23.12.11

EX-TERESINA




Teresina,
A minha,
Essa não há mais.

A minha
Era uma cidade sem cais
Pois essa atual veio depois
Do desaparecimento da Palha de Arroz

A Teresina
Dos Cajueiros
Do Barrocão
Da Maria Tijubina
Essa não mais se mostra à retina

A da Estrada Nova
Da Baixa do Chicão
A da Usina
Não há mais tal Teresina

A da vitamina do Mundico
Do pastel do Gaúcho
E a do Bar Carnaúba
Do programa do Al Lebre
Da crônica do Carlos Said
Das aulas de A. Tito Filho
Das agências da Saraiva
Do teatro de Santana e Silva
Das raparigas do corso

De tudo que já foi
Resta a cajuína
E uma nova Teresina
Que nunca termina
E constantemente nos ensina
A ter o seu amor como sina



Climério Ferreira
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

22.12.11

FOTO TABOCA




Quem não deixou
sua alma aprisionada
em 3X4
no lambe-lambe
do Seu Chiquinho
na Praça da Bandeira?



Marcos Freitas
em Urdidura de sonhos e assombros
Poemas escolhidos (2003 – 2007)
Rio de Janeiro: CBJE, 2010

21.12.11

TERESINA




Hoje, eu te contemplei
      na fantasia
            dos meus olhos

E te senti
      no calor da terra solta
            de minha infância

E subi
      nas tuas árvores verdes
            de minha juventude

E te molhei
      na água filtrada
            de minha saudade



Hélio Soares Pereira
em Onde o horizonte vem esconder-se...
Brasília: Gráfica e Editora Esteio, 1982

18.12.11

MANO VELHO, Climério Ferreira


dez horas por dia
ele esmurra as águas
esquecido do próprio nome
e nem treme a fala

(na beira do Parnaíba
entre surrões e cofos
suspira e tenta sonhar
um resto de homem)

nas águas sujas do ex-rio
o vaporzinho de cores berrantes
cruza a lancha moderna e veloz

mano velho, setenta anos,
vê no progresso uma língua estranha
à sua fala — e cala.


Climério Ferreira
em 16 Porretas 
Brasília: Gráfica do Sindicato dos Jornalistas, 1979

CLIMÉRIO FERREIRA - síntese biográfica





Climério Ferreira nasceu em Angical/PI. Mora em Brasília desde 1962. Poeta, cantor, compositor e professor. 5 livros (poesia, entre os quais Artesanato Existencial) publicados e um CD - Canção do Amor Tranqüilo (1995, direção artística de Clodo Ferreira). Participou de várias antologias. Com Clodo e Clésio, gravou 6 elipês. É parceiro de Ednardo e Dominguinhos. Tem músicas gravadas por Nara Leão, Elba Ramalho, Amelinha e Fagner.

16.12.11

CALOR REPENTINO




outro dia
cheguei a Teresina:
um calor quente de rachar.

no dia seguinte
parti de Teresina
que vontade enorme de ficar.



Marcos Freitas
em Moro do lado de dentro 
Rio de Janeiro: Ed. CBJE, 2006

15.12.11

RUA PAISSANDU, José Ribamar Garcia


Esta rua nasce no Parnaíba, para variar. E acaba na Pedro II. Mas o seu ponto forte, seu pique, o que a tornou famigerada, procurada, cobiçada, se situava nas primeiras quadras e se estendia pelas transversais próximas: A zona do meretrício. O prolongamento dos fins de programa. A continuação das farras iniciadas no Clube dos Diários, no Jockey Club. Ali, a noite era toda sorriso. A ansiedade, a curiosidade da primeira vez do iniciante. A cachaça dos habituados. o lenitivo do tédio dos inconformados. O refúgio dos inibidos, introvertidos. A satisfação das taras, manias, neuroses. A demanda geral do prazer, da variação, do diferente. O descarrego dos espermas retidos de jovens namorados. A eterna dor de cotovelo das mal-amadas. A preocupação das mães. O consumo de antibióticos contra a gonorréia, a sífilis, para gáudio da Botica do Povo, que esvaziava seu estoque e faturava. E o Jaime Gordo, olhando sobre os óculos de aros finos, acertava de cheio no diagnóstico, enquanto o Manoelzinho, semiperneta, com as mãos hábeis, furava bundas com suas agulhas, cuidadosamente desinfetadas. A perdição ou salvação. A ressurreição, afinal.

Os cabarés de fachadas iluminadas. As casas com calçadas altas e as mulheres sentadas à porta. Os becos de casinhas de um só cômodo Os bares, os botecos. Os salões de sinuca e o taco batendo a noite toda. A bola rolava macia sobre o pano verde. A quatro caçapa, a cinco em sinuca e um cara anotando os pontos no quadro-negro dependurado na parede. Vendedores ambulantes com barracas de comida - sarapatel, panelada. Ébrios caindo pelas paredes incomodando o sono dos mendigos. mulheres vagando tentavam salvar a noite. Pois cobra que não anda não engole sapo. Também não leva porrada. Alguns viadinhos saltitavam, solitários, segregados. Macho que se prezasse não transava com pederasta. Nem batia em mulher. E, contrastando com essa decadência humana, estavam o Estrela, o Danúbio com suas mulheres novas, limpas, selecionadas. Algumas de outras capitais. Menina-moça, escondia a idade nas pinturas, disfarçando os comissários de menores, mais preocupados em participar do que em reprimir. Garota de 13 anos fazendo carreira, sem corpo ainda de mulher, mas peitinhos despontados, já com pelos, desinibidas, mas sem jeito de fazer. À meia-luz no salão. A orquestra sobre o estrado num canto. As mesas dispostas em círculo e o espaço vazio no meio para a dança. Bolero, samba-canção, rumba, fox, tango, baião. A variedade para gostos diversos. Só não dançava quem não queria. Muitos aprenderam a dançar naquelas pistas, descontraídos, porque podiam errar os passos que ninguém ia reparar. A cerveja a preço dobrado da praça. Escolhia-se a mulher, com ela se bebia, dançava e depois o amor, sem pressa, no quarto, instalado nos fundos, que mal cabia a cama, a penteadeira, o guarda-roupas de solteiro. E a indefectível bacia com água, sob a cama, para lavar o membro do parceiro após o ato. O preço do amor dependia da mulher, pois, quando ela simpatizava com o sujeito nem cobrava, ou deixava o valor a seu critério. Ainda suplicava que passasse a noite com ela. A maioria era ingênua. Sonhava com o dia em que surgisse alguém para lhe tirar daquela vida. Algumas davam sorte e viravam amantes de velhos endinheirados, que lhes montavam casa, davam-lhe apoio e segurança. Essas mudavam, radicalmente, de comportamento, só devotando a fidelidade ao seu homem. As histórias se pareciam. Origem humilde. Namoro. Defloramento. Expulsão de casa. Ou família numerosa. Miséria. Fome. A fuga para sobreviver na cidade grande. Sem conhecimento e nada sabendo fazer, convergiam para aquela vida, sem alternativa.    

No Estrela, ocorreu a desmoralização do Cecéu, boêmio inveterado, vivendo às expensas do pai e tido como bom de briga, já tendo enfrentado no braço, uma guarnição da Polícia Militar. Nada lhe acontecia, devido ao prestígio político paterno. Boa pinta, cabeleira cheia, com topete caindo sobre a testa. Andava impecavelmente, vestido de linho, todo engomado. Achava-se belo, irresistível e querido pelas mulheres. No entanto, levou uma surra feia de uma rapariga porque cismou de colocar no seu traseiro. A mulher virou bicho. E lhe meteu a tranca da porta nas costas e ainda saiu espinafrando-o pelo salão, dizendo que ela podia ser tudo, menos galinha. Que devia ser respeitada. Foi um vexame. O Cecéu saiu contorcendo-se, envergonhado mais pela rejeição e humilhação pública do que pela paulada. O acontecimento se espalhou. E ele passou a ser chamado de Cecéu Corococó.

Fazia ponto no Danúbio o poeta Valdomiro. Figura magrinha, baixinha, de aparência frágil. Adorava ser chamado de poeta. Fazia versos para as mulheres; mas cada vez que compunha um poema, gozava nas calças, sujando-se todo. Tornou-se conhecido como o poeta do gozo fácil. Parecia não se importar com essa situação. E permanecia o tempo todo sentado a uma mesa, bebericando sua cachaça pura.

Não se falava ainda em tóxico. Nem mesmo no meio da malandragem, que se satisfazia com o álcool ou com o lança-perfume no carnaval. Aliás, no corso, os carros mais animados e bonitos eram os das putas. Fretavam dois caminhões e de divertiam atirando pó de arroz no público. Quando elas passavam, os homens viravam as caras, com receio de serem reconhecidos. Havia até uma senha usada por elas: lá vem o carro das primas. Coisa mais ou menos assim.

Até mesmo as brigas - um tanto frequentes - eram na base do punho, quando muito na faca. Não se usava arma de fogo. Pairava em tudo certo romantismo. Ainda uma pureza e respeito ao humano.


