma o que tens em cobre".

Além do acidente, ponderando os fatos, admito que a decisão foi em  assembleia de família. Naturalmente marcada para a data festiva do centenário, quando se reunissem os filhos.

Comprador e vendedor eram amigos e vizinho. O Sr. Chaves morava na Rua São Pedro em frente ao cemitério, ou a "Casa do Bispo", como a chamávamos, pelo fato do Barão de Gurguéia tê-la dado a ele. Era o seu PALÁCIO e tornou-se sede do Bispado no Piauí, quando da criação desta Diocese separada da do Maranhão. Meu avô morava entre o grupo escolar Barão de Gurguéia, casa também que fora residência do Barão, na esquina da Rui Barbosa no cruzamento com a Félix Pacheco e de frente para o largo das Dores, a atual "Praça Saraiva" e a casa do Sr. Manoel Thomaz de Oliveira, atual casa Dôta. Presentemente existem no local lojas de auto peças de veículos.

Os fatos havido na entrega do imóvel pelo vendedor ao comprador me alicerçam a convicção do entendimento sobre a venda e aprazamento da transmissão.

Tudo isto que relato conflui num evento: "o centenário".


Ogmar Monteiro
em TERESINA DESCALÇA | 5º VOLUME
Fortaleza: 1988

Dobal, Graça Vilhena


a lembrança de ti vara o silêncio
no longínquo espaço das ausências

em que taça, poeta, bebes agora as luzes
que desejas?

meu coração é um pássaro
alongando o céu das incertezas

posso supor que onde estás
germinem sóis
e só é possível ser feliz
que possas andar solto
ouvindo conchas, tecendo brisas
para pescar teus novos peixes
ou que os poemas sejam constelações
onde as palavras explodem
na intimidade dos segredos

suponho também
que possas se quiser
ser menino outra vez
e brincar na sala dos espelhos

mas são apenas suposições
de certo sei dos versos que ficaram
no verde campo das eternuras
onde o tempo esquece seus degraus


Graça Vilhena
em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

24.11.17

Vicente Trindade dos Santos e a tradição do VTS, clube de amigos em Teresina, Toni Rodrigues


Ao passar pela rua Riachuelo, praticamente no cruzamento com a Teodoro Pacheco, o caminhante desavisado não perceberá estar diante de um dos mais tradicionais restaurantes de Teresina. Estamos falando do Clube VTS, pertencente ao nobre Vicente Trindade dos Santos. Na verdade, o estabelecimento e seu dono se confundem na preferência da clientela seleta. Aviso aos navegantes: ninguém que não tenha cadeira cativa há mais de cinco anos será atendido sem apresentação prévia e algumas idas como estágio. Outro lado, também não adianta insistir.

Os clientes mais antigos também enfrentam o rigor de seu dono. Seu Vicente não atende sem reserva antecipada. É preciso ligar com pelo menos uma hora e meia de antendência. Ele explica: O preparo é trabalhoso, exige paciência, envolvimento. Não pode ser assim de sopetão. Caso contrário seria apenas mais do mesmo. O peixe pode ser frito ou ao molho. Em qualquer das condições acompanha apenas arroz branco. Se o cliente assim desejar, poderá haver algumas verduras. Apenas o básico.

A rusticidade do empreendimento garante o sucesso. Naquele espaço funcionou inicialmente uma marcenaria. Seu Vicente era, originalmente, marceneiro. Até que adoeceu. O médico que o atendeu recomendou uma dieta a base de peixe e nada de carboidratos. Apenas peixe, pouco arroz, muitas frutas e verduras. Ele começou a fazer para si mesmo. Acontece que a marcenaria era muito frequentada por artistas que traziam seus instrumentos musicais para reparar. Violões, baterias, outros mais.

