2.12.15

SÃO PIAUÍ (1977) - Clodo, Climério e Clésio



Lado A

01 - 00:00 - A noite amanhã o dia (Climério)
02 - 03:31 - Cebola cortada (Petrúcio Maia/Clodo)
03 - 06:48 - Cantiga (Clodo/Clésio)
04 - 09:35 - Conflito (Petrúcio Maia/Climério)
05 - 11:22 - Folia ou pressa (Clésio/Augusto Pontes)
06 - 14:02 - Ilha azul (Clodo)

Lado B

07 - 16:26 - Zero grau (Clésio/Climério)
08 - 20:12 - Palha de arroz (Climério)
09 - 24:06 - Cada gesto (Clodo)
10 - 27:26 - Céu da boca (Clodo/Climério)
11 - 29:45 - Nudez (Clésio/Clodo)
12 - 33:25 - São Piauí (Bê/Climério)

(...)

ILHA AZUL | Clodo

quando eu saí
lá do Piauí
caboclo novo que nem vaquejava ainda
eu curti muito o Rio Parnaíba
levando toco de madeira e balsas
até que um dia eu vim parar aqui
nos olhos verdes da mineira clara
nesta cidade
esta maquete viva
feita de sonhos de um herói sem nome

um dia
quem sabe noite
de um mês qualquer
a gente grita laços fora e vai
falar da nossa vila
nossa ilha azul

(...)

PALHA DE ARROZ | Climério Ferreira

o rio beirando a rua
num arremedo de cais
o vapor de Parnarama
chegando de Palmeirais
o velho homem do porto
de olhos postos no rio
sentindo todo vazio
de sua pobreza em paz
Maria boca da noite
na Pensão Familiar
tem nos olhos de manhã
a luz clara do luar
cadê teu povo noturno
teu povo maior maria
teus operários da noite
nas oficinas do dia
ali onde habitou
a rua cheia de tédio
hoje mora outra dor
feita de casa e de prédio
já nem sei se essa rua
realmente existiu
ou se foi obra
de algum bêbado
num acesso de poesia
vendo no rio
outro sonho
mais refletido que a lua
inventou um cais tristonho
e os habitantes da rua
vendo no rio
outro sonho
mais refletido que a lua
e inventou um cais tristonho
e os habitantes da rua

(...)

SÃO PIAUÍ | Bê e Climério Ferreira

vem comigo menina
vem comigo aqui pra São Paulo
pra são pulo! – vem pra São Piauí
aqui tem um ar de Europa
um cheiro novo de África
tem operário a galope
sob o aboio da fábrica
tem boi de ferro e fumaça
na massa deitando a morte
de sorte que o centro-sul
desse estado dá no norte
no asfalto tem uma pedra
tem uma pedra no asfalto
que de repente num salto
se desfaz na boca
o beijo que se desprega
da nossa garganta louca rouca
poluída de calor
vem pra São Piauí
que a vida começa aqui
no viaduto do chão
por que não?
ou no riacho do chá.


(...)

Clodo, Climério e Clésio
LP São Piauí – RCA Victor – no. 103.0208 – 1977
Gravado no estúdio A da RCA Victor em São Paulo
Direção Artística – Osmar Zan
Coordenação artística e direção de estúdio – Ednardo
Arranjos e regência – Mário Henrique
Participações de Amelinha (vocal em “Cada gesto”) e Robertinho de Recife (guitarra e viola)

PALHA DE ARROZ




Capítulo XXXVII


[...]

Pau de Fumo ouviu toda aquela conversa do Comissário que dizia falar também pela boca do Delegado e do Chefe de Polícia. Ficou com água nos olhos e uma coisa apertando-lhe as goelas por dentro. E com vontade de perguntar como era que se deportava um brasileiro para outras terras também dentro do Brasil. O que significava aquilo? Exílio? Asilo! Banimento? Que Direito Interestadual seria aquele?! Aquilo não era nada mais nada menos do que safadeza. E por que não deportavam também Ceiça e os meninos?! (Por causa deles que roubava).

Em todo caso, ficar calado seria melhor. Bem conhecia de perto aquela polícia Civil.

— Seu Epitácio, eu quero ao menos permissão para me despedir da família.

— Que família, negro safado! Onde foi que já se viu um ladrão de sua estampa ter família?!

E os guardas riram a valer.

— (Miséria! Homo stupidus! Único animal do mundo que ri e chora. Chora infeliz! Ri, miserável! Chora das tuas desgraças! Ri das misérias dos outros!)



Capítulo XXXVIII


Lá se vai ele escoltado rumo Estação do Trem! Como estaria Ceiça àquelas horas? Os meninos... ?

O trem apitou. A mesma máquina velha, uma das mais antigas de todo o Brasil (do tempo de Mauá). A mesma que um dia levara seu amigo Parente para outras terras.

Lá se vai embora o negro Pau de Fumo! Num vagão de terceira classe. (De terceira não, que uma imundície daquelas não era classe nenhuma).

O trem apitando, mas não era o mesmo apito do dia da despedida de Parente. D modo algum nem de longe parecia com despedida de quem parte para outras terras. Parente um dia podia voltar. Ele, nunca! Era assim como se uma despedida eterna, - deste para o outro mundo. Ainda mais que o sino da viatura badalando. Como se fosse dobres de finado. Também lhe recordando os alarmes nos incêndios.

Seria que os demais planetas fossem também habitados?! Seriam tão desumanos quando aos da Terra seus habitantes? Haveria algum fundamento nas deduções de Flamarions e outros astrônomos? As fogueiras de Marte... Astronomia... Mecânica celeste...

Que saudade do colégio! Que vida aquela sua! Genoveva, Zefinha, Ceiça, os meninos... Maria Preá, 
dr. Leovigildo, a mulher dele... professor Cagliostro, Teresa Caga-no-caneco, Zefa Traíra, Chica Pote, Maria Sapatão...

Assim num momento, toda sua vida passando em seus sentidos como se uma gravação.

Pôs a cabeça a uma janela. Tudo escuro ainda. Mas sentia como se os vagões se retorcendo como um monstro pré-histórico nas curvas dos trilhos.

Que saudade dos tempos de estudante!

Seriam habitados os outros planetas? Na certa!

Noite ainda. Perto da ponte metálica do Parnaíba velho, pelejava mas não podia ouvir a cantoria dos sapos. Naturalmente que eles ainda estavam cantando, que o dia não havia ainda amanhecido. Mas o diabo do ruído do trem não deixava ninguém ouvir outra coisa. Mas sentia, perfeitamente, que àquela hora, com tudo ainda em plena escuridão, os sapos ainda estavam cantando. Cantando de fome. Fome de luz, que o dia não havia amanhecido. A luz ainda não havia chegado. E mesmo sem ouvir, mas apenas sentindo que os sapos ainda estavam cantando, a recordação dos filhos veio-lhe mais aguda do que tudo que até então sentia. É que cantiga de sapo parece com choro, especialmente com choro de menino que chora de fome. Decerto que àquela horas seus filhos estavam chorando. Ceiça também. Também eram sapos. Eles sapos pequenos, ela sapa velha. Sapos que choravam de fome. De fome, porque não havia ainda luz na terra. E também com pena do sapo velho dono da casa que partia. E este era que estava com fome de verdade. Fome de barriga. Fome de justiça. E a zoada do trem dizia direitinho:

— Tô com fome! Tô com fome! Tô com fome!



em Palha de Arroz (trechos),
Teresina: Oficina da Palavra, 2004, 4ª edição
Fotografia via blogue ÁgoraDaTaba

1.12.15

TERESINA




Outrora, em tempos que já vão longe. Teresina era uma cidade
ingênua e singela, onde só se respiravam eflúvios de amor, e a vida
corria na simplicidade mais bela!
Tempos que passam!
O cargueiro d'água, o tipo imorredouro do cargueiro d'água...

...

Os marujos, os congas, o boi.
No dia 1º de janeiro havia um alvoroço em todas as almas porque os
marujos tinham de desembarcar vindos do outro lado, na efetivação
completa de um folguedo tradicional e sabido.

...

E o boi... e o boi estardalhaçante, pirotécnico e ultra bizarro com a
atitude afamadíssima do Mané Folguista...
As novenas... Oh! e as novenas famosas e realmente sensacionais,
firot-máximo do interesse da terra, tradição gritante de uma época...

...os cajueiros, os célebres cajueiros mal-assombrados onde a
ingenuidade aldeã dizia passarem a noite abantesmas e lobisomens...
Tempos que passam... Eras que vão!...
Saudade que evoca!...



Olho de Lynce
Pseudônimo
1912
em Cadernos de Teresina
Ano XIV, nº 34, novembro de 2002

ENTREGRADES




na rua dos pássaros
um canarinho amarelo
me chamou de canto
e falou:

"eles não sabem, mas
eu sou claustrofóbico"



Lucas Rolin
enviado pelo autor

REMANSO, Gregório de Moraes


O Parnaíba imenso, adormecido
Pelas beiradas balsas deslizando
Balouçam leves, vão além singrando
Ao pôr do sol, do meu torrão querido

Velhas lembranças tenho revivido
O Mafuá, o Boi, os Reis, cantando
Pelo Cabral, tambores soluçando...
O canto do capote, vão, perdido!

É, tudo, sei, de outrora uma lembrança
Do meu alegre tempo de criança
Fazendo pescarias e caçadas!

Quisera ver outra vez minha terra
Andar a esmo qual pássaro que erra
Na imensidão perdida das chapadas!


