17.10.13

TERESINA DO MEU TEMPO (A PRATA DA CASA)




Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo - é bom que se saiba - parece não terem nada a dever aos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As "Horas de Arte", festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais - a prata da casa - em geral elementos próprios da sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 no amparo, ora à noite, no Teatro 4 de Setembro, ouviam-se solos instrumentais - piano, violino, flauta, bandolim, violão - números de canto e dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: "A tesoura", "As mãos", "A luz", "As estrelas". Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e finalmente perdida, sob o título "O elogio da lágrima". Talvez influenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícia, por constituir verdadeira raridade bibliográfica.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais "Clube Recreio Teresinense", "Os Amigos do palco", "Os Talianos" e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Teatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas "O bicho", "Frutos e Frutas", "O Coronel pagante" e "Jovita", todas de Jônatas batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os "Amantes da Cena Viva", grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama "Mariazinha", também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfiou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelava no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zila Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violonistas; Durcília Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam música tocado valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Radagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingo à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! a poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizades conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namorados que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda...Lourdinha...Maria Luísa...Maria... Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado: quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo: nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela jóia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no final da jornada, acabo de perder. Mas, com licença: o assunto é outro.

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A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela a oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão influído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso "Teresina meu amor":


RONDÓ À AMADA AUSENTE

Não quero flor nem brilhante,
Quero carinhos de amante
Para o mais fino louvor
A quem já nasceu prendada
- A ti, minha namorada,
Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos,
Logo nos apaixonamos,
Tu - princesa, eu - trovador.
Atirei-me nos teus braços,
Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,
Não perdeu tempo em conquista,
Já nasceu triunfador.
- Formosa rosa trigueira,
Flor da raça brasileira,
Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,
E outro amante não tiveste
Com mais paixão e calor.
Em noites de serenatas
Dediquei-te mil oblatas,
Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,
Cantasse o céu, o universo,
Tinham meu mel, tua cor.
Vivi de ti impregnado,
- Garotão apaixonado,
Teresina meu amor...

Assim vivemos, querida,
A quadra melhor da vida
Que me deu Nosso Senhor.
Mas em busca de outros ares,
Perdi-me noutros lugares,
Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,
Envelheci de repente,
Do azar da sorte ao sabor.
Tu continuas menina,
Áurea estrela matutina,
Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,
És muito namoradeira,
De amantes possuis um ror
Sei de um, escritor de fama,
Que em belo livro te chama
“Teresina meu amor".

Vivo morrendo de ciúmes,
Da saudade subo aos cumes,
Desço aos socavãos da dor...
Mas não te esqueço um momento,
Vives no meu pensamento,
Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,
Mando-te um montão de beijos,
Pois te amo seja onde for.
- Minha cidade menina,
Minha linda Teresina,
Teresina meu amor!
em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Café Avenida I, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Quando deixei Teresina, em abril de 1951, ainda havia dois bares muito concorridos na Praça Rio Branco - o Bar Carvalho e o Café Avenida.

O Bar Carvalho era também restaurante e sua cozinha obedecia ao comando de um espanhol gordo de nome Gumercindo. Nunca esqueci o sabor de alguns de seus pratos. E já que aqui se fala de música, lembro o famoso filé à Carlos Gomes, para mim sem igual até hoje. E a farofa de ovos de que só em falar sinto a boca cheia d'água? De ovos mesmo e não apenas de ovo. À noite fazia também sucesso o substancioso chocolate com gema de ovo batida, servido numa xícara enorme - um verdadeiro jantar.

Apesar dessas delícias, o ponto de reunião ideal para o grupo de amigos e intelectuais que me incluía, notadamente na década de 40, era o Café Avenida, onde só bebíamos o tradicional cafezinho.

Ficava ao lado da igreja de Nossa Senhora do Amparo, sempre lotada aos domingos pela manhã, na missa das 9.

Vale registrar que, durante muitos anos, a missa das 9, no Amparo, constituiu ponto alto na vida social da cidade. Lá estavam senhoras e moças nos seus melhores trajes e homens de terno e gravata, apesar do calor de 40 à sombra nos meses terminados em "bro". O coro, do qual fazia parte com meu violino nos dias de festa, oferecia músicas e cantos agradáveis, acompanhando os atos litúrgicos. Muitas vezes lá nos encontrávamos, Martins Napoleão e eu. Por isso Celso Pinheiro troçava, dizendo que éramos do partido da negra velha...

Fotografia publicada no livro "Ulisses, entre o amor e a morte"
de O. G. Rêgo de Carvalho

Terminada a missa, não resistíamos a uma parada no Avenida, não só para aguardar a "hora do almoço", na expressão local, como especialmente para o descontraído e divertido papo na roda já formada por Celso Pinheiro, Martins Vieira, Álvaro Ferreira, Ribamar Ramos e outros, entre os quais, embora menos assíduos, os Professores Pedro Torres e Cláudio Ferreira, ambos egressos do Seminário, e o serventuário da Justiça, mais tarde desembargador, Manuel Belisário dos Santos.

Estabelecimento de sírios, o Café Avenida congregava também, invariavelmente, os principais representantes da colônia árabe que tão bem se adaptou à vida e aos costumes da terra, emprestando a ela o valioso concurso do seu trabalho, da sua experiência e do seu sonho de vitória no comércio, na indústria e outras atividades lucrativas; integrando-se enfim na segunda e bela pátria que os acolhera sem discriminação e com carinho e onde seus filhos, pela constituição de novas famílias, com o tempo se tornaram parte ativa da comunidade, brilhando muitos deles nas profissões liberais, na política, no magistério e até na administração pública.

Azar Chaib, Elias João Tajra, Miguel e Elias Caddah, Tomás Tajra, Elias Hidd, Miguel Sady, e Saba, Said, Adad, Mualem, Kalume - eis alguns de seus nomes. Sérgio Tajra, o patriarca da colônia, creio que à época já se havia transferido para São Paulo, onde passou a morar depois do falecimento da esposa, Dona Adélia.

Sentavam-se em área separada, ao fundo do bar, aí formavam o que eles chamavam de "roda" e onde durante horas, nos momentos de folga, trocavam idéias sobre suas vidas e seus negócios. Um apenas se desgarrava às vezes do grupo dos patrícios - o simpático Wady, para vir à nossa mesa contar anedotas das quais só ele ria...

Anedotas e episódios de fino humorístico eram aliás constantes na nossa roda de amigos. De Celso Pinheiro, o grande poeta simbolista admirado e aplaudido em sua terra e fora dela, excelente conversador, e de Martins Vieira - para nós simplesmente o Júlio - espírito vivaz e brilhante, sempre de bom humor, sobretudo deles guardo muitos casos. E embora fugindo um pouco ao tema principal destas Notas, mas justificando-o com o fato de aí se discutirem tudo, inclusive música, aproveito a oportunidade para recordar algumas dessas passagens pitorescas, num preito de saudade aos queridos companheiros mortos.

Celso não gostava do presidente Getúlio Vargas. Responsabilizava-o pelas desventuras do filho, o jovem e inteligente Celso Pinheiro Filho, mais tarde advogado e prefeito de Teresina, cujas idéias e atividades políticas o levaram ao presídio na ilha de Fernando de Noronha.

