18.11.14

a paz do pântano, por Paulo Machado



Nas ruas da minha cidade há lições?
           (É preciso aprendê-las)

Desfazer o enigma da Rua Grande,
Onde os revolucionários depredaram o bonde
E apagaram os gestos dos ditadores,
Numa rubra manhã de outubro.


(A malha da história sendo tecida pelas mãos operárias)


Lembrar o fantasma de um coronel loquaz
que acrescia cores às suas façanhas
e vadiava pela Rua da Estrela,
atravessando paredes,
sumindo na cinzentura da tarde.


Os paralelepípedos da Rua da Glória
tinham a densidade do sono nas tardes de verão.


Insisto:
aprender as lições que há nas ruas da minha cidade.
Na Rua Bela, era proibido amar.
(Há tempos proíbem as lições de liberdade, no meu País.)


Na Rua dos Negros, francesas faziam amor
com os filhos dos coronéis.


Na Rua Paissandu, havia sol nos corações dos amantes.


O tempo não apagou o que falavam os operários
da Companhia de Fiação, nos dias de cinza da ditadura Vargas.

Diziam coisas reais
aprendidas no galope das máquinas
e no silêncio das horas, nas noites insones.


O imperialismo saia do Cine Olympia
para as mesas do Bar Carvalho;
a Casa Inglesa penhorava a vida dos camponeses.


Não importa que o presente me apunhale.
Desafio o ódio
dos que desconhecem como é difícil penetrar
no âmago das verdade proibidas
e acreditar nos homens.


Caminho solitariamente pelas ruas da minha cidade
e guardo-me para desvendar seus segredos.
Como é difícil compreender
os mistérios de uma cidade,
mesmo que seja uma pequena cidade
situada na zona tórrida,
no nordeste do Brasil.


A Avenida Frei Serafim divide a cidade em duas fatias de medo.


Aos domingos a cidade está deserta e dócil
ao carinho da procura.

Parece que seus habitantes partiram
e nada deles restou.


A cidade, desabitada, treme de gozo
aos afagos dos estranhos,
mas nunca se entrega inteiramente.


Impossível dizer quantas faces tem a cidade.


A constância do azul, no céu da cidade,
ensina que é preciso renascer das cinzas da noite,
porque a vida é um contínuo amanhecer.


A cidade e as tragédias familiares,
as muitas dores abafadas,
as vergonhas que as famílias guardam
no fundo das gavetas.


Minha cidade já viu morrer
muitos homens e silenciou.
E este silêncio ensina
que não basta ver a morte de homem
para aprender que a vida
se escreve com a melhor letra.


As ruas da minha cidade ensinam lições de solidão?


Conheço minha cidade,
como conheço o meu corpo.

Meu corpo propõe insurreições
e persiste, insubmisso, entrincheirado
nas ruas da cidade ensolarada.


A cada dia que passa,
a cidade torna-se difícil.

Os que a amamos,
Sentimos sua renúncia.


Enfurecida, a cidade é uma loba no cio.


Escapo à armadinha do tempo:
aprendi a árdua lição
de que as palavras são potros bravos.


Aprendi a inventar amanhãs,
moldando o futuro
com minhas angústias de homem.

Aprendi que sou um náufrago em mim mesmo
e já não procuro meu avesso
nos fracassos acumulados.


O presente insiste em me apunhalar.
Vejo minha cidade:
ancoradouro de fúrias invisíveis,
e seus horizontes repetidos.



Paulo Machado
em "a paz do pântano"
Oficina de Arte: Teresina, 1982


6.9.14

OS DOIDOS DA MINHA MEMÓRIA, por Edmar Oliveira


Manel Avião, Manelão, avião, ão, ão. Vrummmmm. E lá se ia Manel conduzindo um avião imaginário na mão direita, que já, já, virava asa e, abrindo os braços em duas asas, Manel era o próprio avião, que encantava os meninos que viam o Manelão como cena de cinema que ele fazia o voar na imaginação. Manel voava de verdade. E a lenda se espalhava na cidade. Na Piçarra, diziam, invadiu uma casa e roubou um rádio. Na Palha de Arroz seduzia meninos e meninas, que as mães zelosas não deixavam chegar perto do avião. Podiam ser levadas pra longe e se perder na escuridão da noite. Manel contava histórias. Histórias de cinema que se passavam em Teresina. Não sei que fim levou. O avião, com certeza, lhe levou embora...