Gregório de Moraes
em Auroras Perdidas
Rio de Janeiro: 1970

A POÉTICA DO HOMEM E OUTROS BICHOS ESQUECIDOS




Os olhos do poeta Hindemburgo Dobal Teixeira (1927-2008) brilhavam repletos de ternura naquela tarde, na qual ele, Cineas Santos e o autor dessas virtuais traçadas linhas, saboreávamos um cafezinho em sua casa, em Teresina (PI). De férias na cidade, morando em Brasília, sabendo que H. Dobal fora acometido pela doença de Parkinson, pedi ao CS que me levasse até sua casa.

Poeta consagrado, premiado, servidor público aposentado, cidadão do mundo que morou em Teresina, Rio de Janeiro, Brasília, Londres e Berlim, HD parecia feliz naquela tarde. Creio que isto aconteceu em 1994. Dobal indagou se eu queria café com açúcar ou adoçante. Diante a minha negativa, observou, com um sorriso sincero nos lábios:

"Você tem razão, doçura só a da vida".

CONVERSAMOS amenidades, dias depois eu voltei a Brasília, sem entretanto esquecer aquela frase ecoando na memória, que bem pode ser um verso: "doçura só a da vida".

O que mostra que Dobal não sofria da doença chamada alienação política, essa gente costuma creditar a vida as mazelas sociais e históricas que infernizam a odisseia humana, esquecendo que o verdadeiro inimigo não atende pelo nome "vida", mas pela alcunha "poder", a forma de como o "Estado" é organizado.

A vida é inocente. Como dizia Sarte, "o inferno são os outros".

SE DOBAL tivesse resistido um pouco mais, talvez sua viagem definitiva fosse prorrogada por mais tempo, pelo milagre das células-tronco, a grande esperança da revolução na medicina neste surpreendente século XXI.

H DOBAL debruçou-se sobre a existência humana, falando no "homem e outros bichos esquecidos", diz num poema. Nada escapou do seu olhar poético e crítico. Da solidão humana povoando a tarde, à solidão dos homens anônimos encharcando o dia.

Flashes da vida, retratos do cotidiano - Rio-Teresina-Brasília-Londres-Berlim - o atento olhar dobalino observou mudanças na geografia física da cidade - Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina, Os Signos e as Siglas (Brasília) - e nas paisagens humanas, produzindo uma poética onde não faltam mergulhos objetivos e subjetivos na condição humana.

A OBRA de HD dá uma sacudida dialética na cabeça e no estômago do leitor. Poeta de paisagens, tempo, gentes, lugares, dos rebanhos do tempo, do homem ou da vida simplesmente, Dobal ainda encontrou uma folguinha para criticar a poesia rimada e metrificada.

Mesmo quando escreveu ficção (Um Homem Particular), condimentou poeticamente a sua prosa, as vezes é um poema quase inteiro, embora com o final frouxo, aguado, prosaico.

O olhar atento do poeta registra mudanças na rota do tempo, o que faz de HD um cronista do tempo. A "Província" de Dobal é o mundo, mais ou menos como a aldeia de Marshall McLuan é a aldeia global.

A GLOBALIZAÇÃO do capitalismo começou no período das grandes navegações, no mercantilismo, quando o colonizador europeu transformou as populações nativas (chamadas índios) e povos africanos em mercadoria, mão-de-obra escrava.

Tudo isso consta do ideário poético de H. Dobal: os índios piauienses que foram massacrados (Acoroazes, Pimenteiras, Gueguezes, Tapuyas), ganharam um poema épico (El Matador), onde nomina um dos chefe da chacina, o tenente-coronel João do Rêgo Castelo Branco (1776-1780).

FALTOU o pistoleiro de aluguel, o assassino por encomenda de índios e africanos, o bandeirante Domingos Jorge Velho, que é nome de rua no país inteiro e de colégios, inclusive em Teresina.

DJV chefiou a expedição militar da monarquia que assassinou Zumbi dos Palmares (?-1695). Por todas os crimes que cometeu, sempre bem remunerado, DJV é considerado um "herói" nacional. Até quando?


Dobal exaltou heróis da independência - anônimos (Memorial do Jenipapo, "o sonho anônimo dos que morreram pela liberdade") e resgatou o histórico poeta piauiense Leonardo de Carvalho Castelo Branco ou Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco, que foi preso no Piauí, Maranhão e Portugal.

Em tempo: a vida do poeta e inventor Leonardo também deveria ser estudada nas escolas do ensino médio do Piauí e do país.

Não temos sequer um retrato de Leonardo. Lembro de algumas conversas que eu tive, na década de 1980, com o publicitário, letrista (tem obras-primas com o cantor e compositor Edvaldo Nascimento) e poeta Durvalino Filho, nas quais me dizia, empolgado:

"Vamos forjar um retrato do Leonardo".

A GRANDEZA ética e estética da poesia de HD parte do micro para o macro, da solidão para a alegria (me divirto lendo Serra das Confusões), da vida para a destruição da morte: a Poesia vive.

Dobal deu-se ao luxo de achar alguns dias inuteis, por ser um repórter do tempo, cuja poesia fotográfica não poupa o mal caratismo popular ou elitista.

A poética dobalina é uma radiografia da existência social, iniciando pelo começo, da Província à contemplação da paisagem, registrando universais tipos humanos.

NEM A gente simples e humilde com seus flagrantes de virtude e desvirtude escapou de suas retinas. As qualidades estéticas de HD já foram exaltadas por poetas e estudiosos da literatura. Entre eles Manuel Bandeira, Odylon Costa, filho, Álvaro Pacheco, Fábio Lucas, Cristina Maria Miranda de S. P. Correia, M. Paulo Nunes (grande contemporâneo e companheiro de Dobal), Almeida Fischer, Cineas Santos (anjo da guarda de Dobal, na fase aguda da doença de Parkison) e a professora Maria G. Figueiredo dos Reis.

LEMBRO bem daquela tarde, Cineas com o olhar fixo no poeta, eu bebendo café puro e Dobal sorrindo com seu jeito piauiense universal de ser, com sua ternura e humildade diante o mistério, se emocionando com o dia bonito pra chover.

Por que Deus não nos deu o poder de congelarmos o tempo nas retinas da tarde?


via blogue de Kernard Kruel

25.11.15

TEMPO DE LEMBRAR 3 - Os Anos de Chumbo e a Verdade de Cada Um, Ací Campelo


O ano era 1976. Ainda não fazia teatro. Naquele ano eu comecei a escrever contos e a publicar em jornais de Teresina. Mesmo por que tinha ganho um concurso de contos promovido pela Fundação Cultural do Piauí, e publicado no Jornal O Dia, além de levar a bagatela de trezentos contos. Um espanto pra mim! Portanto, minha turma era o pessoal de literatura: contistas e poetas piauienses da geração mimeógrafo. Foi naquele ano que minha cabeça começou a mudar em relação a ditadura que tomou conta de nosso país.

Claro, que eu já tinha conhecimento dos desmandos e das atrocidades dos militares, mas é que as coisas chegavam tão lentas e atrasadas no Piauí, que poucos iluminados se davam ao luxo de estar em dias com os últimos acontecimentos. Ainda mais que eu convivia com o pessoal do Cepi-Centro de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares, da Fundação Projeto Piauí, criada no governo Alberto Silva, que em plena ditadura investia uma grana preta em pesquisa educacional, música coral, artes plásticas, cultura popular e teatro, coisas que eu adorava. Portanto, era um período em que a cultura piauiense parecia viver num oásis em pleno país que a polícia espancava atores, quebrava teatros, proibia músicas e prendia artistas. Por aqui quase não se tinha conhecimento que a ditadura tivesse feito seus estragos na própria classe artística piauiense.

Minha mudança de rumo veio com os infindáveis papos nos botecos de Teresina, onde poetas, contistas, jornalistas, músicos e atores varavam noites em recitais, bebedeiras, namoros e, principalmente, resistência politica, tudo regado no mais sincero respeito um pelo outro. Onde o coletivismo substituía o individualismo e a luta era pelo bem comum. Criatividade à flor da pele. Longe dos botecos de hoje onde o ego e o individualismo de alguns assassinam e enterram ideias brilhantes de outros.

Veio 1977, e com ele minha entrada no mundo do teatro, quando fiz a estreia de minha primeira peça no Theatro 4 de Setembro, símbolo e orgulho de nossa cultura, que me deu o impulso de nunca mais parar. No ano seguinte, senti as garras da ditadura rondando ao meu lado. Minha segunda peça falava sobre um coronel latifundiário que era morto por um roceiro. Fui chamado na Policia Federal, onde o censor foi direto e grosso: "Pode mudar o final da peça. Um roceiro não pode matar um coronel, ainda mais por questão de terra". Caramba. Mas sem aquele final a peça não existiria. A sentença final do censor:"Então, não apresente a peça". Putz!

A peça era feita pelos atores Lili Martins, Afonso Miguel Aguiar, Lorena Campelo e Ribamar, não falei nada para eles. Na minha cabeça era uma estupidez aquela censura e cabia a mim resolver tudo. Negociei com o censor. No final da peça, faríamos apenas a menção que o coronel iria morrer e, antes que ele caísse, a luz se apagaria. Lindo, não! O censor engoliu, e mandou dois agentes assistir ao ensaio geral. Como o diretor era eu, assim fizemos. Como raramente eles iam assistir ao espetáculo fizemos o texto do jeito que estava, e o coronel terminava estirado no palco, morto pelo roceiro. Pura transgressão! Tempos depois essa peça seria assistida por Plínio Marcos, ícone da dramaturgia brasileira, no Theatro 4 de Setembro, e quando eu fui apresentado ele me falou que seria melhor eu escrever um romance sobre aquele fato, pois assim eu contaria tudo que estava entrelinhas. Mas eu nunca escrevi romance algum.