Certa manhã, ao acercar-me do grupo, meio atrasado, Celso Pinheiro foi logo me dizendo:

- Poeta, você não quer ver o Getúlio trabalhar no cinema? Deve ir, você é um Getulista.

Estranhando a sugestão, indaguei se se tratava de algum documentário importante, com imagens de realizações do vigente Estado Novo. Respondeu que não; tratava-se de filme em que o Presidente figurava como principal personagem, como ator mesmo.

Mais intrigado ainda, apanhei o programa do dia, que o Cinema Olímpia, ali pertinho, fazia distribuir sobre as mesas do bar. O título do filme era "Um espertalhão de marca maior". E Celso garantia, convicto:

- Só pode ser o Getúlio!



em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988


Café Avenida II, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Em outra oportunidade comentava-se a compra, pelo Estado, da biblioteca de Mestre Higino Cunha - um punhado de livros velhos que o governo acabava de adquirir mais como pretexto para suavizar economicamente a velhice do extraordinário polígrafo e servidor, pelo próprio governo sempre explorado e mal pago. Celso Pinheiro aplaudia o ato governamental, revelando ao mesmo tempo que a sua biblioteca é que ninguém poderia comprar. Não haveria dinheiro que chegasse.

Todos ali sabíamos que o poeta não tinha biblioteca nenhuma. Uns poucos volumes, geralmente de poesia, e nada mais. Martins napoleão até o considerava um gênio, justificando sua opinião com o fato de que, sem estudar, sem viajar, lendo praticamente só livros de versos, Celso possuía um domínio de uma escrita admirável, na correção, na criatividade, no conceito e nas imagens, tanto na poesia como na prosa. Eis por que a história da valiosa biblioteca não soara muito bem. E um de nós, creio que o Júlio, quis saber que biblioteca era essa de que ninguém tinha notícia.

Celso respondeu como que declamando, meio fora da realidade:

- O céu azul e as estrelas...

Cláudio Ferreira, como seu colega Pedro Torres, ainda trazia a cabeça cheia de histórias do seu tempo de seminarista. Contou que durante um retiro, na sede episcopal, o Padre Áureo fora escolhido para ler o texto destinado à ceia, a longa mesa de refeições totalmente ocupada por sarcedotes de várias localidades e presidida pelo bispo, D. Severino Vieira de Melo. E tudo ia bem até que o leitor, tropeçando em determinada palavra, começou a gaguejar: "geme... geme... gemebunda...".

Um risinho maroto percorreu então toda a mesa, logo, porém, abafado ante a atitude sisuda de chefe da igreja. Mas terminada a ceia, quando este já se retirava, o Padre Uchoa, sempre brincalhão, passando por trás do Padre Áureo, que permanecia sentado, acariciou-lhe a carapinha dizendo:

- Desta vez ela gemeu, hein nêgo!

Apesar do estrondo das risadas, o bispo apressou o passo, fingindo não haver tomado conhecimento da brincadeira.



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988


Café Avenida III, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


No Café Avenida também fazia ponto, quase todo dia, o Padre Acilino Portela, virtuoso pároco da matriz do Amparo. Era aí que, bebendo repetidamente seu cafezinho, sempre na mesma xícara, ele tomava dinheiro dos comerciantes, industriais, fazendeiros e outras pessoas, conhecidas ou não, para obras de reconstrução da igreja, que encontrara caindo aos pedaços. Homem simples, de palavra singela, era, entretanto, estimado e respeitado por todo mundo. Sermões monótonos, repisados e entremeados de uma palavra cacoete, nem por isso suas missas eram menos concorridas. Pelo contrário: aos domingos, na missa das 9, a igreja se tornava pequena para comportar os que nela se comprimiam.

Num desses sermões, o vigário falava, com visível aborrecimento, de certa pessoa que fora levar a D. Severino informações malévolas sobre seu modo de vida. E contava que o bispo, de quem recebera chamado, lhe manifestara não achar correto que ele, Padre Acilino, passasse os dias sentados num botequim, de pernas cruzadas e fumando cigarro. Mas fora franco - contava - como é do seu feitio. Confirmara as informações, justificando que, perdida sua mãezinha e não sendo casado nem podendo pagar empregada, não tinha quem lhe fizesse café; e como fosse o café sua única bebida, depois do vinho da missa e da água do pote, via-se obrigado a tomá-lo no bar, sempre pago pelos amigos por não ter dinheiro. E quanto ao cigarro, que o senhor bispo aconselhava usar mais recatadamente, afirmara não ser homem de fazer escondido aquilo que pudesse ser feito em público. E como não julgasse pecado, continuaria a fumar na presença de todo mundo e não detrás da porta, mesmo porque o cigarro também lhe era dado por amigos. E mais: dissera que passava os dias no bar para arranjar dinheiro para as obras da igreja, porque a diocese nunca lhe dera um tostão, para isso ou para qualquer outra coisa. E com isso encerrou-se a entrevista.

Padre Acilino repisava seu cacoete num crescendo nervoso, realmente aborrecido:

- Mas justamente eu sei quem foi fuxicar para o senhor bispo. Eu sei o nome dessa pessoa que justamente devia era melhor cuidar da sua vida e deixar a dos outros em paz. É gente que aqui mesmo vive batendo no peito, sem fé nem espírito crisão, e o que devia fazer era justamente tratar de ter mais merecimento junto a Deus. Mas eu sei quem é essa pessoa.

E alterando mais a voz:
- Eu sei quem é. Estou quase dizendo o nome dela! Justamente estou até sentindo cócega na língua. Vou acabar dizendo o nome dessa pessoa!

Toda a igreja ria. Menos decerto a pessoa de quem falava e que ali devia estar tremendo e rezando para não ser revelada.

Deixado em paz, pelos detratores e pelo bispo, Padre Acilino pôde concluir as obras de restauração de sua igraja, deixando apenas para seu substituto, Monsenhor Joaquim Ferreira Chaves - ou simplesmente Padre Chaves, como gosta de ser chamado - a construção das altíssimas e esguias torres que hoje identificam de longe, nas vistas terrestres ou aéreas, a imponente matriz de Nossa Senhora do Amparo.



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Café Avenida IV, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Embora mais raramente, às vezes nos reuníamos também à noite, sempre no Café Avenida. Até às 21 horas, quando a cidade quase toda se recolhia para dormir. Os encontros ocorriam ao acaso: um de nós entrando para um cafezinho, encontrava um companheiro. Logo vinha outro, e o grupo ia se formando em torno de uma mesa e em meio aos comentários sobre fatos do dia ou trazidos pelos jornais do Rio de Janeiro. Mas qualquer assunto servia.

Uma noite, por exemplo, falava-se, entre outras coisas, de religião, da existência de Deus. Lembro-me bem dos presentes: Álvaro, Celso, Júlio, Ribamar e eu, e em mesa ao lado, depois de nos interromper duas ou três vezes, bêbado, o Agostinho Danado.