José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

14.12.11

Rua da Glória, Graça Vilhena

para o poeta Paulo Machado

paisagem de sol nascido
na estação do trem
cerzindo os dias
sobre as pedras da rua
que abrolhavam luz

manhãs tangiam beatas
palmolivelmente
para a missa do Amparo

senhoras varriam calçadas
recolhiam leiteiras
e caçavam histórias
com as suas línguas de camaleão

no mercado central
as verdureiras arranjavam
buquês de cheiros-verdes

e mais além
mulheres permaneciam
sem hora de seus dias
dissolvendo-se em transparência
nas escamas do cais


em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

7.12.11

CANTO EM TERESINÊS, Edmar Oliveira


das carnaúbas da minha terra
quase em disco de cera escutei
minha bandeira verdamarela
carnaubei palmeira bela
no porenquanto dos meus momentos
morrurubú de tantos ventos
gregoriei de água e vela
e aprofundei minha'alma nela
cidade em rio mergulharei
crispim do mar que nunca erra...


em Livreto do XXXIV Sarau Lítero-Musical Ágora
Teresina, agosto de 2010

6.12.11

TER-E-SINA, Francisco Miguel de Moura


Há Roma, Paris e Bagdá
com sonhos que não sei
com céus que me escaparam
pelos pés.
Você conheço de pele
de manha
de manhãs desfeitas
de sol e chuva meio a meio
de ponte anoitecer
de rua e rio e rima.
Só você com seus ares
de mulher que ensina
a vida, o ventre
e o tonel.
Teresina conheço de antros
de antes
Bagdá é um sonho
não vou lá.
Meu sonho em que sonho
de acordo
é você.


Francisco Miguel de Moura
em Presença da literatura piauiense
Organizado por Luiz Romero Lima
Teresina: 2003

4.12.11

A RUA, Torquato Neto


Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba

De uma rua de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas

Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
Rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua

Ê São João ê Pacatuba
Ê rua do Barrocão
Ê Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão
De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão

Ê minha rua meu povo
Ê gente que mal nasceu
Das Dores que morreu cedo
Luzia que se perdeu
Macapreto Zê Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu
Ê Pacatuba
Meu tempo de brincar
Já foi-se embora
Ê Parnaíba
Passando pela rua
Até agora
Agora por aqui estou
Com vontade
E eu volto pra matar
Esta saudade
Ê São João, é, Pacatuba
Ê rua do Barrocão.


Torquato Neto
em Torquatália, do lado de dentro
Paulo Roberto Pires (org.)
Rio de Janeiro: Rocco, 2004

3.12.11

TERESINA, Paulo José Cunha


Há quem te queira apenas Capital,
Cheia de prédios, moderna, vertical.
Mas te queremos também horizontal,
cidade calma, arejada, tradicional.

Há quem te queira só central,
nervosa, agitada - comercial.
Mas nós te amamos também periferia,
de gente pobre, alegre, simples: natural.

Falar mal do teu calor é puro engano
dos que não conhecem teu calor humano
Os que só veem em ti o moderno e o novo
não percebem que a cidade é o povo
e que és mais que cidade - és a síntese
de um Estado que olha pro futuro
sem jamais esquecer seu passado.

Claro que te queremos grande, moderna, progressista,
mas te queremos eternamente ingênua e pura,
amiga, sentimental, sempre menina,
ternura antiga, flor mimosa - Teresina.


Paulo José Cunha
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

2.12.11

FERRÉ, José Pereira Bezerra


Duas horas da madrugada dum domingo. No Morro do Querosene a movimentação diminui: as portas dos quartos das Putas, fecham-se e não mais se abrem, mas ainda ouve-se sons de copos que se confundem com gritos histéricos e exaltações de bêbados. Defronte a um cabaré, Ferré, homem alto e magro, trabalhador braçal, cambaleia ao ritmo do peso do próprio corpo. No dia anterior, da construção rumou aos botecos - encher a cara de cachaça - deixando a mulher e os quatro filhos dormindo sem jantar. Quando chegasse em casa tinha certeza da briga que a mulher devia estar aprontando, a exemplo de ocasiões anteriores "e com muita razão". Maria não se conformava com a atitude irresponsável do marido, e não raro trocavam tapas e pontapés sob os olhares lacrimosos das crianças amedrontadas. Ferré, não obstante a embriaguez tolher-lhe o cérebro, quer dormir com a família. Já está sem dinheiro, e a vontade é traída pela fraqueza do corpo. Rodopia, não sai do lugar. A cabeça doí-lhe e um mal-estar no estômago aflora. Acerca-se da calçada quase de quatro, senta-se com dificuldade. Minutos após está estirado em decúbito dorsal, dormitando, com as pernas afastadas em da outra, a camisa aberta, suada e suja de vômito. Adormece. Ao amanhecer, acorda atordoado com o sol ferindo-lhe os olhos. Moroso, senta-se e se põe a pensar na sua condição de pobre, bêbado e de pessoa. Não vê diferença. Senta-se envergonhado e num assomo de emoção, chora convulsiva e covardemente. Sai cambaleante, arrasado. Não deslumbra outras formas de desabafar o desespero, a não ser bebendo cachaça e/ou brigando com a mulher. E ainda existem pessoas que acham a situação de Ferré e sua família muito normal e até necessária. No caminho muitos vêem-no e dizem prosa: "a cachaça te mata", "a cachaça ainda mata o diabo". Ferré não responde, segue em frente, mas um palavrão contido às pressas escapa numa cusparada liguenta, (...). Baixa a cabeça, cerra as pálpebras e evita o pior, humilhado.


José Pereira Bezerra
em O Sono da Madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976

1.12.11

O CABEÇA DE CUIA, João Ferry


Com o sol a pino, um dia, no Poti,
Um pescador voltou da pescaria;
Vinha fulo, porque no seu pari;
Um peixinho sequer, nele caía.

Alegre a velha mãe o aguardava
Com o almoço frugal que de costume,
Para o filho querido preparava,
Quando vinha feliz com seu cardume.

Neste dia, zangado, o belo moço,
Tratou mal a velhinha e aos palavrões,
Recusou-se aceitar seu almoço,
Uma ossada gostosa de pirões.

Em vão a velha mãe bondosamente,
Com mimos, com carinho e com amor,
Procurou acalmar o imprudente,
Que tomando um osso, um "corredor"...

Bateu na velha mãe, em louca fúria,
Esmurrou-lhe a cabeça veneranda
E cobrindo-a de apodos e de injúria,
Mostrou sua alma vil, negra e execranda.

Com a dor, a velhinha atordoada,
No terreiro de casa ajoelhou,
Filho ingrato, cruel desnaturado,
E mil pragas do céu invocou...

Filho maldito, o rio há de tragar-te,
E entre todas as suas agonias,
De monstro que tu és, para salvar-te
Haverás de engolir 7 Marias...

E o filho como um louco caiu n'água
No lugar "Poti Velho" e ali sumiu-se,
E a velhinha chorando a sua mágoa,
Ao sol quente, de dores, sucumbiu-se.

E é voz corrente que o Poti gemendo,
Quando a cheia do rio em fúria desce,
O "Cabeça de Cuia", um monstro horrendo,
Nas águas a boiar sempre aparece.

E ao que consta, até hoje, o imprudente,
Não conseguiu tragar uma só Maria...
E há de viver assim eternamente,
Um fantasma de dor e agonia.


João Ferry
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)  
Teresina, 2006

29.11.11

O OURO DE TERESINA, Claufe Rodrigues


A primeira vez que estive em Teresina
Vi que seu destino não é ser uma Constantinopla
Com seus exércitos de Nova Roma destruindo os vizinhos
Cidade-Máquina, Cidade-Monstro, Cidade-Moeda, só morte e poder.

Teresina também não seria uma Alexandria
Capital cultural intelectual e artística do mundo helênico
Com as imponências da corte a impor-lhe a sorte.
Tampouco Teresina se compara às potências industriais do norte.

Não,
Teresina é feita de chão, de gente, de águas, de barro, de árvores, de nuvens,
Até mesmo dos mosquitos que atacam na beira do rio no fim da tarde.
Teresina tem um Tê de Tetê
Um rê de Regina
Um si de sina
Um na de nadar não para o mar, mas para a fonte.
Ali encontra seu horizonte,
Sua mina de ouro, seu tesouro:
A poesia.


Claufe Rodrigues 
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

28.11.11

TERESINA, Cristino Couto Castelo Branco


Terra feliz e boa onde nasci chorando,
Onde vi o sol, os céus, as árvores, o mundo...
Onde vi o grande amor em mim desabrochando,
Amor do bem, da luz, do mistério profundo...

Terra feliz e boa onde de quando em quando
Rebrilha no zênite o espírito fecundo
Dos talentos de escol, que surgem quase em bando
Nesta zona de sol, que muito quero, a fundo.

Teresina gentil de ruas alinhadas,
Tens n'alma a placidez das loiras madrugadas,
A beleza, a frescura e o riso das mulheres.

És o trecho melhor da pátria brasileira,
Chapada de trovões, que serás a primeira
Habitação de Deus, dos homens, se o quiseres!


Cristino Couto Castelo Branco
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

27.11.11

IMAGENS SOLTAS, José Ribamar Garcia


O pneu saltitando no paralelepípedo. O menino sem camisa, de calção e descalço, empurrava-o com um pedaço de tábua.
     