Depois, já freguês do Departamento de Ordem da PF, pois fazia liberações de peças e eventos da Federação de Teatro Amador do Piauí, da qual era secretario, comecei a ter pavor e, ao mesmo tempo, ódio da ditadura. Duas ocasiões me marcaram muito naqueles anos. A primeira vez foi quando a Federação promovia o dia internacional do teatro. Distribuímos os convites do evento, feitos pelo querido amigo e ator Lili Martins, quando fui chamado à PF. No final do convite estava escrito uma frase: "Um beijo na bunda". Dessa vez foi de lascar. Um bafafá do caralho. O censor ficou irritado. Que era aquilo? Um beijo na bunda? Que mensagem era aquela? Vamos proibir esse evento, seu Campelo! Passei quase três horas conversando com o homem, e explicando que não tinha nada a ver, que era apenas uma saudação. Saudação com um beijo na bunda! Realmente era difícil de acreditar, mas foi tudo contornado. Mas aconteceu o pior, o Lili, irreverente que era, numa das cenas que fazia no evento em comemoração ao dia do teatro, sabendo que a PF não gostara do convite, arriou as calças e mostrou a bunda pra plateia. Risos gerais! Era o ano de 1980.

A outra vez, foi quando eu vinha do Bar Sachas, templo dos artistas de teatro, que ficava ali na Avenida José dos Santos e Silva. Do Sachas só se saia ao amanhecer. Era uma eterna festa. Não sei por que eu cismei de ir embora ainda cedo. Andei pouco fui agarrado por um troglodita e jogado dentro de um fusca. Lá dentro estavam mais dois. Começamos a rodar em Teresina, e as perguntas eram repetitivas, e os tapas no peito eram horríveis, e o queimado no pulso com baganas de cigarros era uma coisa dolorida. Perdi a noção do tempo. Não sabia por onde andávamos nem tinha a mínima noção do que queriam. Eu era apenas um rapaz querendo fazer teatro em Teresina. Ali estava a face mais escura dos anos de chumbo, vilipendiar e amedrontar. Me soltaram no centro da cidade quando o dia vinha amanhecendo. Corri para casa. O pulso queimado e ardendo, chorando de uma raiva interna e de uma impotência horrorosa. Contei pra minha família. Muitos amigos do teatro e da literatura foram à minha casa conversar comigo. Ainda andamos por alguns lugares que passei, mas eu não me lembrava de nenhum rosto. A partir dali minha convicção ainda ficou maior de que deveria continuar no meu oficio de teatro.

E assim faço até hoje. Ano em que completarei, no mês de novembro, 35 anos de teatro. Vai ser uma festa!

Ací Campelo2 de abril de 2012 via blogue do autor

TEMPO DE LEMBRAR 2 - Anos 70, A Turma e os Apelidos




Nos anos de 1970 quase todos os amigos tinham apelidos, ou codinomes, o meu era BD, e só os mais íntimos sabiam o que significava. Tinha o Fuinha, o Sargento, o Til, o Lento, o Billy, o Maca e o Jota, este era o meu melhor amigo. Alguns apelidos eram inventados por mim e o Jota e os apelidados nem precisavam saber por que ficava entre nós mesmos. Nós curtíamos pra caraba inventar os codinomes. Foi com o Jota que vivi bons anos da minha juventude, onde tudo era descoberto de forma fantástica e compartilhado nos mínimos detalhes. Aquilo que não sabíamos íamos atrás com uma curiosidade infernal. Algumas vezes nos dávamos mal, mas nunca nos arrependíamos do que tínhamos feito. Apenas partíamos para outra.

No ano de 1973 eu estudava no Colégio Helvidio Nunes, onde a farda chamava atenção pelas cores fortes, a calça caqui e a camisa de um amarelo intenso que, também, ganhou o apelido de picolé de abóbora. Eu ia sempre impecável para o colégio, desde o kichutte limpinho até a camisa super gomada. E me comportava como um verdadeiro estudante, e era mesmo, apesar dos amigos não acreditarem. Isso por que nos finais de semana meu comportamento era totalmente diferente, bebia toneladas de uísque Royal Label, que era nossa cachaça e varava as noites atrás de festinhas e de cabarés. Jota se deliciava com aquilo. Olhando para a minha cara ninguém era capaz de acreditar no que eu seria capaz de fazer. Minha reputação no Colégio era muito grande, comportamento exemplar. Coisa de ser escolhido para pelotão da parada de sete de setembro. Uma parada dura. Sete de setembro naqueles tempos não era brincadeira, era coisa de patriotismo verde amarelo ditatorial. Faltar aquilo significava castigo certo. Se bem que o castigo era ensaiar a marcha dias e dias, e ainda por cima não poder beber véspera de feriado. Mas tinha muito estudante que adorava e sentia orgulho em ser pelotão. Jota não aguentava me ver marchando. Minha reputação como estudante ginasial foi além, pois fui convidado para ser vice-presidente do grêmio escolar. Eu mesmo não entendi por que. Quem me convidou para aquilo foi um dos meus melhores amigos, esse sim, popularíssimo no Colégio, o Raimundinho Santana, para nós o Til, um cara fantástico acima do bem e do mal. Lembro de ter sido chamado na diretoria pelo professor Agnaldo Camilo que conversou comigo e confirmou minha participação na chapa do grêmio. Afinal de contas nada podia fugir ao controle da direção. Passei a ser importante. Foi muito interessante aquela experiência, que contarei mais adiante.

Jota era uma figuração, um cara muito louco, como de resto eram todos os jovens interessantes daqueles anos. Não estava nem aí para estrutura nenhuma, mas era um verdadeiro amigo, divertido e sincero. Além de beber muito, o que não era novidade, tomava anfetaminas aos quilos. Como ele era gerente de farmácia ficava fácil. "Olha, aí BD, uns optalidons." Eu recusava, por que detestava comprimidos desde pequeno quando mamãe me enchia deles para me curar de asma. Mas eu garantia suas loucuras no Colégio quando ele ia dopado por que tomava seis comprimidos de um tapa só. Ele adorava revistas em quadrinhos e disco de rock. Na sala de aula ficava viajando nos quadrinhos e, vez em quando, soltava uma gargalhada que ninguém entendia nada, só eu. Jota era galante e paquerador, e vivia me botando pra cima das meninas. E fazia isso, mesmo sabendo que eu era namorado da irmã dele. Dizia que as meninas gostavam de mim, e que ele arranjava namoradas por que era meu amigo. Mas eu não estava muito aí para as meninas, não. Achava muita dificuldade namorar, para mim era um saco aguentar um namoro. Mas a turma aproveitava, namorava pra caralho. Um dia apareceu a Aninha, transferida do turno da manhã. Aninha era bonita, sorridente e despachada. A turma se deu bem com ela. Me apaixonei por Aninha. E Jota lascou: - "Pô, BD, todo mundo já passou a mão na Aninha, cara!". E os outros quando me viram de mãos dadas com Aninha não acreditaram. Caramba, esse cara é abestado. Pois é, eu quero é ela mesmo Jota, e pronto. Achava Aninha linda, de pele cheirosa. Foi ela quem me ensinou a beijar de língua. Mas era só eu virar as costas que Aninha se agarrava em outro. Um dia à noite, quando o Colégio realizava um festival de quadrilhas Jota me pegou com Aninha, não sei por que eu já estava com a saia dela na mão. Quando sair de onde estava Jota partiu pra mim; -"Pô, BD, mas tu não faz assim com minha irmã não, faz?" Não, faço não. E não fazia mesmo. Namorei Aninha muito tempo até perdê-la de vista.

O Royal Label que bebíamos já não era o suficiente. Jota estava cada vez mais louco com suas anfetaminas. Ficávamos horas e horas ouvindo rock em sua casa: Rolling Stone, The Who, Santana, Alice Cooper e os cantores country americanos, como Willie Nelson, Jonh Cash, Cat Stevens e Bob Dylan, claro. E tome uísque e pilulas. Willie Nelson era um cantor machonheiro, segundo sua biografia, que fazíamos questão de ler, não só a dele mas de todos os outros cantores e conjuntos que nos curtíamos. Então, um dia Jota cismou em fumar maconha. "Topa, BD, fumar maconha?". Topo.