Celso acreditava em Jesus como um ser privilegiado, um profeta, um filósofo, e tinha por ele grande simpatia. Dizia até que, se estivesse em Jerusalém naqueles tempos, teria feito um barulho danado para evitar que o Cristo fosse, como foi, condenado sem culpa. Mas em matéria de religião, resumia suas idéias numa pequena frase: Tudo é amor. Deus, a vida e a morte, o sonho, a felicidade, o que é material e o que é abstrato, tudo é amor.

Júlio gostava de espicaçá-lo, sabendo que o amigo, nervoso, pegava fogo de repente. Nessa noite, após ouvir repetidas vezes a frase "tudo é amor", ele não dormiu no ponto, atirou o seu fósforo:

- Poeta, merda é amor?

Celso deixou a cadeira onde estava sentado quase num salto, e plantando-se diante do insolente, logo bradava e gesticulava, os olhos faiscando:
- Merda é amor, sim senhor! Merda é amor!

E fez um verdadeiro discurso em que havia esterco, húmus semente, germinação, planta, flor, beleza, paz e, finalmente, amor, tudo para tentar convencer, ao Júlio e a quem mais quisesse ouvi-lo, que merda é amor...

Em outro desses encontros noturnos o assunto era a reforma ortográfica, decretada pelo governo federal, e o vocabulário que a ela se integraria, organizado pela Academia Brasileira de Letras.

Celso Pinheiro confessava não haver aprendido as regras em vigor, por isso iria continuar escrevendo como até então e quem quisesse que fosse recolocando os acentos, os tremas, os hífens e outras coisas exigidas pela reforma.

Júlio Vieira faz-lhe ver que a coisa não é assim tão difícil, bastando notar, por exemplo, que toda palavra proparoxítona leva acento na sílaba tônica, agudo ou circunflexo, conforme o caráter aberto ou fechado da vogal: cálculo, pródigo, trêfego, cômodo. Prossegue explicando que o acento agudo também se emprega para evitar o ditongo em certas palavras, como país, juízo, saúde, viúvo.

Meio desinteressado, o poeta da "Flor Incógnita" interrompe a aula e se levanta para sair. Fala:

- Vou guardar minh'alma. Hoje tenho a cabeça tão doída.

Júlio logo corrige:

- A última palavra aí não tem acento...



em Notas fora da pauta 
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Moura Rêgo - síntese biográfica




Raimundo de Moura Rêgo nasceu na antiga vila de São José dos Matões, hoje cidade de Matões, a 23/06/1911. Viveu a adolescência, a mocidade e parte da vida adulta em Teresina, a que ele dedicava extremo afeto. Contador, Bacharel em Direito. Professor da antiga Escola Industrial. Inspetor Federal do Ensino. Inspetor fiscal do Imposto de Consumo. Advogado.

Jornalista militante fez parte da antiga Associação de Imprensa do Piauí, com Cláudio Pacheco, Álvaro Ferreira, Martins Napoleão, Joel Oliveira e muitos outros. Em Teresina dirigiu a revista "Garota", de feição literária, e participou de vários movimentos intelectuais de jovens, como Arcádia dos Novos e Cenáculo Piauiense de Letras - colaborando nas revistas e jornais representativos desses movimentos e agremiações, com Odilo Costa, filho, Anísio e Wagner de Abreu Cavalcante, Viana Filho, Jacob Martins, Emílio Costa, Clemente Fortes, Firmino Paz e outros.

Músico, deu concertos de flauta, violão e violino. Especializando-se neste último instrumento, fez-se aplaudir em inúmeros recitais realizados não só em Teresina como em Fortaleza e São Luis do Maranhão. Continuou no Rio tocando violino em reuniões familiares com outros amadores. Em Teresina, foi uma espécie de introdutor de todos os artistas que a visitaram, especialmente na década de 40, recebendo-os, apresentando-os em público e cooperando com eles na execução dos respectivos programas. Exerceu a crítica de arte nos jornais "Vanguarda" e "Diário Oficial". Em 1941 realizou, com Antilhon Ribeiro Soares, a opereta "Uma noite do Oriente", levada a efeito, com sucesso, primeiro no auditório do Liceu Piauiense e depois no Teatro 4 de Setembro, sendo autor dos versos da maioria das músicas apresentadas e, além de violinista, regente do conjunto orquestral por ele mesmo organizado com amadores locais e músicos das bandas da Polícia e do Exército.

Moura Rêgo abrilhantou as mais queridas festas artísticas do Teatro 4 de Setembro. Exímio flautista, foi encanto da chegada de misse Piauí, do Rio, em 1929. Clarinetista, pianista, encontrou ainda no violino o seu instrumento de beleza. Compositor, poeta, prosador, memorialista.

Mereceu elogios de Martins Napoleão, Cláudio de Sousa, Jonas da Silva, Cruz Filho, Carlyle Martins, Celso Pinheiro, Cleómenes Campos, Malba Tahan e outros críticos e homens de letras do Brasil.

Publicou: "Ascensão dos Sonhos", poesias da juventude, 1936; "Trovas", 1942, e "Gritos Perdidos", 1944. No Rio, em 1987, editou "Em Surdina - Trovas e outras Cantigas". Dele a Academia Piauiense de Letras fez edições de três obras: "Contracanto", os seus melhores instantes de sensibilidade poética, o mestre do verso, cheiroso a amor, de alexandrinos perfeitos; "As Mamoranas estão florindo", história de uma fazenda e de uma época, no Maranhão, romance documentário, tipos, costumes, dureza da vida, gente abandonada; "Notas Fora da Pauta", memórias de Teresina, em que conta o pedaço mais bonito da sua vida, narra a maravilhosa fase artística teresinense de participou, com alma e coração, relembra nomes de que a cidade se orgulhava e fatos deliciosos dos tempos idos - uma Teresina pobre, mas alegre, rica do espírito de sua gente modesta, trabalhadora, fraterna - e nela esteve Moura Rêgo em serestas de amor e bem-querer.

Faleceu no Rio a 12 de março de 1988.



A. Tito Filho
em Jornal O Dia de 16 de julho  de 1988

DA CIDADE I




o poeta sobidesce
um arranha céus
outro caminho torto
na rua
espias casas

há um visível con
traste
entre o que é e o estar:
existir por cisma
já não vinga!




em Percurso do verbo
Teresina: 1987

DA CIDADE II




existe um canto
que sobrevive
à (b) usina de todos os dias
acalanto da memória
que a cidade descongela.

que é a barra / a barca
tremulando nos espaços
do arquiteto imóvel

a noite cobre aflitiva
a cidade:
o poema não se vence;
um homem bebe cicuta!



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

DA CIDADE III




teresina se inclina
e uma névoa brusca
torna frágil o caminho

como custas a vir (meu amor)

ontem éramos nácar e sol
                                 hoje orvalho:
quanta coisa a te dizer
muito que fazermos
na aquarela escura
da cidade



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

16.10.13

"o amor é recreio feito nos pastos verdes"




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o amor é recreio feito nos pastos verdes
da tristerezina
não tenha esses tantos medos
(que acho tão belos
em suas essências intocáveis)
porque o amor omnibus idem
e há tempos em que somos apenas amor
tudo em nós aí se imanta desse doce flagelo
e por ele respiramos
como se não existira nada além

aí reside a mudança das luas
devemos alçar o coração abaixar a cabeça
e participar dessa comunhão
cantando loas
correndo campoadentro
à toa...