O céu girando, girando. A bicicleta substitui o pneu que, por sua vez, sucedeu o velocípede. A Gulliver vermelha, cuidada, brilhava com duas flâmulas do Fluminense dependuradas no guidom. Entrava na Rua Firmino Pires, dobrava à esquerda, na Estrela, caía à direita, na Rui Barbosa, depois à esquerda, na Lizandro Nogueira e, finalmente, na Coelho Neto. A estrela, em alto relevo, na fachada da casa do Monsenhor Chaves. O borracheiro que várias vezes remendara a câmara de ar da bicicleta.
     
O céu girando, girando. A ponte do Mafuá. A linha do trem sobre a qual se colocavam cacos de vidro para que o trem os transformasse em pó, a fim de ser utilizado, como cerol, na linha do papagaio. O Augusto Ferro, reduto dos boêmios suburbanos.

O Cemitério São José guardando lembranças, saudades. Dia de Finados, aquela romaria toda. Os vendedores gritando:

- Olha as velas Três Coroas!

- Olha as flores!

O matadouro, onde se adquiriam, à tarde, fígado, língua, coração, miúdos fresquinhos. O boi sendo arrastado por dois ou três homens, a entrar no salão, ensanguentado. O animal urrava, relutava, esperneava, pressentindo o fim. Com sacrifício, ele era amarrado ao mourão. A faca curta, fina e afiada entrava-lhe na nuca. E a queda brusca. Mais outro a adentrar e a cena se repetia.

O Poti Velho escondido, abandonado, sempre preterido, desde os tempos do Conselheiro Saraiva. Ali a gente caçava passarinho e preá. A mania do Milton Rodrigues de comprar canários, fuçando a periferia da cidade na sua motocicleta barulhenta, que o motor custava a pegar, ora pela bateria, ora por defeito mesmo.

A usina elétrica na beira do rio, fornecedora de água e luz, que funcionava na base da lenha. E as caldeiras queimando madeira, trazida em caminhões das matas maranhenses, já bem devastadas.

A Socopo do outro lado do Poti. Estância mineral com o clube social enfiando no mato. A cidade já marchava para aquelas bandas.

O céu girando, girando. A pescaria debaixo da ponte. A brisa soprava e a canoa deslizava, vagarosamente, sobre as águas do Parnaíba, puxando a rede ou o arrastão. o peixe era assado e devorado ali mesmo, na coroa do lado maranhense, enquanto se ouvia o baque das mangas, caindo no mangueiral que se estendia ao longo do rio.


em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

26.11.11

NOSSO RIO, Hardi Filho


O rio corre calmo e permanece
em nós úmida música, lembrança.
O nosso rio ao sol, ao luar, parece,
às vezes, lerdo, à proporção que avança.

O lixo posto em suas margens desce,
escorre e em grande parte se remansa,
pára em bolsões de ciscos e apodrece
à vista da social intemperança.

Assoreado, o nosso rio empanca
aqui e ali, e quase andando, manca,
e raso e lento obriga-se a desvios.

Apesar disso os peixes, água arriba
e abaixo, abundam no meu Parnaíba,
que é o mais lindo e o melhor dos rios!


Hardi Filho
em Tempo Nuvem 
Teresina, 2004

23.11.11

UM ÍNDIO, Paulo Tabatinga


Um índio perdido
Na Frei Serafim
De óculos ray ban
E de calça jeans

Um índio tapuia
Quem sabe, Poti
Um índio perdido
Na margem da margem
Da Frei Serafim


20.11.11

O ENGRAXATE SILVA, José Pereira Bezerra


Manhã calorenta e ensolarada de dezembro. Silva, engraxate como tantos outros, sentado no banquinho em frente a cadeira de trabalho, na Praça Pedro II, observa detidamente os pés dos transeuntes. Não ligam, passam apressados, indiferentes. O semblante pálido e marcado de Silva está carregado de preocupação e revolta. A incerta espera de clientes fá-lo perder-se em pensamentos inúteis, mas inevitáveis. A manhã já vai alta. Dez horas. E ele ainda não conseguiu o dinheiro da boia. Mediativo, vê os dois filhos magros, pálidos e barrigudos. "Quero cumê, mãe, quero cumê, pai tô cum fome". A certeza da briga da mulher o atordoa. "Tu anda é dando dinheiro pra rapariga". Exasperado, baixa a cabeça, cerra as pálpebras num lamento mudo, angustioso. Não sabe mais a quem implorar, em quem ter fé. Até a macumba o desiludiu. Silva deduz em sua mente turva e frágil que nasceu pra sofrer. Uma passividade quase mórbida o invade, tirando-lhe a esperança de um dia melhorar de vida. Muitos desfilam sob o olhar sensível da miséria. Não sabem? Uns com mãos vazias, outros com braços cheios de embrulhos. "Presente de natal". Silva, vestindo a mesma roupa desbotada e rota todo dia, permanece sentado, olhando os pés de cada dia. Reconhece que sua roupa está imprestável, porém se conforma, contrito. "Não mudo tão cedo, não tenho com quê". De chofre, lembra-se do diálogo que teve com a mulher:

- "Mulher, queria que um de nossos filhos fosse doutor?"
- "Mas como, homem, se não pode nem estudar?"
- "Sei que falta material, roupa e outras coisas, mas..."
- "Além do mais, são burro, custa aprender".
- "Talvez seja a boia, é fraca demais..."
- "Por que tu fica aí alimentando ilusão?"
- "Sei lá, a vida é tão dura. Não custa sonhar".
- "Besta, vai trabalhar!"
       
Antes de ir para casa, num lampejo de sorte, Silva consegue dois clientes. O último é um velho pequeno-burguês conhecido. Com a boca murcha, desdentada, murmura a cantilena de costume:

- Faça um abatimento que sou freguês.
- Sim senhor, patrão.
- Bem caprichado!
- Hum, hum! "Miserável".

Meio dia. Aliviado, Silva monta na velha bicicleta preta e sai deslizando no asfalto. O calor, o suor e a fome fazem-no um sub-homem, vivendo uma subvida crônica, absurda. Os músculos contraem-se entorpecidos. Imagens varrem-lhe o cérebro numa intensidade cega, envolvente. Ato instintivo, range os dentes, o suor fere-lhe os olhos, sente-se fazer parte da própria bicicleta. O trânsito é intenso. Para os cidadãos contribuintes, Silva é apenas um ciclista irreverente atrapalhando os veículos. Para o poeta: "o símbolo do sofrimento humano brigando com o asfalto".


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976

18.11.11

A CIDADE DO POETA, Paulo Veras


Era uma vez um poeta que construiu uma cidade toda de poemas. As ruas foram traçadas em versos livres. Eram largas e cheias de sombra. As casas foram feitas de sonetos, enfileiradas quatro a quatro, três a três. Todas muito bonitas. A igreja erguera-se numa longa ode. Os edifícios, ele os construiu com alexandrinos, majestosos, imponentes. Por fim, tomou um rondó e fez para si uma casinha muito acolhedora no alto do Parnaso.


Paulo Veras
em Poemágico, a nova alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

15.11.11

TERESINA, Mônica Montone


Teresina é uma menina vestida de céu
Que guarda nuvens nos seus olhos de água

É um fio de horizonte que se desprendeu dos cabelos do sol
É um sorriso manso, manchado de cajuína
É a vontade dos pés descalços
De desmaiar sobre o asfalto em chamas

Teresina é uma dama vistosa
Repleta de coroas e anéis
É uma tina de barro lambuzada de paçoca
A coceira de muriçoca
O riso largo dos que nasceram perto d'água

Teresina é o vaso queimado no fundo do quintal
O cheiro de palavra lavada no varal das sestas
É a fresta onde o acaso se traduz

Teresina não é rua, nem rio
Não é esquina, nem casa
Não é um cata-vento, nem peixe
Não é um cão sarnento ou cadela vira-lata

Teresina é uma menina de saia rodada
Que gira gentileza
E desperta para o crescimento

É uma cidade menina
Que brinca nas tranças do tempo


Mônica Montone
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

13.11.11

VIVER EM TERESINA, Marleide Lins

ao poeta Paulo Machado

Férias de galos
bem-te-vis e pardais acordam a cidade
- mais um dia de trabalho -

Fim da jornada
ao assédio da artificial claridade
o sol se esvai com as buzinas dos carros