Não foi difícil encontrar a erva que naquele período tinha o apelido de baseado. No fundo já sabíamos a quem procurar, o difícil era pedir. No entanto, nem foi difícil assim. Quem nós deu o primeiro baseado foi um amigo do peito, que vivia enfurnado em seu quarto com seu violão, arrodeado de discos. Nem é preciso dizer que tinha sido ele o responsável pelo nosso gosto musical. Vivia curtindo, além daqueles conjuntos e cantores acima, The Doors, Pink Floid, Emerson, Lake e Palmer, Jimmy Hendrix, The Beatles e a voz gutural de Janis Joplin. No quanto dele tinha um retrato de Jim Morrison, o líder pirado do The Doors, que tinha morrido de overdose. Esse nosso amigo era o Maca. "Pois é, BD, é tu quem vai pedir maconha ao Maca, sacou? Tu tem mais moral". Tenho, caramba! E assim eu fui. Ganhamos dois baseados. O Maca era um pouco mais velho que nós e morava no Bairro Marques, na Vila dos Militares. Ele barbariza nas barbas do exército. Tudo normal, irmão, dizia ele. Lembro que era um dia de sábado, e depois de ouvirmos uma sessão de rock na casa do Maca fomos para a casa do Jota. Estávamos ansiosos, afinal de contas era a primeira vez que iriamos fumar maconha. Foi uma curtição ao som de Bob Dylan "Blow in the Wind", e dos Rolling Stones "Angie", sem falar dos Jackson Five, antes de Michael Jackson virar pop star. Depois fomos jogar futebol nas quadras do 25 BC. Sempre fazíamos isso. Naquele dia nada nos metia medo, e Jota bolava de rir na quadra mesmo quando levava uma bicuda no meio da canela, deixando os caras sem entender nada.

No ano de 1976, Jota se mudou com toda sua família para São Paulo. Perdi um grande amigo, mas já sabia me virar sozinho.



Ací Campelo,
em 19 de janeiro de 2012
via blogue do autor

SOBRE IDENTIDADE, CARNAVAL, PERDAS E CINZAS, por Ací Campelo



Agora que já foi decretado o fim dos desfiles das Escolas de Samba de Teresina - e que meus ouvidos cansaram de perguntas se sou a favor ou contra - posso escrever e recordar algumas lembranças e lançar algumas questões.

Sou um apaixonado pelo carnaval, combina com meu jeito tímido e extrovertido, afinal de contas é no carnaval que podemos fazer tudo aquilo que queremos, pois é naquele espaço de dias da embriaguez, da música e da alegria que todos somos iguais, ou quase. Há mais de 40 anos moro no Bairro Mafuá, pertinho da Vila Operária um dos berços do samba piauiense. Convivi desde os anos 70 com escolas e blocos carnavalescos, pó de maizena e lança-perfume. Teresina era uma festa no carnaval: River Atlético Clube, Cabos e Soldados, Jockey Clube, União Artística Piauiense, Clube Pirantinga, Classes Produtoras, Flamengo, Marques, Baixa da Égua, Palmeirinha, Frei Serafim e os desfiles das Escolas de Samba, imperdível, meu velho! Triste foi quando parou tudo nos anos 80. Teresina parecia ter escurecido sem as festas de momo, uma escuridão que desnorteou os tamborins e calou as cuícas; um amargor na goela dos puxadores de samba-enredo e uma tristeza sem fim nos corações dos compositores e dos foliões.

Veio os anos 90. As fantasias guardadas e o peito dos apaixonados pelo carnaval batendo cada vez mais forte, desistir nunca! Esperança e ritmo na cadência do samba. As forças se aglutinaram e, em 1993, aconteceu um evento denominado Reviver Carnaval, um Seminário realizado pela Fundação Cultura Monsenhor Chaves e a Secretaria de Esportes e Lazer - Semel, na Casa da Cultura de Teresina, tudo acompanhado por uma exposição de fotos, fantasias carnavalescas. Foi a partir dali os tamborins começaram a esquentar. Participei de uma mesa onde estava Marcos Peixoto, o super-produtor cultural que fazia a Micarina com grandes trios baianos, nada que impedisse nosso carnaval de existir. O seminário foi todo documentado, e ali estavam todos os presidentes de escolas de samba e pessoas apaixonadas pelo carnaval deixando suas idéias e opiniões. O carnaval tinha voltado para a alegria de todos, principalmente minha. Tenho o documento, quem quiser ler me peça uma cópia.

1994, todas as Escolas de Samba na Avenida Frei Serafim. Mauro Monteiro, um gigante, dando tudo de si como organizador. O povo de Teresina invadiu a Frei Serafim, que ficou pequena, veio Marechal Castelo Branco, brilhante ideia, mais espaço e conforto. Em 1997, um ingrediente a mais: o corso carnavalesco e o caminhão das raparigas-atrizes piauienses representando, criação da FCMC, sob a responsabilidade de Cecilia Mendes, Afonso Lima, Laria Sales, Ací Campelo, Daniel, Wellington, uma festa! No começo, dois caminhões apenas, dez anos depois o corso tomaria conta da cidade. Mas, e agora? Como ser feliz no carnaval se não vai mais existir desfiles? Como ficará o corso? Aliás, corso pra que?

O mais terrível de tudo é negar a tradição. Escolas de Samba sempre existiram em Teresina, há mais 50 anos, não é, então, uma tradição? Não é uma história? Por isso é que às vezes penso que nós somos culpados pela nossa incrível capacidade de negar a nós mesmo. Estamos sempre acabando com aquilo que construímos, com aquilo que pode sugerir nossa identidade cultural, nossas raízes, nossas heranças, então, ficamos navegando e boiando sem paradeiro, na busca de qualquer tábua de salvação, num desrespeito total à construção de nossa cidadania. No Piauí, o gosto pessoal de alguns quando se apoderam do poder paira sobre o gosto dos outros. Não gosto, não quero, não tem pra ninguém. Mesquinhez pura.

Fico comigo a lembrar do bloco do Pererê, alô Ral! Do bloco da Tijubina do Mafuá, criado por Ubirani Rocha, do qual banquei o letrista dos sambas e, por último, do Baião de Boi, do Severinos Santos, onde desfilei nos últimos três anos. E o Bosco com sua Escola de Samba da qual me homenageou, me colocando no Samba Enredo? E o príncipe do carnaval, senhor da glória Manuel Messias. Onde vamos dançar agora? E pra quem? Não irei aos bairros vê escolas de samba desgarradas fazendo coro para trios elétricos, nada contra, absolutamente. Acho que até os próprios bairros irão estranhar, afinal de contas muitos deles se dirigiam a avenida para vê as escolas, não é verdade?

Mas, vamos com calma. A identidade de um povo é construída pedra sobre pedra e, às vezes, ficam só as pedras, para renascer das cinzas matando a tirania. Que viva o carnaval!



Ací Campelo,
em 27 de julho de 2009
via blogue do autor


24.11.15

ADEUS, MINHA BELA TERESINA




Estou sendo saudosista com este artigo, com absoluta certeza e, também, com absoluto prazer. O centro de Teresina, minha bela e querida cidade, está ficando desfigurado, feio, cheio de vazios que a fazem sem vida. Semana a semana uma casa de sentido histórico vai ao chão, sem pena e sem dor. E nós ficamos mais pobres de identidade, de sentidos, procurando no pensamento ao menos uma resposta para tanta insanidade. Claro que existem milhares de respostas, mas nós não queremos escutar as respostas que inventam. A nós, amantes dessa cidade e de sua história, gostaríamos mesmo era que ela continuasse com seus casarões particulares, de onde ela começou e de onde gerou sua gente, suas histórias e nossa herança cultural.

Quando eu fui diretor de arte da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, da Prefeitura de Teresina nos anos 90, precisamente de 1993 a 2000, foi feito um levantamento completo de todas as casas, monumentos e prédios históricos da cidade. Um trabalho primoroso feito com todo rigor e dentro dos parâmetros de arquitetura e urbanismo. Lembro que o profissional contratado para o trabalho o fez, muitas vezes, durante a noite para não vazar exatamente o seu trabalho, pois serviria para catalogação e preservação histórica. Milhares de fotos foram batidas das casas, prédios e monumentos da cidade, o que gerou uma documentação guardada pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves a sete segredos. Coitados de nós. Quando a documentação foi para a Prefeitura de Teresina as casas começaram a cair de uma por uma. Longe de mim qualquer ligação, mas a coincidência foi incrível. Lembram? O centro de Teresina começou a despencar de uns dez anos para cá.

O que nos deixa tristes e impotentes diante de tanta barbárie pela ganância especulativa, é a indiferença de muitos. A gente escuta de pessoas formadoras de opinião de que Teresina é novinha em folha, portanto, não tem ainda memória histórica. Para que conservar casas velhas, prédios velhos caindo aos pedaços apenas de 150 anos? Vai ter memória histórica quando, então? Dessa forma, infelizmente, nunca. Outros, usando de uma bobice sem tamanho a taxam de cosmopolita. Cidade de passagem, onde o novo mais novo do mundo globalizado está aqui no outro dia. Somos antenados mais do que os outros. É tanto que não damos valor ao que é nosso: ao nosso cantor e compositor, ao nosso bailarino, ao nosso artista plástico, ao nosso teatro, aos nossos literatos, ao nosso futebol, ao nosso bumba-meu-boi, ao nosso folclore. Claro, estamos derrubando tudo. Queremos tudo no chão e que nada se levante, só assim podemos louvar e amar ainda mais o que é do outro. Falta a muitos a percepção de que o outro guardou, e vende caro a nós mesmo aquilo que é deles e que eles louvam e amam.

O exemplo que nos deixa de cabeça baixa está em nossa própria região.Vamos aos estados do Maranhão, onde o centro histórico está totalmente preservado e faz um bem danado você andar à noite e ver dezenas de barzinhos abertos em frente a belos prédios e casarões, onde artistas encantam e cantam seus ritmos e folguedos: O Estado de Pernambuco, com seu Recife velho fazendo um contraponto com o Recife novo: A Bahia, onde o pelourinho destila história e cultura por seus corredores pintados de cores fortes e iluminados, e o Ceará, bem aí, onde o Complexo do Dragão do Mar faz convergir em um mesmo espaço a diversidade cultural em todos os sentidos. Nós, aqui não. Somos os tais, os maiores do mundo, não precisamos de história, muito pior de identidade cultural, ainda mais de simples casarões e prédios velhos a atrapalhar o progresso! Progresso que vem em quatro rodas - e tome carros em lugar de gente. Daqui a pouco Teresina será um grande estacionamento. E nós, que gostamos tanto dessa cidade, estaremos enjaulados e condenados a viver de lembranças. Lembranças? Não, para ser melhor, de banzo. Nunca mais veremos Teresina nenhuma.