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

CENAS DE MORTE SOBRE O RIO




quando a gente tá nessas noites de ansiedade
e sai madrugada afora com um litro de chave de ouro
sob a camisa, comprimindo a lágrima na estação da saudade
descobre que a poesia ajuda a viver e quer que nosso poema
fira a carne dos mortais mas traga boas doses de riso
quem detém sobre a alba o sorriso perdido?
quem detém na vida a luz da saída?
quando a gente descobre que está só no mundo
está nu sobre o rio, e que a brutalidade das margens
compressas faz com que a água venha transbordando
dos olhos nos alhos, quer chorar sob a lua...
quem chamou por mim lá no longe?
quem me olhou chorar sob a ponte?
a vida é mesmo essa multidão de rostos inválidos
que a gente precisa ressuscitar. o poema é a melhor
maneira de falar para os meninos perdidos na escuridão
do rio e para as meninas da vida cingidas de cio...
quem viu meu poema no horizonte?
será que a vida me garante?


em Percurso do verbo
Teresina: 1987

TEREZIENSTADT




o muro da vergonha separa cidade da miséria
em ondulações de granito e flores de concreto
escondem os mafuás e malungos
frau tijubina não sabe
que a beleza é aparente
apenas pressente a separação
como dolorosa incisão
de um bisturi impiedoso



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

"meu silêncio é planície morta"




meu silêncio é planície morta
do verde grandes lenços de linho
balançam a relva e assopram gemidos mudos
silvo de violino / aguilhão quando descansa

meu silêncio é a beira do poty
margens com-pressas
sussurrando loucuras / bandeirinhas vegetais
remando contra o re-mar

meu silêncio lençol horizontal
estendido no parnaíba
grande fala de poder falar e não precisar mais



em Percurso do verbo
Teresina: 1987

Ramsés Ramos - síntese biográfica





Ramsés Bahury de Sousa Ramos [ ✰ 28/12/1962 - † 20/09/1998 ] nasceu em Teresina - PI, faleceu na Rússia. Poeta, músico, jornalista, tradutor, tradutor e crítico de arte. Bibliografia: Dois gumes (1981); Envelope de poesia (com outros autores); Dança o caos (1981 - com outros autores); Percurso do verbo (1987); Baião de todos (1996 - com outros autores); Poema da paixão (1992).

A CIDADE




De avião, como é óbvio, descerás, brasileiro ou brasileira de outras plagas - no aeroporto de Teresina. Alegre e festivo. Um encanto para visitação. Dois andares. Defronte a pracinha bem cuidada, onde de noite os namorados se beijam, sem nenhum receio. Do aeroporto, tomando o rumo da esquerda, alcançarás o bairro proletário do Poti Velho - com a igrejinha mais do que centenária e o Poti de boa pescaria.

Asfalto em todo o percurso pintado de casinhas humildes, em que mora gente acolhedora. Tomando o rumo da direita, comprida avenida - habitada de classe média - e os dois velhos cemitérios superpovoados. O Instituto de Educação. Aqui seguirás pela esquerda - para que atinjas a zona militar, a estação da estrada de ferro, a Avenida Frei Serafim - e poderás seguir pela esquerda, até que encontres o Poti e alcances novos bairros - o do Jóquei Clube e o do São Cristóvão, nos quais habita uma pequena burguesia quase classe média. Caso não queiras, cortarás a Avenida Frei Serafim para os novos bairros - a Piçarra, a Catarina, Cristo Rei, Monte Castelo, onde se ergue a majestosa TV - Rádio Clube. E poderás prosseguir para encontro com a Vermelha, com o estádio Albertão, com a monumental ponte sobre o Parnaíba que te levará a Timon (Maranhão), Caxias, São Luís. Se não quiseres cortar a Frei Serafim, poderás dobrar à direita, e percorrer essa Avenida de beleza. Estarás no coração de Teresina: igrejas, Karnak, praças, zona bancária, zona comercial, cinemas, gente que se acotovela, que rumina problemas, que às vezes caminha para espairecer...



A. Tito Filho
em Teresina meu amor (4ª edição)
Teresina: COMEPI, 2002

TERESINA, O RIO, OS POETAS


Mangueiras, minha velha Teresina,
O povo alegre, sorridente, vivo,
O Mafuá num batucar festivo
Saudade, mestra e mãe que amar ensina.

                                Gregório de Moraes


...sobre um vale pastoral onde os rios passam
sobe a música de vida
dos rios reduzidos a um nome – Parnaíba.

                                H. Dobal


E há, neste anseio sempre renascente
de unir as nossas almas num só corpo,
uma repetição dos aconchegos
do Parnaíba com as lavadeiras.

                                Odylo Costa, filho


Teresina gentil de ruas alinhadas,
Tens nalma a placidez das loiras madrugadas,
A beleza, a frescura e o riso das mulheres.

                                  Cristino Castelo Branco


Vem o Cabeça de Cuia
dançando de madrugada,
vem a moça que morreu
no Parnaíba afogada:
com o seu vestido de noiva
que não pôde ser usado.

                                  Clóvis Moura


Eu sou como o Parnaíba
que corre para o mar;
viro e mexo, faço voltas,
mas meu destino é te amar.

                                  Popular


O Parnaíba tem pregão de glória,
Vai ovante e feliz, na onda ingente,
E teu nome lançar no mar da História!

                                  Alcides Freitas


Parnaíba, velho monge
do poeta que viveu
nas margens da tua cheia
no cheio de tuas margens.

                                  Álvaro Pacheco


Envelheci, querida Teresina,
Enquanto vais ficando, minha terra,
Cada vez mais formosa e mais menina.

                                  Altevir Alencar


Terrinha invocada...
O Karnak majestoso
Avenida iluminada...
Terrinha invocada, meu irmão.

                                  Herculano Moraes


Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando... E ao longe
O mugido dos bois de minha terra...

                                 Da Costa e Silva


O Rio Parnaíba, o velho monge,
Por alguém decantado entre poesias,
Vai, lentamente, deslizando ao longe,
Entre tristes gemidos de águas frias...

                                  Domingos Fonseca


Ouve as águas peregrinas,
Sussurrantes, cristalinas,

Que, docemente, te embalam:
Do Parnaíba altaneiro,
Caudaloso, sombranceiro,
São as vozes que te falam.

                                  Olympio Costa


O Velho Monge, num burel de arminho,
Refletindo as bucólicas paisagens,
Que lhe enfeitam de gala as verdes margens
Paras as bandas do mar segue o caminho.

                                  Vidal de Freitas


Apenas sei
E além disso nada mais
Que o Velho Monge continua rezando
À tristeza das águas
E emoliente ladainha do tempo.

                                  Pompílio Santos


A. Tito Filho
em Teresina meu amor, 4ªed.
Teresina: COMEPI, 2002

O NOME


Teresina compõe-se de dois elementos: Teres, de Teresa, e ina, de Cristina. 
Homenagem à imperatriz Teresa Cristina, mulher do 2º imperador do Brasil, 
D. Pedro II, que reinava na época da fundação.


