31.7.15

Cidade Descarnada – Resistência e memória dos antigos moradores de Teresina







Este documentário é uma homenagem aos antigos moradores do centro histórico de Teresina. Trata-se de um resgate da memória e um olhar sobre o íntimo dessas pessoas anônimas e de como elas observam, em sua lembrança o mundo exterior de uma Teresina que não existe mais. São memórias privadas, que nos introduz ainda que de maneira imperfeita nas ruas, nos clubes, praças, no comércio e o dia-a-dia teresinense. No balanço de suas lembranças, podemos nos alimentar de migalhas, microfragmentos de uma história que, de resto, seria apagada com o tempo, levada para a última morada. Suas vidas privadas são o cruzamento de ideias gerais que sobreviveram nos porões da memória e ao escapar do esquecimento individual, nos chega através desse documentário. Ele nos oferece um aperitivo composto de vários aspectos da vida individual e nos introduz na intimidade destas pessoas. Confidências, audácias, fantasias exalam das falas e nos aproximam do íntimo deles e nos oferecem a tentação de abolir as distâncias que nos separam irremediavelmente de um mundo que perdemos. Tendo como pano de fundo a "província", penetramos no cotidiano teresinense, onde inserem as suas anotações pessoais.



Roteiro, direção e imagens: Ricardo Arraes
Produção executiva: Mariana Antão
Edição de imagens: Paulo Rogério
Som: Ricardo Sousa
Animações: Vinícius Castro

TORSULA



conheci um poeta que foi ameaçado com uma camisa-de-força caso se recusasse a seguir a medicação do hospital. e olha que ele foi para o hospício porque queria descansar. a família encaminhou tudo e deixou a entender que, sempre, toda e qualquer medida só seria tomada com o seu (dele) consentimento. ele disse para a médica no corredor:
                                                                                    - ME DEIXE EM PAZ, SUA PORCA.
                                                                                    Ela havia dito antes, em tom de 
                                                                                    gozação: 
                                                                                   - é assim que você que ficar em paz? matando sua mãe aos poucos. quando é que você vai entender as coisas? você não acha que já fez demais nesse tempo em que passou fora? por que você não resolve seus problemas de sexo com estas menininhas de subúrbio? olha, meu filho, você se engana se pensa que eu não conheço marx. seus parentes me falaram de seus problemas com tóxico. você não acha que pega mal ser um maldito amparado pela família?
MORDAZ MORDAÇA SANGRIA



Durvalino Filho
Os caçadores de prosódias
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1994

30.7.15

CÂNTICO DOS PRANTOS




1 - da geografia dos rios


os rios conhecem a terra
musgos, relvas, pradarias.
ribanceirando os caminhos
ao encontro de outros rios.

...

desmatamentos, queimadas, esgotos
indústrias. roubo de areia
dos leitos para as caras moradias
canais de fezes, do mundo,
cercas, nada disso impede os rios




2 - o movimento dos peixes


os rios têm o seu povo
universos que se agitam
no milagre da existência
da vida de todo dia.

...

choram o verde que era verde
e hoje é seca, cinza, prantos.
choram os meninos travessos
que aplacam a ira dos rios.
choram os meninos e os bêbados
que morrem nas águas vadias,
nas águas da morte funda
da terra sem moradia.




3 - o tempo social dos rios


os rios choram seus mortos
nas enchentes e marés,
os rios cantam seus mortos
nas chuvas das cabeceiras.
lamento das lavadeiras
no barulho dos anzóis
nos esgotos que recebem
nas barragens que constroem.

...

é para os rios que convergem
as lavadeiras do Brasil.
assembléia de mães pobres
confluência da esperança.
com o sabão da miséria
i a grandeza cotidiana das mãos
ensaboam e enxagoam
a sujeira dessa vida.
vida de pobres e ricos
de dores y alegrias.

...

nesses tempos de miséria
os rios são o choro da terra.