Ací Campelo,
em 27 de julho de 2009
via blogue do autor

O RIO PARNAÍBA




         Gargarejo de mortes de afogados 
e brilho de luar sobre o silêncio 
ruídos sem barulho de asas brancas 
invisíveis na esteira do mistério.

         Embarcações fantasmas com seus remos
violentando o espelho da corrente 
e a história dos antigos moradores 
que perlustraram a estrada do degredo.

         Nas margens as perguntas os inquéritos 
o tiro a interjeição e a morte cinza: 
gargalhada de álcool nas bodegas.

         A indiferença escorre como gosma 
e o rio na derrota da incerteza 
leva faunas estranhas no seu ventre.


 
Clóvis Moura
em "Argila da Memória" (1962)

CÂNTICO DOS PRANTOS




1 – da geografia dos rios

os rios conhecem a terra
musgos, relvas, pradarias.
ribanceirando os caminhos
ao encontro de outros rios.



desmatamentos, queimadas, esgotos
indústrias. roubo de areia
dos leitos para as caras moradias
canais de fezes, do mundo,
cercas, nada disso impede os rios



2 – o movimento dos peixes

os rios têm o seu povo
universos que se agitam
no milagre da existência
da vida de todo dia.



choram o verde que era verde
e hoje é seca, cinza, prantos.
choram os meninos travessos
que aplacam a ira dos rios.
choram os meninos e os bêbados
que morrem nas águas vadias,
nas águas da morte funda
da terra sem moradia.



3 – o tempo social dos rios

os rios choram seus mortos
nas enchentes e marés,
os rios cantam seus mortos
nas chuvas das cabeceiras.
lamento das lavadeiras
no barulho dos anzóis
nos esgotos que recebem
nas barragens que constroem.



é para os rios que convergem
as lavadeiras do Brasil.
assembléia de mães pobres
confluência da esperança.
com o sabão da miséria
i a grandeza cotidiana das mãos
ensaboam e enxagoam
a sujeira dessa vida.
vida de pobres e ricos
de dores y alegrias.



nesses tempos de miséria
os rios são o choro da terra.



Menezes y Morais
O Rio: Antologia Poética
Teresina: Edições Corisco, 1980

A CHAPADA DO CORISCO E SEUS ACLIVES




I


Teres Ina - Teresina florave
aveflor momento e movimento
enigma dos frutos e da terra
- finito instante infinito

Vens de longe moiçola grave
a começar de um tempo antigo
(Portugal nobreza brazões)
mas não tenhas sangue azul



II


Vê agora quando o sono
quando à tarde quando à noite
quando à madrugada à manhã
se eleva às ervas sangue de antanho

Vede o campo verde e sua porta
ah! quanto de luz há em ti
como tens e cresces só em sol
e brilhas no sal do teu banho

Assim, descalça e menina,
percorrer teu ventre e o colo
é-me a hóstia teu mistério
e meu sonho teu ar estranho



III


Teresina, dorme sutil menina.
Frágil/forte moiçola dorme.
Veste de vento teus ares,
esfria-te-me nesta noite enorme.
Estica-te-me os pelos soturnos
pomares e luzes disformes.

Teresina solene de amores,
imensa tranquila e sombria.
Evocas menina/moiçola
retretas bailes romarias,
jardins e bosques e flores. 
Teresina - solene colores.



em SÁBADO ÁRIDO
Teresina: 1985

O CAIS DO RIO




o cais do rio
                      é
                      dos timoneiros
                      das lavadeiras
                      dos bêbados
                      dos poetas
                      e
das putas da paissandu
(o cais do rio
se deixa possuir por todos
em suas entranhas)

no cais do rio
as putas da paissandu
(como o esperma dos homens
que as possuem a qualquer hora)
constroem seus cemitérios particulares.



Kenard Kruel
O Rio: Antologia Poética
Teresina: Edições Corisco, 1980

23.11.15

INTIMIDADE INQUIETANTE


para os adoradores do finado Nós & Elis


Um dia a flor que lamentava a perda do encanto
Secara em vida e seiva
Antes da estreia de um Outono
Que se ouvira falar

Sei do Inverno quando me sinto triste
Na frieza da alma úmida
Em veste que não protege
Bogarins despetalados

Antes do Verão esnobe e pabo
A Primavera pôs-se a consolar
A mesma flor sedenta de resgate
Com promessas de cores firmes
E cheiros renovados.

Tudo imaginação
Em minha aldeia
Não vingam as quatro estações

Só a utopia e a felicidade
Estampada no rosto de Alice
Ou talvez de Nicinha
Em tempos de carnavais.



Acilino Madeira
em Porto/Portugal, 18.09.09
via blogue do artista plástico Amaral
http://setcuia.zip.net/arch2010-02-14_2010-02-20.html

ARNALDO ALBUQUERQUE [1]


Arnaldo Albuquerque

Ele sempre brincava de morrer. Teve um quase suicídio num acidente de moto e sua perna esquerda despedaçou-se tendo que ficar em cima de uma cama por quase um ano. Neste período produziu um desenho animado que impressionou todo mundo, ganhou prêmios e se perdeu, como tudo que ele fez. Nessa época ele estava no Rio e visitei-o em Botafogo, no apartamento da mãe. Na imobilização quase total dos membros inferiores, agitava o corpanzil, os braços e as mãos. Fazia careta na cara barbuda para que eu entendesse a técnica de animação usando caixas de sapatos, lâmpadas, cartolina, pincéis, tintas. Quando vi o resultado, muito depois, já em Teresina, não acreditei. Aquilo me impactou tanto! Era um carcará que atacava os bruguelos do sertão. Meninos recém nascidos. O carcará virava o Capitão América, representando o colonizador. Uma família, tipo Vidas Secas do Graciliano, andava na seca escaldante. O menino mata o Capitão América com uma baladeira (estilingue). O capitão América, abatido vira a águia símbolo dos americanos. Corte para uma cena onde a família faminta está assando a águia/carcará para matar a fome. Não é genial? E os anos 1970 estavam apenas começando.

Essa é apenas uma pequena aventura desse monstro que foi Arnaldo Albuquerque. A primeira revista de quadrinhos do Piauí foi ele quem fez. A capa era um exército de cartunistas nativos, comandados por ele Arnaldo, que com penas e lápis ameaçavam os heróis dos quadrinhos americanos num paredão como se fossem ser fuzilados. Com o sangrar dos pincéis e das tintas como faziam os cartunistas do Charlie Hebdo ainda agora e foram mortos por isso. Arnaldo atacou primeiro. E morreu no dia seguinte a Wolinski, um de seus heróis.

De outra feita organizou o que hoje se chama happening (é assim mesmo?) que na época nada entendi, mas que teve um resultado interessante. Ele confeccionou bustos de gesso dos amigos (eu era um deles) e espalhou esses bustos em pontos de grande concentração popular na cidade. No busto tinha um cartaz escrito “quebre-me” ao lado de um porrete. Ele filmava as reações. Interessante que no final alguém quebrava o busto e era mais interessante quando conhecia o retratado... Sacaram?

Todos os filmes super-oito da época tiveram a sua câmera. O "Adão e Eva” com Torquato Neto e o "Terror da Vermelha" – único filme que Torquato dirigiu, inclusive. No filme do Galvão, filmado aqui no Rio, tem uma cena impagável. A câmera de Arnaldo faz um zoom na buceta nua de uma estátua do Jardim de Alá. Arnaldo para o zoom, marca o local com os pés na areia, coloca ketchup na vagina da estátua, volta para o lugar e conclui o zoom. Efeito: surge sangue na vagina da estátua como por encanto e não se percebe o corte. De gênio.

No show musical “Udigrudi” na boate do Zé Paulino, Arnaldo fez uma cenografia detalhista de um cabaré da Paissandu (o baixo de Teresina) no palco. E que girava em dois ambientes. Coisa de profissional absoluto.

E fez muito mais. Desenhou, pintou e bordou para uma época desbundante. Mesmo com ele ainda vivo, sempre confessei que foi o MAIOR da minha geração. Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus habitantes nos enredos de suas lendas.

Uma vez, por causa de uma paixão, comprou um revolver e ameaçava se matar todo dia. No começo, Assai Campelo dormia com ele e se embriagavam juntos. Desistiu e ele não se matou. Era uma brincadeira.

Um pessoal da nova geração o descobriu e os meninos estavam organizando seus guardados já quase perdidos. Fizeram um documentário sobre sua vida já agora perto do fim, que ainda não vi.

Da última vez que o vi foi que entendi a brincadeira de morrer. Estava se matando aos poucos, afogado no álcool. Ontem recebi a notícia de sua morte. Foi como se apagasse um bom pedaço do meu passado. O que posso fazer além de chorar se morro também um tanto na morte dele?