José de Antônio Saraiva era baiano. Como todo baiano, inteligente. Baiano burro nasce morto. A lei que autorizou a mudança da capital de Oeiras para a Vila Nova do Poti dizia que a Vila Nova do Poti ficava, desde já, elevada à categoria de cidade, com a denominação de Teresina...

Pedro II não podia ser contra. Ou não devia.

Quando os oeirenses mandaram ao imperador água do Parnaíba, água barrenta, colhida de propósito, para que Pedro II lhe evidenciasse péssimas condições, dizem que o monarca olhou bem o polme assentado no fundo da garrafa, sacudiu-a, tomou do copo, encheu-o, bebeu e sustentou:

- Mais saborosa do que esta nunca bebi.

E tinha razão. Inclusive as águas do Parnaíba, pesar de águas doces, tem inspirado grandes páginas da poesia nacional.



A. Tito Filho
em Teresina meu amor, 4ªed. 
Teresina: COMEPI, 2002

A. Tito Filho - síntese biográfica




José de Arimathéa Tito Filho [ ✰ 27/10/1924 - † 23/06/1992 ] nasceu em Barras - PI, faleceu em Teresina - PI. Bacharel em Ciência Jurídicas e Sociais, professor, jornalista e escritor. Bibliografia: Combustível e alimento (1951); O problema social da infância (1952); Da atualidade do Latim Vulgar (1958); Viagem ao dicionário (1972); Esmaragdo de Freitas - homens e episódios (1973); Deus e a natureza em José Coriolano (1973); Zito Batista - o poeta e o prosador (1973); Lima Rebelo – o homem e a substância (1973); Teresina, meu amor (1973); Gente e humor (1974); Sermões aos peixes” (1975); Praça Aquidabã, sem número (1975); Teresina, ruas, praças e avenidas – roteiro turístico (1976); Crônica da Cidade Amada (1977); Carnavais de Teresina (1978); A Igreja do Alto da Jurubeba (1978 e 1986); José de Freitas, comunidade exemplar (1978); Sua Excelência O Egrégio (1978 e 1991); A Augusta casa do Piauí (1978); Memorial da Cidade Verde (1978); O Piauí no Congresso Nacional (1980); Anglo-Norte-Americanismos no Português do Brasil (1986); Governos do Piauí; Crônicas (1989); Temas Atuais (1992), entre outros. 

TERCEIRO CONTINHO TERESINENSE


para o Maestro Emanuel Coelho Maciel


No cais do rio Punaré, um homem arrancava notas tortas de um violino, lembrando as travessuras de Villa-Lobos. Aparentava setenta anos. Era tão estranho à paisagem, como o rosto de Marilyn Monroe na tela do Cine Olympia, nas vesperais inesquecíveis.

Meninos passavam, quixotescos e distantes. Um cão ladrava inquieto. Uma mariposa peralta fazia cena. A chuva caía mansamente, envelhecendo o domingo.



Paulo Machado
Revista AO, número 2
Teresina: dezembro de 2011

RÉQUIEM


ao artista plástico amaral

no natal de 1967, conheci carlitos
numa vesperal, no cine rex.

descobri na agilidade
dos gestos frágeis
e no expressivo abismo dos olhos inquietos
que meu povo haveria de conquistar
terras, arados, sementes,
livros, couro, linho.

(ratazanas cinza, medrosas buscavam a penumbra
detrás das velhas cortinas de veludo grená)

no natal de 1977, carlitos inventou
mais uma pantomia
e encarapitado no dorso de um potro negro
partiu, para recuperar o tempo esquecido.


Paulo Machado
em "ta pronto seu lobo?"
Edições Corisco: Teresina, 2002 (2ª edição)

ARQUIVO


ao contista m. de moura filho


adão andou nas mãos dos paisanos
e foi encontrado na praça da liberdade
como um mamulengo esquecido detrás do palco:
olhos abertos, boca cerrada, músculos petrificados,
sangue coagulado nas narinas.

adão virou manchete
na pose três por quatro,
na última página de o dia.

hoje, é um número qualquer
arquivado
à espera dos cupins.



Paulo Machado
em "ta pronto seu lobo?"
Edições Corisco: Teresina, 2002 (2ª edição)

LUA RUA




O poema concreto Lua Rua apresenta graficamente características do quadrilátero original da planta do projeto urbanístico concebido, no meado do século XIX, para a cidade a ser construída à margem direita do rio Parnaíba. Na concepção do poema, foram levantadas informações históricas e culturais relacionadas à contribuição dos escravos negros ladinos à construção da cidade de Teresina, trazidos das fazendas de criação de bois e cavalos, instaladas no Vale do Rio Canindé. (Paulo Machado via blogue do artista plástico Amaral)

UMA POÉTICA CONSEQUENTE - Entrevista com Paulo Machado realizada pelo poeta Elias Paz e Silva


Elias Paz e Silva – Paulo, sobre a gênese da tua lavoura poética – a realização dos teus poemas – quais os processos predominantes?

PM – Eu considero que a minha poesia tem a predominância da função épica sobre as funções líricas e dramáticas. Talvez, por esta razão, eu tenha, na condição de poeta, me comportado como um observador de episódios humanos, vivenciados dentro de um espaço urbano, especificamente a cidade de Teresina. Estas notícias humanas são sempre relacionadas a cidadãos e cidadãs anônimos. Estes episódios relatados buscam ressaltar o que, talvez, seja a característica da espécie humana. Sobre este aspecto, eu procurei sempre um distanciamento, para que as minhas virtudes ou meus defeitos não interferissem, ou interferissem o mínimo possível, na elaboração do texto. Texto construído a partir do que emana das próprias personagens. Como técnica de elaboração do texto, eu procurei, conscientemente, utilizar uma linguagem concisa, objetiva e realista. Para tanto, eu preferencialmente usei verbos e substantivos, refutando o máximo possível o uso de adjetivos. Em termos de construção da linguagem poética, eu entendo que as figuras de estilo usadas por mim são, predominantemente, as de pensamento e as que se referem à criação de imagens. Dentre as primeiras, talvez a mais predominante seja a ironia. E dentre as segundas, talvez as mais predominantes sejam a metáfora e a metonímia. Raramente, eu lanço mão de figuras de estilo que remetam a uma riqueza polifônica, como ecos, aliterações e assonâncias. Daí que, talvez, a minha poesia, vinculada à classificação dos textos, é logopeia e, num segundo momento, a melopeia e, quase inexistente, a fanopeia.

Elias Paz e Silva – Que seriam as imagens, então...

PM – É. Ressaltando que há um jogo de pensamento. E isto remete à própria etimologia grega do que seja poema – que é “aquilo que se faz”, e é uma construção verbal de tamanho pequeno, mas sempre com a insistência de um enredo. Existe uma narrativa, o caráter narrativo. E a etimologia da palavra poeta, que é exatamente “aquele que faz”.

“DAÍ QUE, TALVEZ, A MINHA POESIA, VINCULADA À CLASSIFICAÇÃO DOS TEXTOS, É LOGOPEIA E, NUM SEGUNDO MOMENTO, MELOPEIA E, QUASE INEXISTENTE, FANOPEIA”.