Nicinha, pequenina, enfeitava-se de fantasias de carnaval durante todo o ano. Todo dia, toda aglomeração, discurso político, conversa de bêbados, papo de vagabundos, qualquer ajuntamento de gente fazia aparecer o pipoqueiro, o sorveteiro e Nicinha. E aí vinha ela. Numa elegância exagerada, maquiagem intensa, óculos de gatinha, fita colorida no cabelo, vestido de tafetá azul celeste. Qualquer que fosse o dia do ano Nicinha vestia a fantasia da terça gorda do Carnaval. Me encantava a sua presença. Era a marca de que o que estava acontecendo tinha importância. A porta do Teatro, o Bar Carnaúba, a Pedro II, o Café Avenida, eram lugares que só existiram pela presença de Nicinha. Me contaram que teve uma morte violenta com requintes de crueldade. E o criminoso nunca foi encontrado. Quem poderia fazer mal a um beija-flor tão bonito? Mas na minha infância tinha menino que engolia coração de beija-flor pra ficar guabes. Guabes, pra quem não conhece piauiês, é ficar com boa pontaria na baladeira. Baladeira, um piauiês tão bonito, é estilingue ou bodoque noutras pronúncias. E Nicinha e o beija-flor nunca fizeram mal a ninguém, mas morreram do mesmo jeito...

Bibelô era um bibelô. Genial quem inventou o apelido. Era um homem pequeno e delicado que se vestia de mulher, mas de forma tão fina, delicada, suave, diria mesmo harmoniosa. Não tinha o exagero de Nicinha. Era uma espécie de Carmem Miranda contida, pois que não tinha o exagerado da notável. Seus balangandãs, quinquilharias, indumentárias e adereços não agrediam aos olhos. Mais parecia um Matogrosso no início de carreira nos Secos & Molhados. Às vezes um turbante lhe tornava palestino. Uma maquiagem discreta fazia aparecer a Maria Bonita. Lembro da tristeza nos seus olhos. Aparecia e desaparecia nos portões, nas casas, nas mercearias. Pedia um café. Comentava alguma coisa e ia embora. Parecia não querer incomodar com sua presença. Mas assim mesmo tinha inimigos implacáveis que o perseguiam. Lembro de alguns de seus machucados provocados por agressões. Ele incomodava por ser diferente de tudo. Não era um travesti transformado pelas roupas femininas. Parecia um Rodolfo Valentino maquiado para entrar em cena. Não sei quando saiu de cena da cidade. Por certo com a discrição que o caracterizou...

E outros existiram. Mas estes marcaram minha existência de forma decisiva. É como se eles reafirmassem Teresina dentro de mim. E na cidade de minha infância, embora pequena, nunca encontrei os três no mesmo espaço. Cada um tinha seu pedaço de cidade para fazer sua aparição e performance. Só consigo reuni-los na memória: Bibelô dos olhos tristes, Nicinha com alegria estampada no corpo pequenino de beija-flor, Manelão voando no céu azul intenso das nuvens de algodão da cidade verde...





MEU NÓS & ELIS, Chico Castro


O belo texto da Patrícia se refere a um período posterior aos primórdios do Nós & Elis. Porque, diz ela, a sua inserção nas noites do bar se deu quando o mesmo se encontrava sob a administração da família Fonteles, vale dizer, da médica Nazaré Fonteles, suas irmãs e irmãos.

Em 1989 (ano em que se deu o show da Patrícia que ainda era Melo), eu morava no Rio de Janeiro e recebi a visita do cantor Terra Francisco, à época namorado da Nazaré. O Terra foi à Cidade Maravilhosa gravar o seu primeiro LP, ao qual dei uma modesta contribuição.