Frase da noite velada
- (há um poema que rói o tédio) -
e o único grilo é a labuta da rima

mesmo pobre
viver em Teresina
é sina nobre


Marleide Lins
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

12.11.11

O CAMINHO DE ANA, José Pereira Bezerra



Ana, morena, sem pudor, rosto pálido, lábios queimados, horizonte perdido. Vive uma subvida humilhante e desregrada arrastando dois filhos órfãos e pálidos: o protótipo de milhões de homens subnutridos e marginalizados. O sonho cor-de-rosa acabou ao cair na vida de prostituta. Antes, há anos, era tudo muito simples. Vivia com a família numa favela. Não perdia uma novela, não tinha outro divertimento. A cada dia envolviam-na valores burgueses que nada tinham a ver com a condição de vida que levava. Inconscientemente, Ana queria seguir uma vida romanceada e atriz de novela. Não era tudo tão romântico e lindo? A cegueira obscurecia o real horizonte na sua mente fraca, tirando-lhe toda perspectiva de cura. As festas do bairro se sucediam e ela perdia-se nos embalos frenéticos de todo fim-de-semana. Ir à escola era uma diversão a mais, Ana não levava a sério. O capítulo das novelas e o namorado da esquina tomavam-lhe todo o pensamento. Irresistíveis. E assim Ana matava o tempo que a consumia inexoravelmente num ambiente poluído de fraquezas. Um trágico dia - sábado à noite - Ana esperava o ônibus numa parada, quando passou um boy dirigindo um carro e cinicamente ofereceu-se pra levá-la. Resistiu por minutos, vacilante, porém algo mais forte empurrou-a ao veículo do boy desconhecido. "É tão normal, ora bolas, até em novelas das sete se vê isso". Tentava convencer-se da atitude que acabava de tomar. No dia seguinte, quando voltou a si, Ana, morena, simpática, fornida e despudorada, estava caída num terreno baldio da periferia, muito longe de casa. Atordoada, deu uma vistoria no vestido amarelo e vislumbrou manchas de sangue. Após recobrar totalmente os sentidos, e para o seu ódio inútil, achava-se estuprada, com o corpo azunhado e cheio de manchas roxas. Não se lembrava de nada. Arrependida, Ana chorou desesperada e convulsivamente, contraindo o rosto com as mãos. Não queria acreditar. Na sua nova condição de objeto, sentia-se perdida. Ao chegar em casa, os pais sentindo-se ofendidos, puseram-na pra rua. Foi assim que Ana, virgem morena e fornida, tornou-se puta. O sangue virgem de Ana havia maculado o olhar pudico dos homens. Agora a madame de cabaré da Paissandu tinha uma puta boa e simpática para explorar por qualquer vintém. Ana, com o passar do tempo, tornou-se produto barato (seguindo a lei da oferta e da procura) mas de alto custo pra sua própria existência. O caminho era falso, e Ana ainda continua seguindo uma vida errante de fim previsível e trágico. E os órfãos?


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976
Desenho de Evando Vieira, originalmente publicado no livro

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

9.11.11

TERESINA, João Ferry


Do meu bom Piauí, a linda Teresina,
Tem foros de princesa e tem condões de fada.
Cidade nova e moça em forma de menina,
Botão que desabrocha aos beijos da alvorada.

De tanto admirá-la a minha sorte ou sina,
De zelos possuída ardente e apaixonada,
Supõe que o seu conjunto é uma mulher divina,
E em vez de uma cidade, é a minha namorada.

E disto convencido, os sonhos cor-de -rosa,
Dão força ao pensamento e aos loucos devaneios,
Que fazem da minhalma a imagem mais ditosa.

E lembra o Parnaíba, o rio de águas mansas,
Que a cidade verde, em frêmitos e anseios,
Sofralda a fímbria em flor das minhas esperanças.


João Ferry
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)  
Teresina, 2006

8.11.11

João Ferry - síntese biográfica, por Assis Brasil


"A poesia de João Ferry tem duas fases. A do parnasianismo 
multiforme e a da compreensão e assimilação dos novos rumos 
da poesia, procurando libertar-se dos processos matemáticos 
da métrica e da forma". Herculano Moraes


Nasceu João Francisco Ferry em Valença do Piauí, no dia 16 de abril de 1895, onde estudou as primeiras letras com seu pai, o professor José Francisco Ferreira da Silva, no Colégio São José. Com apenas instrução primária, João Ferry parte logo para o trabalho no comércio aos 12 anos de idade. Com a experiência no setor, em breve seria guarda-livros em importantes firmas comerciais piauienses, como a Agência de Rossbach Brasil Companhy, Joaquim Luz & Cia. e Ney Ferraz & Cia., de Teresina.

Enquanto prepara seu livro de versos, Princípios, que será publicado, de parceria com Luís da Paixão Oliveira, em 1914, João Ferry faz uma proveitosa incursão pelo interior de seu Estado, tendo trabalhado em Paraíso (hoje Miguel Leão), Pimenteira, São Pedro do Piauí (como vereador) e nos últimos dias de vida na prefeitura de São Miguel do Tapuio.

Interessando-se também pelo teatro e pelo jornalismo, fundou em sua cidade natal O Lépido, jornal de crítica literária, sendo um dos lançadores do jornal Cidade de Floriano, considerado por Fenelon Castelo Branco um dos melhores da imprensa nacional. Por outro lado, João Ferry teve o seu momento de glória no teatro, quando suas peças era encenadas em todo o Estado e representam de fato os primórdios do gênero no Piauí.

Poesia simples, sem rebuscamentos das escolas em voga, embora a paga do tributo da rima, João Ferry desenvolve também uma espécie de ironia diante dos problemas dos problemas da existência, com a compreensão dos simples e dos ingênuos que tanto marcaram a poesia popular de Hermes Vieira, Hermínio Castelo Brando e mesmo Ovídio Saraiva. Gostava de juntar prosa e versos nos seus livros, com é o caso de Em busca de luz, de 1922, que traz a comédia Quem tudo quer tudo perde, já encenada em quase todos os municípios do Estado do Piauí.

Patrono da Cadeira 38 da Academia Piauiense de Letras e membro da Associação Profissional dos Jornalistas e do Cenáculo Piauiense de Letras, João Ferry morreu em Teresina no dia 22 de setembro de 1962.



em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


7.11.11

TERESINA, Yolanda Bugija de Souza Brito


És linda, cativante e hospitaleira,
Tens a aparência mesmo de rainha
Que até chego a dizer, cidade minha,
Que és o mimo da terra brasileira.

Tua lua é tão linda, oh! Terra minha,
Porquanto igual jamais vi tão fagueira,
E para mim será sempre a primeira,
Porque da fidalguia tens a linha

Os teus filhos se orgulham com razão
De te terem por berço - é natural -
Pois de nenhum magoaste o coração.

Teu rio que é o eterno inspirador
Dos poetas desta terra tropical,
Guarda em seu leito encanto sedutor.


Yolanda Bugija de Souza Brito
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

6.11.11

O PRISIONEIRO DA LIBERDADE, José Pereira Bezerra

"A gratidão é uma forma sutil de desforra;
o beneficiado recobra a sua superioridade
no esforço de ser grato".

João Davidson

Um homem moreno, forte, aparentando quarenta anos... Diziam ser louco... Estava deitado no cais e contemplava as águas do velho Parnaíba que corriam silenciosas.

Desde quando deixara a família, há muitos anos atrás, por querer recobrar a liberdade - admitia ele quando falavam no assunto - sempre dormira no cais e gostava de lá. Era como sua própria casa... A paz que o cimento frio, o céu azul cheio de estrelas, as águas mansas do rio refletindo as luzes dos postes, lhe proporcionavam era realmente confortadora.

Conhecia todas as mulheres que faziam e vendiam comida no mercado velho. Elas, não raro, davam-lhe prato-feito sem nada em troca. Gostavam, sim, gostavam demais dele; ajudava-lhes carregar as compras, fazia compras, dava recados... Era de inteira confiança e muito útil - diziam elas, umas às outras, abanando o fogareiro com uma grande panela em cima; a comida fervia... É verdade também que de vez em quando ele dormia com uma delas.

Ele gostava de passear pelas ruas de Teresina, sentar-se perto das fontes luminosas. Fontes luminosas. Não, não gostava de andar perto delas... Nunca mais se esqueceria do que aconteceu com ele numa tarde calorenta de outubro... Estava suado, com muito calor... Dera uma vontade de lavar o rosto e molhar a cabeça... Estava longe do rio... Caíra na besteira de utilizar a água da fonte luminosa, pra que!? Levou um grande choque elétrico... Quase morreu... Nunca mais se esqueceria disso... Ficaria como exemplo... Fontes luminosas eram como a mulher do diabo, bonita de verdade, mas matava... Concluiu ele perdido em pensamentos.

Sofria de insônia e às vezes passava a noite toda acordado. Aquela noite era uma delas; de vez em quando olhava para uns cestos de tabocas, dispostos em pilha ao seu lado... Às vezes falava sozinho, como quem dialogasse com o rio que ele conhecia melhor que ninguém... Não, não tenho medo do Cabeça de Cuia falava de si para si, como para dar prova de sua coragem - pois já o vi várias vezes... É verdade que o brilho da cuia preta me fez ficar meio arrepiado... Mas foi só a primeira vez... Depois me acostumei... Dizem que ele só se desencanta quando levar sete virgens... Não sou mulher, não tenho medo.

Nesse instante chegou no cais uma mulher correndo. Mulher nova, lábios pintados de vermelho, cabelos compridos, trajando um vestido semilongo vermelho, com um longo corte em cada lado que dava para ver boa parte das coxas pareceu que ela nem sentiu a presença dele, ou talvez pensasse que estivese dormindo... Não estava... Talvez tivesse vindo do cabaré da Paissandu, e fosse tomar banho, está fazendo mesmo muito calor - pensou.