Elias Paz e Silva – Então, você procura resgatar o sentido etimológico, original da expressão poética. É este o seu projeto, como disse o Chico Castro, achar a poesia no seu estado de pureza e graça?

PM – Sim. Inclusive vendo, tentando ver, a expressão poética em episódios que, comumente, são vistos como antipoéticos. Onde estaria a poesia num episódio urbano relacionado à morte de um cidadão anônimo por atropelamento, numa avenida da cidade? Mas, e se nós pegarmos aí o episódio morte, como sendo uma das incógnitas para a espécie humana: o que vem a ser a morte? por que morremos? e o que nos faz morrer? A morte absurda de um ser humano, dentro do espaço urbano de uma cidade, onde as pessoas que lidam com o trânsito – aquelas que têm a responsabilidade de discipliná-lo, não o disciplinam bem; e as que têm a responsabilidade de seguir as orientações de sinalização, não as seguem. É que, na verdade, os responsáveis pelos episódios de morte, somos nós próprios: não é o fato de existirem ciclistas, pedestres, motociclistas e condutores de automóveis ou de caminhões, ou de ônibus, que faz com que aconteça ou deixe de acontecer acidentes. E, depois, como é que esse episódio é recepcionado por outros seres humanos... que eu destaco, em dois momentos, o episódio um, um poema que faz referência ao episódio de morte de um ciclista por atropelamento, e o episódio de um pedestre. Tanto o ciclista quanto pedestre, eles são apenas uma atração de curiosidade para os outros seres humanos que habitam a cidade, mas em nenhum momento há manifestação, por exemplo, de solidariedade, com a prestação de socorro. Então, isso, que teria sido um material antipoético, eu tentei - não sei se consegui, eu procurei transformar em poesia. Como também episódios humanos menores, também considerados menores e até antipoéticos, como a presença de uma. mendiga numa rua do centro da cidade, que pessoas passam por ela diariamente e nem se apercebem da existência dela; até mesmo quando ela deixa de existir, as pessoas também não se apercebem dessa inexistência - é o caso do resgate de vida da Madalena, que era uma mendiga que fazia ponto de mendicância na Simplício Mendes, no centro antigo, no perímetro urbano da cidade de Teresina. Ou a presença do que, hoje, seriam meninos de rua (não por outras razões, no momento em que eu presencie o episódio, eram negros, e eu os evoquei como sendo "negrinhos descarnados"), que estavam a catar laranjas e limões podres no mercado central da cidade de Teresina...

Elias Paz e Silva - Paulo, nesse sentido, a tua poesia, o teu poema, a tua poética é um testemunho histórico - aquilo que você viu, captou e transformou isto em emoção estética.

PM - Quase sempre, porque às vezes também lanço mão de informações obtidas de outros...

Elias Paz e Silva - Mas também é história.

PM - Sim. Também é história contemporânea o episódio não presenciado ou testemunhado por mim, resgatado de relatos, do relato oral de outras pessoas que testemunharam estes episódios, a não ser quando, num determinado momento, eu trabalhei, especificamente, com o que também é dito como algo antipoético, e tem a ver, no caso, com a história pessoal - seria resgatar um documento em relação ao meu avô... e eu tentei também, a partir do documento, com a linguagem, inclusive através da qual o documento tinha sido escrito, transformá-lo numa matéria poética...

“NO MEU CASO, EU TENTEI TRABALHAR COM O FATOR DETERMINANTE TEMPO, COMO CONDUTOR DA ELABORAÇÃO DOS TEXTOS”.

Elias Paz e Silva - E o tempo, Paulo - no “Libertinagem” você trabalha com tempos verbais -, como entra a questão do tempo, o tempo histórico, o tempo não-linear, do tempo eterno, como que entra no teu trabalho?

PM - Bom... Isto é a partir de uma informação que, por leituras - e eu sempre fui um ser orientado para leitura, tive esta oportunidade de ler desde criança - cheguei a uma conclusão - através de muitas leituras - de que a literatura, qualquer que seja ela, de qualquer nação, se faz a partir de um trabalho de reconstrução de memória ( - as memórias individuais que, reconstruídas, dão como resultado a memória coletiva). A partir desse ponto de vista, é que eu elenquei o tempo como sendo, talvez, o fator determinante da produção literária, no meu caso, poética, (pra outras pessoas, poderia ser a reconstrução através de uma prosa de ficção, de um romance ou de um conto ou de uma novela). No meu caso, eu tentei trabalhar com o fator determinante "tempo", como condutor da elaboração dos textos. Na confecção, por exemplo, de “Tá pronto, seu lobo?”, o livro foi planejado de tal sorte que o primeiro poema que abre o livro, que é o “Post card 57/77”, à época era o poema escrito mais próximo da data de lançamento do livro, e o último poema - o “Libertinagem” - é o que tinha sido escrito a um tempo maior, mais distante da data de publicação do livro. Haja vista que todos os poemas, os 22 poemas que compõem o “Tá pronto, seu lobo?”, todos foram escritos e reescritos num interstício de tempo entre 1974 e 1977 (o livro foi editado em janeiro de 78).

Elias Paz e Silva - Paulo, no teu percurso poético, vemos incursões épicas, líricas e até na estética concreta; como está se processando isso na tua construção literária?

PM - Eu estou tentando dar continuidade a dois projetos paralelos. Um primeiro, que é a continuidade do trabalho iniciado com “Tá pronto, seu lobo?”, e num segundo momento com "A paz do pântano"; e um outro, que é a elaboração de poemas não-discursivos, que até este momento continuam inéditos, não foram publicados nem mesmo em jornais ou revistas...

Elias Paz e Silva - ...Aquela antologia “Baião de todos” tem três poemas que são desta estética não-discursiva...

PM - Exato. Ali é uma mostra do que estou tentando fazer, na outra vertente. Existem outros poemas; no momento oportuno, se eu tiver condições, ponho a público, através de um livro.

Elias Paz e Silva - Historiador, advogado, poeta: como é que você convive, Paulo, com a multiplicidade?

PM - Na verdade, a atividade como advogado tem uma característica que a aproxima das outras duas: porque eu tenho tentado compreender a estrutura agrária brasileira e tenho tentado uma. especialização, a meu modo, como agrarista. Essa atividade me levou à necessidade de conhecer, pelo menos dentro das minhas limitações, o processo histórico brasileiro e piauiense. Fato que me conduziu, por exemplo, a realizar uma pesquisa sobre o extermínio e a espoliação das nações nativas, que habitaram o Piauí no século XVII até meados do século XVIII. No trabalho eminentemente literário, essa orientação para a História só fez me ajudar, me deu chance de fazer algumas reflexões para que eu pudesse transformá-las, ou pelo menos tentar, transformá-las em texto literário, no caso específico um texto literário com a feição poética.

“NA VERDADE, EU SOU MAIS FREQÜENTEMENTE POETA QUE UM FICCIONISTA...”.

Elias Paz e Silva - Você enveredou também pelo campo da ficção. A tua ficção tem essa mesma matriz, essa mesma origem?