__

Menezes y Morais
em O Rio (antologia)

RIO SECO





Lembro de quando naveguei este rio nos vapores de Palmeirais. Navios de ferro fundido que a queima de lenha (depois o diesel) movimentavam gigantescas pás laterais singrando as profundas e caudalosas águas do Parnaiba. Em camarotes ou redes nos convés viajantes acompanhavam as margens de canaranas, pescadores em pequenas canoas e, nos portos, as mulheres batiam roupa e secavam no quarador. Hoje o rio morre asfixiado em bancos de areia. A reserva hídrica da minha terra se esvai. A capital do Piauí se encostou no Rio porque ele era o caminho que levava ao litoral e ao fundo do sertão, no interior. Até hidroavião pousou nas suas águas. Hoje esquecido morre numa cidade que não cuida da sua história. Só a saudade pode atestar o que foi outrora um Parnaíba que agoniza no cais de uma cidade que não mais o quer.
Fotografia via blogue do Kenard Kruel

EU, A CIDADE E O RIO | Capítulo 1 (trecho), João Batista Dias Pinheiro


Em Teresina vendia-se tudo, até a própria balsa, cujo material era utilizado para muros de quintal. Os donos das balsas e eventuais passageiros regressavam, às vezes, em barco a vapor, ou senão, a pé ou a cavalo. Os mestres e contramestres, geralmente, regressavam a pé, por falta de condições financeiras para comprarem cavalos. Verdadeiros heróis. Recebiam em Teresina o pagamento de seus trabalhos, faziam pequenas compras para as necessidades da viagem, além de alguns presentes para a família e partiam de volta. Com o saco às costas, preso com alça nos ombros, um chapéu de palha e calçados de couro, atravessavam o Rio Parnaíba à altura de Timon e seguiam pelo Maranhão, procurando encurtar a enorme distancia. Conhecendo bem as trilhas, procuravam fazer uma linha reta em sua viagem de Teresina a Ribeiro Gonçalves, alimentando-se de qualquer jeito, especialmente com rapadura e farinha de mandioca e dormindo onde anoitecia. Após percorrer mais de quinhentos quilômetros, andando cerca de cinquenta quilômetros por dia, chegavam a Ribeiro Gonçalves após dez dias de marcha intensa.


João Batista Dias Pinheiro
em EU, A CIDADE E O RIO: À MEMÓRIA DE RIBEIRO GONÇALVES/PI
Teresina: Gráfica do Povo, 2013

29.7.15

CÃO SEM DONA




Alguém aí acaso achou os passos que perdi
Nas ruas escaldantes de Teresina?

Esse endereço anotado em letra trêmula
É de quem, de qual cidade, de que país?

O coração que ofegante segue os passos
Impunemente no meu peito inda é meu?

Ou desse uivo que se lança na direção da lua
Gritando em desespero o nome dela?



Climério Ferreira
em Piauinauta

28.7.15

PESCARIA ÀS SEIS DA TARDE NO BALÃO DA IGREJA DE SÃO BENEDITO, por Rubervam Du Nascimento



Um rio nos separa na pista de danças luzentes e procissões de veículos rio não de águas de carros. Na cidade de Teresina, tem um igreja cuja frente, fica voltada para uma avenida, que juntando-se com outras pequenas ruas no mesmo perímetro, vai dar no rio Parnaíba, - o maior rio da bacia hidrográfica da região Norte do Brasil, responsável pela separação geográfica entre os estados do Maranhão e do Piauí, e, o fundo, vai dar para outra artéria, considerada a mais elegante e luxuosa da nossa capital, - a Avenida Frei Serafim. Nesse ponto, - tanto pela frente como pelo fundo da igreja, - outrora, o "trottoir" (paqueração, pescaria) de proxenetas, gays, lésbicas, drag queens, travestis e principalmente prostitutas era intenso. A procissão de veículos motorizados era maior que a procissão de andores, mas dentro desses veículos estavam no volante - obviamente motoristas, - que não estavam ali para pescar luzes de holofotes de carro nem muito menos  pistas de rolamentos de veículos, eles estavam ali para pescar gente de rostos, carne, osso e espinha.