Dali a mais um tempo virou apenas desculpa para filar a boia de seu Vicente. Ao se dar conta, estava fazendo peixe demais, e doando toda a comida. Chegava um, chegava outro. Fique para o almoço, estende-se a permanência para o jantar. O jeito foi passar a cobrar. Então sua irmã lhe deu uma mãozinha: Por que não monta um restaurante? Ele não teve dúvida de que ali poderia estar o seu destino. A oficina já não apresentava nenhum rendimento. Ou quase nenhum. Fato é que meses depois estava criado o Clube VTS e a clientela original permanece firme até hoje. 

Seu Vicente, para quem não sabe, é um exímio violonista. Toca e canta. Outros também comparecem para tocar e cantar. As serestas ao vivo costumam se estender pelos finais de semana. Há quem diga que estamos diante de um camarada um tanto irritado, sempre de cara amarrada. Mas este é apenas o jeito de ser do nobre amigo. 


Toni Rodrigues

24.7.17

Notícias do cajueiro que fica por cima dos ensaios da Banda Fragmentos de Metrópole




Notícias do cajueiro que fica por cima dos ensaios da 
Banda Fragmentos de Metrópole

Ei pega um caju pra mim? Pra falar de algumas frutas. O Fernando é como um caju de vez, aquele bem verdim, um pouco gordim, marrom meno maduro, mas que nunca cai do pé. O Alexandre é aquele caju de dentro de uma garrafa de cachaça das boas, todo mundo pensa que aquele caju tá podre, mas na verdade é nele que tá toda a poesia da cachaça e só experimenta daquele caju quem tem muita coragem. A castanha desses dois caju (sem plural, não quero jus!): É a Basquitrícia, aquela castanha que foi torrada no meio do sol quente de Teresina, mas que só ela tem o sabor da arte quando degustada. Pra quem não sabe essa banda surgiu na estação dos cajus de Teresina! A estação passou e esse cajus continuam sem cair do cajueiro. Um abraço em todos os Fragmentos. Por enquanto descrevo 2 cajus letristas da banda, depois falarei de outras frutas.

Alan Sampaio
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
via caixinhadefosforofotografica

25.2.17

O CINE REX E NÓS, Alan Sampaio





Roteiro e direção: Alan Sampaio
Produção: Alan Sampaio e David Marinho
Direção de Fotografia e Câmera: Alan Sampaio
Edição David Marinho
Elenco: Ademilton Moreira como Alan Sampaio; Roger Ribeiro como o Homem que queria transformar o Cine Rex numa igreja!

UM HOMEM SEM UMA CÂMERA, um filme de Alan Sampaio






Roteiro e Direção: Alan Sampaio
Produção: Verônica Coelho
Lançamento: 2007
Duração: 18 min

11.2.17

"Minissérie" composição de Fernando Araújo, por Hugo dos Santos




"Minissérie", composição de Fernando Araújo, por Hugo dos Santos

Hoje eu acordei foi na pior
um mal humor terrível desses de dar dó
em facas em ouro ou em qualquer metal
Vou mergulhar de vez no escuro da razão
andar às cegas, sem direção
e esconder os passos pra ninguém seguir
Mas um buquê de flores do inimigo mais fiel
me fez ficar sentado nos degraus do céu
e enxergar de perto o dono do portão
Mas o grande arquiteto não quis me abraçar
fiquei pensando num segundo em não poder voltar
Ele pensou que me abraçando ia manchar de sangue
seu terno novo de general

Bye, bye bom senhor
aqui em cima não tem carnaval
Bye, bye bom senhor
quero viver num mundo trivial
Bye, bye bom senhor
aqui de cima a gente finge ser normal
Bye, bye, bom senhor
na próxima minissérie
eu quero ser a personagem principal.

Hoje eu acordei foi na pior

(...)

ler, ver,
              rever
                         -ter
Incorporar

Exú
        desvairando
mito

As imagens foram feitas em janeiro de 2013, numa visita de Pedro Coelho a cidade de Teresina. Kilito Trindade nos recebeu em sua casa durante dois dias seguidos, momentos experimentais experimentos, onde não se sabia quem era o rato, quem era o cientista. Hugo dos Santos tocou a linda cantiga de Fernando Araújo, resolvemos gravar. Á noite, na companhia de Ferreira Smith, saímos às ruas, Destino incerto. Lugar Praça Pedro II. Espasmos Estouros. A Pura Piração do Cara. Anos depois, reencontro Pedro, em Recife. Noite de vinho papo e som. Esse é o vídeo." por Chico Neto.