Como sou (bem) mais velho do que a Patrícia, tive a sorte de conhecer o bar desde o começo. Só pra se ter uma ideia, no dia 25 de abril de 1984, quando da votação das diretas, eu e mais uma pá de gente, estivemos lá torcendo. Além de frequentador assíduo era também um dos últimos a sair; ficava tomando as eternas saideiras como o dono, meu amigo Elias do Prado Júnior, de saudosa memória.

Vi muita gente famosa de hoje dando os seus primeiros passos na música popular brasileira feita no Piauí. E também ouvi muitas estórias e fui testemunha de muitos fatos que a minha prudência de cinquentão (fiz 56 anos dia 10.12.2009) não me permite mais revelar em público.

O certo é que o Nós & Elis deixou um lastro de glória e de vitória para a cultura piauiense. Lá, eu e muitos poetas fizemos vários happenings, madrugada adentro. Aliás as mulheres mais bonitas de Teresina estavam bem ao alcance de nossas cobiças libidinosas. A comida era boa e farta. No começo, o Elias dava uma prato a mais para quem pedia um jantar. Pagava religiosamente os músicos, um dos primeiros, se não o primeiro, a fazer tal prática uma questão pessoal.

Era no tempo em que a zona leste não tinha os espigões de hoje. Nem a violência. Saíamos para acender nossos baseados bem na pracinha que ficava ao lado do bar. Muitas vezes vim a pé para casa, só pelo prazer de andar pelas ruas desertas de Teresina, sem medo algum, ou pelo simples motivo de desejar acender mais um, antes do merecido sono. Ou por ter gasto todo o dinheiro com as eternas saideiras em companhia do Elias.

É isso. O Nós & Elis marcou um tempo que nenhum esquecimento pode apagar.


Chico Castro
em "No Nós & Elis: A Gente Era Feliz – e sabia"
Teresina: Gráfica Halley, 2010
Organizado por Joca Oeiras

2.9.14

THERESINA, Geraldo Borges


Theresina. Chapada do Corisco. Por enquanto um passeio por tuas ruínas, cortes trilhos vias férreas trem na linha uma parada na estação esplanada um encontro em uma antiga esquina velhos tempos assombração para-raios trovões poty velho cadeia velha catanã cabeça de cuia morro do querozene morro do urubu morro da jurubeba cajueiro barrocão pacatuba memorare matadouro maria sapatão maria xerém manuel avião ou manelão cinema poeira jaime doido nicinha pedro cabeção geraldo come gente bibelô não se pode porca do dente de ouro braguinha vermelha do laurindo piçarra casa amarela rua paissandu quitadinha clube dos diários footing na praça pedro segundo gelado no mercado velho na banca de seu paulirio rosa do banco rio parnaíba casa dos sete tabacos estrada do gado cruzeiro seu caçula sua garapeira padeiro de madrugada leiteiro com seu leite batizado burro jumento caroça galinha caipira beiju de tapioca água de pote em caneco de alumínio areado mata-mosquito com bandeira amarela na porta campo de aviação feira de amostra ilhota catarina matinha mafuá maria tijubina palmerinha estrela glória beco do alberoni maria da inglaterra vapor gaiola fiação baixa da égua palha de arroz tabuleta alto da moderação capelinha de palha lucaia ônibus da macaúba tá na boca gregório pirajá santa rosa pipira sabiá banana passada em quibane para secar zezé leão bar imperial teresina cajuina por enquanto tens outra arquitetura novas paisagens e outros personagens de teu nome tiraram o H que era mudo mas me fez cantar.


Geraldo Borges
via Piauinauta

TERESINA


                                para Luis Romero


Procuro meu rosto
desgarrado em tuas vias;
caminho sob os oitis
da Praça da Bandeira
(que me não viram chegar
numa manhã de domingo)
com a solidão no calcanhar.

(Ali, ao sol de novembro
em que assinei sem saber
o preço da poesia).

Procuro de porta
em porta
(onde vendi sonho a crédito)
tuas ínfimas impressões
no intraduzível ontem.