Rubervam Du Nascimento
em Guia Turístico Afro-cultural da Região Meio-Norte; Piauí e Maranhão
de Antônio Julio Lopes Caribé


26.7.15

O MENINO DA PACATUBA



Dos meninos consumidos no sol da Pacatuba ficaram lembranças. Dessas lembranças Paulo José Cunha constrói o seu universo poético. Delas e da evocação do País do Piauhy. Tudo na maneira de Geraldo Melo Mourão (o que glorificou o País dos Mourões) e Manoel de Barros (o que expôs a Gramática do Chão) e no mesmo plano elevado.

Uma das funções da poesia é desencantar lembranças, sujeita, no entanto, ao risco de tornar-se apenas uma prosaica enumeração. PJC cumpre esta função, evitando este risco. O seu mundo poético surge da poesia intrínseca das lembranças, realçada pelo poder que as palavras adquirem no contexto. As palavras vivificam as imagens e as pessoas: atrás da igreja das Dores o grotão por onde corriam as águas do inverno, a suave ladeira da Estrada Nova por onde se chegava à Pacatuba, onde hoje deve vagar o espírito irreverente de Vitinho, que ali frequentou a aula de D. Maria Patu.

A tia Maria, a branca de fala mansa (para nós era a comadre Maria), o seu Raimundo Luço (primeiro cliente de um advogado que mais tarde reconheceu não ter os defeitos necessários para vencer na profissão e se bandeou para a categoria dos poetas). PJC saca da memória um verso de Quasimodo (“la dura um vento che ricordo aceso”); na Pacatuba havia no máximo a brisa de maio que empinava os papagaios de papel.

O menino da Pacatuba, a infância restituída, volta, das areias do tempo, nas cercas de melão-de-são-caetano, na figueira ao lado da casa de seu Pombo, no terreno baldio da esquina do quarteirão, nas tijubinas, nas mangas verdes, comidas com sal, às escondidas, enquanto o Parnaíba, o rio grande dos tapuias, no fundo das ribanceiras, rola o seu dia perene.



H. Dobal
Prefácio do livro O perfume de Resedá, de Paulo José Cunha
Teresina: Oficina da Palavra, 2009

20.7.15

A PONTE (O RIO) ENTRE AS CIDADES




Rio de duas cidades
dividido entre tristezas
uma ponte assim as une
não de aço, de pobrezas



Álvaro Pacheco
Teresina, maio de 1965
em MARGEM RIO MUNDO
Artenova: Rio de Janeiro, 1965

DOMINGO DO RIO




O rio technicolor
aos domingos (todos os domingos
de sol na Coroa).

Moças vermelho
coxas branquinhas
homens cinzentos
meninos azuis.

Depois da missa, purificada,
a cidade descia para o rio
e docemente sonhava com o pecado
nas areias de veludo da Coroa.

E um domingo, no fundo da canoa,
perdida, entre a verde canarana,
o menino viu o sexo conjugado
(o rio, o domingo, o espanto).



Álvaro Pacheco
Teresina, maio de 1965
em MARGEM RIO MUNDO
Artenova: Rio de Janeiro, 1965

O ADRO DE SÃO BENEDITO, de Barros Pinho



oh como eu queria
guardar o vento
que circulava
no adro da igreja
de são benedito
em teresina
onde nele talvez
tenha escrito o poema
de amor mais puro do ofício
só o poeta tem essas coisas
de se esconder nas palavras



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


O RETRATO NAS PAREDES, de Barros Pinho



As casas como as pessoas
guardam cicatrizes
expostas no rosto do tempo.

Às casas sempre voltamos
nelas a vida anda por trás do que passou
existem na existência indo embora.

As casas onde morei para viver
na afoitosa e lúdica adolescência
abrem rugas na face branca das paredes.

De dentro delas saltam sonhos
que não querem envelhecer
e o menino açoitando o vento nas curvas do rio
que se arrasta na carne azul da paixão.