(...)

Edição de vídeo: Chicho NetoPedro Coelho
Com Ferreira Smith & Kilito Trindade
Teresina, 2013

26.12.16

Os ratos, Graça Vilhena


há um lugar
onde moram os ricos
e outro os pobres

porém há um povo
que mora em qualquer lugar
da cidade generosa
com seus chafarizes e sombras
bancos e marquises

dele nada sabe o rico
nem o pobre
só os ratos que engordam
e correm pelos domingos vazios
do centro da cidade


Graça Vilhena
em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

20.12.16

Cidade Frita, qual teu itinerário nesta tarde? um epílogo, por Chico Neto




Cidade Frita, qual teu itinerário nesta tarde? É certo que girarás no espaço, margeando o abismo, com teu Caronte Cabeça de Cuia, um dos guias neste inferno. Mas por quais caminhos do passado, do presente, do futuro teus pés escaldantes irão nesta tarde? Em quais poemas ressurgirá o choro que tua beleza uma vez provocaste? Aqueles corpos apaixonados que deitaram no leito de teus rios para nunca mais surgirão em que fotografia? Cidade Frita e os teus. O calor purifica feito água, faz esquecer e suar tudo quanto carregamos de memória, vida, morte. Mas, por um artifício, tu permaneces com tua penca de gente, de praças, de ruas, de momentos. 

Teu artifício: Cidade Frita.


Texto de Chico Neto, que acena no vídeo
Filmagem de Rodrigo M Leite, nas
Torres da Igreja de São Benedito, Alto da Jurubeba, Teresina - Piaui

"cidade frita", Rodrigo M Leite


cidade frita entre rios
asfalto brita calafrios
idade grita entre pernas
sal limão sangue menstruação


Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita
Teresina: 2013, versão atualizada

5.12.16

Sábados, Graça Vilhena

Para o Prof. Marcílio Rangel de Farias,
in memoriam

os mendigos tinham nomes
as casas muros baixos
e quando os rios alagavam
barrentos de chuva
muitos de nós andávamos pelas ruas
em roupas alvas
passadas de dor
contaminados pelo infortúnio
dos alagados

e assim crescíamos
sem nojo e medo
no tempo em que a cidade
cabia inteira
nos braços de Deus


Graça Vilhena
em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

7.11.16

SONETO DO RIO PARNAÍBA, Odilon Costa, filho




A primeira visão que dos teus olhos
minha voz arrancou sobre o jardim
foi das águas ao luar e das canoas
que viram minha infância e tua infância.

E há, neste anseio sempre renascente
de unir as nossas almas num só corpo,
uma repetição dos aconchegos
do Parnaíba com as lavadeiras.

Naquele tempo, nupciais e puras,
as mulheres vestiam-se de peixes,
uma camisa ou nada sobre a pele,

nádegas, peitos, púbis ofertados,
e o rio era possuído e as possuía
no mergulho auroral entre os barrancos.



Odilon Costa, filho
Poema da série "Arca da Aliança"
Publicado em CANTIGA INCOMPLETA
Rio de Janeiro: José Olympio, 1971

CIDADE PACATA, Nathan Sousa


ao poeta Paulo Machado


Não há galos para despertar
as manhãs escaldantes de Teresina,
mas há fumaça e buzina na Barão de Gurguéia,
com carros tirando fino
no vendedor de pamonhas.
Pamonha de milho,
doce ou salgada,
para o desjejum - grita
o vendedor.
Às quinze horas
Antonio do Quebra Queixo
bate a mala de madeira
(insistindo em tornar a vida doce)
com a masca de fumo na boca.
No bar do Chico,
Gladstone Sucupira pede uma moeda
para jogar na máquina caça-níquel,
dois cigarros Derby
e a caixa fósforo
(emprestada)
disparando
um de seus delírios
ao me avisar que Eric Clapton
trocou sua guitarra
por um saco de mangas de fiapo,
roubadas em Timon.
Willamy France, o Pinto,
faz um olhar espantado
e me pergunta:
como assim, totalmente?
À noitinha, o mesmo
vendedor de pamonhas
tornar a passar
depois de um dia inteiro
tirando fino
na morte.