A mulher começou a despir-se descontraidamente com movimentos rápidos e bruscos... Num segundo estava só de calcinha amarela... Tinha os seios ainda bem duros... Veio-lhe uma vontade de agarrá-la, mas se conteve... Já era muito vê-la banhar nua em sua frente e naquela hora... A mulher ficou instantes na beira do rio, pensando e... Tbungo n'água. Ele continuou deitado no cais mas a observava atentamente, tentando ver melhor seu corpo nu e molhado, cintilante pelo reflexo da luz... Porém, minutos depois, ele notou que a mulher não sabia nadar, porque se debatia desordenadamente contra as águas barrentas do rio, como estivesse afogando-se, mas sem dá um grito sequer... Ele levantou-se imediatamente... Pulou n'água do jeito que estava, vestido de calça e camisa e foi de encontro à mulher, que subia e descia... Com gestos rápidos e firmes, agarrou-a por trás e rapidamente guindou-a até o cais. Ela permaneceu calada; já havia bebido uns goles d'água. Ele fitou-lhe o corpo nu... E como levado por um desejo forte aproximou-se dela e começou apalpar-lhe o corpo... Ela não dizia nada, naturalmente gostava - pensou.

- Por que você entrou no rio, se não sabia nadar?

- Queria morrer... Esta vida é um inferno... Madame surrou-me, ameaçou-me, expulsou-me do cabaré... pensava que eu queria o homem dela... ele era quem vinha atrás de mim... Disse chorando baixinho, aos soluços.

- Não chore... não faça isso mais, não - disse puxando-a contra si - o mundo é grande, e sempre existe um lugar pra quem quer viver...

Fizeram amor ali mesmo. Parou de chorar e naquela madrugada não pensou mais em suicídio.


José Pereira Bezerra
em O prisioneiro da liberdade
Teresina, 1978(?)

5.11.11

CHAPADA DO CORISCO, Raul Ney da Silva


De um lado o Parnaíba, o grande rio
Das graças, a correr, veloz indigente;
Do outro o Poti, num doce murmúrio
A soltar seu queixume atroz, pungente.

E Teresina, o berço meu macio,
Onde nasceu todo o meu sonho ardente,
Vejo agora através de um balbucio
De saudade que mata a alma dolente.

Ai... noites de luar... São Benedito!...
A igreja a branquejar sobre a colina,
O meu sonho de amor hoje proscrito!...

Noite que amei, ai! Sonhos de outra idade!...
Como que vos quero, minha Teresina,
No presídio sem fim desta saudade!


Raul Ney da Silva
em Antologia de poetas piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.) 
Teresina, 2006

4.11.11

EVOCAÇÕES II, Lucídio Freitas


II

Teresina apagou-se na distância,
Ficou, longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida,
Espera-me, distante, uma outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a minha febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

3.11.11

EVOCAÇÕES III, Lucídio Freitas


III

A saudade me aterra...
E que vontade eu sinto de chorar,
Distante do meu lar,
Vendo outro céu, vendo outro sol, vendo outra gente,
Tão diferente
Da gente boa lá da minha Terra!

A minha Terra... À noite, nas estradas,
Boêmios trovadores,
Desfolhando canções aos pés das namoradas,
Falam dos seus amores,
Enquanto o rir no Azul, nos seus cochins de prata,
As estrelas, em bando,
Ora cantam também e adormecem cantando
Ao som embalador da serenata.

Noite... O Vento, num suave murmúrio,
Passa serenamente,
Uma canoa desce lentamente,
Ao sabor da corrente,
Branda, leve, sutil, sobre as asas do rio.

Alguém passa, de rede a tiracol,
E vai, a noite inteira, trabalhar
Sem queixas e sem mágoas,
Para, ao vir da manhã, ao desabrochar do sol,
Quando as aves despertam pelos ninhos,
À casa regressar,
Trazendo o pão para a mulher e os dois filhinhos
- Áureo pão que arrancou do seio bom das águas...

E lá se vai, depois, de foice e enxada no ombro,
Murmurando do amor as alegres cantigas,
Embriagado da luz que pelos campos erra,
Resoluto e fiel, em doudo desassombro,
Colher do milho verde as douradas espigas,
Longe dos homens maus, da inveja vil, da guerra
Espalhando, feliz, outras novas sementes,
Encorajando os companheiros descontentes...
E à noite ei-lo de novo à procura da choça,
Vibrando de prazer,
De regresso da roça,
Trazendo o pão para os filhinhos e a mulher,
Áureo pão que arrancou do seio bom da Terra...

A vida da cidade embriaga e atordoa...
No campo a vida é assim humanamente boa,
Humanamente simples e perfeita:
É a caça, é a pesca, é o plantio e a colheita,
É a foice e o facão, a espingarda e a canoa.

E que gente modesta é a gente do sertão!
É toda coração,
é bondade infinita, é suprema bondade,
Riso, delicadeza, ingenuidade,
Fé, alegria, amor, perdão,
Afeto e caridade.

Vendo alguém padecer, o sertanejo,
Humildemente pobre,
Todas as mágoas do infeliz encobre
Com a carícia de um beijo.

E agora, estas paisagens relembrando,
Sinto, de quando em quando,
Uma vontade enorme de chorar,
E este desejo mais em mim se aferra,
Vendo outro céu, vendo outro sol, vendo outra gente,
Tão diferente,
Da gente boa lá da minha Terra!...


Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

VIR VER OU VIR, por Torquato Neto




a coroa do rio poti em teresina lá no piauí. areia palmeiras de babaçu e
céu e água e muito longe, depois, um caso de amor um casal uns e outros.
procuro para todos os lados - localizo e reconheço , meu chicote na mão e
os outros: a hora da novela o terror da vermelha
o problema sem solução a quadratura do círculo o demônio a águia o núme-
ro do mistério dos elementos os quintais a minha terra é a minha vida!
o faroesteiro da cidade verde
estás doido, então? (sousândrade)
ela me vê e corre, praça joão luís ferreira
esfaqueada num jardim
estudante encontrado morto

ando pelas ruas tudo de repente é novo para mim. a grama. o meu caso de
amor, que persigo, êsses meninos me matam na praça do liceu. conversa com
gilberto gil
e recomeço a
vir ver ou
aqui onde herondina faz o show
na estação da estrada de ferro teresina-são luís um dia de manhã
ali
onde etim é sangrado



TRISTERESINA



uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques
eis tudo. observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto
saio, uma vez feriado de morte e me salvei
o primeiro filme - todos cantam sua terra
também vou cantar a minha



VIAGEM/LINGUA/VIALINGUAGEM



um documento secreto
enquanto a feiticeira não me vê
e eu pareço um louco pela rua e um dia eu encontrei um cara muito legal
que eu me amarrei e nós ficamos muito amigos eu o via o dia inteiro e a
poucos conheci tão bem.

VER

e deu-se que um dia eu o matei, por merecimento.
sou um homem desesperado andando à margem do rio parnaíba.

BOIJARDIM DA NOITE

êste jardim é guardado pelo barão. um comercial da pitu, hommage, à sa-
úde de luiz otávio.
o médioc e o monstro. hospital getúlio vargas. morte no jardim. paulo josé, meu primo, estudante de comunicação em brasília, morre segurando bravamente seu rolling stone da semana

sol a pino e conceição.

VIR
correndo sol a pino pela avenida

T E R E S I N A

zona tórrida musa advir

uma ponta de filme - calças amarelas
quarto número seis sete cidades



Torquato Neto
em Gramma, nº 2
Teresina, 1972



2.11.11

EVOCAÇÕES, Lucídio Freitas


IV


Têm as águas, aqui, estrondosos e estampidos,
Gritos de dor e gritos de agonia,
O mar, quer seja noite ou seja dia,
Fala somente,
Desumanamente,
A linguagem sombria dos gemidos.

O mar feio, disforme,
Simbolizando o mal, o ódio, a vaidade,
Bem se parece
Com a alma sangrenta e informe
E incalma
Desta grande Cidade,
Que desconhece
O amor - rebento original da alma...

O mar me aterroriza
Com seus rancores e ais incompreendidos
Vendo-o, suponho que ele sintetiza
O pranto amargo dos desiludidos,
Os gestos infernais dos oprimidos
Que a sede e fome morrem sobre a terra,
Porque o mar, no seu bojo ermo e profundo,
Encerra
Todos os sofrimentos deste mundo...
Causam-me horror e medo o barulho do mar.

Quando lhe escuto os uivos,
Levantam-se a tremer os meus cabelos ruivos,
Na alma sinto a correr um frio de gelar...

E ainda diz-me o destino, hediondo, a blasfemar,
Que eu tenho de morrer de um naufrágio no mar...

A Minha Terra... Uns doces movimentos,
Preguiçosos, suaves, sonolentos,
Têm as águas da terra em que nasci...
Jamais as vi
Rebentar em furor indômito de guerra,
Em desesperos e estertores...
As águas mansas lá da minha Terra
Só nos falam de pássaros e flores...

O Parnaíba, ao pôr do sol, encanta
A alma e o olhar.
Ele, claro, a descer, divinamente canta,
Rendilhado de esplêndida beleza,
Levando à flor da correnteza,
A boiar; a boiar.
Ramos de flores de reais matizes,
A epopeia de todos os felizes,
O almo esplendor de nossa Natureza...

Desce, e com o olhar o acompanhamos.
Desce, circula se envolvendo aos ramos
E ao nosso olhar se perde...