ARNALDO ALBUQUERQUE [2]


O sujeito era tão intenso que uma crônica ou duas não dão conta da sua peregrinação num destino que carregava cravado no umbigo. Sua história nos quadrinhos e no desenho animado deixou herdeiros que reconhecem a filiação e uma tese de mestrado faz uma análise do seu lado marginal à marginalidade.

Fizemos um jornal na década de 1970, que circulou apenas duas vezes, mas nomeou uma geração: “Gramma”. E as duas capas eram dele. A do número um, aqui reproduzida, é uma obra prima. No nome Gramma detalhes podem ser acompanhados com uma lupa de cenas proibidas na nudez com erotismo digno de um Wolinski. Entre às cenas de sexo, o coração de Jesus pende do meio do primeiro M com a inscrição blasfêmica “o coração de Jesus era de pedra” e na última perna desse primeiro M a própria face do Cristo contrasta com o inferno que queima a lascívia do outro M. Mas no conjunto das letras o mal parece vencer o bem da religião. As outras letras parecem vencer o M do Cristo, mas é nele que se pode ler “a maior curtição”. O desenho central parece um autorretrato que arranca o coração do peito num rasgo tão grande que expõe as vísceras abdominais de forma chocante. Singelas flores emolduram o quadro.


Essa capa faz prescindir o conteúdo do jornal na temporalidade. É o que fica. É a transgressão que nos representa, toda uma geração, num desenho dele. Na mesma época era fundado o Charlie Hebdo na França, e aqui na terra “O Pasquim” já era reconhecido por dialogar com a contracultura. Era no desenho do Arnaldo que nós gritávamos, no estado mais atrasado da federação brasileira, que o sertão entrava no cenário da contracultura.


E ele continuou desenhando. Emplacou alguns cartuns n’O Pasquim. Fez ilustrações para livros de contos, como as que publicamos aqui. No traço a violência e o erotismo. Duas formas de protestos incontestes.


Mas foi agora, já depois de sua morte, que tomei conhecimento, pela internet, de um grande e futurista desenho. Um felizardo declara que ganhou o desenho do próprio Arnaldo em 1982. Em um cenário futurista, que lembra Metrópolis do Fritz Lang, prédios de Teresina e Timon (cidade fronteiriça do Maranhão) fazem um paredão às margens do Rio Parnaíba. O leito do rio secou e um fiapo de esgoto corre por baixo da Ponte Metálica (símbolo da cidade, quando ainda não tinha a ponte estaiada). Premonição do artista?


Depois silenciou. Parecia que a obra tinha ficado pronta. Só caminhava de casa para o botequim do meio do quarteirão. Tomava uma ou duas pingas. Bastavam. E o caleidoscópio do artista girava num mundo que ele não quis habitar por ter sempre se mantido à margem. Ele só saiu do nosso campo visual, mas continua à margem. Agora na terceira margem do rio, como no conto do Guimarães Rosa.

Ací Campelo - síntese biográfica




Francisco Ací Gomes Campelo (05-08-1955) nasceu em Lago da Pedra (MA). Formado em Artes Cênicas e Pós-Graduado em História Sócio Cultural, pela UFPI. Professor, Dramaturgo e Escritor. Pertence a União Brasileira de Escritores do Piauí – UBE/PI. Autor dos textos: “Pau a Pau”; “Chiquinha”; “Miridan”; “Auto do Corisco”; “Tiradentes – A ópera da Liberdade”; “O Auto da Estrela Guia”; “ A Menina e o Boizinho”; “ O Clube do Pipi”; “Na pegada de Meu Bumba”; “Soy Louco por Ti!”; "Os Salvados"; "Arribação Drama de Nossa Terra". Publicou os livros O Novo Perfil do Teatro Piauiense 1950 a 1990 (1993) e História do Teatro Piauiense. Organizou o livro A Nova Dramaturgia Piauiense (1989). Foi Diretor do Theatro 4 de Setembro, Membro do Conselho de Cultura do Estado e Diretor de Arte da Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Atualmente é Diretor da Escola Técnica de Teatro Gomes Campos. Pertence a Academia de Letras do Vale do Longá; Academia de Letras e Artes de Pedro II; Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro; Academia de Letras da Região de Sete Cidades. Ganhador do Premio Clio de História, da Academia Paulistana de História com o livro História do Teatro Piauiense. Fotografia via blogue do Kenard Kruel.

22.11.15

Maria da Inglaterra - "Mulher Cabra-Macho"






Documentário média-metragem que resgata a história de vida da cantora e compositora piauiense Maria da Inglaterra, contada por suas próprias palavras e por entrevistados que fizeram parte de sua carreira. Maria da Inglaterra "Mulher Cabra-Macho" é o resultado do trabalho de conclusão de curso do jornalista piauiense Patrício Lima, pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), em novembro de 2012. O documentário teve a orientação da jornalista e professora mestre Luciana Chagas. As imagens, edição e pós produção ficam por conta de Pedro Júnior Mendes. Já as imagens de apoio são dos fotógrafos Moisés Saba e Maurício Pokémon. Entrevistados: João Claudio Moreno, Patrícia Mellodi, Júlio Medeiros, José Dantas, Lázaro do Piauí e Cineas Santos.


[...]


Personalidade popular e querida em todo o estado do Piauí, muito considerada por seu talento e sabedoria no modo de viver. Em 1975, foi descoberta por Ricardo Cravo Albin, quando, em viagem pelo Brasil através do PAC - Plano de Ação Cultural do Ministério da Educação e Cultura - berço da futura FUNARTE, com o projeto História da Música Popular Basileira "De Chiquinha Gonzaga a Paulinho da Viola". Na ocasião, o pesquisador, impressionado com sua postura, que evocava ares de nobreza, a apelidou de Maria da Inglaterra, dando-lhe assim o nome artístico com o qual ficou conhecida por todos. Sua música penetra, inclusive, nas regiões interiores próximas ao seu estado natal. Começou a cantar para o público aos 26 anos, tendo Luiz Gonzaga como ídolo. (Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira)

(sem título)




I.


Hoje é dramático e não encontro terapia nos pombos
A praça - esse mosaico - é ainda mais densa
Tudo é movimento nessa praça lenta
Eu sou peça solitária e torta
Destacada do cenário
Permaneço
À espera de um milagre:
Virar paisagem.




II.


Converso com os carros no centro confuso da cidade
Estou mais dentro das coisas do que de mim
O barulho do tráfego morde minha orelha
As luzes dos postes falam do meu escuro
O asfalto é meu amigo, talvez o único
As gentes que passam não sei se sentem
Meu cheiro forte de centro antigo



Ariane Pirajá
Inédito em livro
Enviado pela autora

21.11.15

"virão de novo os dias dos banhos na chuva"




virão de novo os dias dos banhos na chuva
ah os dias dos banhos na chuva
e a chuva era boa e fria
e escorria das bicas
das casas ricas
e das calhas
das casas pobres
e havia meninos correndo
na chuva
algazarra de meninos correndo na chuva
batendo os dentes de frio
e rindo e rindo e rindo
na chuva

virá de novo o dia
em que o menino
comeu a fruta peca
e sentiu o amargo na boca
a louca levantou a roupa
e o menino viu aterrorizado
viu e ouviu sua risada
e sentiu pela primeira vez
desatar-se
a tormenta do desejo

pois vem de lá
da antevisão do futuro
este filme a se desenrolar
na tela da memória

vem de algum lugar
(e onde?)
a imagem do pai
o terno branco
saindo para trabalhar de bicicleta
a mãe de saia rodada
blusa de algodão
bordados miúdos

pois há sempre um tempo de ternura
quando a vida se guarda
em porta-joias
para ser usada em gotas

assim
se conservou o congá de tia duquinha
a tititinha
a índia velha feiticeira que dançava na chuva
cantando pontos de macumba e incorporando pretos velhos
no meio da sala perfumada com defumador de sambaíba

tititinha
a bruxa
de mil encantos e sortilégios
que habitava as terras do bem-querer
e aprendeu com os orixás e pretos velhos
a arte do esquecimento das coisas sérias

assim foi se desmemoriando de tudo enquanto
até se esquecer
por derradeiro
do roteiro da morte

e havia uma cidade
havia
naquele tempo
uma cidade antiga
esquecida no fundo dos olhos

"eu estou comprando
por qualquer dinheiro
uma cidade antiga
uma cidade velha
de ruas estreitas
e pessoas vivas
que um dia se perdeu
na retina escura
de um menino vadio
que se escondeu na noite
e nem notícias deu

mas hoje eu sei
que em qualquer esquina
ou ponta de rua
deste lugarejo
resiste intacto
puro imaculado
um beijo de menina"

e vêm do fundo do olfato os cheiros
de goiaba madura caderno novo
pastilha de hortelã bolo frito
o cheiro do capim cortado
pelos homens da limpeza pública
o cheiro da madeira dos caminhõezinhos entalhados
pelos presos da penitenciária
o cheiro do uniforme engomado
camisa bege calça cáqui
sapato vulcabrás

o cheiro sem passado
nem futuro
dos retirantes
nos paus-de-arara
tangidos pela seca
amontoados
sob as árvores
da praça saraiva

os imigrantes do ceará
que fediam a fome
sezão
catarro
empilhados como latas vazias
enferrujados de poeira
entrevados de tanto chão
com pretume nos pés

crianças de cabelos desgrenhados
pela seca
esticada de sol
e narizes escorrendo um sumo
no colo de mulheres desgrenhadas
ramela nos olhos

não havia poesia
no cheiro de merda e mijo
dos imigrantes que roubavam a paz dos sobradões
e não serviam ao sossego dos cidadãos de bem
por isso eram expulsos a cassetete
para os longes da tabuleta
onde miséria fome e choro
não incomodassem
as pessoas de família
e eles pudessem receber
(a prudente distância)
os donativos entregues pelas mãos caridosas
das senhoras de nossa mais fina sociedade