Barros Pinho
via Jornal de Poesia


SANTO ANTÔNIO NOME DE RUA, de Barros Pinho



a rua santo antônio
tinha mesmo
vocação poética
não é que lhe deram
o nome de olavo bilac

num alto perto
de uma faveira
morava o poeta
mário bento
meu professor
de decassílabo

mais abaixo
quem morava
era a madrinha dodó

na quitanda
rezando
e vendendo
cigarro selma

em frente
num casarão
uma lourinha
burguesa
tocava acordeon

no quarteirão
seguinte
meu pai me fez
proprietário
de uma garapeira
onde apenas ganhei
duas namoradas

rua santo antônio
do menino
metendo os pés
em tuas águas
do adolescente
que te fez revelações
rua santo antônio
de teresina
das mangueiras
das carambolas
e dos quintais



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


BALADA DE TERESINA – A CIDADE VERDE, de Barros Pinho



recordo
a adolescência
nas árvores
de minha cidade

no circo
das areias
que ainda
circula
em meu juízo

no cais
onde aprendi
a história
da pureza

no riscos
das gatas
espreitando
em cada esquina
da rua paissandu

na rua
pedro II
onde rodei
com a primeira
namorada

no vaga-lume
ferindo
o otimismo
no escuro
do cine-rex

nos bons
comícios da udn
naquele tempo
mulher de muito
respeito

nos bichos
oficiais
pássaros
camelôs
do mercado velho

nas íntimas
novenas
de são raimundo
na piçarra

na vulgaridade
eletrônica
da mensagem
de um alguém
para um certo alguém
que está ausente

nos meus gritos
ecoando
a céu aberto

olha a laranja
olha a bananeira

olha a saudade



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


BALADA DO RIO PARNAÍBA, de Barros Pinho



não conhecia
o mar
o rio de minha
cidade era meu oceano

no cais
na rampa
laranjas
prostitutas
a granel

o vento
entra
pelas narinas
com peixe
creolina
e cashmere bouquet

lá em cima
a máquina
pilando arroz

a banca
de gelado
tábuas
de pirulito

em baixo
barcas
barcaças
navegando

lavadeiras
abertas
ao sol

lanchas
vapores
fumegando

fiscal
de renda
paletó
e gravata
cuidando
das coisas
do estado

canoas
canoeiros
só passando

noites
vivendo
de aventuras

suicídio
na senda
do ciúme

do outro lado
timon
antiga flores

águas
tranquilas
correm
sob a ponte



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


2.6.15

TERESINA: NA PRAÇA PEDRO II




Foi em 1974. À tardinha, tínhamos passado por alguns lugares bem conhecidos de Teresina. O tempo, porém, passou rápido como o tênue fio que separa a vida da morte. Quando demos fé, já era tarde da noite. Nossa conversa, em pé, encostados à mureta da parte mais alta da Pça Pedro II da velha Teresina cansada de guerra, naquela divisão social e preconceituosa que separava, por uma rua, as duas partes da praça, uma a das meninas de nível social mais alto ou bem alto, e a outra, em que estávamos, que dava para o antigo Quartel de Polícia, lugar das meninas pobres, das então chamadas curicas.

Evandro e eu estávamos ali, olhando para uma praça quase vazia, que parecia abandonada por seus frequentadores. Mas, esse vazio pouca diferença fazia para o dois jovens irmãos, eu, um ano mais velho que ele, recém-chegado do Rio depois de dez anos sem ver meus pais. 

Como de costume, nossas conversas se voltavam para o futuro e para um futuro muito colado às coisas da cultura, de livros, de sonhos e projetos que pretendíamos concretizar com o passar do tempo. Me dizia o mano Evandro: “Chico, a gente tem que fazer alguma coisa sólida no campo literário. Isso é coisa séria, exige muita leitura, preparo, lutas, combates e principalmente estudos. É preciso produzir, irmão! Porém, tem que ser alguma coisa que valha a pena, que tenha valor, que perdure e deixe marcas".

Naquela época eu já começara a escrever pra jornais de Teresina e, no Rio, mal acabara de me graduar em Letras. Evandro tinha já manifestado inclinação para a poesia. Fizera poemas que eu não conhecia. Já estava formado em Direito e era recém-casado. Já tinha passado pela militância universitária. Fora preso, durante alguns meses, pela Ditadura Militar. 