Procuro por toda a parte,
no aroma dos quintais,
no desenredo das ruas,
nos espelhos desarmados,
essa íntima refulgência
com que forjaste meu caule.



Salgado Maranhão

O Parnaíba, Geraldo Borges


O rio Parnaíba é um rio torto
Que da voltas por dentro do mato
É um rio que está quase morto
Maltrapilho de tanto mal – trato.

O rio Parnaíba é um rio sujo
Com as mãos estendidas em suas margens
Foi se o tempo que tinha marujo
Para contar historias de torna viagens.

O rio Parnaíba está se arrastando
Esfarrapado pela beira do cais
Não aguenta o peso das pontes de concreto

O rio Parnaíba está adornando
Água esvaindo pelos seus beirais
E o seu leito vai ficar deserto.


Geraldo Borges
via Piauinauta

Teresina, Graça Vilhena


sobre a ponte do Poti
a cidade vê de frente
seu retrato vertical

para trás ficaram praças
meninos de bicicletas
feiras, danças e cinemas
que ensinavam a namorar

para muito além da ponte
em um canto do futuro
os meninos que hoje crescem
também guardarão no peito
sua cidade esquecida
que dançou em outro tempo
com sua saia estaiada
sobre o rio que secou


Graça Vilhena

1.9.14

LEMBRANÇAS DO CINE ROYAL, Reinaldo Coutinho


No início dos anos 1960 o teresinense não convivia com nenhuma casa de cinema de qualidade. Havia o velho Cine-Teatro 4 de Setembro, o vizinho Cine Rex e o Cine São Raimundo, o “Cine Poeira” no Bairro Piçarra, que não ofereciam nenhum conforto aos seus frequentadores. Eram quentes, mal cuidados, poltronas desconfortáveis e exibiam geralmente filmes antigos. Claro que marcaram gerações de jovens e adolescentes, que pouco se preocupavam com o conforto, antes preferindo a emoção das películas. O importante era a tensão ante os perigos na película, os infindáveis comentários. Parte de nossa adolescência tinha como foco de lazer estes dois cinemas. Na falta de assentos chegamos a sentar no assoalho ou deitar na parte dianteira das cadeiras. E tome bombom Pipper (chamávamos píper).

Ninguém esquece os emocionantes bang-bangs, zorros ou seriados, e quando a fita cortava ou queimava a sessão era interrompida para os reparos do operador de câmera de projeção, o que gerava vaias e os tradicionais gritos de “ladrão”. Feito o reparo tudo terminava em festa com a vitória do “mocinho” contra o “bandido” ou com a chegada da “cavalaria”.

No início daquela década as senhoritas e senhoras de nossa sociedade raramente frequentavam aqueles cinemas, desprovidos do mínimo conforto e asseio. Nossos cinemas já tiveram dias melhores décadas antes. Tudo mudou com a constituição da moderna empresa Cinemas e Hotéis Royal Ltda, desde 01/02/1967, no cruzamento da Rua Coelho de Rodrigues com Treze de Maio. Moldada no exemplo da então invejável estrutura da rede nacional Grupo Luiz Severiano Ribeiro, (hoje Kinoplex, ainda com 215 salas), o Cine Royal inovou com modernidade e conforto. Apareceu o lanterninha, a sessão contínua e o ar condicionado, elementos desconhecidos dos decadentes cinemas teresinenses.

BILHETERIA DO ANTIGO CINE ROYAL

O conforto assombrava o aficionado teresinense, acostumado a ir ao Cinema de trajes simples. Agora o próprio ambiente impunha vestimentas mais adequadas, calçados ao invés de chinelos, comportamento à altura, etc. Os ingressos também eram mais caros. E o ar condicionado? Nada mais do calorzão que os rangentes ventiladores dos outros cinemas não conseguiam amenizar. Chegou após o início da exibição? Não tem problema: a sessão contínua permitia o usuário ficar na sala as sessões que quisesse. Geralmente estas exibições eram: 15 às 17 horas; 17 às 19; 19 às 21 horas, com pequenos intervalos entre as sessões.