(mesmo a mais severina das fomes
termina um dia
embebida na memória
e se presta quando nada
ao ofício inútil dos poetas)

invade a alma o cheiro
das fraldas defumadas
com alfazema
pela preta velha
o cheiro de talo de buriti cortado
o cheiro da sala encerada
do café torrado com rapadura
na cozinha do casarão

mundo de cheiros

o cheiro
do orvalho da manhã
das folhas das begônias
de mijo ardido nos fundos da igreja
de vela estearina da sacristia
das flores murchas nos altares
dos ramos das palmeiras de domingo de ramos
e o cheiro de incenso ah o cheiro eterno dos incensos
queimados em turíbulos de prata
evolando-se ao céu
à honra de um deus suave
morador das redondezas

o cheiro dos charutos de seu joão
o cheiro forte das velhas cachimbeiras
e o cheiro da cachaça entranhada
no balcão da bodega de seu zeca

à noite
as ruas tomadas
pela embriaguez dos cheiros de jasmin
resedá
copo-de-leite
dama-da-noite
o cheiro doce dos jardins da casa branca
onde morava a moça rica
que derramava rios de fogo e desejo
à passagem do menino de olhos baixos
e opresso coração

ainda resiste
desde as lonjuras daquele tempo
o cheiro das boras assadas
no forno de barro
da avó miúda
que mascava fumo
e dela ficou-me o cheiro
do fumo de rolo
as peas de fumo
escondidas entre tijolos
e o cheiro da lenha verde
estalando no fogão

e o cheiro das folhas e raízes
que usava com secular segurança
no combate às enfermidades
doo corpo e da alma

velame pra urina presa
angico pra diarreia
mulungu pra acalmar doido
arnica pra machucadura
catuaba pra ressurreição de macheza
paulista pra abortar prenhez indesejada
caroba pra afinar o sangue
aperta-ruão pra doença do mundo
aroeira pra desmantelo da senhora
erva-cidreira pra mal de angústia

o odor agudo das ervas mágicas
nos tabuleiros do mercado velho
de vasta qualidade e serventia
anunciadas com letras mal tracejadas
desde uma
que era tiro-e-queda
para arrancar catarro encroado em peito de menino
outra que atraía amor e sorte
a até uma que expulsava vício de jogo ou senvergonheza

vastidão de cheiros
o cheiro do jacá de carvão
o cheiro do estrume de gado espalhado no roseiral
regado pela minha mãe
o cheiro de alfenim
pitomba bolo de goma
pirulito beiju com coco

e o cheiro bom
do sonho de eleonora

o cheiro que subia da terra molhada
pelos primeiros pingos de chuva
o cheiro
de brilhantina glostora
o cheiro do suor dos mecânicos
e o cheiro
dos surubins que subiam a olavo bilac
desciam pelos cajueiros
e ganhavam a estrada nova
no ombro de homens de torso brilhante

e no mercado velho
o cheiro de vísceras de peixe
carne-de-sol
molho-pardo
camarão
melancia
cuscuz de milho
pimenta-de-cheiro mão-de-vaca frito de porco farinha-dágua
perfume barato torresmo

em tudo e por todos os cantos da memória
o cheiro de gente
o cheiro bom de gente

e o cheiro  da praça
guardado para sempre
num canto iluminado do coração
o cheiro fresco das manhãs
sim
o cheiro das manhãs
das alvoradas
o frescor das manhãs
daquele tempo

e de outro tempo
a sombra dos ingás
as flores amarelas dos ipês
as folhas novas dos oitizeiros
dos juás
das figueiras
dos brotos vermelhos dos cajueiros

e vem do chão a imagem
viva dos acidentes
que a morte não alcançou
o dedo cortado de gilete
o lápis de ponta feita
o canivete afiado
a manga verde e o sal
(que torquato me ensinou a comer
escondido da mãe e das tias)
o cio dos gatos noturnos
as balsas de buriti descendo o rio
as canoas e os vareiros e os vapores
conduzindo mulheres pudicas
saias compridas sombrinhas estampadas
e homens de chapéu-de-massa
camisas de riscado
parnaíba afiada na cintura

naquele tempo
os rios corriam para o mar
e o mar ia dar no céu
onde as nuvens purificavam a água
que caía doce e fria e criadeira
para irrigar a terra
e para encher os riachos
que enchiam os rios
onde de proa do vapor mais alto
dava pra ver o adeus de tuas mãos
e o vento em teu cabelo

(como sabido
vapor subindo rio
faca peixeira
dedo cortado
e aceno de mãos no cais
sempre acabam em poesia)

compenetrado de seu poder
muito sério e muito grave
o menino sabia que o tempo é da natureza dos rios
por isso
colocava a mão na água
contra a corrente
empurrava a água
e assim parava
por um brevíssimo momento
o rio
do tempo



Paulo José Cunha
em Perfume de Resedá
Teresina: Oficina da Palavra, 2009
via uns2poemas

MEMÓRIA PEDRO II, por M. Paulo Nunes



Houve um tempo em que a vida social e política de nossa capital era feita em suas duas principais praças, a Rio Branco e a Pedro II, esta mais nova, uma vez que a João Luiz Ferreira, sem dispor ainda do necessário tratamento urbanístico, o que somente ocorreria por volta da década de 50, era destinada apenas aos festejos juninos que a animavam uma vez por ano.

Na Rio Branco, a mais antiga, que vinha das origens da capital, onde ficavam os bares, os cafés e o cinema Olympia, de propriedade do Sr. José Ommati, se fazia a vida política, social e literária, ora, no Bar Carvalho, ora, no Café Avenida, todos já desaparecido, o último dos quais criminosamente convertido num estacionamento de automóveis, na última reforma do Hotel Luxor, o antigo Hotel Piauí, realizada pelo governo do Estado, na década de 70. No Bar Carvalho, com um excelente restaurante, em que se destacava o bife a cavalo do famoso cozinheiro espanhol Gumercindo, reuniam-se os políticos, os juízes, os desembargadores e os professores da Faculdade de Direito, que funcionava no prédio do antigo casarão que abrigava algumas repartições do Estado, também criminosamente demolido para dar lugar ao edifício da Receita Federal, originalmente destinado a um centro administrativo e transferido, de mão beijada, como se dizia, ao Governo Federal, que o concluiu.

No Café Avenida, se reuniam, ordinariamente, os intelectuais, os membros da Academia Piauiense de Letras, que ali realizava, inclusive, suas eleições, e a colônia síria que formava, todas as tardes, uma roda de conversa em sua língua.

A Pedro II teve vida mais recente. Quando vim para Teresina, continuar meus estudos e preparar-me para a vida, em 1938, já ela existia, inaugurada que fora, no ano anterior, com o nome atual. Agora restaurada, não integralmente, em sua feição ordinária, dá uma ideia, entretanto, de como ela era. No plano superior, junto ao antigo Quartel de Polícia, hoje Centro de Artesanato, reunia-se o pessoal chamado de 2ª, constituído de empregadinhas domésticas, soldados de polícia e a arraia miúda, em seus namoricos de ocasião. Havia ali também o coreto, ora restaurado, não como fora anteriormente, onde, às quintas-feiras, a banda de música da Polícia Militar executava o seu nutrido repertório, constituído de dobrados famosos como o “Capitão Caçula” e “Juarez”, este, em homenagem ao Cap. Juarez Távora, herói da Revolução de 30: “Juarez, Juarez, o teu nome é uma glória / o Brasil te consagra o general da vitória.”

Na parte inferior, se reunia a chamada elite, com moças e rapazes desfilando em sentido contrário, a fim de que os olhos pudessem encontrar-se, já que os corpos teriam que manter-se à distância, segundo os rígidos costumes da época.

A praça era ladeada por algumas residências e na parte oeste, por alguns cafés e um arremedo de hotel, bastante chic para a época, chamado Hotel Central. Ao lado do Theatro 4 de Setembro, que à época funcionava como cinema, de propriedade do Sr. Alfredo Ferreira, salvo quando aportavam alguma companhias teatrais, alguma famosas, o que era freqüente, foi aberto, a partir do final da década de 30, o Cine Rex, cujo proprietário era o Sr. Bartolomeu Vasconcelos.

No centro do passeio da Praça, havia um sugestivo globo de luz, de cor esverdeada, em torno do qual se reuniam, em meados da década de 40, os plumitivos das letras, superiormente indiferentes ao fascínio do eterno feminino que mostrava suas formas exuberantes à curiosidade dos rapazes do nosso tempo, enquanto, nós outros, superiormente nos empenhávamos em discussões bizarras, sobre literatura, política, filosofia e outros temas inúteis. Quanto tempo perdido!