Essas lembranças que alinhavo agora vêm a propósito da notícia pesarosa que hoje me chegou de um telefonema de minha irmã, a Maria Cândida, me transmitindo aquilo que jamais esperaria saber tão prematuramente, a de que Evandro faleceu nesta madrugada num hospital de Fortaleza, para onde há alguns meses foi se tratar de uma doença que dele exigia um transplante. Operaram-no. Resistiu à cirurgia. Estava bem, me informara minha irmã. Contudo, três meses depois, não sei ao certo, passou mal e veio a falecer ao sessenta e cinco anos. Seu corpo será trasladado de avião para Teresina, onde vai ser velado e sepultado. É o terceiro irmão que perco nesta vida. Estou arrasado por dentro, mesmo tendo que confessar que, tempos atrás, depois da morte de papai, guardara alguma mágoa dele por razões que hoje já não significam muito ou nada mesmo. O sangue fala mais alto. 

Na realidade, nunca brigamos de verdade. Nas vezes que estive com ele, quando ia a Teresina, sempre nos tratamos bem. Ele tinha um temperamento alegre, não dava mesmo para ter raiava dele. No ano passado, quando fui lançar meu livro As ideias no tempo, na Academia Piauiense de Letras, ele lá comparecera no auditório da APL. Me ouviu expor sobre meu livro e comprou um exemplar que lhe autografei. Eu estava com o meu filho mais velho, o Neto. À noite, do mesmo dia do lançamento, levou-nos ele no seu carro a um passeio por Teresina. Fomos a um Shopping, tomamos sorvete. Conversamos e rimos muito da vida e dos homens. Evandro era espirituoso, inteligente, culto, lido, escrevia bem e era contundente. Não lhe faltava uma boa dose de sarcasmo contra mediocridades. Tinha boa leitura no campo sociológico e argumentava com muito vigor intelectual. Grande admirador da alta literatura universal. Seu espírito de autocrítica talvez o tenha refreado a produzir mais literatura, no conto e na poesia. Leu também o que era bom e tinha projetos de escrever mais ficção. Tinha especial talento para o jornalismo. Uma vez, fundara uma revista, que durou pouco tempo.

O que nele mais ressaltaria, neste momento de dor, era a sua veia crítica, o seu sarcasmo, como se rabelaisianamente quisesse rir das nulidades e de si mesmo. Naquele último encontro que tive com ele, antes de descermos do carro meu filho e eu, estava selado pelo destino o meu convívio na vida com ele, o qual se dava no geral sempre em horas tão breves e fugidias, mas cheias de risadas, de relatos engraçados sobre homens, fatos, situações familiares num tom de voz que lhe era inconfundível, sobretudo porque costurado pela ironia dos que vivem a vida pelo instante que passa. 

Nos meus arquivos guardo dele uma carta de 1990, um recorte de jornal de Teresina com um poema dele juvenil à maneira de Augusto dos Anjos (1884-1914) e uma crônica/conto autobiográfico em que o personagem principal é a figura de papai num momento difícil da vida do grande jornalista. 

O melhor período que passei com ele foi na infância e início da adolescência. Evandro adorava que lhe contasse narrativas de livros que eu tinha lido. Naquela época de ouro e de inocência éramos muito amigos, nos amamos e era um prazer estar com ele. Um outro momento de grande emoção foi aquele em que lhe pude ajudar de alguma forma. Foi quando ele, tendo feito vestibular para Direito, não passou na primeira tentativa. Me dissera chateado que na prova de inglês havia se dado mal. Aqui do Rio - já vão tantos anos! -, preocupado com a situação dele, corri à Embaixada Americana. Conversei com o Departamento Cultural e pedi ajuda a uma gentil pessoa que me atendeu. Eu procurava material para o ensino do inglês. A assessora me veio então com um pequeno e atualizado livrinho para o ensino do inglês e destinado a brasileiros. Contente fiquei e remeti logo pro Evandro o volume. Na segunda tentativa, ele fora aprovado para o curso de Direito. Numa outra ida minha a Teresina, me confidenciou que já lia regularmente o inglês e me agradecera pelo envio daquele livrinho.