Na esquina chanfrada do moderno edifício ficava a bilheteria. Logo após, na Rua Coelho Rodrigues, a porta de saída. Um pouco mais adiante, sempre na dita Rua, a porta envidraçada de entrada, que acessava a um saguão de espera, onde havia a bomboniére, bebedouro com água gelada, paredes espelhadas, poltronas, cartazes de películas, etc. Um luxo para aqueles anos 1960. Dali se adentrava sala de exibição a qualquer momento. Se fosse durante uma exibição, no escurinho do cinema, lá estava o lanterninha para orientar o frequentador.

 IMAGEM DO CRUZAMENTO DAS RUAS TREZE DE MAIO COM COELHO RODRIGUES
VEMOS = A BILHETERIA (1) E A PORTA DE SAÍDA (2) DO CINE ROYAL
IMAGEM DE AUTORIA DESCONHECIDA

Um pouco mais abaixo da entrada, sempre na Rua Coelho Rodrigues, ficava a vitrine com os cartazes dos filmes vindouros. As poltronas eram confortáveis e as películas, bem mais modernas e atualizadas, nunca cortando como acontecia nos velhos cinemas.

Durante os curtos intervalos entre uma sessão e outra havia as chamadas “paqueras”. Com a imposição dos costumes da época, a timidez de um flerte era vencida com o auxílio da conhecida Socorro, a “Muda”, personagem de frequência habitual no Cine Royal, que levava recados ou bilhetes de rapazes para moças e vice-versa. Os recados ela transmitia através de gestos. Era realmente uma figura folclórica em Teresina, presente em muitos tipos de eventos.

SOCORRO, A MUDA
PERSONAGEM FREQUENTE NO CINE ROYAL
FOTO = DEUSDETH NUNES

Assisti se não o primeiro, creio que o segundo filme exibido naquele cinema: “O Senhor da Guerra” (The War Lord, EUA, 1965), drama épico com o grande astro yankee Charlton Heston (1923-2008).

A última sessão não tenho certeza: deve ter sido em 1984. Ou foi um “água com açúcar” brasileiro com a atriz Bianca Byinton (n.1966), talvez “Garota Dourada’ (1984) ou o maior clássico do pornô americano, “Ana a Obcecada” (Anna Obsseded, 1977) com as então estonteantes Constance Money (nascida Susan Jensen, n. 1956) e Annette Haven (n.1954). Mas como frisei, não posso afirmar com exatidão.

Veio a concorrência com a televisão, os problemas internos da empresa e um dia, menos de duas décadas após sua inauguração cerraram-se em definitivo as portas do Cinema, deixando uma enorme nostalgia e uma imensa lacuna que só voltou a ser parcialmente preenchida na era dos cines dos Shoppings. Os tempos já eram outros...

Salgado Maranhão - síntese biográfica




Salgado Maranhão (José Salgado Santos) 13/11/1953. Além de poeta e letrista, é jornalista. Nasceu no povoado de Cana Brava das Moças, na cidade de Caxias, interior do Maranhão, onde morou trabalhando na roça. Aos 15 anos, mudou-se com os irmãos e a mãe para Teresina, onde foi alfabetizado. Escreveu artigos sobre música para um jornal local e conheceu Torquato Neto, que o incentivou a vir para o Rio de Janeiro, o que fez em 1972. Torquato Neto também sugeriu que criasse um pseudônimo, pois, segundo ele, o nome José Salgado Santos parecia nome de arquivista e não de poeta. Salgado estudou Comunicação na Pontifícia Universidade Católica e trabalhou como terapeuta corporal, professor de Tai Chi Chuan e mestre em Shiatsu. A partir de 1976 colaborou em várias publicações com artigos e poemas, como a revista "Música do Planeta Terra". Músicas gravadas por Paulinho da Viola, Ney Mato Grosso, Zizi Possi, Elba Ramalho, entre outros. É verbete do Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira. Tem poemas traduzidos para o inglês, holandês, francês, alemão e espanhol. Organizou, com Sergio Natureza e Moacyr Félix, o livro "Ebulição da escrivatura - Treze poetas impossíveis" (Ed. Civilização Brasileira, 1978 RJ). Outros: "Aboio ou Saga do Nordestino em busca da Terra Prometida" (cordel, 1984), "Punhos de serpente" (1989), "Palávora" (1995), "O Beijo da Fera" (1996, Prêmio "Ribeiro Couto" da União Brasileira de Escritores), "Mural de Ventos" (1998, reunião de poemas novos e dos três livros anteriores, Prêmio Jabuti), e "Sol sanguíneo" (2002). Em 2011, na categoria Poesia, vence a premiação anual da Academia Brasileira de Letras. Fotografia: Maurício Pokemon via Revestrés.