E, que saudade sente, e que saudades
Leva da noiva que é a Cidade Verde
- A mais linda de todas as cidade...


Lucídio Freitas
em POESIA COMPLETA
Teresina: Convênio APL/UFPI (1995)

TERRA QUERIDA, Mário Bento Gonçalves


Minha Terra Natal! Querida Terra,
De um povo bom, trabalhador e honrado!
É um trecho do Brasil, que um poema encerra,
De luar divino e céu todo estrelado.

De vale em vale, assim, de serra em serra,
Brilhando ao sol do Norte, ao sol dourado!
Bendita sejas tu na paz, na guerra,
A glória, no presente e no passado.

Bendita sejas tu, entre dois rios:
Parnaíba e Poti - sublime e pura,
Rica e feliz de carnaubais sombrios!

Bendita sejas tu, ó Teresina!
O amor, quanto mais longe, mais tortura,
Por que a saudade o coração domina...


Mário Bento Gonçalves
em Antologia de Poetas Piauienses
Wilson Carvalho Gonçalves (org.)
Teresina, 2006

1.11.11

TERESINA NO PASSADO, Guaipuan Vieira


No final de maio de 1996, retornei a Teresina, integrando a Comissão de Intercâmbio Cultural de Fortaleza, a convite da Academia de Letras Vale do Longá. Ficamos hospedados no Hotel São José, à margem direita do rio Parnaíba, no coração da Verde Capital. Além da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, estavam o diretor desta, o escritor Alberto Santiago Galeno e o poeta Paulo de Tarso. Alberto me pedira para levá-lo ao Mercado Central, pois desejava comprar um chapéu de vaqueiro feito no Piauí. Eram quinze horas de sábado. O silêncio pairava no centro, devido o final de semana. Mesmo sabendo que àquelas horas seria impossível encontrar o mercado aberto, tive que atender o pedido.

Alberto, que caminhava a passos lentos e, cambaleando, estava calado, mas observador. Paulo, que nos acompanhava, admirava os velhos casarões e o rio que solitário descia entrecortado pelas coroas, indagou a Alberto:

- Doutor, o senhor conhecia Teresina?

Ele, sem pensar, duas vezes respondeu:

 - De passagem. Guaipuan não nos conta a sua história.

A responsabilidade pesou-me nos ombros. Calado, como menino repreendido, não sabia por onde começar. As recordações refletiam à mente. Mas uma luz me surgiu dos anos 60. Tive que superar o desafio, e conjugar costumes, tradições e modos de vida de um povo que, embora embriagado pelo vício e prostituição, deixara página de sua história, vez por outra folheada por algum pesquisador.

 - Isso aqui foi a famosa Palha de Arroz. O nome vem das torrefações. Nesse meio funcionou o baixo meretrício, o Q.G. era o cabaré Barrinha, conhecido por “tabaco”, freqüentado pelos “porcos-d’água”, que eram os ajudantes das embarcações.

Paramos um pouco, sob a sombra de oitizeiros, direcionados para o sul, a uma distância de 200 metros. Articulando, mostrei-lhes onde funcionava a usina termelétrica, que fornecera energia para toda a cidade, até a década de 60, substituída por uma caldeira a diesel, vinda de Alagoas, não esquecendo seus ritmados apitos como de uma maria-fumaça, que até as 21 horas servia-nos de relógio, quando num toque de despedida saudava a noite, que paulatinamente ia em busca do novo dia. Nessa época, o rio Parnaíba era navegável. De longe também se ouvia o rugir dos vapores, lanchas e alvarengas vindos do sul do Estado, transportando mercadorias e passageiros, em direção ao Porto, que ficava limitando a Praça da Bandeira, por onde iremos passar.

Recomeçamos a caminhada. Ao cruzarmos a rua Paissandu, fizemos outra parada. Não poderia esquecer de citar que fora o núcleo dos tradicionais cabarés, como “Estrela”, “Fascinação”, “Imperatriz”, “Nove Horas”, “Gerusa”, “Raimundinha”, “Joana de Paiva”, entre outros. Subimos na rua em direção à Praça Pedro II. Na mente conduzia a surpresa que Alberto tanto esperava. Uma outra parada não fazia mal. Afinal, procurava descrever Teresina no passado, mostrando-lhes os pontos que serviram de concentrações desses personagens.

 - Onde estamos? Indagou-me.

 - Olhe, nessa casa comercial, “Rádio Ion”, foi o bar do Zé Cazuza. Às 12 horas de uma sexta-feira de 1948, o tenente Wanderley bebia aqui. Ao perceber a passagem de Zezé-Leão, o chamou. Depois de uma ligeira conversa, lembrou-lhe que em certa ocasião tinha-o prendido. Zezé, calmamente, embora entrecortado do insulto, perguntou-lhe se ia demorar no bar. Ele, ufano de autoridade, respondeu-lhe que sim. Zezé, enfatizou:

 - Voltarei logo.

Em questão de 20 minutos, o lúgubre estúpido, armado com um revólver 38, mudava o ritmo da cidade. A rádio Pioneira, que funcionava na rua Senador Teodoro Pacheco, aqui, próximo, em primeira mão, divulgou o acontecimento em reportagem exemplar de Carlos Said. No dia seguinte, as manchetes dos principais jornais: “ZEZÉ-LEÃO MATA TENENTE WANDERLEY E FOGE".

- Ah, foi assim! Sua fama chegou no Ceará, exclamou Alberto.

Paulo, aproveitando a deixa, nos contou que seu tio-avô, Cel. Domingos Gomes de Freitas, que residia em Tauá CE, tinha um criado que era o responsável pela compra de mantimentos (gêneros alimentícios) da Casa Grande. Segundo seu avô, certa ocasião, o criado, chegando de viagem, já na entrada do município, fez uma ligeira parada numa venda para beber uma pinga. Ao pagar a dose, foi surpreendido pois já estava paga. Ele então perguntou ao dono da venda o nome do desconhecido para agradecer. Esse, ouvindo, respondeu-lhe:

“José de Área Leão
A onça sussuarana
das matas do Piauí".
- E você quem é, caboclo?
Sem bater pestana, que nem um bom improvisador, informou-lhe:

“Eu sou um cachorro preto
da zona do cariri
acuador de onça sussuarana
das matas do Piauí”.
E até logo!!!

Zezé baixou a cabeça, bebeu outra pinga e exclamou: “muito bem!” Um dos seus seguranças indagou-lhe: “Pega o homem, coronel?!

-“Não. Cachorro que acua onça é respeitado".

Continuamos a caminhada. Logo estávamos na Praça Pedro II. Ali, para mim, foi um pesadelo. Não controlava as ideias, que se misturavam com as lembranças, dificultando concatenar o raciocínio, porque a Praça continuava sendo o cordão umbilical dos que edificaram a invejável história da terra.

De um lado, o Centro de Artesanato, guardando consigo lembranças do velho quartel da polícia militar. Do outro, o Cine Rex, solitário, que nem ancião, nem parecia que vencera os seus concorrentes: Cine Guarany, Olímpia, São Luís, Rio Branco, entre outros. Um cartaz lembrava Alfredo Ferreira que foi o fundador do cinema em Teresina, e o primeiro filme exibido, que era norte-americano e falado, tinha como título: “Doce como Mel.”

O Theatro 4 de Setembro, guardião da cultura, silencioso, trazia consigo recordações da luta ferrenha que travou para se desligar do cinema, para ser o que é: palco de espetáculos teatrais. Ao lado, a Galeria das Artes, num oculto quadro, descrevia o saudoso Bar Carnaúba, cercado de artistas e intelectuais. As horas corriam. Alberto, mergulhado no impressionismo, esquecia a compra do chapéu. Paulo não perdia nada da explanação. Anotava, na agenda, os subsídios para a história do município.

Guia turístico, contador de história ou causos. Sei lá quem eu era. Prosseguimos. Seus entusiasmos aumentavam. Embora quisesse parar a narração, não podia. Sempre algo chamava a atenção.

O silêncio recordava-me os tempos idos, quando menino, de calça curta, procurando remédio nas farmácias Santo Antônio, Lili e São Pedro, de Pedro Vasconcelos. Não encontrando, ia direto à farmácia “Coleta’, onde Jaime da ‘botica” fazia a manipulação de medicamentos. Naquele tempo era assim. Com essa reflexão sobre o passado, logo chegamos à Praça Rio Branco. Estava a esmo. Não parecia o logradouro de concentração de poetas populares, da ceguinha Maria Viana, no órgão, interpretando canções bregas; de aposentados driblando a velhice, tentando afeiçoar a nova geração. A brisa fria da tarde os enchia de indagações, estava num árduo ofício, não podia dissolver fatos do folclore teresinense.

-Nesse prédio da Caixa Econômica, funcionou o comércio do Carcamano, à noite tinha uma preta velha vendendo manuê; a fatia do bolo custava um tostão, e media um palmo. Tornou-se admirada pelo pessoal de vida noturna, através dos improvisos de propaganda:

“Chega gente, está na hora
Compre logo o manuê,
Compre mesmo, sem demora.
Manuê da preta velha
Tem segredo de essênça,
Inda mais com bom café
Muda até sua presença”.