Ali nos reuníamos H. Dobal, nosso excelso poeta, O.G. Rego de Carvalho, nosso maior romancista. Edmar Santana, um professor brilhante, talvez o mais velho, que logo se mudaria para o sul do país e de quem há poucos anos recebi das peças teatrais, Eustachio Portella, que se tornaria psiquiatra de renome nacional, José Camilo Filho, que desenvolveria o ensino universitário no estado, através de nossa Universidade Federal, de que foi Reitor por dez nos, Afonso Ligório Pires de Carvalho, jornalista e romancista, residente em Brasília, Genésio Pires de Carvalho, procurador público, o autor desta nota e os que já se encontram do outro lado do mistério, como diria Machado de Assis; Arnaldo Victor de Pinho, bancário e engenheiro naval, José Maria Ribeiro, membro de nossa Academia e alto funcionário do Banco do Brasil, José Ribamar de Oliveira, romancista e membro da Academia, e Vítor Gonçalves Neto, o nosso Vitinho cronista e boêmio incorrigível. Vez por outra, por ali aparecia, como um furacão, o poeta Anísio de Abreu Pereira da Silva, que a frequentou por pouco tempo.

Em nossa Arcádia, como se auto-intitulava aquele grupo estranho aos pacatos hábitos provincianos, foram geradas algumas idéias importantes, como a da criação do Clube dos Novos, de vida efetiva até o final da década de 40, e a Revista Meridiano, que seria dirigida por O.G., Hindemburgo e o autor destas linhas que, como revista literária, surgiria também ao influxo daquelas discussões bizantinas

Tudo isto, que já é passado, em nós ainda subsiste. O desfile das moças em flor, quais aquelas “jeunes filles em fleurs” de Marcel Proust, a corneta do Quartel, em seu toque de silêncio, como que a chamar para seu redil as moças casadouras, os nossos sonhos e esperanças fementidos, tudo revive ainda em nós, como naquela quadra de Pessoa:

“Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma”.



M. Paulo Nunes
em P2 
Livraria e Editora Corisco LTDA, Teresina: 2001


A FONTE DA PRAÇA DO LICEU


                                        em memória do prof. Galvão


traça meu caminho como passa a
linha no fundo da agulha, minha
vista em toda lida afeita ao limbo
que esgotou na mina da praça.

céu de água azul no chão, de graça,
algo de branco sob as saias colegiais.
ao abrigo da libido, líquida cevada
sobe ao cérebro da teresina entediada.

romana ponte de menino travessa
a fonte, os cisnes, deslocados signos,
para sempre presos à retina, a vida
presa ao gole primo na passada praça.

primevo mundo. leviana cidade terna,
onde a água, fonte do eterno, fastia
a vista e desencanta. por que voltam
do passado passos dados sem valia?



Manoel Ciríaco
em agosto de 2003, Teresina/PI

ESTILHAÇOS: ENTRE O MARGINAL E O EXPERIMENTAL



O vídeo-documentário “Estilhaços: entre o Marginal e o Experimental” tem como objetivo geral relatar a produção do Cinema Experimental, posteriormente chamado de Cinema Marginal, feita com a câmera Super 8, em Teresina, no início dos anos de 1970. A ideia de fazer cinema superoitista surgiu de um grupo formado por oito jovens que eram adeptos à cultura marginal. Como objetivo específico, buscou-se retratar o movimento através da apreciação de três filmes que fizeram parte do ciclo de produção do grupo. A narrativa é construída por meio dos depoimentos de alguns dos produtores, diretores, atores e roteiristas dos filmes da época, através de entrevistas em profundidade realizadas com base na pesquisa documental e fílmica. Ao final do trabalho foi possível retratar o sentido de Cinema Marginal em formato audiovisual, através da junção da significância do movimento cinematográfico dada pelos produtores e pela análise geral de um historiador pesquisador da área.

Sob a influência das produções cinematográficas nacionais e com uma experiência junto aos cineastas nacionais como Ivan Cardoso e Glauber Rocha, Torquato Neto veio à Teresina com a ideia de fazer cinema com o recurso que tinha: a câmera Super 8. O objeto privativo da Kodak era de fácil manuseio e de custo baixo em relação às outras câmeras, porém, ainda era pouco acessível e nasceu com o objetivo de fazer pequenos registros (cada rolo de filme Super 8 tinha apenas 3 minutos) de eventos familiares, mas com o advento do experimentalismo cinematográfico foi utilizado para fazer filmes um pouco mais longos na intenção de expressar as nuances juvenis daquela época. Aos seus 28 anos, Torquato Neto se uniu a outros jovens piauienses de classe média como Edmar Oliveira, Arnaldo Albuquerque, Durvalino Couto Filho, Paulo José Cunha, Carlos Galvão, Francisco Pereira e Noronha Filho para fazer cinema com a Super 8 no Piauí.


Direção e roteiro: Patrícia Kelly
Produção: Morgana Castro e Alison Santos 
Imagens: Alison Santos, Morgana Castro e Patrícia Kelly 
Edição: Dionísio Costa

16.11.15

O CINEMA EM TERESINA




O primeiro cinema que se exibiu em Teresina, lembramo-nos bem, foi trazido pelo alemão Herr Blum, vindo até nós procedente de São Luís do Maranhão. O Porco Mundano foi o filme de mais interesse no seio do povo. Era, no cinema mudo da época, um paquiderme imenso, de cartola e vestido bem, a fraque, colête, conforme a indumentária do tempo. O Porco Mundano causou sensação e valeu por grande acontecimento e extraordinário atrativo. As exibições eram diárias, enquanto o Theatro 4 de Setembro ficava completamente cheio – ouvindo os gritos: - o Porco Mundano – Sr. Blum, queremos o Porco Mundano. Por ai, pelo entusiasmo popular em exibições dessa natureza – verifica-se quanto era o atraso da arte cinematográfica naquele tempo e, sem dúvida, o mau gosto do povo, deliciando-se com a figura de um animal, um porco em pé, vestido e dançando. Mais tarde – algum tempo depois – Leônidas Nogueira e José Omati, juntos e associados, passaram a explorar o cinema mudo, no 4 de Setembro. Pedro Silva, compositor e espírito inteligente – que se destacava pelas aplaudidas composições musicais – construiu o Cine S. Luiz ou Cine Royal – ali na Praça Rio Branco – onde se localizaria depois a Singer e mais tarde as Lojas Pernambucanas. Leônidas faleceu e José Omati prestou toda a sua afinidade, perseverança e tenaz entusiasmo ao cinema – dando tudo que lhe fora possível dar ao Film – já então sob o aperfeiçoamento do cinema falado. Morre Omati ainda em pleno vigor. É quando aparecem outros exploradores da arte da tela cinematrográfica: - Bartolomeu Vasconcelos e Deoclécio de Moraes Brito – construindo o Cine Rex – da Praça Pedro II. O Ferreira arrenda o Theatro 4 de Setembro e passa a competir – dedicando-se, igualmente, ao cinema. Mas a evolução não para, é demorada, embora constante, Teresina cresce e exibe, no plano atual do desenvolvimento, um cinema à altura da cidade, que se aperfeiçoa atingindo mais alto grau de civilização e de conforto. Outros espíritos empreendedores surgem com os Drs. Jorge Chaib e R. Portela de Melo. Fundam uma sociedade por ações populares e conseguem o mais completo êxito. E, assim, hoje, comemorando o dia nacional da independência – inaugura-se o suntuoso prédio da Rua Coelho Rodrigues, onde passará a exibir-se o cinema melhor instalado e mais confortável de Teresina e do Nordeste brasileiro: - o Cine Royal, num justo preito de homenagem ao pioneiro José Omati. O prédio é suntuoso, as instalações estão à altura do edifício e correspondem às exigências da arte, bom gosto e de conforto da mais apurada elite teresinense. É um surto de iniciativa privada de grande animador alcance e que muito honra e eleva a sociedade evoluída, que tanto precisa e merece ser beneficiada. Não resta dúvida que o esforço dos promotores do Cine Royal foi grande e arrojado. Mas fez-se na conformidade da evolução teresinense. Os melhoramentos não vem senão a tempo, quando o meio está próprio e preparado para recebê-los. E é o que acontece, de certo, com o Cine Royal que, vitorioso, passará, de agora em diante, a ser um marco luminoso do exuberante desenvolvimento e progresso da cidade do imortal conselheiro Saraiva. Teresina civiliza-se, cresce – com arte, fina sensibilidade artística e notável sentimento estético – de que o aspecto arquitetônico é grande demonstração. Estará, portanto, ao nível de corresponder, devidamente, àquilo que é valor e mérito dos devotados construtores do Cine Royal – José Omati – nessa deferência e acatamento à fina flor da população de Teresina. É, sem dúvida, uma grande casa de arte e a arte fala aos sentimentos elevados e as faculdades emocionais de fino gosto e de boa educação. O Cine Royal – José Omati é um marco imponente de uma fase nova na vida social dos teresinenses. Estão de parabéns os seus arrojados e decididos promotores, de certo, merecedores de calorosos aplausos. O mundo marcha e, como nós já estamos tão distantes do Porco Mundano de Herr Blum, do cinema mudo, do começo do século! O Cine Royal é um marco civilizador.



Simplício de Sousa Mendes
Jornal O Dia, coluna Televisão
Página 3, 7.9. 1966
via blogue do pesquisador Kenard Kruel

11.10.15

SAÍ PARA COMPRAR PÃES, Rodrigo M Leite


rua do mercado fora de época do parque piauí
domingo, após o almoço
tomates apodrecem
a rua é um rio
que destrincha um bairro
em vários bairros
rua da casa da avó paterna
de relance, na esquina
um cavalo elegante branco
brilha sozinho
rua da locadora de videogames do sena
ou rua da igreja
um gato atropelado
incrustado no calçamento

________________________[urubus ao alho
________________________e óleo

Rodrigo M Leite
em A Cidade Frita Ilustrada
Teresina: 2016