31.8.14

DOIS RIOS




há em minha terra dois rios
silenciosos

um
estendido em verde tapete de aguapé
onde não mais trafegam canoas
apenas diminutas criaturas buscando seu pasto

outro
árido tapete árabe
onde todos caminham acima de sua face



Adriano Lobão Aragão
em As cinzas as palavras
Teresina: dEsEnrEdoS 2014

SÃO JOSÉ




estes que talvez aqui não mais se encontram abrigados
em respectivos jazigos que dos herdeiros herdaram
nesta terra se revestem de lembrança e esquecimento

sob a sombra de antigas árvores silêncio tardio
sob o passo lento de transeuntes e de abandonados
gatos leves passos sob céu chuva e nuvem se resguardam

apenas o ponto e o porto em que seus corpos decompostos
inertes se reencontram dispersos nesta mesma terra
semente perene como a noite que lhes protege

sob a sombra destes túmulos nas linhas desta lápide
talvez aqui se revestem de esquecimento e lembrança



Adriano Lobão Aragão
em As cinzas as palavras
Teresina: dEsEnrEdoS 2014

17.8.14

FANTASMAS DO VELHO BALNEÁRIO DOS DIÁRIOS




Fantasmas, fantasias oníricas de viciados em drogas, inumeráveis pichações e imundície velam o antigo casarão de dois pavimentos, abandonado na Praça Ocílio Lago, onde funcionava o Balneário do Clube dos Diários, no Jóquei. Só os despojados, como o idealista, advogado, escritor e jornalista, Kenard Kruel, topariam a proeza de resgatar o prestígio do vetusto patrimônio, transformando-o em centro de manifestações artísticas.  E o show já começou. Exige apoio de autoridades e amantes das artes. Kenard iniciou a limpeza, atende compromissos no local, organiza arquivos da Fundação Nacional de Humor. O médico José Aírton juntou quatrocentos amigos, festejou seu aniversário ali, conseguindo 12 mil reais para a instituição. Construtoras prometem reformas.

A Fundação Nacional de Humor projeta, para breve, show e escola de humor na praça, museu de arte contemporânea, além de festivais de cartuns, caricaturas, quadrinhos.

A geração atual pouco ou nada sabe sobre aquele bucólico prédio e sua praça, urbanizada há algum tempo. A tarefa inicial de Kenard Kruel já espantou boa parte das miragens e lucubrações.

Entre as décadas de 1950 e começo de 60, o Bairro do Jóquei praticamente não existia. Imensa floresta cobria quase toda a Zona Leste de Teresina. Só a velha ponte de madeira, onde, hoje, se ergue a Ponte Wall Ferraz, servia de passagem sobre o Poti. Construiu-se outra ponte, a Juscelino Kubistchek, de concreto, na segunda metade dos anos 50, ligando a Avenida Frei Serafim à Zona Leste. Coronel Miranda, proprietário do jornal O Dia, juntou grupo de notáveis amigos, fundaram o chique Jóquei Clube, com manhãs dominicais lotadas de banhistas, além das corridas de cavalos e tertúlias semanais. Endinheirados adquiriam lotes enormes e arborizados, construíam modernas residências, desfrutavam a noturna temperatura serrana.