Nathan Sousa
em O PERCURSO DAS HORAS
Edição Independente, 2012

24.10.16

NAS PEGADAS DO RIO, Humberto Guimarães


CAPÍTULO XI (trecho) 
VOGANDO NAS ÁGUAS BARRENTAS


Um dia, perambulando por Benedito Leite, onde era bastante conhecido, chegou à quitanda do senhor Benigno para comprar cachaça, tendo a oportunidade de assistir ao final de uma transação que o dono da quitanda estava a fazer com João Costa, um rico boiadeiro de São Félix do Maranhão, cidade vizinha a Loreto.

João Costa e sua família eram os donos políticos da cidade, sendo temidos e obedecidos por todos os munícipes .

Pois bem. Julião fez como se não tivesse nenhum interesse no negócio, esperou que o boiadeiro recebesse o dinheiro, pediu a cachaça e saiu a seguir.

Imediatamente procurou seu filho Santero e um outro comparsa que não se sabe o nome e, tomando a estrada para São Félix, que margeia o rio Balsas, ficaram de tocaia a alguns quilômetros da Forquilha - local onde o Balsas se derrama no Parnaíba. Mais exatamente, esconderam-se por trás da "Pedra dos 30 Trinta Bois".

João Costa, com seu revólver 32, Smith niquelado, cabo de madrepérola, à cintura, e seus sapatos à moda - um lado branco e outro marrom, montando seu cavalo arisco, sela coberta de cochonil branco e cincha vistosa, satisfeito com o bom negócio que fizera, ruma agora, tranquilo, para casa.

Ao atingir a "Pedra dos Trinta Bois", é assaltado pelos três patifes, sem poder reagir. Matam-no. Roubam-lhe. A seguir pegam o cadáver. atam-lhe uma pedra ao pescoço e o fixam com cordas por baixo de um pau que está semi-coberto pela águas, à margem, recoberto de limo.

E fogem, como só eles sabem fugir.

Passa o tempo. A família sabe que João Costa saiu de Benedito Leite em direção a São Félix, mas ali jamais chegara. Não há duvida de que ele fora assassinado. Entretanto, nem sinal de pista.

Contudo certo dia um vaqueiro vai passando pelo local a tanger um boi encaretado, quando avista, boiando, um pé de sapato branco e marrom. Facilmente descobre o cadáver por baixo do pau, já totalmente estragado, a pele largando dos ossos, a fedentina se espalhando, insuportável, quando o procura remover.

Leva a notícia a Benedito Leite, que entra em comunicação com São Félix. A família da vítima vem aprestar-lhe o enterro. Tem a intenção de levar o corpo para o cemitério de sua cidade, mas o adiantado estado de putrefação não o permite. Assim, os restos mortais de João da Costa são enterrados por trás da "Pedra dos Trinta Bois", bem onde se esconderam seus assassinos.

E nada dos criminosos, apresar da caçada intensa que a família promove. Só algum tempo depois o acaso facilita as coisas, pondo a falta de cautela num dos matadores, o Santero, que, num botequim de São Félix, numa estúpida afronta, embriaga-se, faz baderna e expõe o revólver, que não teria jamais condições de comprar. A arma é logo reconhecida por circunstantes. A família da vítima é avisada e na mesma noite Santero é preso. Depois de um arrocho policial que mal começou, Santero dá o serviço: Julião tinha descido num "macaco" para tucuns, com um carrego de farinha e rapadura, seu mesmo. O outro tinha desaparecido para Goiás.