Observa-se, de certa forma, que a cultura popular, destacando-se a poesia, nasce da necessidade de sobrevivência dessa gente. A não importância desses fatos contribui veementemente para o anonimato do autor, o que aconteceu com modinhas, adágios e alguns provérbios.

-Com certeza, enalteceu Alberto. Tive que ser breve nas citações, haja vista que algo mais nos aguardava. Estamos na Praça da Bandeira.

Recorda-me o pequeno zoológico, a feira dos pássaros e a do troca-troca. Nessa época chamava-a de bacia, por formar um círculo e ser de baixo relevo. Deu guarida a grandes circos, como Garcia, entre outros. Hoje, as grades que a cercam, nos reflete a ligeira impressão de que é prisioneira, e que nada tem de majestosa! Vê-se silente, concentra suas atenções no Teatro de Arena, palco dos acontecimentos culturais, de ação preservadora das tradições da terra.

Veja “Domingos Fonseca”, do alto, sussurra a poética sem jaça, em louvação aos poetas que versejam “sua poesia”, nos Festivais de Violeiros do Nordeste. Eram 17h30min, os pardais começavam a harmoniosa sinfonia sobre os frondosos oitizeiros, em contemplação a mais um dia que se findava. Apressamos os passos, cruzamos o Mercado Central, logo saímos no desativado Cais do rio Parnaíba. De retorno ao hotel, oportunidade em que falei sobre o Velho Monge, das extintas carrancas e dos banhos aos domingos nas piscosas águas, onde as coroas são atraentes praias, que desfilam preciosas sereias, musas inspiradoras que nos confortam a alma, principalmente quando se tem um bom anzol. Alberto, satisfeito, sorriu. Paulo ficou ansioso para conhecê-las. Seguimos para o hotel, contemplando o pôr do sol, rica beleza natural. Alguns minutos, como se fora beber água, os deixei à vontade. Próximo ao hotel, Alberto exclamou:

-Gostei bastante do passeio e da sua narração. Só me falta o chapéu!


Guaipuan Vieira

30.10.11

TERESINA E EU, Hardi Filho


Teresina e meus passos de rapaz!
Continuados passos de quem veio
para ficar; para sentir no seio
a recompensa que o trabalho traz!

Teresina me sabe bem no meio
do mutirão das letras, nunca atrás;
sabe também como me satisfaz
essa luta diuturna, sem receio,

a favor desta terra hospitaleira.
Seu povo, desde a minha mocidade,
me viu assim, me vê dessa maneira.

Teresina de sol! de luz! de brilho!
Se considero minha esta cidade,
sou por ela tratado como filho!


em Tempo Nuvem 
Teresina, 2004

29.10.11

BAIRROS DE TERESINA: I - CAJUEIRO, Jônatas Batista


É, talvez, o bairro mais alegre de Teresina.

Quando "Dona Tristeza", no seu penoso lidar, vai espalhando por todos os recantos da velha Chapada do Corisco, carradas de bocejos e cargas de espreguiçamentos, o pessoal dos Cajueiros dança, folga e se diverte a valer.

Nas noites de sábado, então, é um gosto a gente passear pelas ruas tortuosas do ensombrado teresinense. Cinco, oito, dez, doze saraus, pelo menos!...

Também é a coisa mais fácil deste mundo promover uma destas festas, umas dessas importantes soirées, a que o povo dá o título humilhante e expressivo de forró. É assim: três ou quatro pares, um tocador de harmônica ou sanfona, umas três garrafas de aguardente e o clássico e infalível e obrigatório panelão de panelada, a ferver, mesmo a um canto da pequena sala onde se dança, fazendo, com o seu bufar constante, um insuportável dueto com as notas enfadonhas da orquestra reles. Nada mais. Está feita a festa; está pronto o baile!... E assim, os bem aventurados habitantes dos Cajueiros - a república independente - como eles envaidecidos denominam o seu bairro, passam "vida santa e milagrosa", dançando, comendo panelada, fumando, bebericando aguardente, até alta madrugada, quando a festa não é interrompida no meio, por algum ruge-ruge de cacetes, ou tilintar de punhais...

Não raro, alguém se lembra dos velhos tempos e, então, o samba - o samba como outrora se fazia - impera, vaidosamente, por algumas horas, em pleno coração do alegre e pouco reconhecido recanto teresinense.

"Nas cordas desta viola
Vive um canário a chorar...
Saudade de quem se foi,
De quem não torna a voltar..."

E a viola soluça, geme e ri, enquanto uma nuvem de fina poeira se eleva no ar, ao doido sapatear de cabras turunas e morenas formosas.

É ali, nos Cajueiros, muito perto da nossa bem amada "cidade verde", que a gente tem a impressão de estar a duzentas léguas de Teresina, no centro dos sertões piauienses, onde a bucólica e feliz simplicidade dos corações se junta, se irmana, num abraço estreito e carinhoso à alegria estonteante e provocadora das almas despreocupadas. Não fosse o soldado de polícia, um tão assíduo frequentador daquelas rodas, e a impressão seria ainda mais perfeita, mais completa.

"Minha viola de pinho
Tem alma e tem coração,
Tem amor e tem carinho,
Tem canseira e tem paixão".

Oh! Os cajueiros... Como todos os bairros que se prezam, ele tem também a sua história própria, as suas lendas, as suas superstições.

Ainda há bem pouco tempo, o velho Chicão, um feiticeiro afamado daquelas bandas, contava-me um fato curioso e interessante, a propósito dos "anjinhos" - o abandonoado cemitério onde eram sepultadas todas as crianças que morriam naquelas redondezas, sem nenhuma das formalidades exigidas por lei.

- Mas como foi lá o caso do pagão? Perguntei ao preto velho que me deixara entrever, através de suas reticências e meias-palavras, alguma estória assombrosa, inconcebível.

- Foi assim patrão...

E começou:

- A Mariazinha era mesmo uma cabocla de fazer água na boca... Bonita até ali... Não fosse a bondade que sempre me carregou, a gente poderia bem compará-la a Nossa Senhora de Lourdes. Ela, porém, sempre orgulhosa, nunca fez parte do povo da sua laia. Queria ser muito boa, muito fina, e só dava ouvidos aos brancos, aos mocinhos de gravata e correntão. Até mesmo o Zeca Pagodeiro, seu parente perto, rapaz trabalhador e valente, que tanta vontade tinha de casar com ela, nunca foi assuntado. Vai, se não quando começou a passear, por estas bandas, o seu Joãozinho, do coronel Tavares. Era um rapagão bonito, de olhos azuis e cabelos louros. O namoro foi logo rasgado e sem mais cerimônias. Abraços, boquinhas, apertos de mão eram cousas que eles trocavam para todo mundo ver, sem vergonha e sem acanhamento. Em pouco tempo já o povo murmurava que a Mariazinha estava pejada... A velha Miquelina, em casa de quem foi ela pedir uns tamarindos verdes, foi a primeira a dar com a língua nos dentes. Uma cousa eu mesmo notei, e foi que a Mariazinha andava triste, amarela, com os olhos fundos, e tão esquecida de tudo, como se não fosse criatura viva. Seu Joãozinho já lá se tinha ido pra estranja, ela própria me contou, uma tarde, sentada aí na raiz deste cajueiro, onde o patrão está encostado. Foi acabar os estudos, se formar em doutor. A pobre rapariga cada vez se amofinava mais. Uns diziam que era de saudade do namorado, outros afirmavam que era mesmo filho... O tempo foi passando; o povo foi esquecendo; já ninguém falava mais em tal cousa quando, numa noite, ouviram-se gritos medonhos, uns gritos feios que faziam levantar os cabelos e apertar o coração. Correram todos; e também corri... Era a Mariazinha quem gritava, como uma doida varrida, estirada-no chão, a estrebuchar, com os olhos vidrados: "Meu filho! meu filho!!... não foi batizado... Está aqui chorando...". E apontava para o canto da casa, que é justamente onde hoje é o cemitério. A criança (neste ponto o preto velho tossiu, tomou fôlego) chorava como se estivesse morta de fome...

 - Que criança?

 - O filho da Mariazinha, o que ela havia morto ao nascer, e enterrado sem que ninguém soubesse.

E reatando a estória:

 - Ninguém viu o menino, mas o choro, que vinha do fundo do chão, toda gente ouviu. Também nunca vi tanto medo. Ninguém quis se aproximar. Eu fui me achegando e, assim que acabei as palavras: "Manoel, eu te batizo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo", fazendo, com um ramilho verde, uma cruz mesmo em cima do lugar, o choro acabou de vez...

- E a Mariazinha: - perguntei curioso.

- Morreu daí a três dias, espumando pela boca que parecia (Deus me perdoe) uma cadela danada.

- E depois?

 - A casa caiu; A velha Ricardina, a mãe da outra que estava entrevada há muitos anos, também morreu, e o povo passou a enterrar os inocentes neste lugar. Por isso é que ainda hoje se chama "anjinhos".

 E o velho Chicão se despediu, e lá se foi, rumo a sua toca, transferida para a Vermelha poucos dias depois daquela noite mal assobrada...

Como vêem, os Cajueiros tem também a sua poesia, a sua lenda, aliás bem interessante.