O Jóquei Clube atraiu expressivos associados do Clube dos Diários. Em resposta, líderes diaristas, comandados por Moisés Cadah, doutor João França, Edgar Nogueira, general Gaioso, Durvalino Couto, João Carneiro e Camilo Santos Hidd, fundaram o Balneário Clube dos Diários, que se estendia da atual Praça Ocílio Lago à Avenida N. S. de Fátima, onde se ergue um supermercado. Duas piscinas e bar ocupavam o segundo pavimento do prédio. Aos domingos, música ao vivo. Filhos de sócios iam do centro da cidade, de ônibus, lotavam o balneário a partir das 9 da manhã de domingo, até 2 da tarde. Certa manhãzinha, ainda escura, Hermínio Conde, neto de Antonino Freire, governador no início do século XX, dirigiu-se ao Balneário ainda deserto. Num salto do trampolim, faleceu.  Meu cunhado Marcos Hidd, filho de Camilo Santos, parece delirar, recordando um tempo, quando Teresina começava a se esbaldar nos recentes balneários, Jóquei, Diários, logo mais o Iate Clube. Ainda se curtiam deliciosas manhãs, nas praias alvíssimas e límpidas águas do Poti e Parnaíba.   

A Fundação Nacional de Humor tenta resgatar alguns sonhos que se perderam com o crescimento e modernização de Teresina. Se não cuidar, fantasmas e fantasias oníricas cuidarão do lixo.



José Maria Vasconcelos
via blogue do poeta Elmar Carvalho
em 16/08/14

CANTO DO RIO




Chore não
Um rio não morre à toa
Corre na terra e não voa
Rio não é avião
É só um leito assentado
eternamente pousado
entre as agruras do chão

o rio é um berço da infância
onde se banha a lembrança
do nosso corpo molhado
O rio é uma estrada d'água
onde lavamos a mágoa
de um sonho não consumado

Falo do Parnaíba
rio que já faz tempo
vai morrendo pouco a pouco
vai pouco a pouco morrendo

Falo do Parnaíba
que deságua no meu peito
cheio de peixes graúdos
e de Torquatos pequenos

Seus coloridos vapores
as beiras cheias de cores
as margens dos meus amores
e dos mergulhos serenos

Falo de um rio bonito
que existiu noutro tempo
E hoje persiste mito
pela poesia do vento



em MAIS UNS: Coletivo de Poetas
Brasília: 1997

CINE SÃO LUÍS, Geraldo Borges


Estou em Teresina.

Toda vez que venho a Teresina hospedo-me no antigo cine São Luis, ou melhor, no velho  prédio onde funcionava o cinema São Luis na década de cinquenta. Hoje é apenas um hotel modesto próximo a Praça Pedro Segundo, e ao lado do Clube dos Diários. Mudaram a sua arquitetura funcional. No lugar amplo onde existia o auditório construíram quartos com suítes, onde existe também televisão. Mexeram em tudo por dentro. Demoliram a cabine onde o filme rodava e ia se projetar na tela para deleite dos fregueses, demoliram as bilheterias, expulsaram  os lanterninhas, os porteiros, de caras de poucos amigos, e os fiscais que conferiam as nossas carteiras de estudantes. Só conservaram mesmo a fachada, que ainda faz relembrar um pouco o cinema.

O Cine São Luis me faz recordar o meu tempo de menino. Agora quer estou sozinho na minha suíte pego – me a pensar nos velhos faroestes tocadas a ferro e fogo, com cavalgadas  e diligencias, e, às vezes, índios.

Nunca pensei que um dia o Cine São Luis se tornasse um hotel. O pior é que muitos prédios históricos foram abaixo para dar lugar a estacionamentos de carros.

Não dormi bem essa noite. Pois estava com medo de perder o avião, embora tivesse avisado ao recepcionista que me acordasse pelo telefone.