Policiais de Benedito Leite e de Uruçuí vão a Tucuns e, sem dificuldade, pegam Julião numa venda de cachaça, já se aprestando para a volta a pé. Ao chegarem a Uruçuí, o delegado não o aceita, diz que a ocorrência fora do lado do Maranhão, e julião é levado para Benedito Leite, onde é juntado ao filho, no interior da cadeia.

Numa meia-noite velha sem lua, aconchavados com os soldados, que relaxaram a guarda, os jagunços chegam e ali mesmo matam Santero enforcado e o deixam pendurado às grades por um fio de arame farpado, - a fixação de um facies de desespero, a língua numa projeção flácida: terrível máscara de morte. A seguir pegam Julião e colocam-lhe o "anjinho" - instrumento de tortura que consiste num aro de ferro que é colocado em torno da cabeça, com um parafuso de cada lado, à altura das têmporas. Colocam o instrumento abraçando a cabeça do sujeito e vão arrochando os parafusos que, ao passo que o conjunto vai-se apertando, vão penetrando até saltarem os olhos das órbitas oculares entre gritos e impropérios, entre choro e ranger de dentes, numa dor física inominável.

O silêncio da noite foi quebrado pelo gritos de Julião, logo abafados pelo tufo de estopa que entupiu sua boca e calou sua voz. Quando os olhos do negro saltaram das órbitas, cortaram-lhe a língua com uma faca dentada. Depois, começando pelo dedos dos pés e das mãos, foram-lhe cortando junta por junta. Na sanha dessa vingança não ouviram o último suspiro do negro, mas ao darem-no por morto, continuaram a cortá-lo até não ficar junta com junta.


Humberto Guimarães,
Publicado no livro "NAS PEGADAS DO RIO"
COMEPI: Teresina/PI: 1982

22.10.16

AINDA TERESINA, Cineas Santos


Para Paula Danielle


Ainda não é uma cidade grande, graças a Deus! Ainda há quintais, mangueiras, passarinhos e meninos para persegui-los. Ainda se vêem pipas bailando no azul das tardes de maio e, nas manhãs de agosto, ipês derramam ouro nas calçadas. Ainda persiste o costume da cadeira na calçada e aquela conversa espichada de quem espera a brisa que ficou de vir lá do litoral. O Mercado Central, com o seu cheiro inconfundível, resiste. Lá é possível comer uma autêntica dobradinha, tomar uma talagada de cana com casca de angico, consultar um raizeiro ou "tirar um retrato" no lambe-lambe. Um pouco mais adiante, impera o Troca-Troca onde, com paciência e muita lábia, pode trocar-se quase tudo, inclusive uma de 40 por duas de 20, desde que entrem alguns caraminguás na transação.

A cidade ainda é reconhecível apesar dos esforços dos que tentam, a todo custo, desfigurá-la. Ainda existem os rios e os que vivem dos rios: pescadores, lavadeiras, canoeiros. No Encontro das Águas, por alguns centavos, meninos entanguidos recontam, à sua maneira, a lenda do Cabeça de Cuia, nunca esquecendo de trocar o verbo comer por devorar. Segundo eles, "comer virgem é prosa". Ainda persistem, nos subúrbios, práticas bem nossas como a de afixar na parede frontal da bodeguinha a placa: É AQUI O FULANO. A simples menção do nome do proprietário é uma espécie de garantia da qualidade do que se vende ali. Nos letreiros das fachadas, escancara-se a megalomania enrustida: há "reis" para todos os gostos. REI DO FRANGO, REI DOS FREIOS, REI DOS ESTOFADOS, REI DOS PARAFUSOS, REI DO TUCUNARÉ e até um inusitado REI DO TAMBAQUI ASSADO. 

É certo que o espectro da violência já ronda a cidade, mudando hábitos antigos. Mas persiste o costume (tão nosso!) de pedir "emprestado" uma colher de pó de café, uma xícara de açúcar, dois dentes de alho, com o compromisso tácito de nunca pagar. Ainda há fuxico, brigas de vizinhos, gestos de solidariedade, grandes cumplicidades e toda essa teia tênue que dá consistência ao tecido comunitário. Ainda há um geito teresinense de ser.