Se um profundo descompasso temporal houve, até agora, entre ele e mim no que concerne a uma intimidade maior e a um estreitamento mais radical de nossa amizade e de nosso afeto, e isso tem sido comum entre meus familiares irmãos, irmãs e parentes próximos, talvez tenha, em grande parte, sido devido ao meu afastamento por  tantos anos, com poucas idas ao Piauí, ou porque talvez isso seja apenas uma questão de temperamento mesmo entre os familiares. No entanto, ainda quero acreditar que, no fundo, há respeito e bem-querer nesta numerosa família. Creio ainda na amizade e amor que correm no sangue comum.

No verbete do utilíssimo Dicionário biográfico de autores piauienses de todos os tempos, de Adrião Neto, constam estas informações bibliográficas sobre meu irmão:

SILVA, Evandro Setúbal da Cunha e. n. 14-04-1947 – Amarante (PI). Contista e cronista. Formado em Direito. Fiscal do Ministério do Trabalho. Bibliografia: Ensaios Políticos (1981) e Relações de Empregos (1984). Participou: Coletânea Poética (1987) e Antologia Poética de Cidades Brasileiras (1988).



Cunha e Silva Filho
em Portal Entretextos

3.2.15

HINO DE TERESINA


Risonha entre dois rios que te abraçam,
Rebrilhas sob o sol do Equador;
És terra promissora, onde se lançam
Sementes de um porvir pleno de amor.

Do verde exuberante que te veste,
Ao sol que doura a pele à tua gente,
refulges, cristalina, em chão agreste;
Lírio orvalhado, resplandente.

"Verde que te quero verde!"
Verde que te quero glória,
Ver-te que te quero altiva,
Como um grito de vitória!

O nome de rainha, altivo e nobre,
Realça a faceirice nordestina
Na graça jovial que te recobre,
Teresa, eternizada TERESINA!

Cidade generosa- a tez morena,
Um povo honrado, alegre, acolhedor;
A vida no teu seio é mais amena,
Na doce calidez do teu amor

"Verde que te quero verde!"
Verde que te quero glória,
Ver-te que te quero altiva,
Como um grito de vitória!

Teresina, eterno raio de sol
Manhãs de claro azul no céu de anil;
És fruto do labor da gente simples,
Humilde, entre os humildes do Brasil!

"Verde que te quero verde!"
Verde que te quero glória,
Ver-te que te quero altiva,
Como um grito de vitória!


Cineas Santos
Letra do Hino de Teresina/PI 
Conforme Lei n° 2.408 de 14.07.95, 
Que “Institui o concurso para escolha do Hino Municipal de Teresina”


18.11.14

a paz do pântano, por Paulo Machado



Nas ruas da minha cidade há lições?
           (É preciso aprendê-las)

Desfazer o enigma da Rua Grande,
Onde os revolucionários depredaram o bonde
E apagaram os gestos dos ditadores,
Numa rubra manhã de outubro.


(A malha da história sendo tecida pelas mãos operárias)


Lembrar o fantasma de um coronel loquaz
que acrescia cores às suas façanhas
e vadiava pela Rua da Estrela,
atravessando paredes,
sumindo na cinzentura da tarde.


Os paralelepípedos da Rua da Glória
tinham a densidade do sono nas tardes de verão.


Insisto:
aprender as lições que há nas ruas da minha cidade.
Na Rua Bela, era proibido amar.
(Há tempos proíbem as lições de liberdade, no meu País.)


Na Rua dos Negros, francesas faziam amor
com os filhos dos coronéis.


Na Rua Paissandu, havia sol nos corações dos amantes.


O tempo não apagou o que falavam os operários
da Companhia de Fiação, nos dias de cinza da ditadura Vargas.

Diziam coisas reais
aprendidas no galope das máquinas
e no silêncio das horas, nas noites insones.


O imperialismo saia do Cine Olympia
para as mesas do Bar Carvalho;
a Casa Inglesa penhorava a vida dos camponeses.


Não importa que o presente me apunhale.
Desafio o ódio
dos que desconhecem como é difícil penetrar
no âmago das verdade proibidas
e acreditar nos homens.


Caminho solitariamente pelas ruas da minha cidade
e guardo-me para desvendar seus segredos.
Como é difícil compreender
os mistérios de uma cidade,
mesmo que seja uma pequena cidade
situada na zona tórrida,
no nordeste do Brasil.