(Do "Correio de Teresina", de 21-07-1913)


Jônatas Batista
em Prosa e Poesia 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

28.10.11

TERESINA, Gregório de Moraes


Mangueirais, minha velha Teresina
O povo alegre, sorridente, vivo
O Mafuá num batucar festivo
Saudade, mestra e mãe que amar ensina

Falar de minha terra me fascina;
Meu Deus, é tudo um eternal motivo
O Parnaíba marulhando esquivo
O Barrocão; a luz da lamparina...

Correr, subir veloz num oitizeiro
Tentar erguer meu papagaio primeiro
Lembrança das casinhas. Há quem esqueça?

Vivi no meu desterro esta lembrança
Ó saudade do tempo de criança
Dos maternais beijinhos na cabeça.


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

26.10.11

O TERROR DA VERMELHA, Torquato Neto




a) - um filme é feito de dois planos:
a b c: um plano depois do outro
depois do outro depois do outro
depois do outro - planos. não é
feito de cenas, rapaziada - cineclube.

1 plano é 1 plano, porquanto
montagem é, ante sempre
montagem é, antesempre, uma análise
de planos. e mais soma/divisão
multiplicação/subtração. certo disso.
dziga vertov, citado por godard em
inglês: ...montar um filme antes
da filmagem, montar um filme durante
a filmagem, montar um filme depois
da filmagem.

b) - fotografar ontem, guardar
(SAUSÂDRADE)
fui a teresina pelo início de
junho (sanatório meduna), entrei
em contato com os rapazes que
haviam feito o jornal gramma e
partimos para um superoito de
metragem média que resultou neste
O TERROR DA VERMELHA (ou
qual outro nome escolherem). o
material filmado percorria
aceidentalmente acidentalmente
um fio de acontecimento, matéria
de memória de uma sópessoa em
equipe percorrendo roteiro de
lugares, quintais, paisagens-
plano geral
paisagens-planos-gerai,
distância. a cidade transformada
retornada transformada em
EM TRANSFORMAÇÃO. o jôgo
(from navilouca) VIR/VER/OU/VIR
etc (AQUI/ALI), títulos subtítulos
versos pontuação: TEXTO-LEGENDA,
ora ocupando totalmente o
fotograma ora
precisamente ilustrando-o
"sur-place", como
palavra-cenário (luiz otávio), e
também (galvão em OU),
palavracontradestaque, como
destaque (waly) na dança da
herondina. nove cassetes filmados,
filme ektachrome kodak.

c) - em seguida à versificação de
variadas férteis possibilidades
de edição (montagem), optou-se por
stanley donen. não há explicações
recomendáveis claras para a
escolha: pereceu-nos simplesmente
a mais NATURAL, CONCRETA, no
pensamento da transação com imagem
(e som): em movimento como forma de
narração concreta precisa necessária,
satisfatória. idade eletrõnica. mais
evidentemente, o
tempo/contratempo/contraoambo,
produção execução e a guerra,
(ONE PLUS ONE), godard, o filme das
famílias, televisão, cinemascope,
escambal, o diabo a 4.

d) - edmar (oliveira) o superstar
principal. mais: conceição, herondina
claudette, juçara, adélia maria,
dona salomé, livramento, etim,
paulo josé, durvalino filho, edmilson,
pereira, geraldo cabeludo, dr. heli,
galvão, joão clímaco d'almeida e
transeuntes. além de arnaldo.
arnaldo fez a maior grande parte da
câmera.


[1972]



Torquato Neto
Gramma, número 2
Teresina, 1972


25.10.11

Torquato Neto - síntese biográfica







Torquato Pereira de Araújo Neto (Teresina PI, 1944 - Rio de Janeiro RJ, 1972). Cursou Jornalismo no Rio de Janeiro, por volta de 1966, mas não chegou a concluir a faculdade. Nos anos seguintes compôs letras musicadas por Gilberto Gil  ("Geléia Geral", "Louvação"), Caetano Veloso ("Deus Vos Salve a Casa Santa", "Ai de Mim", "Copacabana", "Mamãe, Coragem") e Edu Lobo ("Lua Nova", "Pra Dizer Adeus"). Entre 1970 e 1972 atuou nos filmes Nosferatu no Brasil e A Múmia Volta a Atacar, de Ivan Cardoso, e Helô e Dirce, de Luiz Otávio Pimentel. No período também criou e redigiu a coluna Geléia Geral no jornal carioca Última Hora. Em 1973 ocorreu a publicação póstuma de seu livro de poesia Os Últimos Dias de Paupéria, organizado por Ana Maria S. de Coraújo Duarte e Waly Salomão. Três anos depois, foram incluídos alguns de seus poemas na antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1976. Em 1997 foram publicados quatro de seus poemas na antologia bilíngüe Nothing the Sun Could Not Explain, organizada por Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher. Torquato Neto foi um dos compositores mais inovadores da canção popular dos anos de 1970.


A MORTE NA PRAÇA, José Pereira Bezerra


Ilustração: Arnaldo Albuquerque

Domingo à tarde. Não passa das três. O sol intenso cobre parcialmente e incendeia a praça. Em frente ao Cine Rex um aglomerado de pessoas esperam ansiosos o início da sessão vespertina. Dum banco defronte, um homem moreno claro, barba grisalha por fazer emoldurando-lhe o rosto magro e pálido, contempla a movimentação. Faminto, fraco, é envolvido por uma indecisão que o abate. Não sabe se lê o jornal "O DIA", ou se fustigado pelo calor, observa indiferente o formigar de gente. A secura da garganta já denuncia a sede que o ameaça. Não tem dinheiro e a ideia de pedir a alguém o constrange. No dia anterior, por motivo de briga, passou a noite preso na Central de Polícia, e esse fato parece abatê-lo, apesar de não ser a primeira vez. Hoje, pela manhã, perambulou sem rumo nas ruas. Não teve coragem de por os pés em casa, "não tinha cara para isso". Cisma. O ar quente, abafado tira-lhe a paciência, mas não muda de lugar. "Ora porra". Um entorpecimento e suor frio invadem-lhe o corpo. A beira da náusea, o cérebro fraqueja. Range os dentes, procurando forças pra vencer a agonia. A imagem da mulher brigando e dos filhos chorando ferem-lhe a mente de relance. Os segundos passam, a pele perde a cor natural. A custo tenta soerguer a cabeça. Inútil. Tomba sem forças, escangotado. Semi inconsciente, imagens contraditórias e indesejáveis invadem-no. Dir-se-á que estar sendo fulminado por um edema fatal. O jornal foge-lhe as mãos, caindo em frente. Ora contrai o estômago, ora aperta o peito com as mãos crispadas. Num delírio torturante, até sons desconexos e vagos ferem-lhe os ouvidos. As pessoas continuam aglomeradas e ninguém percebe que está morrendo aos poucos. Ninguém socorre, nem vela existe nesse momento crítico de sua existência. Seus valores são colocados em dúvida diante da realidade. Agonizante, ouve gritos, vozes, de conhecidos e até dele mesmo, num alternar martelante e confuso.

- "Você não presta, sem-vergonha!"
- "Estás condenado à morte por ti, covarde, não assumiste a luta".
- "Meu filho, não lhe falei? Você perdeu grande oportunidade e não assumiu a verdadeira postura de homem..."
- "Sou covarde, bem o sei, e meu egoísmo burguês me queima no fogo de minha fraqueza".
- "O seu maior erro foi não ter conseguido enxergar nem sentir o efeito alienante da cegueira..."
- "Vai e te lamente, mas no fundo o erro é da consciência que a sociedade impôs na formação de tua personalidade..."
- "Não vês, idiota, que foste manipulado de forma tão primitiva...?"
- "Eu daria tudo pra viver outra vez. Com certeza não seria mais um pústula..."
- "É tarde!"

Quando o vêem caído, acercam-se do cadáver que acaba de dar o último espasmo. Cada pessoa que se aproxima do círculo, estica mais e mais o pescoço pra melhor presenciar a miséria em sua forma mais simples - a morte. Esboça expressão fácil digna duma das pinturas mais patéticas de Koskoschka: olhos esbugalhados, boca entreaberta mostrando os dentes amarelos e cariados, e um fio de barba descendo num canto da comissura dos lábios. "Ah, que terá acontecido com este homem de Deus?" Sussurra uma velhota gorda, rosário entrelaçado nos dedos, trêmula. Faz-se um pequeno tumulto. Todos querem dizer alguma coisa. Rompante, aproxima-se do cadáver um homem moreno e forte, olhos vermelhos. Recende a cachaça. Brada com voz dominadora:

- Vejam quem é!?

Ato contínuo, um suspense assalta os presentes, que, perplexos, entreolham-se interrogativos.

- É Chico Valete. Que Deus o tenha entre os seus. Já foi por bem dizer rico, possuiu muitas propriedades, mas no jogo perdeu tudo ansiando ficar mais rico. Todos olham-no, atentos. Faz-se um silêncio frio, tumular. E, fazendo um gesto forte de cabeça, gira o corpo, resoluto e sai cabisbaixo, exasperado, como se acabasse de ler a sentença de morte do miserável.


José Pereira Bezerra
em O sono da madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976
Desenho de Arnaldo Albuquerque, originalmente publicado no livro