PM - Tem. Na verdade, eu sou mais freqüentemente um poeta que um ficcionista, mas as poucas experiências que eu tive com a elaboração de contos foram realizadas com esta mesma perspectiva. O conto “O anjo proscrito" é uma revisão de um episódio histórico do período republicano. E os outros contos, curtos, com personagens anônimos, eles são sempre orientados para a vertente histórica, brasileira ou teresinense, especificamente.

Elias Paz e Silva - Que referenciais estéticos, políticos e ideológicos você usou para cunhar a expressão "Geração pós-69"?

PM - Bom... em primeiro lugar, referencial histórico-cultural, porque a geração cultural que surgiu depois do fechamento do ciclo da geração de 60, no âmbito da literatura, foi rotulada por jornalistas e ensaístas como sendo a geração do mimeógrafo (incluindo aí tanto novelista, contista e poeta, mas excluindo as outras expressões artísticas) ou por outros como sendo a "geração marginal". Desde o primeiro momento, ao tomar conhecimento dessas rotulações, eu entendi que elas eram errôneas - e aí precisaria dar uma re-orientação. Eu peguei um fato político-cultural universal no ano de 69, que foi a chegada do homem à lua, como sendo um fato que definia um corte cronológico, no que aconteceu antes e no que deveria acontecer depois desta data. E algumas manifestações na área de cultura (algumas delas inclusive realizadas no Brasil, com destaque, inclusive, para uma forma nova de se fazer jornalismo impresso, que é em 69 o surgimento do Pasquim). E, me parece, ser menos equivocado chamar produção cultural todas as manifestações artísticas realizadas a partir da década de setenta, a geração "Pós-69". Talvez a mídia de informação mais freqüente para os produtores culturais tenha sido exatamente o jornal "O Pasquim", com uma linguagem jornalística própria e que tinha como finalidade servir de uma trincheira de resistência. Em relação especificamente à poesia brasileira de expressão piauiense, eu peguei como referência para a rotulação da geração um fato estético e literário: a materialização de um livro do Hindemburgo Dobal Teixeira, "O Dia Sem Presságio". É um livro de 69, ganhou inclusive um prêmio nacional, foi editado no ano seguinte, em 1970. Nele, a gente vê o trabalho do poeta para a concepção de uma poesia com rigor estético e uma preocupação com a renovação das formas poéticas.

“ANTES DELA (A GERAÇÃO PÓS-69) NÃO EXISTIAM NO PIAUÍ CARTUNISTAS, CHARGISTAS E QUADRINISTAS”.

Elias Paz e Silva - Como você analisa a produção literária da "Geração pós-69", em termos estéticos?

PM - Da maior expressividade. Não reconhecida, ainda, pelos centros acadêmicos e pelas instituições, mas com vitória, com êxito, em vários campos da manifestação artística. Inclusive, no caso específico do Piauí, com o surgimento dos primeiros chargistas, dos primeiros quadrinistas, na esfera cultural do Piauí, que são todos pertencentes a esta geração. Antes dela não existiam no Piauí cartunistas, chargistas e quadrinistas.

Elias Paz e Silva - E a produção literária dessa geração, Paulo, ela resiste ao tempo, ela se mantém, na tua concepção, na tua ótica?

PM - Sim. Há obras produzidas por integrantes da geração que são, indiscutivelmente, referenciais estéticos para o processo cultural piauiense. A divulgação tem sido feita, inclusive, de uma forma conseqüente, porque desatrelados dos órgãos públicos responsáveis pela elaboração e execução da política cultural.

Elias Paz e Silva - Esclareça-nos, Paulo, o projeto Pulsar de cultura.

PM - Na verdade, não se trata de um movimento, como algumas pessoas andaram, erradamente, rotulando. A revista "Pulsar" é um veículo de divulgação do ideário da geração. As pessoas que estão produzindo a revista, deliberadamente, iniciaram as atividades em um núcleo de produção cultural, onde não se faz apenas a edição de livros, mas há pessoas trabalhando com outras manifestações artísticas: teatro, cinema, as artes plásticas, as artes gráficas e a literatura. Essas pessoas têm buscado dar seqüência à divulgação de suas idéias com mídias alternativas, e uma delas é um foro da internet - há um sitio na internet dedicado à Geração "Pós-69".

“RUPTURA ESTÉTICA PRINCIPALMENTE EM RELAÇÃO À FORMA”.

Elias Paz e Silva - Paulo, qual a ruptura, dentro do projeto estético, literário, existencial, em relação às gerações que a anteciparam, em termos de produção literária piauiense?

PM – Ruptura estética principalmente em relação à forma. Na literatura brasileira de expressão piauiense a concepção de um novo conto, de uma nova novela e de um novo fazer poético, onde não há mais a presença das formas fixas e tradicionais de expressão da literatura.

Elias Paz e Silva – Como você vê a inclusão do livro “Tá pronto, seu lobo?” no vestibular da UFPI? Em que isso contribui para a divulgação da tua obra e para compreensão do teu trabalho?

PM – Eu vejo como um enfoque circunstancial e de caráter transitório. No ano de 2002, aparentemente houve uma maior atenção, por parte de algumas instituições e por um conjunto de leitores para o livro, pelo fato de ele ter sido incluído na relação de livros que provavelmente possam ser explorados pelos elaboradores das provas de Comunicação da Universidade Federal do Piauí. Mas, em termos de realização, eu não tenho nenhuma esperança, nenhuma ilusão de que possa ter contribuído para uma melhor compreensão do que já foi escrito. O livro, na verdade, ele tem quase um quarto de século de existência, ele foi tornado público em janeiro de 1978, mas os 22 poemas que o compõem foram produzidos no interstício de tempo de 74 a 77. E neste lapso de 24 anos, a contar da primeira edição, eu acho que ele foi muito pouco lido, pouquíssimas pessoas refletiram sobre os textos. Na verdade ele permaneceu durante todo esse considerável lapso de tempo com uma única edição – a segunda edição veio acontecer agora, em 2002. E eu tenho tentado acompanhar, na medida do possível, a vendagem dos exemplares, e você constata que ela é muito pouco expressiva. Foram editados dois mil exemplares; desses, 100 foram entregues a mim, para que eu desse a destinação que achasse mais condizente, e os outros 1.900 foram postos à disposição dos prováveis leitores. Se nós considerarmos que são cerca de 20.000 vestibulandos (aproximadamente), para que a edição fosse esgotada bastaria que dez por cento dessas pessoas se dispusessem a adquirir o livro, o que infelizmente não aconteceu.

Elias Paz e Silva – Paulo, diga o que você gostaria de dizer para o leitor da tua obra, para as pessoas que têm acompanhado teu trabalho literário, que têm acompanhado a tua ação como cidadão, como intelectual, como pessoa.