A Avenida Frei Serafim divide a cidade em duas fatias de medo.


Aos domingos a cidade está deserta e dócil
ao carinho da procura.

Parece que seus habitantes partiram
e nada deles restou.


A cidade, desabitada, treme de gozo
aos afagos dos estranhos,
mas nunca se entrega inteiramente.


Impossível dizer quantas faces tem a cidade.


A constância do azul, no céu da cidade,
ensina que é preciso renascer das cinzas da noite,
porque a vida é um contínuo amanhecer.


A cidade e as tragédias familiares,
as muitas dores abafadas,
as vergonhas que as famílias guardam
no fundo das gavetas.


Minha cidade já viu morrer
muitos homens e silenciou.
E este silêncio ensina
que não basta ver a morte de homem
para aprender que a vida
se escreve com a melhor letra.


As ruas da minha cidade ensinam lições de solidão?


Conheço minha cidade,
como conheço o meu corpo.

Meu corpo propõe insurreições
e persiste, insubmisso, entrincheirado
nas ruas da cidade ensolarada.


A cada dia que passa,
a cidade torna-se difícil.

Os que a amamos,
Sentimos sua renúncia.


Enfurecida, a cidade é uma loba no cio.


Escapo à armadinha do tempo:
aprendi a árdua lição
de que as palavras são potros bravos.


Aprendi a inventar amanhãs,
moldando o futuro
com minhas angústias de homem.

Aprendi que sou um náufrago em mim mesmo
e já não procuro meu avesso
nos fracassos acumulados.


O presente insiste em me apunhalar.
Vejo minha cidade:
ancoradouro de fúrias invisíveis,
e seus horizontes repetidos.



Paulo Machado
em "a paz do pântano"
Oficina de Arte: Teresina, 1982


6.9.14

OS DOIDOS DA MINHA MEMÓRIA, por Edmar Oliveira


Manel Avião, Manelão, avião, ão, ão. Vrummmmm. E lá se ia Manel conduzindo um avião imaginário na mão direita, que já, já, virava asa e, abrindo os braços em duas asas, Manel era o próprio avião, que encantava os meninos que viam o Manelão como cena de cinema que ele fazia o voar na imaginação. Manel voava de verdade. E a lenda se espalhava na cidade. Na Piçarra, diziam, invadiu uma casa e roubou um rádio. Na Palha de Arroz seduzia meninos e meninas, que as mães zelosas não deixavam chegar perto do avião. Podiam ser levadas pra longe e se perder na escuridão da noite. Manel contava histórias. Histórias de cinema que se passavam em Teresina. Não sei que fim levou. O avião, com certeza, lhe levou embora...

Nicinha, pequenina, enfeitava-se de fantasias de carnaval durante todo o ano. Todo dia, toda aglomeração, discurso político, conversa de bêbados, papo de vagabundos, qualquer ajuntamento de gente fazia aparecer o pipoqueiro, o sorveteiro e Nicinha. E aí vinha ela. Numa elegância exagerada, maquiagem intensa, óculos de gatinha, fita colorida no cabelo, vestido de tafetá azul celeste. Qualquer que fosse o dia do ano Nicinha vestia a fantasia da terça gorda do Carnaval. Me encantava a sua presença. Era a marca de que o que estava acontecendo tinha importância. A porta do Teatro, o Bar Carnaúba, a Pedro II, o Café Avenida, eram lugares que só existiram pela presença de Nicinha. Me contaram que teve uma morte violenta com requintes de crueldade. E o criminoso nunca foi encontrado. Quem poderia fazer mal a um beija-flor tão bonito? Mas na minha infância tinha menino que engolia coração de beija-flor pra ficar guabes. Guabes, pra quem não conhece piauiês, é ficar com boa pontaria na baladeira. Baladeira, um piauiês tão bonito, é estilingue ou bodoque noutras pronúncias. E Nicinha e o beija-flor nunca fizeram mal a ninguém, mas morreram do mesmo jeito...