Durante a noite tive um sonho. Sonhei que estava em um castelo, servido por mordomos e criados. Mas a maioria dos hospedes do castelo eram fantasmas, velhos astros e estrelas de filmes em preto e branco da Paramount , da Columbia, da Metro. Eles falavam inglês. E eu tentava traduzir. Parece que estavam dizendo por que diabo o Cine São Luis tinha se transformado naquele castelo mal assobrado. Tudo estava diferente de seu tampo. As pessoas entravam no prédio sem comprar bilhete, sem fazer fila, sem comer pipoca, o prédio não tinha mais cartazes deles nas paredes. De repente no meio da conversa eu vi Marilyn Monroe arribar o  vestido. Vi namorado de mãos dada se beijando no escuro do cinema. No desfile desses fantasmas consegui ver em minha mente uma procissão de estrelas e astros que povoaram a minha imaginação aí pela década de cinqüenta, principalmente os que faziam papeis de mocinho e me fazia sair do cinema com os ombros levantados, e caminhando altivo.

Acordei com o toque do telefone. E tentei relembrar os detalhes do sonho. Com certeza esqueci a metade. Talvez tenha visto muitos filmes, remendado. Levantei. Esfreguei os olhos. Pisei meu sonâmbulo no assoalho. Acendi a luz. E pensei, seria maravilhoso se eu encontrasse Marilyn Monroe inteiramente nua no meu banheiro. Talvez eu não estivesse ainda acordado completamente. A Água fria me traria à realidade. Mudei de roupa. Arrumei a mala e desci. Não deu tempo de tomar café.

Pedi um táxi. Rumei para o aeroporto. Embarquei.

O avião alçou voo. E durante a viagem num esforço de memória e imaginação rebobinei, com direito a fitas quebradas, quase todos os filmes que eu vi no velho Cine são Luis do tempo de minha infância. E só assim comecei a entender porque escolho, para me hospedar, sempre que venho a minha cidade, o velho prédio onde funcionou o Cine São Luis.

Arnaldo Albuquerque - Um Humor Sangrento



Documentário de curta metragem sobre um dos mais importantes nomes da cultura marginal piauiense da década de 1970. Realizado para o curso de graduação em Comunicação Social da Universidade Federal do Piauí - UFPI, em março de 2014.

Direção: Francisco Monteiro Júnior, Nícolas Barbosa e Gustavo Rodrollí
Roteiro: Fernanda Grazielly

16.8.14

PRÉDIOS INTEIROS SE ERGUEM NO CÉU DA TUA BOCA II ou segunda visão, Renata Flávia


uma cidade se cria
na poça de lama da avenida
a velocidade dos meus sonhos a atravessam
parte no meio o retrato da cidade diluída
pingos de amor deslizam na minha cara
milhões de pássaros povoam meu céu de boca
multidões dentro dos meus olhos fechados
te sou construída
te sou partida
te sou língua
lambi a cidade partida.


Renata Fláviaenviado pela autora (lustredecarne.zip.net)

PRÉDIOS INTEIROS DE ERGUE NO CÉU DA TUA BOCA I, Renata Flávia


cada verso deflagrado
escorre avenida, esgotos
todo personagem que escolho
respinga delírio, asfalto
monstros disfarçados
paradas de ônibus
bêbados ensaiando passos malabarizados.
poças de neon brilham no asfalto preto
cidade refletida respinga
na cara, língua desliza
lama, desejo
beijo a cidade, deliciada
atropelada pelas chuvas de janeiro.


Renata Flávia
enviado pela autora

PRAÇA DA COSTA E SILVA, Renata Flávia


de olho no Parnaíba,
o poeta se eterniza
numa sedutora
escuridão de orgias.


Renata Flávia
enviado pela autora

PRAÇA SARAIVA




praça dos loucos por deus ou sexo
dos infames, dos clérigos
praça saraiva decaída
mantém viva almas estudantis que burlam aula
almas amáveis que namoram em jaulas
guardada entre grades impostas
entre grades que insulta
te agride, te repulsa
praça saraiva dos loucos por deus
ou sexo



Renata Flávia
enviado pela autora

11.8.14

O oleiro, Graça Vilhena


um dia viu
no fundo da fornalha
que sua vida secara
entre os potes


em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013