PM – Bom, o conjunto de 22 poemas que foram rotulados de “Tá pronto, seu lobo?” e editados em 1978, é uma mostra de que eu, como escritor, de uma forma honesta, assumi o compromisso de realizar. Ficaria satisfeito se eu tivesse um maior número de leitores. Eu acho que nenhuma pessoa que escreve se contenta com o fato de escrever e, posteriormente, ser editado, sem que haja o retorno com a leitura, mas também não acho que haja nada de anormal nisso, não... Um envolvimento de cerca de 30 anos de trabalho literário (eu iniciei a escrever, conscientemente, com o propósito de fazer literatura, em 72), eu acho que até é um tempo muito pequeno – três décadas dizem muito pouco. Pode ser que os poemas permaneçam e sejam, no futuro, mais lidos e compreendidos.

“NA VERDADE, ESSA REESCRITURA É UMA CARACTERÍSTICA QUE EU TENHO E GOSTO DE EXERCER, DE QUE O TEXTO SEJA CONTINUAMENTE REESCRITO”.

Elias Paz e Silva – Eles foram reescritos, não é, Paulo?

PM – Foram reescritos, mas sem que a proposta primeira tenha sido modificada ou comprometida. Na verdade, essa reescritura é uma característica que eu tenho e gosto de exercer, de que o texto seja continuamente reescrito. Isso tem acontecido sempre.

Elias Paz e Silva – Recentemente, Paulo, o crítico e poeta Chico Castro lançou “As travessuras do mamulengo”, que é um ensaio sobre o livro “Tá pronto, seu lobo?”; qual a visão que você tem deste ensaio e em que ele contribui para melhorar o entendimento, a compreensão da tua proposta literária?

PM – Eu compreendo que o ensaio feito pelo Chico Castro fornece algumas pistas de leitura, que podem ser aproveitadas por qualquer leitor, não somente os que estejam circunstancialmente comprometidos com a realização do vestibular na Federal, agora em 2003. Há, também, um ganho, no sentido de que pode acontecer que o livro do Chico, de alguma maneira, atraia a atenção dos prováveis leitores para o conhecimento da própria obra “Tá pronto, seu lobo?”. Pelo que me parece, também, oportuno dizer é que o Chico Castro é um integrante da “Geração pós-69”, então seria uma reflexão feita por um integrante da Geração sobre uma obra poética produzida por outro integrante, que pertence à mesma geração. Essa é uma das coisas importantes.


Elias Paz e Silva e Paulo Machado
via Recanto das letras

Paulo Machado - síntese biográfica




Paulo Henrique Couto Machado (23-07-1955) nasceu em Teresina - PI.  Advogado. Defensor Público. Poeta, contista, cronista, historiador. Pertence à Geração Pós-69. Ganhou alguns prêmios literários. Na década de setenta, fez política estudantil e editou, ao lado de companheiros de geração, o jornal mimeografado "ZERO". Integrou o grupo responsável pela edição do jornal alternativo "Chapada do Corisco", em 1976 e 1977, em Teresina. Integrou a comissão editorial de literatura da revista Pulsar. Bibliografia: Tá pronto, seu lobo? (1978); A paz do pântano (1982); Post Card (1992). Participou dos livros: Ciranda (1976); Aviso prévio (1977); Galopando (1978); Poesia teresinense hoje (1988); O conto na Literatura Piauiense (1981), entre outros. Fotografia: Paulo Machado por André Gonçalves.

8.2.13

RUA DO MERCADO VELHO




Não há poesia nas esquinas
Só o grude negro dos anos
Esmaecendo as cores das paredes
                                            /nuas
Com realidade e ausência de rimas



em Artesanato existencial 
Teresina: Corisco/Sapiens, 1998

MARIA DA INGLATERRA




Quando o disco voador
Depositou as canções
Naquele raio de luz
Na curva daquela serra
Eu disse pra dizer nada
Disse pra ficar calada
Que de louco, compositor e artista
Ninguém aqui tem é nada



em Artesanato existencial 
Teresina: Corisco/Sapiens, 1998

POR QUÊ, PACATUBA?




Por que a Pacatuba
Agora São João
Deságua no Parnaíba
Molha a lembrança
Renasce no coração?



Climério Ferreira
em Artesanato Existencial
Teresina: Corisco/Sapiens, 1998

ESTAÇÃO TERESINA




                                              o sol



aquece as calçadas

carros estacionam um outono de acácias
(amêndoas sob as rodas)

cai uma folha
e a cidade desperta



Carmen Gonzales
em BAIÃO DE TODOS
Antologia Poética organizada por Cineas Santos
Teresina, Editora Corisco (1996)

27.1.13

"O rio deságua em mim!", por Ednólia Fontenele



O rio deságua em mim!
algum braço do Parnaíba
prende minha intenção de viver longe.
Estou aqui
mas permaneço lá,
suando com o calor
de suas tardes quentes
que se afogam nas águas do mar.
O RIO PARNAÍBA DESÁGUA EM MIM


                                                         Aracaju, 1994


Ednólia Fontenele
em A POESIA PIAUIENSE NO SÉCULO XX | Antologia
Organização, introdução e notas por Assis Brasil
Teresina / Rio de Janeiro: FCMC / Imago, 1995


2.1.13

PAISAGEM AMARELA





maria
todo dia
ia
de encontro ao cais.

trouxa na cabeça
ia maria lavrar planos
que há anos
o rio enxaguou.

levava um sorriso pálido
pra dar sentido
à roupa amarelada.



Wilton Santos
em CERCA DE ARAME
Teresina: 1979

PRETA MALUCA




preta, a virgem mais clara
da paissandu
deu pra exótica
quando sentiu
bater à porta
a velhice.

pintou na boca
agitou um fino
enquanto se enrugava
depressa se alegrava
da ativa...
- sonhava...



Wilton Santos
em CERCA DE ARAME
Teresina: 1979

CIDADE VERDE, Wilton Santos


quanta maldade
cidade verde
esta cidade!

fruto da ilusão medíocre
da razão insensata
na proporção da verditude
                                das fardas
amarrotadas, fedorentas e desbotadas
como é esta cidade.

...esta crueldade
amedronta os ratos.


Wilton Santos
em CERCA DE ARAME
Teresina: 1979

1.1.13

TRAJETÓRIA, Nathan Sousa


Bicicletas cortam a Miguel Rosa
colecionando olhares pela estação
adormecida
e seus trilhos
sem trem.


Nathan Sousa
enviado pelo autor

TOMBAMENTO, Nathan Sousa


Os estacionamentos privativos
golpeiam os casarões da história,
que tombam para sempre.

Os relógios verticais
param para ver quanto tempo
ainda irão suportar
as esquinas da Paissandu.


Nathan Sousa
enviado pelo autor

31.12.12

O MALA, Hélio Soares Pereira


A onda anda mansa
   nas bocas da maré
       sem o agito das moitas

Um mala
   pinta no pedaço
       na cola
           de quem tem trampo

Alguém dá o berro
   - Cadê meu cruza?


A boca esquenta
   O cana vai fundo
       pisando nos calos
          do brasuca cara de pau
              que tenta
                  fugir da raia


É a maré
   que não tá pra peixe
        só pra anzol

O mala é fisgado
   com um berrante na cuca
       que se funde nos grilos
           Mas muito vivaldino
                saca na fuça do cana o chapa
                    que se liga em cascata

E deixa cair de leve
    a gaita
        na boca do balão


em No laço da opressão 
Brasília: Gráfica Valci Editora, 1998