Bibelô era um bibelô. Genial quem inventou o apelido. Era um homem pequeno e delicado que se vestia de mulher, mas de forma tão fina, delicada, suave, diria mesmo harmoniosa. Não tinha o exagero de Nicinha. Era uma espécie de Carmem Miranda contida, pois que não tinha o exagerado da notável. Seus balangandãs, quinquilharias, indumentárias e adereços não agrediam aos olhos. Mais parecia um Matogrosso no início de carreira nos Secos & Molhados. Às vezes um turbante lhe tornava palestino. Uma maquiagem discreta fazia aparecer a Maria Bonita. Lembro da tristeza nos seus olhos. Aparecia e desaparecia nos portões, nas casas, nas mercearias. Pedia um café. Comentava alguma coisa e ia embora. Parecia não querer incomodar com sua presença. Mas assim mesmo tinha inimigos implacáveis que o perseguiam. Lembro de alguns de seus machucados provocados por agressões. Ele incomodava por ser diferente de tudo. Não era um travesti transformado pelas roupas femininas. Parecia um Rodolfo Valentino maquiado para entrar em cena. Não sei quando saiu de cena da cidade. Por certo com a discrição que o caracterizou...

E outros existiram. Mas estes marcaram minha existência de forma decisiva. É como se eles reafirmassem Teresina dentro de mim. E na cidade de minha infância, embora pequena, nunca encontrei os três no mesmo espaço. Cada um tinha seu pedaço de cidade para fazer sua aparição e performance. Só consigo reuni-los na memória: Bibelô dos olhos tristes, Nicinha com alegria estampada no corpo pequenino de beija-flor, Manelão voando no céu azul intenso das nuvens de algodão da cidade verde...





MEU NÓS & ELIS, Chico Castro


O belo texto da Patrícia se refere a um período posterior aos primórdios do Nós & Elis. Porque, diz ela, a sua inserção nas noites do bar se deu quando o mesmo se encontrava sob a administração da família Fonteles, vale dizer, da médica Nazaré Fonteles, suas irmãs e irmãos.

Em 1989 (ano em que se deu o show da Patrícia que ainda era Melo), eu morava no Rio de Janeiro e recebi a visita do cantor Terra Francisco, à época namorado da Nazaré. O Terra foi à Cidade Maravilhosa gravar o seu primeiro LP, ao qual dei uma modesta contribuição.

Como sou (bem) mais velho do que a Patrícia, tive a sorte de conhecer o bar desde o começo. Só pra se ter uma ideia, no dia 25 de abril de 1984, quando da votação das diretas, eu e mais uma pá de gente, estivemos lá torcendo. Além de frequentador assíduo era também um dos últimos a sair; ficava tomando as eternas saideiras como o dono, meu amigo Elias do Prado Júnior, de saudosa memória.

Vi muita gente famosa de hoje dando os seus primeiros passos na música popular brasileira feita no Piauí. E também ouvi muitas estórias e fui testemunha de muitos fatos que a minha prudência de cinquentão (fiz 56 anos dia 10.12.2009) não me permite mais revelar em público.

O certo é que o Nós & Elis deixou um lastro de glória e de vitória para a cultura piauiense. Lá, eu e muitos poetas fizemos vários happenings, madrugada adentro. Aliás as mulheres mais bonitas de Teresina estavam bem ao alcance de nossas cobiças libidinosas. A comida era boa e farta. No começo, o Elias dava uma prato a mais para quem pedia um jantar. Pagava religiosamente os músicos, um dos primeiros, se não o primeiro, a fazer tal prática uma questão pessoal.

Era no tempo em que a zona leste não tinha os espigões de hoje. Nem a violência. Saíamos para acender nossos baseados bem na pracinha que ficava ao lado do bar. Muitas vezes vim a pé para casa, só pelo prazer de andar pelas ruas desertas de Teresina, sem medo algum, ou pelo simples motivo de desejar acender mais um, antes do merecido sono. Ou por ter gasto todo o dinheiro com as eternas saideiras em companhia do Elias.

É isso. O Nós & Elis marcou um tempo que nenhum esquecimento pode apagar.


Chico Castro
em "No Nós & Elis: A Gente Era Feliz – e sabia"
Teresina: Gráfica Halley, 2010
Organizado por Joca Oeiras