Mas há outra cidade que desponta veloz, que se verticaliza como se quisesse distanciar-se de tudo que lembre a província. É a cidade dos edifícios com nomes de celebridades; dos que tem os pés aqui e a cabeça em Miami; dos que não vivem sem a presença do celular; dos que só circulam à noite; dos que fazem grandes negócios; dos que ignoram a lei; dos que nada temem; dos que metem medo, dos que, tendo nascido aqui, não sabem exatamente onde fica Teresina.

Impedir que essa cidade veloz e voraz engula a cidadezinha que se fez com trabalho, sacrifícios e ternura é tarefa inadiável. é preciso mostrar aos bem-nascidos, aos alpinistas, aos emergentes que há espaço para todos: para o Teresina Shopping e para o Mercado do Mafuá; para o Tarrafa's e para o Restaurante da Tijubina; para o Garden e para o Cabaré da Pretinha; para o Ensaio Vocal e para a Maria da Inglaterra, com o seu famoso "Estrela de Luzilândia", o único conjunto do mundo capaz de acompanhá-la, ou melhor, de persegui-la.

Que a cidade cresça, prospere, se modernize, mas sem abrir mão do que tem de melhor: a generosidade com que acolhe a todos, como acolheu, numa remota manhã de maio de 65, este cronista de meia-tijela que está fazendo todos esses volteios apenas para dizer o óbvio: TE AMO, TERESINA.

Jornal MN, 2000

em As Despesas do Envelhecer 
Teresina: Corisco, 2001

21.8.16

Teresina anivessariou: 164 anos

Teresina, por Dino Alves

Quando eu nasci Teresina ainda ia fazer 100 anos no ano seguinte. Palmeirais, meu berço, nem tinha dez anos que deixara de ser Belém. Sou filho de cidades novas. Quase contemporâneas. E nesta semana Teresina aniversariou em dezesseis. Cidade menina. Parece um passarinho que troca de penas ainda pela primeira vez. 

Conheci cidades na Europa que conservam suas ruas e algumas construções de muito antes dos portugueses chegarem por aqui. Mas Teresina está abandonado o traçado geométrico que o jovem Saraiva imaginou, antes de virar Conselheiro do Império. Oeiras, mesmo abandonada para dar lugar à nova capital resiste no seu casario colonial centenário. Teresina queimou suas casas de palhas antes de fazer 100 anos. E vai chegar ao segundo século absolutamente irreconhecível no seu passado. Tem jovens que nasceram na cidade nova que nunca puseram os pés na cidade velha.

Inexorável, Teresina atravessou o rio Poty para o leste e esqueceu a cidade velha. A festejada ponte estaiada funciona como um portal moderno que nos faz adentrar na cidade nova, o que para mim – que a deixei há quarenta anos – não faz qualquer sentido. Sou contemporâneo da ponte metálica que nos separava de Timon, da Avenida – que nem precisava chamar de Serafim –, da Igreja das Dores, da Amparo, da São Benedito, da Pedro II, do Clube dos Diários, da Rio Branco, da Estação, do Marquês, da Vermelha, da Piçarra, do Poty Velho, do Mercado Velho, do Mafuá, da Vila Operária, do Porenquanto – bairro de nome poético que era pra ser provisório e está perpetuado no esquecimento da cidade antiga.

A minha saudade está esmaecendo e ficando sem lugar.

Quando Teresina aniversaria me lembro do poeta Lucídio de Freitas:

Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida.
Espera-me, distante, em outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


em 21 de agosto de 2016

25.7.16

Cantiga para Teresina, por Carvalho Neto



me abraças e tremes
como pássaro ferido
e balouças
ramagem ao mais leve vento.
ouço teu coração
ou será o meu?
com passos naturais e definitivos,
vejo-te vagar em campos florescentes
na primavera de um cartão-postal
que nunca recebi.
ofereço a ti
a canção solitária
e solidária
dos que não sabem cantar
só sentir
só luar.



Carvalho Neto
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão